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119·18&
An a Maria Rudg~
Ponrificia Universidade Carólica do Rio de Janeiro
Resulllo
Considera·se que as criticas à psicanálise, no seio do movimento chamado '"revi sionismo frC'UdiaJ\o • têm
como pre5suposto uma deternlinada concepção de citmtificidade derivada do empirismo ]6gico. Nesta
tradição, o valor da psicanálise é negado com Oargumento de que n1l0 dispõe de mecanismos dc vcri!icaçllo ou
falsificação experimentais corno os das ciências da natureza. Se o objeto da ciência é cons iderado como
construção e não um dado, a idéia de continuidade entre os vários campos cient[ficos ou de uma unida de
metodológica não se sustenta. Cada área do saber tem parâmetros próprios e os diferentes campos científicos
ou pamdigmas são incomeru;uráveis. D<:ntro deste ponto de vista, ad voga·se que a psicanálise, como uma
prática clínica teorizada, deve ser avaliada por critérios que respeitem sua especific idade ep istemológica, ou
seja, os efeitos clínicos do tratamento psicanalítico, assim como os impactos da psicanálise na cultura
Pala"as·cbal~: psicanálise, epistemologia, revisionismo, prática, ciência.
Presuppositionsofthe "newHcriticismtBpsychBanalysis:
lreudianrevisionismandtheepislemologyofpsychoanalysis
Abstr~ cl
The critiques to psyehoana lysis from lhe movement ea lled '"Frcudian rcvisionism", prcsupposcs on~
particul ar cOllc~ption of science that is deriv~d frorn logical empi ricism. In this tradition . lhe va[ue of
psychoilllalysis is dcnied with lhe argumcnt Ihat i! docs nOl have the mechanisms of experimental veri fic.ation
or fa[sification [ike natural seienccs. Iflhe objcc! ofscicncc is cOllsidered as a ratiOllal construclÍon and not as
data, however, the idca of continuily between difl'erent scientific fields or ofa methodo]ogical unity does not
app[y. Eaeh arca of know[edge has ils OV'i11 parameters, and the ditTerent scientifie fidds or paradigms are
ineommensurablc. From tbis point ofview, il i.~ advocatcd that psychoanalysis, as the theoT)' of a clinicai
praelice, mnst be eva[uated hy criteria tha! respec! its cpistcmologica[ specificiry: lhe cliniea[ efrecls ofthe
psycboana]ylic lTc.atm""JlI, as wcll as lhe impacls ofpsycllllanalysis in co!tun:
.'1 wDrdS: psycboanalysis, cpistemology, rcvisioni~m. practicc •.'<Cienee
I. Trabalho apre5cntado na Mesa·redonda A problemática psicalUJlitica "O debate cientifico: dos p rimórdios ao filUJl do
século XX, XXX RC'Uniiio Anual de Psico logia da Sociedade Brnsilcira de Psicologi a, Brasília - DF, oulubro de 2000.
Endereço para correspondência: Av. Rui Barbosa 532/1101, CEP : 2250-020, Rio de Janeiro - RJ, tel (2])255[4268,
f:ul (2])25534718. e·mail an a.rudge@uol.com.br
I. A.II. II~I
2. As ''terapias da memória recuperada", que, segundo Crews, tcriam na psicanálise sua primeira inspiração, deram origem a
um grande número de acusações em juizo, possivelmente infundada.., de abLJSO sexual pcrpetrado, nos primeiros anos de
vida, por progenitores.
3. Na década de sessenta foram publicadas as correspondências com I'fister (1963), Abraham(l965). Andrias_Salome
(1966) e Arnold Zweig (1968) A correspondência entre Freud c Jung só foi publicada em 1974. após demoradas gestões
entre as famílias, Mais recentemente, foram publicada,; as çorrcspondências entre Freud e Jones, em 1993, c Freud e
Ferenczi, em 1994.
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consideram sem valor, deliberadamente mentindo ao verificáveis empiricamente. Quanto a estas, seu sen-
relatar e elaborar teoricamente sua experiência tido é identificado ao método de sua verificação. Só
clínica em congressos e encontros e centenas de elas podem ser proposições científicas, por serem
publicações dedicadas ao tema legitimas afinnativas factuais em opos i~o ás propo-
Cioffi afirma que, se Freud modificou a sições metafisicas, vazias de sentido. NlIo existe
imagem que o homem tem de si de modo irreversível, conhecimento sintético a priori, a experiência é o úni-
isso não tem qualquer valor. Argumenta que não co juiz das teorias cientificas. Através dela podere-
adianta o homem mudar a imagem que tem de si se mos concluir que uma proposição é verdadeira ou
"essa nova imagem não corresponder melhor a uma falsa, e, portanto, tem sentido. O princípio da verifi-
realidade que tenha existência independente" (C ioffi, cabilidade preconiza que só saberemos o sentido da
199812000, p. 155). Nem de leve suspeita de que a proposiçllo se soubennos em que condições detenn i-
repn:sentação que o homem faz de si mC!;mo é um narse verdadeira ou falsa.
