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Oscar ALHEIROS

A VER NOVAMENTE
A Re-evolução da Psicanálise

– 2022 / 2023 –
Que o DEUS compassivo e amoroso, A VERDADE,
conceda a mim, e a todos que lerem este livro,
que encontremos A VERDADE dentro de nós mesmos,
e nos tornemos conscientes dela. Amém.

MESTRE ECKHART

2
Sumário
1
ELA CANJA ERA
Epistemologia da NM é a de Escher: a mão que desenha a mão que a desenha
– Teoria das Formações: todas as manifestações do Inconsciente interessam
– Parâmetros e paradigmas do século XX são desenhados demais – A era de
Lacan já era e era canja – Ordem paradigmática atual: reciprocidade na
Transa entre as formações de uma pessoa e do mundo – No Quarto Império,
amplia-se o campo do possível, trata-se do porvir.
Ʃ Ʃ Ʃ
Análise de uma pessoa: considerar as formações em exercício e mostrar seus
movimentos na pressão do Inconsciente – Escuta: o que vem de lá para cá.
Ʃ Ʃ Ʃ
Teoria estrutural sabe o que é a estrutura, Teoria das Formações não sabe
quais formações estão em jogo, é caso a caso – Paradigmas anteriores
achavam que podiam prever o porvir – Falta de rosto do porvir apavora os
não-pensantes, que correm para trás procurando um desenho para ele – Deus
é imortal.
Ʃ Ʃ Ʃ
Todo conhecimento é precário e provisório – Instalação de um Quarto
Império implica uma virada no sintoma da língua – Nova tecnologia terá que
rastrear não apenas o que a pessoa faz, mas também o que não faz.

Nota1: Psicanalhistas – Nota 2: Operamagna de Whitehead, Process and


Reality.

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EVOLUÇÕES DA PSICANÁLISE
Pensamento psicanalítico é work in progress – Obra de arte é referência para
a prática e a teoria analíticas – Abordagem ambígua de Lacan de O
arrebatamento de Lol V. Stein, de Marguerite Duras – Para a NM, seguindo
a evolução da psicanálise, o caso Lol pode ser referido à Tanatose, e não à
possessão demoníaca, histeria ou psicose – Caso Lol: fantasia sexual de
ménage frustrada e arrebatamento místico abrupto.
Ʃ Ʃ Ʃ
Composição de O Arrebatamento de Lol V. Stein: experiência tanática em
narrativa maneirista – Evolução da psicanálise implica reconsiderar o ápice
dos processos psíquicos, e não apenas as mudanças de paradigma.
Ʃ Ʃ Ʃ
Fantasia Originária está no mesmo lugar da Alei – Necessário cruzamento
da Mística com a Pornografia como confluência da Fantasia com Alei.
Ʃ Ʃ Ʃ
Notas: (1) O interesse de Pierre Janet sobre as relações entre economia
psíquica e êxtase religioso – (2) A noção medieval de Apex mentis.

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PSICANÁLISE E PORNOLOGIA
(A Transa Mística da Obscena Senhora H)

Algoritmo d’ALEI (Haver Desejo de não-Haver) = Fantasia Originária –


Hilda Hilst, a Santa Teresa de Campinas.
Ʃ Ʃ Ʃ
Hilda Hilst: a multiplicidade em fluxo, crivada pelo estado de perplexidade
diante do mundo – Uma ascese floemática – Transcendentação místico-
erótica dos personagens/Hilda.
Ʃ Ʃ Ʃ

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“Epistemologia” de Hilda Hilst – Estatuto místico da psicanálise – “As mãos
desenhantes”, de Escher: a mão que desenha a mão que a desenha – Hilda
Hilst: “olhar as coisas com o olhar que as cria”.
Ʃ Ʃ Ʃ
Conhecimento é quiasmático, e não subjetivo – Hilst e Eckhart – Deus=Eu:
as duas posições se desenham uma à outra – Hilda Hilst: o colapso do
problema filosófico imanência / transcendência.
Ʃ Ʃ Ʃ
Estatuto místico do Inconsciente e estatuto místico da psicanálise – Georges
Bataille: erotismo e transgressão – Hilda Hilst: transa em Revirão entre a
pornologia e o aturdimento místico de última instância.
Ʃ Ʃ Ʃ
Explicitação da fantasia e do sexual como conhecimento.
Ʃ Ʃ Ʃ
O viés da Hilda mística – Experiência erótica marcada pelo lugar da solidão:
um Eros divino.
Ʃ Ʃ Ʃ
Hilda Hilst e conceitos e/ou lógicas importantes da NM.
Ʃ Ʃ Ʃ
Emergência do Quarto Império: colheita da mística – Brasil: situação de
perplexidade.
Ʃ Ʃ Ʃ
Nota 1: Novilíngua – Nota 2: Teofagia, Heterofagia.

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O LUGAR TERCEIRO DA PSICANÁLISE
Não-Haver: o simétrico fatalmente desejado por Haver que não se entrega
como fatalidade requerida porque não há – Haver: anterior a qualquer
partição; Ser: âmbito das formações cindidas – Psicanálise: Lugar Terceiro
em relação às oposições de mundo e a seus sistemas de valoração – Roteiro:
5
(1) Retraçar o que Dany-Robert Dufour descreve como recalcamento do
pensamento ternário no Ocidente. (2) Sumariar algumas das polarizações em
torno do vitorioso binarismo de matriz grega. (3) Trazer o pensamento
oriental à conversa – notadamente o chinês –, destacando proximidades e
diferenças. (4) Considerar a razão egípcia que – junto com a chinesa, a grega
e a psicanálise – compõe o tetraedro das razões desenhado por MD (2003).

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1
ELA CANJA ERA

A epistemologia aqui em ação é a de Escher, tal qual apresentada


pela NovaMente1: a mão que desenha a mão que a desenha – sem
sujeito ou objeto. Isso também diz respeito ao mundo e ao
entendimento que a NM faça do mundo a cada momento. Há o
mundo e a NM: a mão que desenha a de cá que desenha a de lá –
no mesmo estilo epistemológico.
O tema a ser tratado hoje é:

ELA CANJA ERA


E CANTO DO CISNE
(OUTRAVEZ NOVAMENTE)
Essa era já era. Essa tchurma já flupou. AKbocetudo.
Se não quiser m’escutar, hikicomori pra você também.
A REALIDADE come o cuzinho da História.
Jeito talvez seja ser hikicomori.
Vato mano cool // em fiano cool //
Procurar na IdadeMedia alta e tardia os Precursores da
MetaPsicologia.

É preciso sempre lembrar que, do ponto de vista da Teoria


das Formações da NM, interessam todas as manifestações do
Inconsciente. Elas serão tomadas como formações a serem

1
A partir de agora, referida como: NM.
7
consideradas. Não há preconceito contra, por exemplo: os
arquétipos, de Jung, pois são formações que ele detectou com alta
repetição no campo dos sintomas; os signos do Zodíaco, que
também se repetem na cultura e são formações sintomáticas que
influenciam a mente das pessoas; as formações profissionais, que
são cacoetes sintomáticos; os ditames culturais; quem você pensa
que é...
Por que se coloca a questão: ELA CANJA ERA? Se
entendemos com um mínimo de clareza o mundo que está
acontecendo hoje, chegamos à conclusão de que aquela Era
anterior passou, já era – e era canja. Dado que os parâmetros e
paradigmas de referência continuavam primordialmente em
exercício e podiam ser referência razoavelmente confiável, isso
tornava a coisa relativamente mais simples, muito mais simples do
que acontece agora. Além do mais, as referências anteriores – que
não devemos criticar, pois, a seu tempo, eram excelentes (seja
Freud, Lacan ou mesmo outros intermediários que colaboraram
com algumas coisas) – se montavam sobre paradigmas e
parâmetros muito desenhados e com certa permanência no mundo
até o final do Terceiro Império. Ora, justamente a entrada de Quarto
Império que vivemos agora é Oespírito, ou seja, da relação direta
com a Informação em seu estado singular de cada informação: a
excessiva velocidade da comunicação e uma formação olhando
para outra com noção de absoluta relatividade.

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Então, não adianta tomar determinada formação para ser
paradigmática da situação atual. Por isso, Teoria das Formações.
Como considerar a cada caso a formação lá em jogo? Como
analisá-la, ou seja, separar com o máximo possível de clareza suas
componentes? Isto, para que se esclareça que qualquer formação
não passa de uma construção sintomática. Então, nessa era – que já
era –, vista do ponto de vista de nossa atual problemática terrível,
era canja tomar o paradigma do momento para entendimento do
que ocorria. O paradigma de Freud era a emergência científica do
século XIX e um pouco adiante. A operação de Lacan foi dentro da
emergência científica do século XX. Freud assentado sobretudo na
vertente histérica, e Lacan na vertente paranoica. Estamos hoje na
vertente Progressiva, foi o Mundo que a impôs. Daí o humor da
frase ELA CANJA ERA, a Era era canja. Além do fato de nosso
querido Dr. Lacan estar datado. Hoje, não há disponibilidade
científica senão o que se entenda como o que quer que possa
sustentar uma Teoria das Formações.
No passado, temos entendimentos da teoria da informação, de
ordem linguística, etc., de que podemos lançar mão, mas sem estar
aprisionados no paradigma a que essas coisas se referiam. Lá há
muita coisa disponível enquanto pequenas construções de
pensamento, mas não enquanto paradigmas. Nossa ordem
paradigmática é a reciprocidade na Transa entre as formações de
uma pessoa e do mundo. É isso que foi tomado com a representação
da intuição de Escher. São formações transando com formações...

9
e resultando em formações, ou, também, no entendimento das
formações em jogo nessa transa. Análise é isso. As ideias de
informação e de cibernética, por exemplo, podem ser próximas do
conceito de Art-culação na NM, mas o conjunto das formações em
jogo na Teoria das Formações é bem maior. Se tomarmos a
emergência do que se oferece à nossa consideração, não poderemos
indicar formação alguma como paradigmática fundamental. É o
que vier, é ad hoc: quais formações aparecem como componentes
agoraqui?
Algo claro é o Terceiro Império ter perdido a credibilidade
em pensamento, só tem credibilidade política, comportamental, e
justo isso é a catástrofe que dizem estar ocorrendo hoje. Não surgiu
ainda uma formação capaz de legitimamente representar o Quarto
Império. Ele está em processo. A barbárie aparece aí porque, na
falta de rosto, as pessoas procuram e se agarram a rostos
conhecidos como se fossem salvadores. Estão ferradas, pois não
vai adiantar. Além disso, a ideia que temos de catástrofe –
catástrofe do Terceiro Império, por exemplo – vem por via de
falências na situação atual. Ainda não aconteceram as verdadeiras
catástrofes, aquelas que vêm pela fundação e instauração de Quarto
Império, de algo novo. Por exemplo, esse acontecimento
inteiramente desconhecido que está sendo feito aqui e agora neste
tipo de estudo e consideração.
Há também que refazer o entendimento sobre o campo do
possível, pois até o final do século XX era definido por

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assentamento num presente, num atual. Possível é o que se
desenrolará a partir da capacidade de suspensão de recalques.
Nesse sentido, é performático. Definir o possível pelo atual, é
defini-lo a priori. Logo não é possível, já está dado, aprisionado
num sistema de recalque qualquer que esteja funcionando. Pensar
assim é pouco. Possível não faz par com atual, há, sim, que fazer
valer a ideia de recalque, que sempre mapeou o possível em relação
ao impossível. Nem mesmo o que se chama virtual está valendo. O
nome correto é: o porvir.
E mais, diante de qualquer decisão em sua separação, em sua
bifidização, há um campo de possibilidades que ficaram não
acontecidas como recalque. Antes do acontecer, há uma decisão,
algo vem, mas o outro alelo da situação se recalca. Não são virtuais,
pois são absolutamente efetivas, ativas, tanto é que o Inconsciente
as faz comparecer como sintoma. O Inconsciente não presta, é
mau-caráter, vai à forra do que você fez, vai te perseguir.

Ʃ Ʃ Ʃ

A cada consideração de um analisando como Pessoa – ou na


consideração do que ocorre no mundo como Clínica Geral, que é
outra coisa –, o que é a ser levado em conta são quais formações lá
estão em jogo, como elas determinam os movimentos e os
comportamentos, etc., e como se pode apontar essas formações
como comprometidas com a situação. A tomada de consciência de

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que essas formações estão determinando as pessoas – ou o mundo
– é que, analiticamente, pode levar à decomposição em suas partes,
em seus componentes. É por aí que passa a análise.
Ao escutar um analisando, vê-se que, além de todas as
conjugações com seu Inconsciente, ele começa a exprimir uma
vertente sintomática forte no sentido do entendimento dos signos
do horóscopo, por exemplo. Ele é praticamente conduzido em sua
vida por esse tipo de formação. Há que escutar essas formações,
entendê-las e tentar analisá-las, reduzi-las a seus componentes
históricos, composicionais, significativos, etc., para a pessoa
entender que está metida num campo de formações. Uma vez isso
entendido, ela poderá se afastar do campo, tornar-se neutra ao
máximo diante das formações que mais a determinam como
organização mental. Agir assim é uma radical diferença para com
toda a história da psicanálise. Trata-se, portanto, de considerar
quais formações estão em exercício, como analisá-las, como
mostrar seus movimentos na pressão do Inconsciente.
Portanto, não é canja. Era muito mais fácil quando se
projetava um paradigma de nossa cabeça sobre uma questão. A
escuta precisa virar escuta mesmo, é o que vem de lá para cá. O que
é isso que está como formações diante das minhas formações? Que
solução se pode dar aí? Como ana-lisar isso em seus componentes
mínimos? Não é preciso esforço algum de catequese, pois quando
o analista consegue – o que é difícil e frequentemente recusado pelo
analisando (é o que Freud chamava de resistência) – ana-lisar as

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formações em jogo (ou seja, o simples fato de situar essas
formações, seus componentes, suas sub-formações, suas
correlações) e o analisando se permite escutar, o sintoma já está
dissolvido.

Ʃ Ʃ Ʃ

Quanto à consideração desse panorama anterior e da canja que lhe


é inerente, a título de ilustração, podemos tomar um autor não
muito conhecido entre nós, mas encarecido por Lacan e comentado
por MD Magno2 em 1984, Philippe Nemo. Em seu L’Homme
Structural (1977), ao tratar da propalada morte do homem, destaca
três figuras dessa morte: (a) o sujeito, aquele que diz “eu”, um eu
psicológico (e morto por Espinosa ao colocá-lo como “parte da
natureza”); (b) o espírito (agora a oposição não é mais homem /
natureza, e sim: espírito / natureza) – Hegel é quem está na ponta
dessa morte; e (c) o coração, aquele que está sob o impulso do
desejo, cuja raiz está no sexo (o homem é visto como dividindo
suas características com a animalidade), e aí temos Freud e
Foucault.
Diz ele ainda que, desde a época das luzes, vivemos “num
campo filosófico hegeliano, clivado por essas duas determinações
do homem, ser-natureza e ser-discurso”. A proposta de seu livro é

MD Magno, autor da NovaMente, que, daqui por diante, será citado como:
2

MD.
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a de conceber um homem estrutural pensado não a partir do
estruturalismo, mas da ideia de estrutura trazida por Lacan. O que
vemos é que mesmo essa ideia, que parecia promissora naquele
momento, estava esteada num paradigma único e bem definido e
ele não tinha se dado conta do processo que estava por chegar,
ainda era cedo. Ou seja, era canja. Para ver isso, basta comparar a
teoria estrutural com a Teoria das Formações. Aquela sabe o que é
a estrutura, esta não sabe quais formações estão em jogo. O
entendimento das formações em jogo é caso a caso. Temos apenas
a epistemologia de Escher: as formações, digamos, da pessoa e as
formações do mundo se configurando reciprocamente.
Há, portanto, o modelo do estruturalismo numa ponta e o
modelo transitivo e transativo de Escher noutra. É uma história
grande de acontecimentos que movimentaram o campo dos
conhecimentos. No meio do caminho, a canja foi ficando rala
devido a alguns pedaços de articulação que colaboraram para isso.
Por exemplo, cibernética, complexidade, fractais, avanços na
cosmologia, estudos sobre o Primário, ora distinguindo, ora
mostrando conexões em sua composição. O paradigma anterior
definia, confiávamos nas distinções e definições, e o mundo parecia
funcionar consoante a isso. A Teoria das Formações e o modo
gnosiológico de Escher são articulações bem maiores que o
embaralhamento que a segunda metade de século XX produziu
tornando rala a canja. Efetivamente, o convite é à consideração do

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que comparece suspendendo toda suposição prévia do que seja o
que comparece.
A ideia agora, como dito antes, é de que o porvir está em jogo,
está ampliado, não se sabe mais qual é. É justamente essa falta de
rosto do porvir que apavora a extrema maioria ignorante, que fica
correndo para trás procurando um desenho para ele. É a resultante
do momento atual enquanto apavoramento dos não-pensantes, que
não têm ferramenta, formação paradigmática ou disponibilidade
mental para ficar na disponibilidade da emergência das formações.
Portanto, correm em busca de um rosto conhecido. A ferramenta
da Pulsão freudiana, tomada como “Haver desejo de não-Haver”,
seria um análogo eloquente desse não ter rosto, que é eco de um
desejo não realizável em última instância. O pulsional coloca os
movimentos de conhecer, de transa, sob a égide de um desejo de
Impossível Absoluto, que é atrator e, ao mesmo tempo, entrega um
trauma fundamental. E isso leva a falar mais dele como atrator de
um porvir cujo rosto não sabemos qual é.
Donde a ideia de morte de meados do século XX para cá, que
retorna nas escalas em que tem comparecido desde a recente
pandemia. Mesmo impensada enquanto tal, enquanto morte
existente – sabemos que o psiquismo não entrega essa experiência
–, ela vem atualmente sendo rondada para mostrar o Impossível aí
em jogo. Isto, seja por sua presença em escalas desconhecidas
anteriormente, seja como elaboração na série: “Deus morreu”; “o
homem morreu”; “a arte morreu”; e “a morte morreu”. Estamos,

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portanto, na situação de atravessar o entendimento de que não há
morte, e ao mesmo tempo a morte vem sendo reclamada como
metáfora ruim do Impossível. É, aliás, o que estava em Freud ao
falar em pulsão de morte. Fazendo um parêntese, o Deus que
morreu foi aquele boneco configurado por certa paradigmática. No
sentido da NM, se quisermos ficar na tradição ocidental, é possível
continuar nomeando algo como Deus, sem nada ter a ver com o
boneco antigo e que mesmo ultrapassa o Deus de Espinosa. Para
ele, era Deus sive Natura, para a NM é Deus sive Habere, que é
antes de Natura. E se é possível nomear essa função como Deus,
temos que conceber que Deus é imortal. Ele pode quase tudo,
menos morrer. Haver não morre. A formulação “Deus morreu”
pertence ao paradigma velho, da canja. Deus era canja, quero ver
como lidar com Ele agora.

Ʃ Ʃ Ʃ

A analogia das mãos de Escher – a mão que desenha a mão que a


desenha –, passando para a noção genérica de formações em transa,
é só o que temos. Por isso, todo conhecimento é precário e
provisório. É um processo sem começo nem fim porque as
formações em transa mudam. Nesse sentido, é a transa que
interessa. O resultado será sempre precário, embora possa ser
bastante útil e funcional. E mais, o provisório pode ter longa
duração. Por isso, vira sintoma bravo e passa a ser projetado sobre

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o mundo. Por exemplo, a língua que utilizamos, seus morfemas,
semantemas e sintagmas estão sobretudo situados nos Segundo e
Terceiro Impérios. É claro que há as exceções de poetas e criadores
como Joyce, Pessoa, etc.
Lacan já dizia que uma língua é um sintoma, e quando o poeta
percebe que o sintoma impede que diga o que pretende, ele a torce.
Para a instalação efetiva de um Quarto Império, a língua terá que
sofrer uma verdadeira virada. Já está sofrendo, aliás. Basta
observar a crescente quantidade de semantemas estrangeiros em
nossa língua. A televisão expõe a cada dia inúmeros erros de
português escritos e falados. Então, a língua não está apenas sendo
torcida, ela está sendo desdenhada. É desconfigurada o tempo todo
nos aplicativos em que as pessoas digitam com seus polegares,
incluem emojis, sons, etc. Assim, em vez “minha mente”, “meu
cérebro”, seria o caso de dizermos “o que acontece por aqui é...”
Ou seja, aqui e agora está valendo, pois não é em todo lugar e a
toda hora que está acontecendo. Aqui e agora é o nome do que é
ocasional.
Outro instantâneo provisório da canja que ainda vigora pode
ser identificado no que a tecnologia, via algoritmo (0/1), consegue
minerar da ordem sintomática das pessoas e de seus cliques, de suas
entradas on-line, de suas compras e vendas, de suas manifestações
de opinião. Essa mineração está, na verdade, entregando uma
enorme Neo-etologia. Ela tem camadas de programação de captura
dessa Neo-etologia, sempre com o propósito de auferir lucros.

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Operando assim, a tecnologia dá a parecer que isso se auto-
alimenta e que durará muito tempo ainda, pois não são visíveis as
possibilidades de comoção. O rumo, então, parece ser o da
mudança da tecnologia para a situação não permanecer como está.
Ela terá que rastrear não apenas o que a pessoa faz, mas também o
que não faz, se quiser entregar algo que tenha a ver com a pessoa.
É o caso de pensarmos no algoritmo que determina a fantasia
de cada um, que é historicamente construído. Se alguém consegue
relatar seu tesão, o que é raro, ou seja, consegue mostrar qual seria
a composição do algoritmo de sua fantasia, veem-se nitidamente as
peripécias pelas quais aquela pessoa passou para construir esse
algoritmo que determina seu tesão. Não é qualquer um. Se fosse,
todos teriam o mesmo algoritmo. Daí que LGBTQIA+etc. é
besteira, pois a sexualidade de cada um é sui generis. “Lugar de
fala” e coisas quetais, tudo isso vai acabar. A morte é um santo
remédio, essa gente toda vai morrer. Notem que só a Teoria das
Formações pode ter cacife para dizer desse modo.

Ʃ Ʃ Ʃ

NOTA 1
Há raros PSICANALISTAS e uma multidão de Psi-Canalhistas. Sofre o
leigo por não saber distingui-los.

NOTA 2

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Há muito que me sugiro ler a operamagna de WHITEHEAD Process and
Reality. Agora finalmente me lembrei de querer. É uma tonelada de
raciocínios no entanto deliciosos de curtir. Quem não quiser deglutir as 351
páginas, leia pelo menos a última parte (V) Final Interpretation (p. 337 a
351) com 2 Capítulos: The Ideal Opposites e God and The World. O que
vamos encontrar é: 1) A Bifididade do Haver; 2) Deus = Haver – e seu
clinâmen nos Seres:
# “No entity can be conceived in complete abstraction from the system of
the Universe”.
# “He (God) is the lure for feeling, the eternal urge of desire".

19
2
EVOLUÇÕES DA PSICANÁLISE

O capítulo de hoje tem a ver com o subtítulo deste livro: Re-


evolução da Psicanálise. O interesse é indicar que o pensamento
psicanalítico, como qualquer pensamento que proceda e tenha
processo, é work in progress, com transformações de acordo com
os momentos subsequentes. Isto, para lembrar que a psicanálise
tem evoluções – ao contrário da vocação eclesiástica das
instituições psicanalíticas, que acabam formando pequenas igrejas
em torno de um texto, ao invés de terem atenção à tensão do
pensamento quanto ao que o Inconsciente possa estar registrando a
cada momento da história.
No sentido de exemplificar esse processo evolutivo, tomo o
livro, melhor dizendo, a própria personagem de Marguerite Duras
em Le Ravissement de Lol V. Stein (1964), cuja tradução correta é
O Arrebatamento de Lol V. Stein. Algumas edições por aí fizeram
o erro de traduzir ravissement por deslumbramento (caso da editora
Nova Fronteira, em 1986), mas não há deslumbramento, e sim
arrebatamento no sentido de a pessoa ser arrebatada, levada para o
alto ou para fora. O texto de Duras é interessante por dois motivos,
pelo menos. Primeiro, por seu procedimento ser significante e

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preciso quanto à descrição desse arrebatamento. Segundo, por
Lacan ter feito uma homenagem a Marguerite Duras escrevendo
sobre esse texto em 1965 (Homenagem a Marguerite Duras pelo
arrebatamento de Lol V. Stein). Sempre lembrando que, apesar de
respeitar o pensamento de Lacan, a própria Duras parece não ter
concordado muito com o que ele escreveu, achou meio esquisito. E
veremos que, realmente, não é para concordar totalmente.
Cito agora algumas frases de Lacan nesse e em outros textos
seus que dão garantia ao psicanalista e ao teórico da psicanálise de
sempre procurar forte referência nas obras de arte: os artistas,
quando o são, quando são poetas, têm certa antena para captar os
movimentos do Inconsciente e prescrevem certas formações que,
bem teorizadas, são importantes para a psicanálise. Diz Lacan: “A
única vantagem que um psicanalista tem o direito de retirar de sua
posição, se esta lhe for reconhecida como tal, é de se lembrar com
Freud de que, na sua matéria, o artista o precede sempre e, portanto,
ele não deve brincar de psicólogo onde o artista lhe abre o
caminho”. Diz ele também que “aos analistas resta tomar
conhecimento dos novos sintomas que a arte coloca na obra”, e que
“há antecipação da própria obra artística relativamente à prática e
à teoria analíticas”. Vê-se muito bem o quão ele não era bobo a esse
respeito. Daí o interesse, além da construção teórica de Lacan, de
retomar o texto de Duras hoje. E não é preciso retomá-lo muito
longamente para ter o entendimento analítico, em evolução, sobre
ele.

21
Duras tem outros textos mais conhecidos, como Moderato
Cantabile (1958) e o roteiro do filme Hiroshima, mon amour
(1959). Ela declara mesmo que “todas as mulheres de meus livros,
qualquer que seja sua idade, decorrem de Lol. Isto é, de certo
esquecimento delas mesmas”. Alguns autores também apontam
que os personagens femininos mais notados em seus livros exibem
certo estado de ausência. Em termos da evolução da psicanálise,
posso pensar que se um místico, medieval ou recente, e mesmo um
exorcista da Igreja Católica considerassem a personagem de Lol,
certamente diriam que ela estava possuída (o místico talvez não o
dissesse, mas o exorcista sim). E quero também supor que, dado o
intricado do texto, se fosse considerado por Freud (que, é claro, não
estava vivo quando o livro foi publicado), ela seria colocada na
conta da histeria. Dentro do paradigma freudiano, não seria nada
difícil colocá-la nessa conta. Já Lacan fica deveras impressionado
com o texto de Duras e a personagem de Lol.
Diversos autores, analistas inclusive, que consideraram o
texto de Duras em intromissão com o de Lacan acabaram por fazer
observações cada vez mais acirradas no sentido da psicose de Lol.
Isto, como se o texto de Lacan estivesse indicando psicose para ela.
Em momento algum lá comparece essa denúncia de psicose. Por
quê? Porque ele era muito esperto, mesmo que em seu paradigma
o ápice dos processos psíquicos fosse no sentido da psicose. Como
é sabido, diferentemente do de Freud que era histérico, seu
paradigma era psicótico. Sobretudo, no sentido da paranoia crítica

22
que ele aprendeu com Salvador Dalí. Paranoia esta que configura
claramente o século XX. Lacan se deu conta disso e a tomou como
modelo de articulação de pensamento na psicanálise. Seu texto
sobre o Ravissement é de 1965 e De uma questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose é de 1958. Ou seja, o conceito de
foraclusão do Nome do Pai já estava em exercício há anos, mas não
é tomado por Lacan no texto. No entanto, en passant, sabe-se lá por
que, talvez por comparação, ele cita Marguerite d’Angoulême. O
que d’Angoulême, aquela mística ligeiramente chegada a uma
pornografia leve, está fazendo num texto sobre Lol? Ela era rainha
de Navarra, influenciada por Nicolau de Cusa.
Isso tudo para insinuar e mesmo indicar que, do ponto de vista
da NM – que é a ferramenta que utilizo aqui –, segundo o princípio
de evolução da psicanálise, não se trata de possessão demoníaca,
de histeria ou de psicose. Do que se trata no caso de Lol (donde a
estranheza de Duras quanto ao texto de Lacan)? O caso de Lol é
referível a uma formação teórica que não consta do paradigma de
Lacan. O mais próximo que ele tinha para abordá-lo era certa
indicação de psicose. O que não tinha era a categoria que a NM
pôde propor: a Tanatose. Indico, portanto, que o caso de Lol, no
progresso da psicanálise, é descritível no campo e no conceito da
Tanatose. Lembro aqui que os textos de MD a esse respeito têm
início em 2003 (ela foi longamente retomada em seus SóPapos de
2019 a 2021). Pregressamente, a Tanatose foi um conceito da
zoologia por ser um artifício que cabe no Primário de certos

23
animais, os quais, quando submetidos a uma extrema tensão
mortal, fazem-se de mortos. No caso da NM, o que é a Tanatose?
É uma afecção psíquica derivada da incompetência da pessoa em
lidar com a última instância de seu movimento psíquico no regime
radical d’Alei, Haver desejo de não-Haver, e, portanto, no regime
radical da própria Fantasia Primordial, da Fantasia Originária – que
é o que os místicos sabem fazer. Mediante algum preparo, longo,
de exercícios espirituais e de certa referência teórica – religiosa,
teológica... –, eles se dão conta desse processo e o exprimem de
maneira artística, e mesmo quase que científica.
Quando a pessoa escapa para esse processo, é arrebatada pela
última instância sem preparação de alguma espécie e não se
referencia a nada para esse movimento psíquico, ela cai na
Tanatose. Ou seja, é arrebatada quase que para fora de si mesma e
fica uma espécie de zumbi. Ela vive o cotidiano, mas, como a
própria amiga de Lol no texto, Tatiana, chama a atenção, desde a
infância, ela parecia estar meio ausente. Ou seja, Lol é um caso de
misticismo gorado. Como é gorado, não deu certo, caiu na Tanatose
e fica parecendo um morto-vivo, o que não impede que,
eventualmente, tenha algumas crises violentas que podem parecer
com crises psicóticas – mas não são. Ocorre que, naquele lugar do
baile, T. Beach, Lol se depara com sua fantasia e, se fosse um
pouco menos arrebatada e mais erotizada, partiria imediatamente
para um ménage, que era tudo que queria. Mas como não tinha
condições para isso, foi expulsa dessa possibilidade e posta como

24
terceiro excluído. Esse é o momento fecundo em que sua tendência
mística nunca realizada a arrebata para fora de si e da situação
inteira numa posição de Tanatose. Não há como confundir isso com
ataques histéricos ou delírios e surtos psicóticos. Na verdade, é um
tropeço não sacado do Inconsciente sem preparo e sem
acolhimento: um tropeço no Haver como Nada. Daí que muitas
pessoas consideradas psicóticas simplesmente estavam nesse
estado. Isso é visível quando, do ponto de vista da exposição clara
do processo – como em Nicolau de Cusa, Mestre Eckhart, Santa
Teresa, João da Cruz e em Marguerite d’Angoulême (seja qual for
o texto que ela tenha escrito) –, tomamos conhecimento de certos
misticismos não muito realizados.
O momento do baile, aliás, já foi um segundo momento. A
fantasia já tinha se montado antes, mas agora se apresenta diante
de Lol. Ela se oferece a ser realizada concretamente, é frustrada, e
ela é expulsa. A cena inicial da fantasia terá se desenhado bem
antes, na infância. Agora ela apenas se deparou com a possibilidade
de sua realização. Ela tinha duas saídas, ou entrava na sacanagem,
ou fugia para o misticismo. Não fez nenhuma delas, e caiu na
Tanatose. Foi a “solução” que arranjou. Péssima, porém solução.
Note-se, quanto a isso, que não é ela que narra sua história. Se
fosse, virava Santa Teresa. É um terceiro que narra que aquilo teria
se passado assim, pois é a impressão que ela dá. Já os místicos
sabem o que buscam, só não sabem o nome, é-lhes impossível dizer

25
o nome. É nesse momento aí que Duras desconfia da tese de Lacan.
Ela entendeu melhor a Lol.

Ʃ Ʃ Ʃ

Em termos de pensar a estrutura do livro, é possível destacar pelo


menos três tempos na composição da narrativa. O narrador, Jacques
Hold, é bastante esperto. Em vários momentos diz que conta,
inventa, supõe. É narrativa dentro de narrativa, que vem dele com
cruzamento de tempo: ora parece que o acontecido está no futuro,
ora que o futuro está no passado. São jogos temporais numa
narrativa em Revirão. A arrumação textual é maneirista. É a
descrição de uma personagem com Tanatose, mas o modo de
apresentação do quadro expõe o tempo todo as composições em
avesso: Lol vendo Tatiana, Tatiana vendo Lol na inversão, Jacques
Hold vendo as duas. É uma verdadeira suruba de composição na
cena, com o Hotel du Bois como referência, e o leitor fica na dúvida
se o que se narra está sendo fantasiado por Lol ou se, de fato, está
acontecendo e é ela quem está assistindo. Ou seja, teríamos aí uma
situação de experiência tanática descrita numa narrativa maneirista.
Notar também que Jaques Hold, que é o narrador – como
vimos a saber lá perto do meio do texto –, se integra ao personagem
que nele se constitui após a visita de Lol à casa de sua amiga de
infância, Tatiana. Aí ele já não é mais quem era antes, apenas
amante de Tatiana, e passa a se entender irrevogavelmente como
três: Lol, Tatiana e Jacques. Duras, o tempo todo, está lidando com
26
uma fantasia ternária, de ménage à trois. O arrebatamento em jogo
no texto toma todos os envolvidos – Tatiana, menos – e é também
arrebatamento do leitor. Ela percebeu como apontar o
arrebatamento místico não realizado e tornado sintomático com
impressionante clareza. E mais, aponta essa vocação mística para
todas as mulheres. O que não deixou de ser certa deixa para Lacan
conceber seu feminino. Aliás, uma bobagem, pois São João da Cruz
não era mulher. A vocação mística nada tem a ver com o sexo
anatômico da pessoa. Tem a ver, sim, com Alei do psiquismo,
Haver desejo de não-Haver – que vale para qualquer IdioFormação.
A aproximação da fantasia borra necessariamente a
linearidade temporal das ocorrências, antes e depois já não fazem
sentido. Em MD, como dito antes, há a possibilidade de situar a
psicanálise freudiana a partir de um paradigma histérico, e a
psicanálise de Lacan a partir da psicose. Pensar assim, em termos
de paradigmas, organiza bem a própria história da psicanálise, é
uma forma de contá-la. Só que há mais em jogo quando se pensa
em termos de ápice dos processos psíquicos, pois não é apenas uma
questão teórica ou paradigmática, e sim o reconhecimento de haver
extremação dos processos psíquicos.
Não apenas Lacan não incluiu a Tanatose como não deu boa
resposta, apesar do seminário sobre as mulheres (Mais, ainda,
1972-73), à extremação mística do psiquismo. Ou seja, a essa
vontade de extrapolação das formações sintomáticas para a
referência direta a simplesmente Haver como Deus. (É aí que mora

27
o tal Deus em sua radical indiferença. Esse é, aliás, o sentido
preciso da palavra caridade dos cristãos. Ela foi traduzida pela
pequena e média burguesia como ato de dar coisas aos pobres, mas
o conceito preciso de caridade na teologia mística é a caridade de
Deus, ou seja: acolhe o que quer que, acolhe o outro em sua radical
Diferença. Deveria ser o lugar do analista, se houvesse).
Note-se também que Lacan como bom cartesiano trabalha
esse processo na relação de sujeito e objeto, o que,
congruentemente, é uma atitude paranoide (em conformidade com
sua teoria, é claro). Essa vocação paranoide, sobretudo francesa, de
postulação de sujeito e de objeto é clara na paranoia de René
Descartes, lá no século XVII. Cito uma frase dele: “Não há nada
que dominemos inteiramente a não ser nossos pensamentos”. Vê-
se aí o que é a alma do sujeito: a alma da paranoia de Descartes.
Lacan dá um pulinho para fora com seu sujeito resvalante – mas
continua sujeito, continua um cacoete francês, continua a paranoia
de eu aqui e o objeto lá. Isso não existe para a NM, pois a
epistemologia de seu caso foi descrita – como Lacan respeita e
indica – pelo artista. No caso, mais nitidamente, pela gravura de
Escher: a mão que desenha a mão que a desenha. Não há sujeito ou
objeto aí. É, portanto, tolice, se não for paranoia, pensar em sujeito
e objeto.

Ʃ Ʃ Ʃ

28
A insinuação pornográfica referida à Marguerite d’Angoulême faz
sentido porque, como disse antes, a Fantasia Originária está no
mesmo lugar d’Alei, de Haver desejo de não-Haver. Segundo MD,
é essa Fantasia Originária que é sintomaticamente substituída na
história da pessoa por sua fantasia própria, a qual, aí, já está em
correlação com o borromeano de Primário, Secundário e
Originário. Ou seja, a fantasia de cada um não é senão decadência
sintomática da Fantasia Originária. Isso é algo que fica misturado
na cabeça de certos místicos. Por isso, Santa Teresa gozava daquele
jeito, conforme denunciado por Bernini em sua estátua, e São João
da Cruz ejaculava nas calças sem saber por que. A realização do
desejo irrealizado está no mesmo lugar d’Alei.
Quando Lacan, em seu texto, faz a relação com Marguerite
d’Angoulême, comenta que falou dela em seu seminário A Ética da
Psicanálise (1959-60) num contexto em que tratava da sublimação
e de das Ding. Diz ele lá que ela não é simplesmente uma autora
libertina, e sim alguém que escreveu um tratado místico e (no
capítulo X) dá a referência do historiador Lucien Febvre que
escreveu sobre Rabelais de quem ela era amiga. Febvre pergunta
quem é d’Angoulême: a libertina que escreveu L’Heptaméron
inspirada no Decamerão, de Bocaccio? A luterana que apoiou e
traduziu em versos o Comentário de Lutero sobre a oração
dominical? A calvinista que apoiou inicialmente o autor das
Instituições? A cristã que escreveu O Espelho da Alma Pecadora?

29
E deixa a resposta em aberto. Lacan, então, recomenda a leitura de
Febvre e também o cita no texto sobre Lol.
Os autores parecem não ter se dado conta do cruzamento
necessário da mística com a pornografia. Ou seja, a confluência
das, digamos, escritas tanto d’Alei do Haver quanto da Fantasia
Originária, ambas no mesmíssimo lugar, e das substituições
sintomáticas que se fazem. Não consta isso nas teorias de Lacan ou
de Freud. Foi preciso ultrapassar o século XX, os acontecimentos
nos levarem à Zorra contemporânea, para nos darmos conta. Aí está
a evolução de que estou falando. Não se pode fazer igreja de um
pensamento pensante. A igreja é anquilosamento de um momento
do pensamento, cujo nome correto é: retardo mental. A confluência
da mística com a pornografia está inserida na ascese que MD (em
1996) designa como as Quatro Vias de Aproximação do Cais
Absoluto. São vertentes de extremação – pela guerra, pela mística,
pelo sexo ou pela arte – que dão no mesmo lugar. São as
configurações sintomáticas da reverberação d’Alei. Portanto, no
exercício do misticismo de máxima abstração ou da mais deslavada
putaria chega-se ao mesmo lugar do Cais Absoluto. Qualquer
experiência-limite, por qualquer via, é de topar sempre com esse
mesmo lugar intransponível, bífido, revirante, no qual tudo se re-
encena. De certo modo, aliás, a confluência da mística com a
pornografia está em Georges Bataille. Não sabemos se o erotismo
dele é místico ou pornográfico.

30
Embora o texto de Duras não seja pornográfico, no sentido
literal, é evidente o tempo todo um tesão fluindo entre os
personagens, o qual não se decanta por inteiro. Daí, talvez, o
aprisionamento na Tanatose. Há três movimentos nessa narrativa
tomada como maneirista. Primeiro, no baile, a perda do noivo para
outra mulher – mas Lol perdeu mais do que o noivo, perdeu a
transa, o ménage que era seu tesão. Segundo, o estado de ausência
de si, em que tenta dar uma arrumação ao que aconteceu. E terceiro,
situado na posição do narrador, Jacques Hold, numa cena de
olhares, de ver, de aceitar o pedido para que a transa aconteça. É
quase uma encenação Marcel Duchamp, de olhar pelos furos na
porta a exibição, a teatralização da fantasia que ele quer.
Teatralização que Jacques faz ao narrar. Na segunda parte do texto
de Duras, evidencia-se que, na transa das formações, algo se exibe,
o que não significa que se resolva na vivência da personagem, pois
ela continua no mesmo estado tanático. Só se resolveria se ela
partisse para uma atitude lúcida de misticismo. Mas ela
permaneceu enrascada no nó do arrebatamento.
Na narrativa em que Jacques Hold entra inventando e
relatando, temos: “Logo depois, deixou de queixar-se do que quer
que fosse. Aos poucos deixou até mesmo de falar. Sua raiva
envelheceu, desencorajou-se. Falou apenas para dizer que era
impossível expressar o quanto era aborrecido e custoso ser Lol V.
Stein. Pediam-lhe que fizesse um esforço. Não compreendia por
quê, dizia. Sua dificuldade diante da busca de uma única palavra

31
parecia intransponível. Pareceu não esperar mais nada”. Ela se
perdeu sintomaticamente na Tanatose sem saber do que se trata:
“...ela se tornara um deserto no qual uma faculdade nômade a tinha
lançado na busca interminável de quê? Não sabiam. Ela não
respondia”. O tanático, aliás, também é um atrativo em outra
personagem, na própria mulher, Anne-Marie Stretter, que adentra
o baile e atrai o noivo de Lol. A cena é descrita assim: “Lol,
momentaneamente imobilizada, [a] tinha visto avançar, [...] aquela
graça abandonada, encurvada, de um pássaro morto”. E é ela que
puxa todo o acontecimento para seu lado. Repetindo, o conceito de
Tanatose é importante por mostrar que grande quantidade de
suposições de psicose está errada.
No mais, está claro que Lol não suporta seu existir, seu dia a
dia, o que talvez possa ser também referido a outra personagem,
esta uma pessoa real, Virginia Woolf, cuja insuportabilidade em
relação às horas era evidente. Nela, o Tanático – se o conceito for
cabível aí – teria ido às vias de fato, culminando em seu suicídio.
Ela lidava com a vida de modo mais leve do que Lol, escreveu uma
obra portentosa, mas sofria a mesma pressão de insuportabilidade
do cotidiano de ser. É a possibilidade de seu problema ser de
Tanatose, realizada com o suicídio. A verificar. A verificar também
a experiência de arrebatamento narrada n’A Paixão Segundo G. H.
(1964), de Clarice Lispector. A diferença em relação à Lol é a
própria personagem, posteriormente, ter narrado, articulado, o
acontecido, ter transformado aquilo em obra.

32
Fica, então, o apontamento desse aspecto da evolução da
psicanálise: não apenas o paradigma mudou, desde Freud, como,
sobretudo, mudou o entendimento do ápice dos processos
psíquicos, a partir da exemplaridade da mística. Com isso, ressitua-
se também a convergência da fantasia originária – que os místicos
exibem em sua ascese de Deus como Nada, ou seja, Haver – com a
própria Alei do psiquismo, Haver desejo de não-Haver. Uma
fantasia sexual singular é, portanto, uma maneira pessoal de
cumprir Alei. Marguerite Duras, de algum modo, mostrou
literariamente a vicissitude tanática disso, em seu Arrebatamento.

Ʃ Ʃ Ʃ

NOTA 1
Segue mais um aspecto da evolução da psicanálise, no intuito de saltar fora
das visões eclesiásticas e pensar o campo de modo “amazônico”, no sentido
que indicou MD em seu falatório AmaZonas: a psicanálise de A a Z (2008).
Em seu livro La Mystique Sauvage (1993), Michel Hulin dedica um
capítulo às ideias de Pierre Janet sobre como a clínica psiquiátrica poderia
considerar os estados de êxtase e a experiência mística, na mão contrária da
mentalidade teológica, que via neles uma punição divina ou possessão
demoníaca. As reflexões de Janet sobre o tema foram organizadas em seu
livro De l’Angoisse à l’Extase (1926), cujo foco é o caso “Madeleine”,
pseudônimo dado por Janet a uma paciente sua, atendida em Salpetrière,
duas vezes. A primeira, entre 1896-1901 (ela tinha, então, 42 anos), e a
segunda, entre 1903-1904. Henri Ellenberger, em seu Découverte de

33
l’Histoire de l’Inconscient (1970), também comenta o interesse clínico de
Janet nas experiências religiosas mais elevadas, as místicas precisamente.
Tal interesse não era sem razão. A partir de notícias autobiográficas
do próprio Janet, Hulin e Ellenberger informam que ele teria passado por
uma profunda crise religiosa na adolescência, que o afastou dos estudos por
vários meses. Imaginou, então, construir uma filosofia que reconciliasse
ciência e religião. Declarou, na velhice, não ter “encontrado essa maravilha”,
reconhecendo, contudo, que sua vocação psicológica teria sido uma espécie
de compromisso entre sua atração pela ciência e o sentimento religioso dos
primeiros anos. Parece que Janet foi sensível, de algum modo, a experiências
psíquicas que, hoje, podemos situar melhor à luz da proposição do estatuto
místico do Inconsciente. Uma sensibilidade provavelmente colocada à prova
por situações diversas, nas quais pessoas acossadas por experiências
psíquicas extremas de separação e perplexidade, podiam se perder por falta
de estofo psíquico para referenciar tais experiências limite.
De acordo com Ellenberger, a visão teórica de Janet sobre a economia
psíquica, com uso de metáforas do mercado, como “liquidar dívidas”,
“moratória”, “administração do orçamento mental” (cf. o reconhecimento da
validade dessa perspectiva e seu uso por MD no falatório Economia
Fundamental [2004]), o levou a considerar a conduta moral-religiosa como
possuindo originalmente uma função de governança, isto é, como
administração do orçamento das forças mentais, com efeitos determinantes
sobre outras esferas da vida. Para Janet, a influência da religião na vida
psíquica é incomensurável e a satisfação por ela gerada só pode ser
suplantada pela psicoterapia científica. À luz da NM, é possível agora melhor
situar a intuição de Janet quanto ao papel de governança que uma
“psicoterapia científica”, ou seja, a psicanálise, pode oferecer. Ao reconhecer
no movimento pulsional o empuxo transcendental de não-Haver, a
psicanálise se coloca como Arreligião. Com isso, esclarece que religião é o

34
que acontece quando uma formação qualquer “pretende explicar, articular e
mesmo governar o mundo, tendo como referência uma formação
fundamental que se entroniza no lugar do Gnoma”, conforme explica MD
em seu Psicanálise: Arreligião (2002). Então, é o caso de reconhecer esse
movimento e sustentar a análise no sentido de exercício permanente de
indiferenciação e afastamento do mundo, ascese de que os místicos são
exemplares. Curioso que, em texto dos anos 1930, segundo
Ellenberger, Janet tendeu a considerar os místicos como “pensadores
progressistas”, que buscavam ir além das formas das crenças que lhes
ofereciam a ciência e a lógica de seu tempo, abrindo caminhos novos à
humanidade.
Ao considerar o caso da paciente Madeleine, tanto Hulin quanto
Ellenberger sugerem que a sensibilidade clínica de Janet foi fundamental
para a atenção com que o tratou. Ao mesmo tempo, teria sido a singularidade
desse caso que manteve Janet aberto às possibilidades de consideração
clínica e teórica das relações entre psiquismo e experiências de êxtase, sem
qualificá-las imediatamente como psicopatológicas, no sentido da psiquiatria
de sua época. Após ter sido admitida em Salpetrière, Madeleine iniciou
um Diário, em que registrava suas experiências místicas e estados de
espírito. Quando saiu, depois da segunda estada no hospital, em 1904,
escreveu quase todos os dias para Janet até sua morte, em 1918.
Por fim, Hulin cita um trecho importante de De l’Angoisse à l’Extase,
por mostrar Janet reconsiderando sua perspectiva, do pré-conceito em
relação à reivindicação de “Deus” como característica fundamental do êxtase
ao reconhecimento do aspecto “estrutural” do empuxo transcendental do
pensamento. Cito integralmente: “Sempre me surpreendi de ver que
escritores religiosos, ao analisar o êxtase a partir dos escritos dos extáticos
consagrados, forneciam como característica essencial do êxtase o sentimento
do divino, o sentimento de estar em Deus, de participar de Deus. Pensava

35
que eles erravam ao definir um estado psicológico pelo objeto que o sujeito
se representa nesse estado, que um delírio pode ser psicologicamente o
mesmo, qualquer que seja seu objeto, a perda da fortuna ou a de uma criança,
e que era necessário definir o êxtase pela modificação das operações
psicológicas que o constitui, independentemente do pensamento que ocupa
o espírito durante esse período. A esse respeito, desejei evitar as dificuldades
que os problemas religiosos sempre levantam, e estudar os êxtases leigos dos
quais o êxtase extraía suas características fundamentais, mas onde o espírito
pensaria em outra coisa que não fosse a vida religiosa. Reconheço hoje que
me equivoquei e que esses autores tinham razão. O pensamento religioso é
intimamente ligado ao extático; os verdadeiros êxtases são os religiosos. O
objeto do pensamento é aqui determinado pela própria forma que o
pensamento assume” (grifo meu).
Não deixa de ecoar o fato de Janet ter sido analista de Raymond
Roussel.

NOTA 2
A evocação do termo ápice, na consideração dos processos psíquicos, é
deliberada e fundamental para sacar a evolução que a NM traz. Sim, é
possível falar em evolução quando se aceita que não há pensamento acabado,
que um campo de conhecimento pode rever suas ficções teóricas caducas.
Não há nisso gosto do novo pelo novo, a NM não é uma variante recente,
uma neopsicanálise, mas a psicanálise que se recompõe, NM. Para MD,
avançar como conhecimento significa movimento Progressivo
de abstração e é isso que permite interrogar, em nível mais abrangente,
noções anteriores, portanto, defasadas pela abstração posteriormente obtida.
A prática do ready-made de Marcel Duchamp pode ser considerada uma das
fontes para essa operação de abstração característica da Nova Psicanálise, já
que exige uma rigorosa indiferença em relação aos objetos abordados, um
36
esvaziamento de suas significações intrínsecas, a negação do valor de
utilidade, uma neutralidade total. Nem a natureza das formações espontâneas
nem a cultura ou o valor das formações manufaturadas, aí está o sentido da
metaironia de Duchamp, assim como o sentido do Artificialismo Total da
NM.
A partir de outras referências, Lacan entendeu que a formalização a
partir do conceito de estrutura como combinatória significante, com
notações lógicas e algébricas, seria o caminho mais apropriado para
reescrever a psicanálise no século XX. Ao evitar configurar o Inconsciente a
partir de conteúdos, ele o situa como clocherie, como ‘mancada’ (segundo a
versão de MD), que comparece como função de hiância, corte,
descontinuidade, lapso, rateio, mas sempre circunscrito ao “campo da fala e
da linguagem”. E a lógica do significante, como operação permanente de
substituições, ofereceu a Lacan a condição que faltava para seu projeto de
formalização da psicanálise. A ordem metafórica, substitutiva, opera com e
expõe a inconsistência irredutível que marca o falante. Assim entendidos,
MD e Lacan são dois protocolos de teorização tão semelhantes quanto um
alfinete e um elefante.
O arrebatamento em questão no texto de Marguerite Duras não aponta
para um simples desregramento dos sentidos ou para a valorização do arcaico
de uma experiência qualquer. É um evento preciso e de grande interesse para
a NM. Arrebatar-se é situação de exacerbação, estabelecida como afetação
máxima, considerada a última instância, o ápice, da exasperação. Seu valor
está justamente na radicalidade de uma experiência possível para Eu. Nessa
circunstância, de extrema rarefação, em que todo esforço de significação fica
aquém do que se pretende, nenhum vestígio de sujeito, indivíduo consciente
ou parafernália similar, apenas “maquininha de distanciamento”, como
chama MD. Estamos diante do que a NM chama de Postura
Mística: diferenças internas ao Haver cessam, são indiferenciadas, e a

37
exacerbação que conta é a da Diferença entre Haver e não-Haver. Após
reconhecimento dessa possibilidade, o extremo ou ápice dessa exasperação
torna-se referencial. O que significa pensar com e a partir dessa situação
limite e, portanto, considerar que nesse “lugar” está o efetivo estatuto da
psicanálise.
A NM reconhece tão somente duas operações, ou melhor, dois
aspectos do movimento libidinal do Inconsciente, desse movimento de
exasperação. As possibilidades infinitas de transações do Haver são
suscitadas e dirigidas por vontade de transcendência: “transar transir”. De
modo análogo, encontra-se em alguns autores da teologia mística o mesmo
entendimento.
A teologia medieval desenvolveu um expressivo repertório para situar
a experiência de exasperação: na língua latina oculus mentis, sensus mentis,
acies mentis, apex mentis, scintilla rationis, synderesis scintilla, scintilla
conscientiae, principalis affectio, e seu equivalente ou análogo nas línguas
renana-flamenga, bürgelin, fünkelin, gemüt, grunt; espanhola, centro, fondo
del alma, centella; e francesa, pointe, cîme, faîte de l’esprit, fond. Esse
esforço de descrição, com proliferação de expressões e significados diversos,
ocorreu em torno do conceito de synderesis.
Ao que parece, sua origem resulta da modificação da palavra
grega syneidesis, consciência. Entretanto, não é equivalente à forma
moderna de consciência, estritamente epistêmica, modo reduzido de
interioridade, atributo de um sujeito de conhecimento que se separa e se opõe
ao que conhece. Ao contrário, syn eidenai, saber com, indica uma
consciência compreensiva que abrange e inclui não por estar em oposição a,
mas por estar em relação com. O prefixo syn, do grego antigo, significa ‘em
companhia de’, ‘junto com’ e, nesta acepção, está presente em palavras como
sinergia, sincronia, sinapse, sinestesia, sintoma, sintaxe, sintonia, símbolo.
Além disso, syneidesis envolve um amplo espectro de ações como zelar,

38
cuidar, guardar, tomar cuidado com, dar atenção a, assistir, observar, que
remetem a consciência a um estado de circunspecção.
A tradução do grego syneidesis para o latim synderesis não foi trivial.
Quando o pensamento medieval passou a usar a forma substantiva do termo
grego, no contexto de um cristianismo fomentado pelo vocabulário
neoplatônico repleto de transcendências, gerou novas possibilidades de
significação. Desse modo, em vez da forma geral de consciência, synderesis
passou a designar também um estado ou função específica: scintilla
conscientíae, centelha da consciência. Ocorreu que o entendimento dessa
função oscilou durante toda a Idade Média e não se estabilizou em um uso
conceitual unívoco. Em um sentido volitivo, por exemplo, sindérese foi
descrita pela teologia dogmática como capacidade de discernimento e
retificação, uma disposição para agir de determinada maneira, segundo certa
direção, em concordância com princípios morais desde sempre presentes na
consciência. De modo distinto, para algumas teologias místicas, a centelha
da consciência é a finalidade mais elevada ou ápice da vida, a capacidade de
suspender a dicotomia entre gozo e reflexão em uma experiência de união
mística.
Mas foi, sem dúvida, Mestre Eckhart quem conduziu essa discussão a
outro patamar. Na história da mística cristã, representou uma evolução
formal para esse campo. Ele expandiu e depurou o conceito de sindérese,
transitando entre a linguagem abstrata e precisa da teologia e a abrangência
e extensão da linguagem vernacular. Embora grunt, sem equivalência
imediata com alguma palavra latina, já fosse um tema recorrente no
pensamento teológico e filosófico alemão, Eckhart precisou produzir uma
fortuna semântica em torno desse termo.
Assim, grunt expressa um “estado de consciência” além das palavras
e dos pensamentos, “o estado de todos os estados”, em relação com o “ser”
não diferenciado “desprovido de qualquer nome”, de “qualquer forma”,

39
“nada”. Em se tratando de regiões rarefeitas da experiência, a escolha dos
termos importa mais do que nunca. Apreender esse “fundo último da alma”,
não apenas como entendimento e desejo, mas como relação de identidade
radical com o absoluto, transcende o vocabulário ontoteológico que só opera
com as categorias de multiplicidade e de unidade do ser. Além disso, para o
místico renano, a formulação de uma nova terminologia, abstrata e
abrangente em suas características, precisa ter como referência o exercício e
a experiência de ascese que descreve, pois essa linguagem não se reduz à sua
função conceitual nem a seu valor de disseminação. Dito de outro modo, a
abstração é, no plano teórico, procedimento de ascese. Nesse
sentido, Eckhart vai buscar na teologia negativa o aparato de abstração
necessário para situar adequadamente o ápice da consciência como
experiência mística.
Pode parecer desconcertante a declaração de MD que Mestre Eckhart
é “precursor da teorização do Inconsciente”, mas é uma afirmação precisa
porque reconhece ali a mesma problemática e a mesma decisão teórica.

40
3
PSICANÁLISE E PORNOLOGIA
(A Transa Mística da Obscena Senhora H)

E fodes como quem morre a última conquista


E ardes como desejei arder de santidade.
HILDA HILST (Do Desejo, VI)

INTRODUÇÃO
Como indiquei no capítulo anterior, o algoritmo d’ALEI (Haver
Desejo de não-Haver), coincidente com o da Pulsão, não é senão o
mesmo, também necessariamente coincidente, da Fantasia
Originária que cada IdioFormação ancora em sua histórica
formação sintomática (a ser destacada em sua análise).
Donde as jaculações místicas de uma Teresa d’Ávila e as
ejaculações eróticas de um São João da Cruz, os arroubos místicos
e os tesões de uma Marguerite d’Angoulême, assim como os
cruzamentos extáticos e gozosos da Mística Pornológica de nossa
Santa Hilda, a Santa Teresa de Campinas, no Brasil.
Donde o Estatuto Místico da Psicanálise, recuperado pela
NM, a indicar que uma Análise sucedida se encaminha
necessariamente para o destacamento da Fantasia do analisando,

41
em conformidade com o lema de FREUD: Wo Es war, soll Ich
werden.
Lacan supôs equivocadamente tratar-se de um mandamento
Ético, esquecendo, desde aquele momento mesmo, de responder,
quanto a qualquer Ética possível, à questão duríssima de Heidegger
sobre quem e como alguém estaria capacitado a propor alguma ao
Mundo.
Não se trata da paranoia de nenhum “dever”, muito menos
kantiano, de se chegar ao ES do requisito freudiano – mas de
NECESSIDADE, se é que se persegue, de verdade, a VERDADE
do aparelho originário, O INCONSCIENTE por ele assim
denominado: esse ES é ISSO, é Neutro, é Grau Zero, é
Simplesmente HAVER, é NADA, é DEUS – LUGAR aonde se
dissolvem as Formações dos Seres figurados, dos Eus imaginados.
Eis O LUGAR, indicado assim por Eckhart como O Íntimo,
indicado por Mallarmé como o que Há absolutamente como Lugar
oferecido e dado (nome, aliás de uma antiga revista inventada por
MD...).
Então consideremos HILDA HILST.

Ʃ Ʃ Ʃ

Começo com a primeira década de escrita em prosa da Santa Hilda


de Campinas, que se denomina Teófaga incestuosa em A Obscena

42
Senhora D: Fluxo-floema (1970), Kadosh (1972) e Pequenos
discursos. E um grande (1977), reunidos pela própria autora em
reedição com o título Ficções, em 1980. Hilda dá uma guinada em
seu percurso literário (havia escrito poesia e teatro até então) e
expõe, em estilo que vai sendo cinzelado, a matéria espiritual de
sua ascese. Experimenta uma escrita jorro, fragmentária,
surpreendendo o leitor, de supetão. As estórias, se assim posso me
referir a esses textos, mostram a dor de viver, de não entender e não
ser entendido, a perplexidade da busca, sua afirmação como busca
de verdade, de conhecimento; prolifera expressões ora de chacota,
ora inusuais para designar a transcendência, o trânsito com o
divino: o cão de pedra, o grande caracol, o sem nome, o mudo
sempre, o tríplice acrobata, a coisa que nunca existiu, a haste
antenada vibrando em teu ouvido... São listas para designar o
indesignável. Do mesmo modo que fazem Mestre Eckhart, Nicolau
de Cusa e Fernando Pessoa, aliás.
A primeira estória de Fluxo-floema, intitulada justamente
Fluxo, abre-se com a frase “Calma, calma, também tudo não é
assim escuridão e morte”. Na sequência, uma insólita fábula: era
uma vez um menininho que foi colher crisântemos perto de um rio,
em uma manhã de sol. Mas, vendo o crisântemo partido, sob risco
de cair na água, aproximou-se da margem para pegá-lo. Ora, havia


Uso a grafia que Hilda modificou, quando da republicação desse livro, pela
Editora Globo, aos cuidados de Alcir Pécora. Originalmente, a autora usou a
grafia Quadós e, em texto homônimo, explicou: “Qad = separar, na língua
das delícias”.
43
um bicho medonho que viu o menininho e torceu para que ele
caísse no rio, pensando como seria bom mastigá-lo. Hilda, à la
Esopo, ma non troppo, fraciona a moral da fábula: “se você é o
bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens
do teu rio, se você é o crisântemo, você só pode esperar ser colhido,
se você é o menininho, você tem que ir sempre à procura do
crisântemo e correr o risco. De ser devorado”.
As páginas seguintes levam o leitor, para o mundo
Umheiliche da literatura hilstiana: “dentro de mim, este que se faz
agora, dentro de mim o que já se fez, dentro de mim a multidão que
se fará. Alguns eu os conheço bem. Mostram a cara, assim é que eu
gosto, me enfrentam, assim é que eu gosto, cospem algumas vezes
na minha boca, assim é que eu gosto. Gosto de enfrentar quem se
mostra. (...) Ruiska sou eu, eu me chamo Ruiska, minha mulher se
chama Ruisis e meu filho se chama Rukah”. Ruiska é atormentado
pelo “cornudo” que dele cobra produção: “como é que é, meu
velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a escrever o
de dentro das planícies que isso não interessa nada, você vai ficar
riquinho e obedecer, não invente problemas”. [Soa como um
protótipo do Tio Lalau, o editor sacana d’O caderno rosa de Lori
Lamby]. No jogo elocutivo entre os cacos de personagens que mal
consistem, Ruiska declara: “O meu de dentro é turvo, o meu de
dentro quer se contar inteiro, quer dizer que Ruisis, Ruiska, Rukah,
são três coisas que se juntaram aqui com um propósito definido,

44
elas caminham para algum lugar, elas serão alguém, elas não
podem estar aqui por nada”.
Na estória “O Unicórnio”, o leitor é advertido: “sabe, uma
estória deve ter mil faces, é assim como se você colocasse um
coiote, por exemplo, dentro de um prisma”. Em “Gestalt”, de
Pequenos discursos. E um grande, o matemático Isaiah descobre
um porco, que, na verdade, era uma porca, dela cuida, com ela se
casa, chamando-a de Hilde. Em “Teologia natural”, Tiô vai à
cidade vender o tico de mãe que lhe restou, depois de limpá-la
cuidadosamente. Em “Vicioso Kadek”, o matemático e psicólogo
homônimo “espiou a curva de Möbius muitos anos, viveu prensado
nela, horas pensando, também eu não tenho lado de dentro e de
fora, e depois: tenho?” Em outro pequeno discurso, Jozú,
encantador de ratos, vive de exibir sua arte nas ruas, mora em um
poço, mas convive com pessoas que nada entendem de sua
condição. Essas frações ou lampejos sintomáticos que desfilam e
se entrelaçam, apoiados em recursos nominais, proliferam outros
entendimentos, à medida que são conectados a outras séries: a terra,
as vísceras, os excrementos; ser pétala de carne e, ao mesmo tempo,
tigre, cordeiro, corça, hiena, chacal; descobrir ser um porco com
vontade de ter asas vis-à-vis o incogitável, o incomensurável, o
inconsumível, o inconfessável, em busca de Ninguém, em meio à
multidão que aí se faz. Nesse sentido, o próprio sintagma Fluxo-
floema já indica essa característica inaugural da prosa hilstiana, ao
evocar a ideia de vários fluxos por onde circula o floema, que, em

45
botânica, é o tecido condutor especializado no transporte da seiva
que percorre o tecido das plantas. A escrita de Hilda explora a
multiplicidade em fluxo, sempre, contudo, crivada pelo estado de
perplexidade diante do mundo. Os lugares dessa ascese floemática
– poço, oco, abismo, deserto, gruta – que sidera os cacos de
personagem dos textos hilstianos remetem, muitas vezes, à tradição
dos anacoretas, e se transmutam em outras metáforas: a casa a ser
construída, a claraboia, a colina, o vestíbulo, o vão da escada, o
escritório. São lugares de afastamento: morar no poço, por
exemplo, como Jozú, é estar em situação de solidão. Isso é
compatível, na história da mística cristã, com o personagem que
MD lembra com frequência, Santo Antão e suas tentações, aquele
que, em certo Concílio, deu garantias da existência de Deus.
Para Alcir Pécora, em sua “Nota do Organizador” do livro
Fluxo-floema, a multidão que há em Hilda parece falar com a
mesma garganta, alternando narradores de uma cena em fluxo, e
que se metamorfoseiam com muita rapidez, mal alcançando a
estabilidade de um nome próprio. Este, surge, mas logo é derivado,
declinado em vários outros da mesma raiz: Ruiska, Ruisis, Rukah,
Osmo, Koyo, Haidum. Mas também Hiram, Hamat, Hemin, Hakan,
Herot, Isaiah, Riolo, Lih, Tiô, Kadek, Lucas, KleinKu, Koyo, Jozú,
Gesuelda, Guzuel, Naim, Hilde (a porca), de Pequenos discursos.
E um grande. Todos, na estórias e discursos em que comparecem,
dramatizam aspectos de uma experiência deceptiva, contingente e
esfrangalhada. O refinamento dessa empreitada literária fica a

46
cargo da exigência a que se vê submetido o ofício da escrita, cujos
análogos se reproduzem na própria ficção hilstiana: vários
“personagens” vivem a angústia de exercer a arte da escrita,
sobretudo por causa da seiva floemática, digamos assim, que os
alimenta: a transcendentação místico-erótica.
Esse fluxo hilstiano, ainda segundo o comentador, é
“dialógico” e “teatral”, onde fragmentos textuais são distribuídos
entre personagens “que irrompem, proliferam e disputam lugares
incertos, instáveis, na cadeia discursiva”. É como se “alguém”, esse
lugar de narrador, se visse determinado a falar sem vontade própria,
pulando entre “personagens mal-ajambradas, incontidamente
várias”, de algum modo arrastadas por uma força que tenta,
fracassadamente, “alcançar o gancho celeste capaz de transcendê-
las” e provar o gozo definitivo buscado.
Vale lembrar de outro comentário, o de Leo Gilson Ribeiro,
em sua apresentação de Ficções, que reconhece em Hilda o
caminho de uma linguagem original em direção ao Absoluto.
Sugere haver na prosa hilstiana uma Tao linguagem para chegar à
gnose e uma insistência na busca mística de um “Indevassável”,
cujo subproduto “quase acidental, inconsciente” seria essa
literatura, com seu estilo. Ao leitor nenhuma concessão de tipo
mundano. Ou ele segue, montado no fluxo, com recursos para
acompanhá-lo, ou ele se afoga e perde tudo. “O leitor sente-se
desafiado a imergir nesses ritos, recriando quase que
corporeamente os enigmas e imagens que brotam”.

47
Fazendo um parêntese: dez anos depois da publicação desse
livro, em 1980, como se tivessem lido Hilda Hilst (e nem tivessem
entendido tanto assim), Gilles Deleuze e Félix Guattari publicam
Mille Plateaux, cuja metáfora mestre é o rizoma, termo também
retirado da botânica. A proposta deles é de abandonar as metáforas
da raiz, da árvore, das radículas, e tomar o rizomático como o que
se alastra pela superfície e se ramifica a partir de qualquer lugar. É
um ponto de partida para mostrar a ideia de conexão, de
heterogeneidade, dos devires e do aspecto conectável, reversível e
modificável das multiplicidades, tendo em vista o problema da
diferença. Fluxo-Floema é uma espécie de antecedente dessa ideia,
e mesmo, talvez, com um pouco mais de profundidade.

Ʃ Ʃ Ʃ

Há um trabalho de conhecimento evidente na via fluxo-floemática


da prosa de Hilda, que tende a ficar progressivamente mais
econômica e certeira na produção literária das duas décadas
seguintes, pelo modo erudito-esculhambado como mostra a ascese
mística em um Revirão surpreendente com algo da ordem do
pornográfico, ou pornológico. A partir de MD e comparativamente
ao que chamou de teoria do conhecimento de Escher [SóPapos
2021], podemos denominar esse trabalho de a Epistemologia de
Hilda Hilst. Pergunta ela: “De onde vem este sopro que me anima
/ A olhar as coisas com o olhar que as cria?” Todo seu périplo, além

48
de ser uma garantia de estatuto do místico e do estatuto místico do
Inconsciente, é uma garantia de função de conhecimento: o
conhecimento como transa de formações.
Até recentemente, estávamos acostumados a supor, se não
mesmo acreditar, que o conhecimento consiste na abordagem de
uma situação, com parâmetros estabelecidos, a partir de uma
posição prévia que tem as condições apropriadas para conhecer a
situação abordada. Várias tradições epistemológicas fixaram tais
posições como sujeito e objeto, e algumas evoluíram para sua
relativização, a ponto de esfacelar a posição subjetiva e dispensar,
porque imanente ao processo, a suposição de haver objeto de
conhecimento.
Mas a teoria do conhecimento que se extrai da gravura As
mãos desenhantes, de Escher, propõe uma postura completamente
diferente. Ao considerar a mão que desenha a mão que a desenha
como analogia, está-se afirmando que, em qualquer nível, produção
ou valor, conhecimento é o que resulta da transa entre essas mãos,
ou seja, da transa entre formações que produzem formações que as
produzem. É um processo em metamorfose em que a mão “de lá”
desenha a mão “de cá” com as informações que dispõe para abordá-
la e, no processo, emerge a sacação de que tal abordagem já está
em curso na transa, pois os recursos “de cá” ganham contorno e se
transformam pela transa com o “de lá”, que, por sua vez, vai se
configurando pela transa que co-moveu “lá” e “cá” a entrar em
relação e assim por diante, em motu contínuo. Somente se

49
rasgássemos a gravura, poderia haver a suposição de privilégio de
uma posição de configuração sobre outra. Para MD, o pensamento
gráfico de Escher pode ser assim descrito: “As formações do lado
de cá estão tentando desenhar formações que lhes parecem estar do
lado de lá. Acontece que as formações do lado de lá, seja qual for
sua realidade real, digamos assim, só expõem para formações que
as podem considerar. Então, elas só se constituem mediante a
constituição das formações de cá. Por isso, o conhecimento é tão
difícil e tão precário, passa por formações primitivas singelas e
pode chegar a formações sofisticadas. Tudo depende do que as
formações de cá podem destacar nas formações de lá – as quais,
nessa transa, começam progressivamente a se mostrar a novas
composições mediante o funcionamento e a transação interna das
formações de cá. E as formações de cá participam de um grande
acervo de formações que pode se modificar à medida que as
formações de lá mudam. Isto porque são consideradas por outras
novas formações. Elas não mudaram, mas começam a se apresentar
de outra maneira. Então, elas, que estão desenhando minha ideia
daquelas formações, estão desenhadas por minhas concepções
pelas formações que me constituem. Uma mão desenhando a mão
que a desenha”. Repetindo o verso de Hilda, exemplar dessa
postura: “De onde vem este sopro que me anima / A olhar as coisas
com o olhar que as cria?”
Podemos, agora, aplicar a transa Escher da mão que desenha
a mão que a desenha às considerações apresentadas há pouco sobre

50
a escrita hilstiana. É como se Hilda fosse extraindo realidades dos
“desenhos” recíprocos que suas estórias, com seus recursos
ficcionais, vão delineando, em uma resultante acompanhável ao
longo de sua obra, como também fragmentariamente ao longo de
cada livro e, em cada livro, cada estória. Há um efeito de
plasticidade aí: as situações vão transbordando da refrega intra-
estórias, inter-estórias, intra-livros e inter-livros3.
Hilda, ao praticar conhecimento no sentido das mãos de
Escher, mostra o quão longe a franjalidade de um processo de
conhecimento pode alcançar, arrolando experiências, práticas de
escrita, inspirações, influências, insistências de produção, decisões
de vida, heranças de todo tipo, estudo e disciplina na lida com
diversos repertórios literários, filosóficos, científicos,
sensibilidade, talento, em uma atitude despudorada de exposição.
As mãos desenhantes de Hilda produzem realidades na força
literária de sua obra e de sua postura, transbordando realidades na
transa com o mundo no qual outras realidades em transa resultam
no chamado “leitor”, outra maneira de situar o que a crítica literária

3
Nas leituras que fiz sobre a obra de Hilda, encontrei uma breve indicação
que deixo registrada. No artigo “Falando com Deus...”, de Michel Riaudel,
publicado no livro Em torno de Hilda Hilst (2015), é sugerida uma
“arquitetura à la Escher” presente n’O Caderno Rosa de Lori Lamby. A
expressão é utilizada para indicar o recurso artificioso do livro, que deixa em
aberto as camadas ficcionais da autoria do “Caderno” – se a criança
(Lorinha) escreveu por conta própria ou copiou de seu pai escritor; se o pai
escritor escreveu o Caderno sobre uma criança que escreve um caderno, que
também é feito de outros dois cadernos, o “Caderno Negro” e o “Caderno do
Sapo Liu Liu”. Não há maiores desdobramentos desse à la Escher, mas
alguma implicação não passou desapercebida.
51
concebeu como “recepção”. Hilda: “ser o estilete, a mão, a tinta, a
figura”; acrescenta MD: “essa construção nova que sai da
articulação dos pensamentos se constitui como exemplar da
realidade”.

Ʃ Ʃ Ʃ

Em Hilda, não há sujeito conhecente ou objeto do conhecimento, é


pura transa. É, para comparar com Escher, o olhar que configura o
olhado que o configura. Tanto é assim que, em Com os Meus Olhos
de Cão, ela declara: “Mas não vejo o ver. Assim é o que sinto
tentando materializar na narrativa a convulsão do meu espírito”. E
diz mais: “E o teu, o teu olhar, o olhar obsceno do meu Deus”.
Verifica-se aí um quiasma, o que vem reforçar que o conhecimento
é quiasmático, e não subjetivo. Aliás, em Fluxo-Floema, ela faz
outro quiasma dizendo de tal personagem que “é ateu como Deus”.
O ateísmo é impossível no sentido histórico do termo. Um ateu é
apenas um Há Teo.
No início d’A Obscena Senhora D – que é quase uma oração,
uma prece –, escreve Hilda: “...eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu
à procura da luz numa cegueira silenciosa”. É seu modo de
descrever, ficcionar o exercício de Nada, o exercício de Deus, o
exercício de Haver, o exercício de Ninguém: “Alguém, nome de
ninguém / esse aí não é nada / esse sim é alguém”. Mostra assim
esse Revirão no olhar que busca e declara estar sendo visto pelo

52
lugar de Deus. Ela diz o mesmo que Eckhart, que Deus está aqui,
mostrando exemplarmente a solidão desse “íntimo” que é a
identidade Deus = Eu e, junto com ela, o fracasso da imanência e
da transcendência. Pois as duas posições se desenham uma à outra
na condenação à afetação de requisitar o que não há: o Impossível
Absoluto da desistência definitiva. Ou seja, a imanência não se
aquieta de vez, pois o tesão acossa; a transcendência não se
consuma de vez, pois o tesão não se extingue. A transa de última
instância, é o místico – ápice do pensamento e do Inconsciente –
que a desvela. Vejamos Mestre Eckhart: “Deus cobiça de ti nada
mais a não ser que saias de ti mesmo, segundo teu modo de ser
criatural, e deixes Deus ser Deus em ti. A menor de todas as
imagens de criatura que, porventura, se forme em ti é tão grande
quanto é grande Deus. Por que? Porque te impede o acesso a um
Deus completo. Justamente ali onde entra esta imagem em ti, ali
Deus deve retrair-se, e toda sua deidade. Onde, porém, essa
imagem sai, ali entra Deus. (...). Pois então, caro homem, o que te
prejudica se permites a Deus que Deus seja Deus em ti? Sai
totalmente de ti mesmo por Deus e para Deus, pois assim Deus sai
totalmente de si próprio por e para ti. Quando ambos saem de si, o
que ali permanece é um simples Um singular” (Dos Sermões
alemães, sermão 5a).
Agora vejamos Hilda: “Vem apenas de mim, ó Cara Escura /
Este desejo de te tocar o espírito / Ou és tu, precisante de mim e de
minha carne / Que incendeias o espaço e vens muleiro / Montado

53
em ouro e sabre, clavina, cinturões / rebenque caricioso / Sobre a
minha anca viva? / Ou há de ser a fome dos teus brilhos / Que torna
vadeante o meu espírito / E me faz esquecer que sou apenas vício /
Escureza de terra, latejante? / Vem de mim, Cara Escura, a
ramagem de púrpura / Com a qual me disfarço. As facas / Com os
fios sabendo à tangerina, facas / Que a cada dia preparo, no seduzir
/ Tua fina simetria. E vem de ti, Obscuro, / Toda cintilância que
jamais me busca” (Sobre a tua grande face). Ou ainda, na prosa
poética mística de Kadosh: “Perseguido / E perseguidor / Ando
colado à terra. / Mas num salto, Senhor, / (a tua mão aberta / à
minha espera) / Posso chegar ao alto. / (...) / Grande Perseguidor /
Foge comigo. / E gozosos gozaremos / Uma única viagem. / (...) /
Grande Perseguidor / Me faz teu perseguido. / (...) / Reinventar o
Sem-Nome / Cem mil dias debruçado / No teu passo e travessia. /
E ser / Muito mais que o vento / À volta do teu segredo. / E ser
muito mais que o mar: / Ser inteiro chamamento / Ser convés e
marinheiro. / Dentro de ti navegar”.
Em suma, em Hilda acontece o colapso do problema
filosófico imanência / transcendência. Ela diria, aliás, que
imanência / transcendência é o cacete. Sua descrição é modo
gnoseológico Escher, pois o vetor que assenta e, na sequência,
descreve a experiência de Nada e Ninguém tem que se dizer por
dentro, já que não há fora. É o alucinatório do desejo, do Deus
buscado – “Olha Hillé a face de Deus / onde onde? / olha o abismo
e vê / eu vejo nada” – e o Deus que está aqui. Ou seja, nada a

54
encontrar, Ele está aqui, acabo de encontrá-Lo. É o caso de lembrar
que, na fraseologia cristã, há o lema: “Não me buscarias se já não
me tivesses encontrado”. Vejam que é isso, é simples, não é preciso
ser beato.

Ʃ Ʃ Ʃ

Para considerar o estatuto místico do Inconsciente e como a NM


recolhe essa exemplaridade para compor o estatuto místico da
psicanálise, há um autor importantíssimo para Hilda: Georges
Bataille. A máquina produtiva de Hilda é a máquina de Bataille do
gasto livre, da despesa inútil, do dom sem contrapartida, de uma
economia na medida do universo. E também do entendimento do
erotismo como prática constante de transgressão. Lembro que
Lacan divergia de Bataille quanto ao termo transgressão por achar
que o erotismo fosse mais da ordem de um esgueiramento. Para ele,
o caminho do desejo seria por esgueirar-se, e não por transgredir.
Para entender o alcance da transgressão em Bataille, é preciso
considerar que, para ele, o erotismo é “a aprovação da vida até na
morte” ou da vida que não se distingue mais da morte, por se tratar
da intensidade levada ao extremo pelo gasto inútil. Esse empuxo é
o mesmo no erotismo e na religião, conforme a tese de O erotismo.
Mas não se trata de religião como ritos, dogmas, comunidades
determinadas, e sim no sentido de uma experiência “que coloca o
espírito para além, em busca de todo o possível que ele pode abrir

55
para si”. Ao mesmo tempo, nem a filosofia nem a ciência pode dar
conta do problema que a aspiração religiosa colocou, busca que,
aliás, deve ser liberada das vicissitudes históricas. Declara Bataille:
“devo perseguir uma experiência solitária, sem tradição, sem rito,
e sem nada que me guie, também sem nada que me embarace.
Exprimo, em meu livro, uma experiência, sem apelar ao que quer
que seja de particular, tendo essencialmente a preocupação de
comunicar a experiência interior – quer dizer, a meus olhos, a
experiência religiosa – por fora das religiões definidas”, pois “sem
experiência, não poderíamos falar nem de erotismo, nem de
religião”.
Ora, a chave para entender o primado dessa experiência
pessoal no conhecimento do erotismo ou da religião é concebê-la
como igual e contraditória ao interdito e à transgressão. A
sideração humana do erótico e do religioso é o que acontece entre
os polos do interdito, por temer a morte, analogon genérico das
experiências de discreção ou descontinuidade, que irrompem,
mesmo quando insistimos em nos conservar e resistir à destruição,
e da transgressão, pelo empuxo erótico de gozar a suprema
alteridade. O erotismo é, portanto, a experiência interior dessa
transgressão, ápice ou pas au-delà, que acontece no mesmo
LUGAR do desejo e do pavor, do prazer intenso e da angústia.
Por isso, o erotismo coloca tudo em questão, exibindo o
desequilíbrio, a anti-homeostase, que é inerente à vida. Diria Hilda:
o erotismo é o fluxo-floema entrópico da busca de Deus, provada

56
por e na experiência interior: “Eu me perco” = “Deus sou eu” = “o
fundo sem fundo da alma onde Deus basta a si mesmo” = “Poderia,
meu Deus, me aproximar? / Tu, na montanha. / Eu no meu sonho
de estar / no resíduo dos teus sonhos?”
Fica claro, então, que a transgressão em Bataille não é mera
ultrapassagem de uma regra, e sim a tentativa de atingir a
alteridade. Essa, sim, é a transgressão fundamental, e é a mesma
tentativa do Haver em atingir o não-Haver apesar da frustração.
Nesse ponto, estou com Bataille. Quando ele diz que “a experiência
conduz à transgressão acabada, à transgressão bem-sucedida, que,
conservando o interdito, conserva-o para dele gozar”, entendo o
sentido da transgressão como Alei Haver desejo de não-Haver e a
impossibilidade de sua consecução.
Em Hilda há também esse mesmo sentido de transgressão
como afirmação radical de um gesto, de um estilo, de uma
presença, do lugar desde onde sai o que sai em seus textos,
explorando a alternância entre a dicção erudita e o palavreado
chulo, aplicados alternadamente ao tesão nos corpos e à
sublimidade do divino, assim como alcança ares rarefeitos, pela
insistência mística de transcendentação. Nem por isso deixou
também de contemplar, como em Rútilo Nada (1993), a violência
destrutiva e a matança que cercam os atos de mostração desse
empuxo erótico transgressivo-limite, e que podem atingir a pessoa
em sua existência – é preciso tomar cuidado, portanto.

57
De qualquer forma, a transgressão não é propriamente uma
chave de leitura da Hilda, já que, para ela, o riocorrente, a transa
em Revirão entre humor e perplexidade, entre a pornologia e o
aturdimento místico de última instância, é de fácil transiência. Ela
não tem o valor da transgressão de fazer birra com papai, é o caso
de dizer. No máximo, ela brinca com o leitor que ou não a
compreende, ou não a entenderá. Ele que se oriente e pesquise o
que está sendo dito.

Ʃ Ʃ Ʃ

Dez anos depois de Fluxo-Floema, como que encerrando certo


experimento, temos outro livro dela, cujo título é também um
sintagma extraordinário: Tu não te moves de Ti (1980). São três
histórias entrelaçadas: “Tadeu (da razão)”, “Matamoros (da
fantasia)”, e “Axelrod (da proporção)”. Há nesse livro um link que
já joga para O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990). Em
“Matamoros (da fantasia)”, temos uma narrativa de descrição da
fantasia. A personagem, Matamoros, declara: desde pequenina
“toquei os meninos da aldeia, me tocavam, deitava-me com eles”.
É o desenho da situação erótica de uma experiência que podemos
tomar como tentativa de ficcionar uma fantasia sexual. Diz, então:
“oito anos apenas me faziam a idade”, que ecoa a frase inicial d’O
Caderno Rosa: “Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito
que sei porque mamãe e papai me falaram para contar do jeito que

58
eu sei”. Registre-se também que a quarta capa da primeira edição
reproduz uma foto de Hilda, datada de 1936 – seis anos de idade,
portanto –, com a seguinte legenda: “Ela foi uma boa menina”. É
importante que ela nos tenha deixado essa lição cristalina,
freudiana, analítica, de não apenas investigar como conhecimento
fundamental para uma pessoa a ordem de sua fantasia, como
também de explicitar o sexual como conhecimento que nos atinge
desde muito cedo.
Em diversas passagens de seus textos, Freud se refere tanto à
situação de a ordem de criação de qualquer pessoa estar ligada à
sua experiência sexual própria nos primeiros anos da infância,
quanto à amnésia posterior que acontece para muitos. Diz ele que
o período sexual dos 4-5 anos é o período do florescimento
intelectual. Na sequência, forças defensivas e recalcantes vão
reprimir e produzir um “período de latência”. Quanto a isso, há uma
expressão da Hilda que traduz bem o que aí se dá: “intelijumência”.
Para aqueles que têm a sorte desse período não lhes ocorrer,
possibilita-se um solo de criação em função da disponibilidade de
conhecimento advinda do estar à vontade e fazer de seu lugar de
fantasia um lugar de pesquisa do mundo. Na Matamoros, com outra
direção, e sobretudo n’O Caderno Rosa, podemos acompanhar
Hilda ficcionando, de propósito – porque é assim mesmo –, esse
lugar de expressão da fantasia numa criança. Ela dá voz a isso como
se fosse uma criança de oito anos, certamente por experiência

59
própria. E isso é algo presente em todos os jogos ficcionais e
artificiosos de seus livros.

Ʃ Ʃ Ʃ

O viés da Hilda mística é explícito. Diz ela que, desde criança,


queria ser santa. Pratica sempre na busca desse Deus, cuja
nomeação de qualquer espécie é imediatamente transgredida e
rompida em sua relação de ordem discursiva. Esse viés é evidente
em seus textos ficcionais e entrevistas. Sobretudo, em Poemas
Malditos, Devotos e Gozosos (1984), n’A Obscena Senhora D – A
Senhora Obscena H, diríamos –, temos a descrição da mesma
experiência que há em Mestre Eckhart. Trata-se da tentativa de
descrever a situação à beira do abismo, à beira do Cais Absoluto –
termo retomado por MD de Fernando Pessoa em sua Ode Marítima
–, na situação de separação radical em relação a Mundo. Hilda
explora a disjunção Mundo / Imundo como um lugar de
afastamento, de experiência psíquica, em que seus personagens são
lançados. A angústia e/ou a perplexidade, e/ou o simples bom
humor de estar no Mundo não pertencendo ao Mundo, de estar
transando com o Mundo, mas com um “olho adiáfano”, opaco,
distante, separado. Diz a Sra. D que “engolia o corpo de Deus a
cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres,
engolia o corpo de Deus como quem sabe que engole o Mais, o

60
Todo, o Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia
no absoluto infinito”.
Numa entrevista, Hilda comenta em tom de brincadeira que,
ao chegar a um limite extremo, procuramos caminhos de salvação.
Vários autores até classificam alguns desses caminhos. Um é o
alcoolismo, outro a santidade – mas, diz ela, que “está muito tarde
para entregar a bagaça a Deus. A santidade é boa quando se começa
cedo”. E complementa que “outro caminho impressionante é o
riso” – apesar de parecer patético, é um dos caminhos da salvação.
Hilda o pratica exercitando o jogo irônico, rascante, ora de
escárnio, ora de troça cotidiana com tudo.
Outro aspecto de sua ascese mística é a sucessão de operações
em Revirão em sua vida e em sua obra, uma espécie de
demonstração do processo pelo qual ela própria estava passando.
Por exemplo, o afastamento da vida social aos trinta e três anos
para o interior, em sua chácara, em Campinas, a Casa do Sol; a
presença constante em seus textos de elementos díspares do
Sublime e do Grotesco, de Deus para Deus... Ela afirma que busca
Deus, mas qualquer definição, qualquer desenho de Deus é
escamoteado a ponto de ela transformá-Lo em Deus-porco. Isto, no
sentido de todas as porcarias que se apresentam e, ao mesmo
tempo, da busca desse ponto extremado e limite de sua experiência,
que orienta sua produção e organiza suas sucessivas viradas até o
ponto em que declara que parou de escrever, só o silêncio interessa.
A solidão é tão grande que a própria literatura vira dejeto. Seu

61
silêncio final é a fase contemplativa do processo todo até seu
desaparecimento.
Outra virada sua foi quanto à escrita que assume o caráter
pornológico: uma escritora séria que passa a ser ultra-séria. Fazer
série é assim, é por completo, por inteiro. É a mesma questão que
permanece em todo seu processo, buscando a mesma coisa em
qualquer via. E mesmo a última instância de ficar em silêncio é o
que foi anunciado na indicação da Fantasia Originária com a
fórmula d’Alei. É isso que ela está dizendo.
Em entrevista aos Cadernos de Literatura, perguntam-lhe “se
o suicídio, de fato, já lhe passou pela cabeça”. Ela responde:
“Muitas vezes, mas como não tenho revólver, vou ter que comprar
e vai ser uma maçada enorme. Sempre penso que quando morrer,
vão dizer: Que maçada!” É como se ela tivesse deixado que os
escritores incompreendidos se matassem ou enlouquecessem.
Alguns se suicidam, aliás. Diz ela também, respondendo se sua
poética sempre tinha sido do desejo, que se trata “daquele suposto
desejo que eu vi e senti em algum lugar. Eu vi Deus em algum
lugar. É isso o que quero dizer”. – E a importância de Deus diminui
também agora? “Não. Não preciso mais falar nada, entende.
Quando a gente conheceu isso, não precisa mais falar, não dá mais
para falar”. A pergunta continua: “Portanto, é um esgotamento da
linguagem, um passe expressivo que leva ao silêncio?” E a resposta
é: “É verdade, leva ao silêncio, eu fui atingida na minha

62
possibilidade de falar. Lá do alto me mandam não falar. Por isso, é
que estou assim”.
Essa ascese e essa seriedade estão no experimento que Hilda
faz e que, a partir dos anos 1970, vai alternando prosa e poesia
(nomes pobres para designar o que ela faz). Em seu Júbilo,
Memória, Noviciado da Paixão (1974) sua maneira de cantar o
amor, a experiência erótica fica cada vez mais marcada pelo lugar
da solidão. É um Eros divino, que come a carne da gente, pede o
gozo, o qual vai sendo sublimado, se pudermos usar este verbo aí,
através desse experimento e dos modos como vai descrevendo a
experiência amorosa, da paixão, do afastamento, da solidão,
acelerando a invectivação dessa ascese mística. Diz ela, em Fluxo-
Floema, que “os laços da carne me chateiam. São laços rubros,
sumarentos, são laços feitos de gordura, de náusea, de rubéola, de
mijo, são laços que não se desatam, laços gordos de carne”.
A partir dos anos 1980, Hilda escreve A Obscena Senhora D
e, depois, Com os Meus Olhos de Cão (1986). Intercalados a esses,
escreve Poemas Malditos, Gozosos e Devotos (1984). Temos,
assim, uma espécie de quadra literária entre poesia e prosa – desde
Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão até os Poemas Malditos,
Gozosos e Devotos, e desde Com os Meus Olhos de Cão até A
Obscena Senhora D – que eleva à última instância a locução de seu
texto, a singularidade e a repetição de buscar, de pedir Deus. Sua
transa sempre foi com o divino: “minha vontade sempre foi o
trânsito com o divino”, como ela repete em suas entrevistas.

63
Depois de Com os Meus Olhos de Cão – história do
matemático que tem a iluminação do satori –, ela parte para O
Caderno Rosa de Lori Lamby. Na sequência, publica Contos
d’Escárnio: textos grotescos (1990), Cartas de um Sedutor (1991),
e a deliciosa coletânea – à qual MD se referiu como “Cantos de
Foda” – de poesia intitulada Bufólicas (1992), na qual as fadas são
lésbicas, chapeuzinho vermelho quer comer o lobo mau, o reizinho
é gay... Ela mostra aí a verdade dos contos de fada: são poemas
eróticos ilustrativos.

Ʃ Ʃ Ʃ

Em Fluxo-Floema, diz Hilda – e lembra Lacan – “amodeio tudo


que pode e é”. E continua: “Louvado seja esse bem-estar de assim
ser”. Ou seja, louvado seja o que há: Amém. Louvado seja Deus. É
a canção do louva-a-deus, que é devorado pela fêmea que o fode.
Sua obra é bem-humorada e inteligente. Nela podemos ver
algumas “traduções” de conceitos e/ou lógicas importantes da NM.
Por exemplo, uma tradução sua para Bifididade: “Teu Deus está
por aí bocejando com duas bocas. Numa, um hálito fétido, noutra
uma rosa. Você escolhe a boca que quiser, meu chapa”. Outro
exemplo, uma versão da Indiferenciação radical do Haver: “O
divino cospe para lá e para cá sem consultar a direção do vento”. E
a Senhora D pergunta: “Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido

64
buraco? Escondido atrás...” Está indicando que Deus é bífido – está
exigindo a Bifididade de Deus.

Ʃ Ʃ Ʃ

Considero agora o contexto da obra da Hilda à luz do que já foi


indicado na NM como circunstância contemporânea de crise do
Terceiro Império e emergência do Quarto Império. A colheita da
mística, para usar uma expressão de Bernard McGinn, nos séculos
XIII e XIV, chega até o XV com Nicolau de Cusa. Ele é
contemporâneo de um momento de confusão extrema, de guerras,
de repactuações políticas, e vem em seguida o desenho do
Renascimento: o humanismo renascentista, que vai eleger a
Escolástica como vilão, deixando a mística no subterrâneo. Ela
reemerge um pouco com Angelus Silesius, com Teresa d’Ávila,
soror Juana de la Cruz e João da Cruz, mas fica no ar, sem conexão,
pois a vaga que entra em cena são os efeitos desse desenho do
Renascimento, somado aos impactos das guerras religiosas da
reforma e da contrarreforma. E junto com essas cintilâncias de
emergências místicas comparece o Maneirismo na resposta ao
Renascimento, depois ainda vem o Barroco.
O desenho do pensamento dito ocidental pela via dita
científica, filosófica, portanto, é o oposto do que seria uma Pró-
Modernidade, para usar um termo de MD. O que a história e a
filosofia chamam de moderno é um tempo obscuro da paranoia, das
certezas, do sujeito, do objeto, da subjetividade, da consciência.
65
Daí que, na contramão, mesmo que não assumida como tal, o Brasil
tem uma posição no encaminhamento nesse percurso renascentista
ocidental até hoje. No conto “Axelrod (da proporção)”, de Tu não
te moves de Ti, vemos que Axelrod é eixo, roda e um sobrenome –
Silva –, que, como diz Hilda numa entrevista, é uma espécie de
pan-brasilidade. Há uma Hilda que fala do Brasil apontando que
não é possível criar-se uma nação arrumadinha, publicitária,
porque “pátria é uma verdade grudada na minha sensibilidade”.
À maneira de outros brasileiros no século XX (incluindo
MD), ela, por ser afetada e sacar a situação de perplexidade que é
viver neste país, tenta, mediante uma perplexidade cultivada, falar
do Brasil, fazendo um Revirão do humor. Em Contos d’Escárnio,
o narrador de nome Crasso diz a seu amigo escritor, Hans Haeckel:
“...vamos escrever a quatro mãos uma história porneia, vamos
inventar uma pornocracia, Brasil meu caro, (...) exaltar a terra dos
pornógrafos, dos pulhas, dos velhacos, dos vis”. Hans, por levar a
literatura a “sério”, não aceita – e se mata logo depois. Na mesma
linha, em 1992, MD pergunta: “Por que há de ser sempre a riqueza
da cultura brasileira sustentada pelo espólio dos linchados?” – uma
pergunta que permanece para o país e para os brasileiros. Hilda e
MD são brasileiros, entre outros, que, a partir de suas
sensibilidades, se expressam num exercício constante de
perplexidade. É esse exercício, aliás, que, em tom de manifesto-
disfarçado, também está em Oswald, ao propor a ideia de
antropofagia como modo de encaminhar essa perplexidade. Ao

66
falar do Brasil como país da bandalheira, diz Hilda que “ser
brasileiro é ser ninguém, ser desamparado e grotesco diante de si
mesmo e do mundo”.
Assim, agora, no ponto de mutação em que nos encontramos,
volta a emergir a invectiva do lugar extremado do Inconsciente. De
um lado, temos a psicanálise, a literatura de Hilda, Bataille... que
são a emergência da sacação do movimento místico como o
movimento ápice do pensamento e ápice do Inconsciente. A obra
da Hilda é o exercício literário, poético, artístico de reivindicação
e de chamamento do ápice do pensamento em circunstâncias nossas
de hoje. Hilda soube conviver com a zorra atual trazendo um modo
bem-humorado de descrever sua vivência solitária e, de bandeja,
nos transmitiu sua experiência de sacanear a paranoia.

Ʃ Ʃ Ʃ

NOTA 1
Alguns queridos caretas meus leitores me enviam críticas idiotas:
1.1 Que meus textos são cheios de termos vulgares, mesmo supostos
palavrões. É verdade. A língua que falo, e na qual escrevo, é o Brasileiro
contemporâneo caminhando para futureiro. É a língua que os próprios
eruditos falam no cotidiano. Querem ver para onde esta novilíngua se
encaminha? Basta ler as vinhetas do novo português da Televisão.
Lembremos que do Latim clássico já passamos ao Latim Vulgar, isto é,
popular e, ainda por cima, aos idiomas Neolatinos, dentre os quais o
Português. Acham que a Língua vai ficar bem-comportada? No Quarto
Império as fronteiras estão indo para o beleléu, e o Baixo Calão

67
frequentemente é mais preciso do que eruditismos de enfeite. Isto já está indo
parar na Literatura, e mesmo em textos teóricos sob a égide de EXU.
1.2 que meus textos mudam frequentemente de estilo, mesmo, às vezes, de
um parágrafo para o outro. Nosso Santíssimo Fernando Pessoa teve uma
trabalheira do caralho para apresentar com nomes e estilos diferentes as
diversas FORMAÇÕES que habitavam sua cachola. Foram centenas. Bons
tempos aqueles. Agora, Quarto Império, deixamos que elas compareçam de
cambulhada, quando quiserem, quando pintarem, mediante a regra de
composição segundo a qual estilo é uma farsa. “O estilo é o homem” de
Buffon, é o cacete. Hoje em dia, o Estilo é apenas a Caneta – que agora é
eletrônica e pós-bobagem.
1.3 tem um safatlinho que denuncia, por escrito, que as “traduções” do MD,
de dois Seminários de Lacan, não são recomendáveis. Fui procurar nos textos
publicados pela Zahar e não encontrei nenhuma “tradução”. O que lá está
escrito, com todas as letras, é: Versão Brasileira de M.D. Magno. Pois. Aliás,
junto com o ZéJeca, pensa que Psicanálise é Filosofia. Né não, mermão. A
Psicanálise está NovaMente em Vigor. Graças, adeus, como diz o MD.

NOTA 2
Teofagia, Heterofagia

Já se falou que três brasileiros


estão juntos, estão falando
porcaria…
MÁRIO DE ANDRADE
(1º Prefácio para o Macunaíma)

Teófaga incestuosa é um apelido gostoso, entre tantos outros, que a Hilda


Hilst encontra para falar daquela ânsia por transcendência, daquela
insistência mística que percorre sua obra. Mais especificamente, a expressão
68
figura no trecho inicial d’A obscena senhora D. A mística pode ser descrita,
no vocabulário dos especialistas, como uma “tentativa de expressar uma
consciência direta da presença de Deus”. Já no vocabulário de Hilda, sem
papas na língua, mais do que “consciência direta” de Sua presença, o que se
quer mesmo é comê-Lo. Quanto ao “incestuosa”, sabemos, desde MD, que
“incesto” e sua proibição são metáforas do Segundo Império para a
impossibilidade de gozar absolutamente, mobilizadas como forma arcaica de
organização social.
Ah, a delícia do verbo “comer” na língua brasileira. É óbvio que essa
comida almejada não é só aquela que se faz com boca, dentes e estômago.
Neste nosso vernáculo sacana, Vontade de Comer coincide com Vontade de
Phoder (duas possíveis traduções-Exu da Wille zur Macht de Nietzsche). A
Teofagia hilstiana é incessante insistência na tentativa de atingimento da
Foda Divina, ou seja, de sua própria desaparição.
Aliás, não foi à toa que uma outra movimentação exemplar da
mentalidade brasileira, a partir do polo Tarsila do Amaral, Raul Bopp e
Oswald de Andrade – ponto alto do pensamento modernista –, quis apontar,
com a analogia do comer, certo jeitinho de funcionar disseminado na
sensibilidade do Brasil. Jeitinho que seria a tônica da sintomática nacional.
Comer é o nosso esporte, bem mais até do que o futebol – que, a propósito,
comemos dos ingleses.
No Manifesto Antropófago, em vez de paixão nacionalista por
configurações culturais determinadas, por alguma das diversas resultantes da
hibridação brasileira, busca-se alguma descrição, assim como a assunção,
daquilo que funciona como geratriz desse processo. O impulso de querer
comer os outros. Foi o que se chamou de Antropofagia, a qual, naquele
momento, só se conseguiu expressar por meio de formulações poéticas,
mitológicas ou mesmo através de filosofemas que, frequentemente, mais
obscurecem do que dão precisão a seu entendimento.

69
O desenvolvimento da Heterofagia por MD, apropriação operada a
partir dos anos 1980, ao mesmo tempo simplifica e expande a ideia inicial
dos antropófagos. Sai o anthropos e fica muito mais phagia: a vontade de
devoração do diferente, das diferenças, é o funcionamento do Inconsciente,
submetido à ALEI (Haver desejo de não-Haver). Em uma palavra (outra
delícia do idioma brasileiro): Tesão. Um apetite, em última instância,
absolutamente Indiferente e, por isso mesmo, aberto a Qualquer refeição.
São os recalcamentos da ordem sintomática que vão, em cada caso, limitando
as dietas.
Não temos nisso caracterologia alguma do brasileiro, mas a
acaracterologia macunaímica do Inconsciente, que acomete o Haver por
inteiro e, é claro, qualquer IdioFormação. Função que terá encontrado
terreno fértil na bagunça brasileira, o que exacerbou sua expressão e seus
efeitos e se estabeleceu assim na sintomática nacional. É só considerar o
exercício a que esta espécie foi forçada aqui desde que se formou essa
algazarra.
Aceleração transformática, intercruzamento de diversos fluxos de
formações primárias, secundárias, com eventual eclosão de Originário, em
regime de sacanagem liberada – mesmo que simultaneamente a um regime
brutal de convivência, como mostrou a ciência lúcida de Gilberto Freyre, o
Sade de Apipucos. Além disso, outros, mostram como o grosso dessa
começão rolou bem longe de casas-grandes & senzalas, pelos sertões &
veredas do país.
A Teofagia de que Hilda fala poderia ser um nome para a última
instância dessa Heterofagia. Se há, para esta espécie, essa Vontade de Comer
as diferenças, é que há antes, de fundo, a afetação pela Diferença Radical
entre Haver e não-Haver. O querer comer, gozar absolutamente desse
suposto lugar de Deus, e a ciência clara de sua absoluta impossibilidade.
Teofagia é querer comer o Impossível. Lembrando a transgressão de Georges

70
Bataille, é devorar o “Outro” – que, no entanto, não há. Se supomos alguma
radical alteridade é só pela absoluta vontade de cair fora dessa – de Haver, o
Mesmo – de uma vez por todas.
Este é o fato fundamental com o qual lida a psicanálise: não tem jeito,
somos uma espécie incontornavelmente teófaga. Mesmo a animalização e a
neo-animalização a que frequentemente nos submetemos são subterfúgios
que ocultam mal – o que é característica do recalque – qual pathos está na
base. Para esta lida, a Indiferenciação – exercício de neutralização e
afastamento das diferenças internas ao mundo e acirramento e aproximação
da Diferença Radical na última instância – é a postura fundamental proposta.
Daí seu Estatuto Místico: a psicanálise se apresenta como exercício
secularizado de trato com a função mística, transcendental, teófaga, do
Inconsciente. Trato que também os místicos históricos tentaram, porém
muito embrenhados com toda a mitologia religiosa que os cercou – o que não
impediu que se fizessem achados fundamentais, como é o caso, sobretudo,
na mística ocidental, de Mestre Eckhart.
Chamemos de Zeroteísmo, seguindo MD, o exercício secularizante de
manutenção em vazio daquele lugar psíquico que impõe, para esta espécie,
a incontornável hipotetização de “Deus” – lugar de Gnoma, onde se
exasperam a exigência de não-Haver e o baque de sua impossibilidade. O
Gnoma é frequentemente preenchido com formações sintomáticas da pior
espécie – dessas que, superegoicamente, proliferam recalques sobre o que se
pode ou não se pode comer. Zeroteísmo é sacar que, neste lugar, em vez de
algum deus configurado ou configurável, o que há é deus-nenhum, Nada,
Fundo sem Fundo – e só resta Haver, nosso trauma.
A IdioFormação vive atravessada entre a Teofagia, impossível e
inafastável, e a Heterofagia, possível, mas insaciável. Sobra comer o que
temos – e o que ainda não temos (“Só me interessa o que não é meu”,
conforme Oswald). Expansão, em regime de Indiferenciação, e por eventual

71
HiperDeterminação, do cardápio das possibilidades de transa e transação.
Resultante daquele desassossego do qual jamais poderemos nos livrar, de
querer comer justamente o que não há. Enquanto isso, a gente (no Haver) vai
se comendo.

72
4
O LUGAR TERCEIRO
DA PSICANÁLISE

...há só um empuxo e pura perplexidade.


(MD MAGNO, Psicanálise: Arreligião, 2002: 72)

Dado que a Pulsão, empuxo que afeta tanto o psiquismo da


IdioFormação como tudo que há – aqui nomeado por Haver –,
requer o Impossível, colhe-se desse movimento necessariamente
uma quebra-de-simetria. O simétrico fatalmente desejado por
Haver não se entrega como fatalidade requerida apenas porque não
há. Impossível Absoluto, atrator alucinado, não-Haver produz, no
entanto, o efeito da desejação perene.
Se não-Haver não se apresenta, a experiência de Haver,
disponível para toda IdioFormação, seria o golpe, em radical
solidão, de sacar que Há. Na radicalidade dessa experiência
coincidiriam o conhecimento absoluto e a ignorância absoluta:
lugar onde se sabe que Há, mas também da afetação do
desconhecimento de qualquer origem e destino. Conforma-se aí o
lugar do mais fascinante tesão de desaparecimento e, pelo mesmo
motivo, da angústia mais tremenda. Para aquém da ordem de

73
Haver, decai-se – de forma descontínua – na ordem do Ser.
Enquanto o irredutível Haver é anterior a qualquer partição, o
âmbito do Ser é necessariamente o das formações cindidas, posto
que ressoam a quebra-de-simetria fundamental entre Haver e não-
Haver. Disso decorre que qualquer tentativa de discorrer sobre as
formações do Haver já parte do fracasso da discursação
inapelavelmente castrada do Ser.
Consoante com o aparelho teórico montado sobre o axioma
da pulsão – Haver quer não-Haver –, a Nova Psicanálise, seja na
clínica de Pessoas, seja na Clínica Geral de mundo, opera a partir
de certo lugar. E que sítio é esse desde onde a Nova Psicanálise se
postula? Um Lugar Terceiro. Mas terceiro em relação a quê? Em
relação às oposições de mundo e ao sistema de valoração que sobre
elas incide. O lugar onde a Nova Psicanálise se situa é, portanto, o
de Indiferenciação com recurso à HiperDeterminação, entendida
como requisição de ascese informada pela rememoração da
experiência bruta de Haver. Sendo talvez a postulação desse locus
terceiro uma das maiores diferenças afirmativas da Nova
Psicanálise, pareceu oportuno, para nossa compreensão, percorrer
novamente um caminho até lá, dentre os inúmeros descritos na obra
de MD.
Partindo do reconhecimento de que a psicanálise é uma
emergência ocidental do século XX e que, como tal, está
necessariamente sobredeterminada por sua circunstância, para uma
primeira limpeza do entorno do terreno, propomos: 1 - Retraçar o

74
que o filósofo francês Dany-Robert Dufour descreveu como o
recalcamento do pensamento ternário no Ocidente. 2 - Sumariar
algumas das polarizações que se dão em torno do vitorioso
binarismo de matriz grega. 3 - Chamar o pensamento oriental para
a conversa – notadamente o chinês –, destacando proximidades e
diferenças. 4 - Trazer para consideração a razão egípcia que – junto
com a chinesa, a grega e a psicanálise – compõe o tetraedro das
razões desenhado por MD (2003).

* * *
Para o primeiro passo, seguimos sugestão de MD e tomamos de
empréstimo a argumentação de Les Mystères de la Trinité (1990),
de Dufour, que conjectura a história do pensamento ocidental como
o embate entre pensamento ternário e binário. Nos termos do autor,
a vitória do pensamento binário teria se dado mediante a
“erradicação do espaço mental destinado à simbolização da
morte”. Se as narrativas míticas mantinham a morte na
consideração – ao insistir no reconto da aventura do herói que
transmuta o inescapável em decisão –, a partir da chamada “ruptura
pitagórica”, como veremos na sequência, teria se dado a inclusão
da natureza humana na ordem da permanência, tendo na negação
da morte sua contrapartida lógica.
Relembra Dufour que, no século VI a.C., uma pequena
sociedade marginal rebela-se contra a ingestão de carne e as
práticas sacrificiais correntes e marca posição no esvaziamento do

75
lugar destinado à simbolização da morte. Mas, fundamentalmente,
a novidade pitagórica está na criação de um sistema binário de
oposições que dá origem ao conceito de Número. Gerador da ideia
de Proporção, o conceito de Número logra colocar contrários em
acordo e abre uma via para o assentamento da natureza humana no
domínio do imutável. Como sabemos, os pitagóricos encontram na
música, a um só tempo matemática e sensível, o acesso por
excelência dessa ascensão. Ao participar da natureza imutável do
número, um novo tipo de superação da morte aparece para o
homem: desembaraçado de toda variabilidade, encontra-se agora
assimilado à permanência via eternidade da alma. À alma
pitagórica, que tudo conhece, restaria rememorar – ideia que será
retomada e expandida pelo pensamento platônico na distinção entre
mundo das ideias e mundo sensível. E será justamente na figura do
diálogo platônico que o pensamento binário atingirá seu desenho
mais acabado. O binarismo corpo / alma, que aí se estabelece,
assume posição matricial no pensamento ocidental e sela o
banimento do terceiro termo.
Em seus Mystères, Dufour faz ainda o acompanhamento da
expansão do pensamento binário para o discurso científico, dando
origem às noções como falso/verdadeiro, princípio de causalidade,
dentre outros. Em contraste com a narrativa mítica – aberta,
incompleta, recriadora de mundo a cada vez que se conta –, os
enunciados científicos configuram-se fechados, imutáveis e
válidos sempre. Por fim, Dufour mapeará o espraiamento do

76
pensamento binário ao território das ciências do homem, tendo no
Estruturalismo seu ápice e autores como Lévi-Strauss, Lacan e
Foucault, alguns de seus expoentes.
Pontuado o papel decisivo da ruptura pitagórica no
recalcamento do lugar terceiro na matriz do pensamento ocidental,
passaremos brevemente em revista algumas das polarizações em
torno do binarismo triunfante. E esse passo já damos a bordo do
nosso próprio aparelho, notadamente a partir da distinção radical
que MD faz entre Haver – o golpe discreto de “estar aqui” – e a
ordem do Ser que abarcaria a falação infinita de tentar dizer o
Haver. Essas duas categorias (Haver/Ser) são fundamentais para a
releitura psicanalítica que MD fará das discussões medievais sobre
a relação, e respectivos estatutos, de duas formas de conhecimento:
Fé e Razão.
Entrando, então, no percurso que nos interessa, teríamos a
considerar, antes ainda do marco que Sócrates vai inscrever no
debate Fé / Razão, as premissas de Parmênides e Heráclito (VI
a.C.). Para o primeiro, a fé antecederia a razão, ou seja, antes de
qualquer “discorrer sobre o mundo”, Parmênides insiste no Um –
nos termos da Nova Psicanálise: a experiência bruta de Haver. Com
precedência sobre qualquer falação sobre o mundo, Parmênides,
em nossos termos, posicionaria o golpe discreto do reconhecimento
de Haver – a experiência de que Há e de que não-Haver não há.
Alternativamente, o foco de Heráclito estaria no multifário, no
devir, na transformação: no desenvolvimento discursivo na

77
internalidade do Haver. E a Nova Psicanálise, diante da referida
polarização pré-socrática, de que lado se colocaria? Segundo nosso
aparelho: na validação de ambas as premissas, feita, porém, a
fundamental distinção de nível entre elas. A experiência de Haver,
ou o lugar de Um, antecede e é hierarquicamente superior ao
múltiplo, situado no nível do Ser.
Mas eis que, na constituição da filosofia ocidental, manifesta-
se a virada socrática (V a.C.). Nesse passo, o esforço de avançar
com o pensamento se dará no sentido de fundamentar o exercício
da razão como via exclusiva de acesso à verdade. Lançando mão
da ferramenta dialógica, Sócrates se move para evidenciar
contradições a serem eliminadas consoante com o interesse por
maior precisão de conceitos – é como dizer: “se isso é verdade, o
resto não é”. Aristóteles, por sua vez, discernirá alguns modos de
operação dessa razão, tais como o princípio de não-contradição e a
lei do terceiro excluído, que acabarão por fornecer os fundamentos
da epistemologia e da lógica que, como sabemos, se tornaram as
formas consagradas de saber no Ocidente.
Para o que anima o presente exercício de estabelecer o lugar
terceiro da psicanálise, é interessante aquilatar a inflexão resultante
da castração socrática. Em nossos termos, a coisa teria se passado
como a consagração de uma alelização (+ / –) que bilateriza o
mundo – “rasga-o ao meio”. Um gesto que, ao excluir o terceiro
termo, denega que, em alguma instância, Haver possa anotar-se
como Um.

78
Saltando para a era cristã, observa-se a determinação de um
Santo Agostinho (IV d.C.) em separar radicalmente fé e razão, ao
passo que em São Tomás de Aquino (XIII d.C.) anotaríamos o
esforço oposto de conjugação de opostos na suposição de que não
há razão decente sem estar referida à fé e não tem fé que não possa
ser trazida à razão. Nos termos da Nova Psicanálise, verificar-se-ia
no tomismo uma auspiciosa tentativa de passar alelicamente de
uma forma de conhecimento à outra.
Um mapeamento mínimo de posicionamentos expressivos do
embate entre fé e razão no Ocidente tem apenas o interesse de dar
moldura à forma própria pela qual a Nova Psicanálise o articula.
Sumariamente, como vimos, tanto fé como razão tem lugar no
desenho do Revirão: a experiência de Haver, do Uno, da fé é
anterior, tem precedência e é hierarquicamente superior ao âmbito
do Ser, à razão, ao múltiplo, a qualquer discurso na internalidade
do Haver.
Mas antes de avançar, para afastar possíveis deslizamentos do
termo para altares consagrados, vamos definir novamente o que,
por aqui, se entende por Fé. O fundamento da fé na Nova
Psicanálise é a experiência de Haver, o deparar-se com o fato bruto
de que Há e da indisponibilidade radical do que não há – o que
impõe inarredável desejação que, “de retorno”, será reinvestida
modalmente. A fé, nesses termos, é efeito da condição de ser
portado pela insistência libidinal em sua havência com
endereçamento de impossível. É, portanto, cega, em vazio, à

79
revelia, fundamentada em si mesma – puro tesão –, e antecede e
sobrepuja qualquer razão ou questão no âmbito do Ser. Por fim,
vale lembrar que o reconhecimento dessa fé que é vetorização
transcendental sem transcendente – expressão de última instância
do psiquismo – é o que aponta para o Místico do estatuto da Nova
Psicanálise. Voltaremos a isso brevemente no final desse percurso.
Pelo momento, uma vez situada a fé, estamos em condição de
deduzir razão como empréstimo ou aplicação modal dessa fé sem
conteúdo na ordem do Ser – tentativa assintótica de dar conta da
experiência de Haver.
Passaremos agora à consideração do modo de operar oriental
– notadamente do pensamento chinês – que, diversamente do modo
opositório que prevaleceu no Ocidente, operaria por alternância de
opostos. Na visitação do modo de operar chinês, também por
indicação de MD, acompanhamos François Jullien. Em seu
Tratado da Eficácia (1998), o filósofo e sinólogo francês explora a
diferença entre a fonte de eficácia chinesa e a grega, matriz do
pensamento ocidental. Para tentar acessar “o que funciona” na
montagem chinesa, vale incluir uma contextualização mínima, no
caso franqueada por Giorgio Sinedino, sinólogo brasileiro,
tradutor, dentre outros, do Dao De Jing. Sinedino adverte que, na
comparação entre a filosofia ocidental e o pensamento Chinês, é
preciso pôr na conta que não vamos encontrar neste as mesmas
categorias filosóficas que encontramos naquela – donde justamente
não caber falar de uma filosofia, mas de um pensamento chinês. De

80
base holística, inseparável da religião – lá entendida
predominantemente como culto aos antepassados e ensinamentos
dos sábios –, o pensamento chinês, seus saberes e técnicas, sempre
estiveram voltados para a administração – inicialmente das
“federações” (ou “feudos”) e posteriormente do Império –, e para
a coordenação do trabalho agrário e as necessidades da guerra. Mas
o que se extrai de fundamental da circunstância chinesa é o fato de
que, como lá o sistema político não teria sofrido grandes rupturas,
o pensamento chinês igualmente teria se constituído em
continuidade, em um constante aprofundamento e refinamento –
em uma palavra: em “fluxo”. Percurso radicalmente diverso do
caso ocidental, marcado pela descontinuidade das formas de
governo, tendo como corolário uma filosofia que se constitui por
“cortes”.
Voltando então ao balanço comparativo de Jullien entre
pensamento chinês e a matriz da filosofia ocidental, entendemos
que, para os gregos, a eficácia será pensada a partir da abstração de
formas ideais – “modelos” – projetadas sobre o mundo e realizadas
através de uma vontade que estabelece uma meta – “plano” –
visando sua realização. E esse plano, ou projeto, é realizado por
meio de uma agência heroica. A China, por contraste, teria outra
inteligibilidade e diferentes recursos propiciadores de eficácia. Seu
modo de operar deixaria advir o efeito, orientar-se-ia por não visar
uma finalidade, por não buscá-la, mas recolhê-la, por deixar o
efeito resultar: “Se deixar portar pela situação”. De resto, como o

81
efeito já estaria inscrito na situação inicial, tratar-se-ia de facilitar-
lhe a fruição e recolhê-lo. Em suma: buscar eficácia no fluxo é –
diversamente do modo ocidental – operar mediante a aposta de que
as situações viram por si mesmas, em alternância de opostos.
A distinção entre os modos de conhecimento grego e chinês
alimenta uma longa lista de resultantes específicas a cada um em
termos de posturas, métodos, lógicas, estratégias e expressões
artísticas e conceituais. Se o modo grego é focal, fixador de forma,
se estilisticamente é clásssico e logicamente consistente, se
trabalha na separação com oposições como sujeito / objeto e tem
na filosofia sua forma mais acabada; o chinês é franjal, privilegia a
passagem e a transformação de estados, estilisticamente é barroco
e logicamente inconsistente, exige a complementaridade, como por
exemplo expressa no Yin/Yang, e colhe na sabedoria de seus
mestres a orientação para o caminho (Tao).
Ainda sobre a diferença entre esses dois modos de operar,
poderíamos dizer que o pensamento chinês recalcaria a
possibilidade de forçar o outro alelo via alguma intervenção contra
a situação. Então, se a filosofia poderia ser lida como operação de
mutilação em nome da razão – ou seja, como impositora de
recalque –, o pensamento chinês seria, alternativamente, recalcador
de recalque. Parece também pertinente supor que, apesar de se
querer radicalmente imanentista, o modo chinês faz a introjeção da
figura do Sábio na imanência – o que não deixaria de ser uma
espécie de internalização da transcendência, ao passo que o

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Ocidente exportaria a transcendência “para fora”: seja inventando
Deus ou entronizando a razão.
Incluamos agora rapidamente a razão egípcia que, junto com
a grega, a chinesa e a psicanálise, vai compor o que MD chamou
de tetraedro das razões – um construto muito rentável para o
aprofundamento da compreensão do que seja esse Lugar Terceiro
da psicanálise. Na incursão à razão egípcia, segundo orientação de
MD, toma-se como referência o trabalho de Nayla Farouki La Foi
et la Raison: Histoire d’un Malentendu (1996), no qual empreende-
se o cotejamento entre razão egípcia e grega. Da mesma forma que
fizemos em relação à razão chinesa, na suposição de que a prática
de um povo sobredetermina em alguma medida seu modo de
conhecer, valeria lembrar que tem-se aqui um povo envolvido com
a criação de gado, o que teria forjado a mentalidade egípcia em
termos de “comando, exigências e ordens” (MD, 2003: 131).
Teocrática, mística, transcendente, revelada, postulando um
Criador e invocando um Profeta como fonte de conhecimento, a
razão egípcia contrasta com a grega que é transcendental,
antropocêntrica, forjadora de axiomas e que tem nos filósofos a
fonte de explicações.
Minimamente esboçadas as três razões – grega, chinesa e
egípcia – e colocadas como vértices de um triângulo segundo seus
específicos modos de operar, obtém-se o tetraedro posicionando a
psicanálise em um quarto vértice. Isso posto, seria justo estranhar
que a psicanálise tenha acabado de “pular” do lugar terceiro para o

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quarto. Mas esse reposicionamento deve-se apenas ao acionamento
de uma outra articulação – no caso, o tetraedro das razões – dentro
do mais amplo aparelho teórico em vigor na Nova Psicanálise. O
que importa aqui é perceber a posição radicalmente exterior às
razões articuláveis de mundo, que variam segundo as culturas, mas
que não escapam do lastro sintomal – ou seja, da parciaridade de
tudo quanto está subdito à ressonância da quebra-de-simetria
originária. Nesse quarto vértice, digamos “externo” aos outros três,
a psicanálise, dada sua possibilidade de indiferenciação fazendo
recurso à HiperDeterminação, agrega soltura propiciadora de
operação com qualquer uma das razões segundo o caso e a hora –
ad hoc.
Compreendida essa “externalidade” desde onde a psicanálise
opera, e invocando uma trilha que MD recupera em um Seminário
Clínico de 1990, fica claro também que o que se entende por
Indiferenciação tampouco seria traduzível pela síntese hegeliana.
Como sabemos, a ideia de Hegel consistiria em, a partir da
alternância de teses e antíteses, obter uma síntese que as inclua e as
supere. Nessa ocasião, esclarece MD que sua indiferenciação
extrapola o discurso sintético – resultante almejada do processo
dialético – justamente por sustentar-se na diferença externa. Não se
trataria aqui, pois, de nenhuma androginia, de nenhuma
coincidência de opostos por ocasião do atingimento de uma síntese,
mas antes de uma Indifferentia Oppositorum – de um radical salto
fora da lógica opositiva.

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Estabelecidas essas primeiras distinções, caberia agora nos
deter mais especificamente em uma não rara ambiguação entre o
modo de operar chinês e a Nova Psicanálise. A questão é: se
entendemos que a psicanálise opera pela indiferenciação dos
valores atribuídos aos elementos de uma oposição, no que diferiria
da operação suspensiva da alternância de opostos do modo chinês?
O aparelho teórico da Nova Psicanálise nos disponibiliza uma
variedade de trilhas para entregar essa resposta. Mas supomos
possível dizer que decisivo na marcação da diferença é o
destacamento axiomático que nela se faz da Pulsão que não
encontra seu simétrico – donde a quebra-de-simetria que reverbera
por todas as formações multifárias do Haver. Ou seja, para além
das oposições, digamos “internas”, que o pensamento chinês
propõe manter em suspensão e alternância, coloca-se uma segunda
oposição “externa” – aqui nomeada como a de segunda potência do
binário. Essa segunda oposição tem como polos Haver e não-Haver
e é da ordem da experiência.
Parece também justo dizer que o trauma fundamental da
condenação de Haver – o bordejar do que MD chama de Cais
Absoluto – não apaga os dualismos do mundo impostos pela
incontornável quebra-de-simetria, mas nem por isso deixa de
propiciar um afastamento temporário da imanência capaz de
promover a indiferenciação das oposições “internas”. Note-se,
porém, que é somente pela experiência de afastamento de mundo –
em vetorização transcendental sem transcendente – que, “de

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retorno”, é possível indiferenciar valores, ou seja, só há
indiferenciação com referência à HiperDeterminação. A aposta em
jogo é a de que se houve experiência de Cais Absoluto, nesse lugar
de exasperação entre Haver e não-Haver, nas situações de
periclitância e embaraço de mundo, ou “apenas” como exercício de
ascese, seria possível fazer referência à HiperDeterminação – essa
requisição de rememoração do trauma – e nas palavras de MD:
“empastar totalmente a imanência” (2000: 194).
Por fim, lembraríamos que outra forma de descrever o próprio
do modo de conhecer da NM seria a observância do Gnoma em
vazio. Partindo da premissa, segundo MD sacada desde Freud, de
que o Inconsciente é religioso, ou seja, que seu funcionamento de
última instância é de vetorialização transcendental – o que não
deixa de ser apenas outra forma de falar o axioma Haver quer não-
Haver –, não surpreende o comparecimento da suposição de que
deveria ter “algo” ali – no lugar dessa exasperação – que responda
ao pedido original da pulsão – o que MD chamou de “Hipótese-
Deus”. Estando o desejo de transcendentação inscrito na máquina
do funcionamento psíquico da IdioFormação, mas dado também
que a espécie está sob o jugo de espessa massa recalcante primária
e secundária, observa-se o tamponamento do lugar do Gnoma com
os mais diversos conteúdos – seja um axioma, uma sabedoria ou
um deus, como dão exemplo respectivamente as razões grega,
chinesa e egípcia. Quanto a essa consideração, o que se coloca
como central seria a sustentação da disjunção entre a experiência

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de Fé em vazio – o golpe de Haver – e as tentativas das variadas
razões forjadas no mundo e no tempo de preenchimento do lugar
de Gnoma, aí incluídas as narrativas religiosas.
Retomando nosso ponto de partida, se Dufour dizia que o
Ocidente recalcou o lugar terceiro da “simbolização da morte”, a
Nova Psicanálise melhor diria que, nesse lugar, está-se diante da
angústia do impossível da desaparição. Diante disso, as religiões
dariam testemunho da tentativa de suturar a disjunção “para cima”
– Deus é Causa, tudo sabe: é o dogma. A ciência e a filosofia fariam
a operação de suturar “para baixo” – entronizando,
respectivamente, a verdade científica ou o axioma filosófico. Nesse
ponto, chama a atenção a engenhosidade da ferramenta teórica da
Nova Psicanálise que logra colocar a Pulsão tanto como Causa
quanto como conceito. Não-Haver é Causa, mas gerada pelo
funcionamento interno do aparelho, como requerimento do Haver.
Não-Haver é alucinado e revelado como transcendente – como que
dado de “cima para baixo” –, ao mesmo tempo que se desdobra em
conceito – forjado de “baixo para cima” em vetorização
transcendental e gerador do axioma do aparelho.

* * *
Encerramos lembrando, conforme MD, que teoria sem uso não tem
valia. O que interessa é, pois, o manejo de formações propiciado
pela ferramenta, a operatividade da prótese para intervenção de
mundos. Isso posto, qual o ganho que pode advir de posturar-se

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desde esse Lugar Terceiro? Certa movimentação, maior
disponibilidade, relaxamento da pressão sintomal, expansão da
franja, outras transas, redesenho do pólemos das formações – em
suma: alguma metamorfose. Com sorte: emergência de novo.
Ao longo do caminho proposto até o lugar terceiro da
Psicanálise, vieram conversar Confúcio, Pitágoras, Heráclito,
Parmênides, Sócrates, São Tomás de Aquino, Descartes, Hegel,
Freud. Ressoando tantos outros incontáveis nessa falação que se
entabula desde quando a espécie – que passa a chamar-se
IdioFormação – deu de querer o que não tem, mas nem por isso, ou
por isso mesmo, desistiu de tentar dizer. Sabedoria e filosofia se
infinitizam querendo dizer absolutamente. Mas absolutamente não
se diz: sabe-se. Há e sabe-se que há. Silêncio e perplexidade.
Soube-se como? Empuxo: Haver desejo de não-Haver.

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