fator fundamental e elemento necessariamente Essa teoria do sentido como verificabilidade foi
integrante de qualquer saber que o tome objeto,já que criticada por Karl Popper. Popper recusa a indução
o determi na em seUs hábitos e modo de ser. como sendo o método da investigação científica e
Os saberes dedicados aos homens, para Cioffi, propõe a fahificabilidade como critério de
assim como para todos os lideres do revisionismo demarcação entre o científico ou não. Existe uma
freudiano, teriam de se moldar aos modelos de assimetria entre verificação e falsificação. Não se
cientificidade pensados a parti r das ciências da pode, logicamente, verificar de fonna conclusiva uma
natureza, na tradição derivada do positivismo lógico. proposição universal por meio da experiência, mas
Nessatradiçlo,aidéiacentraléadequeexisteuma pode-se dcmonstrá-la falsa por um evento que a
unidade do método cientifico. Esta posição é contradiga. Portanto, uma teoria só pode ser
compartilhada pelos empiristas lógicos e seu maior considerada cientifica se dela se puderem derivar
crítico, Popper, um racional ista. predições arriscadas ou improváveis, que possam ser
o projeto de unidade da ciência sob a égide das demonstradas falsas por algum evento. Testar uma
ciências da natureza, tomadas como protótipo e ideal, teoria é uma tentativa de refutá-la ou prová-la falsa. A
levanccessariamentcàdesqualificaçãodapsicanálise brilhante demonstração critica de Popper não minora
Mesmo que esta unidade se restrinja apenas aos méto- ofatodequeele,apesarde recusara idéiadequepossa
dos - que devem ser semelhantes em qualquer campo haver uma observação nllo instrumentada por teorias,
cientifico - ainda assim, a psicanálise mantém dife- compartilha, até certo ponto com o empirismo lógico,
renças metodológicas irredutíveis em relação às ciên- o projeto da unidade do método científico sob a égide
cias da natureza tomada como modelos. das ciências da nature7.a. Desta forma, sua posição
Não há, entretanto, uma unanimidade quanto a quanto à psicanálise não deixa margens à dúvida. A
este projeto entre os pensadores da ciência (Kuhn, psicanálise, assim como a metafísica, não é
1975). Coexistem, no campo da filosofia da ciência, falsificávcJ. Ni'io se presta à elaboração dc previsões
varias propostas diversas e concOfTentes quan to ao testáveis que possam refutá-la de forma conclusiva e,
que seja a atividade cientifica. A adesão a uma ou portanto, não é ciencia.
outra destas visões acarretará diferentes respostas ã Na verdade, Popper não considera que se poS$3
qucsIJo da cientificidade da psicanálise. O pressu- fazer predições no campo das ditas ciências humanas e
posto que precisa ser esclarttido é a concepção de sociais.Suacriticaaohistoricistaéadequeestetoma
cientificidadcda qual se parte. os casos de profecias das ciências naturais e tenta
Os empiristas lógicos consideram que as transpô-los ao campo da história e sociedades.
proposições com sentido, fon tes de conheçÍmento, Entretanto nem mesmo no caso das ciências da
são anal iticas, puramente lógicas ou proposiçôcs natureza, essas prediçôcs claras slIo a nonna; só se
.!..M. IIIII'
4. O trabalho de Lear, Jonathan (1998), é um bom exemplo desta argumentaçâo por parte de um "aliado" nos debates,
chamados de "guerras freudianas"
5, Kuhn foi profundamente influenciado pelos Estudo, Galileano, de Koyré, que leu em 1947, altm dc porQuine e Sellars.
Publica, em t 957, o trabalho A revoluçlo copemicana, em que a influência de Koyré, epistcmólogona.'lCido na Rússia mas
residente em Paris, é paniculannente clara (apud Delacampagne, 1997)
Em seu esforço por trazer uma clarificação Enfatizar que a situação analitica é o locus
epistemológica à psicanálise, a contribuição de privilegiado de investigação na psicanálise não
Lacan foi importante. Insistindo na estrutura da significa invalidar ou descartar outras abordagens
situação psicanalitica como sendo o terreno de ondc que não o método clinico psicanalítico, como as
emerge a teoria, esse autor sustentou acirrada poli!- representadas nos diversos estudos de resultados que
mica com a psicologia do ego, corrente que, embora a IP A vêm compilando sob a inspiração dc OIto
liderada por psicanalistas eurnpeus, encontrou gran- Kemberg (Fonagy, 1999), mas apenas hierarquizar
de acolhida em solo americano, ao propor, como seu estas abordagens. Este psicanalista se preocupa em
objeto, o comportamento humano promover programas de investigação que angariem
A escolha do comportamento humano como para a Psicanálise, que tantos ataques tem recebido
objeto scm dúvida respondc à ilusão, como a que nos EUA, maior credibilidade entre público em geral
sustenta todo behaviorismo, que o comportamento e espeeiali7..ado, dentro do qual são especialmente
humano se presta a scr tratado com objetividade, citados no texto os profissionais das "ciências
como o comportamento dos astros ou elétrons. Sem duras". Dentro de um projeto de "política externa",
desconsiderar a importância de muitas de suas buscam-se procedimentos para "obter provas cuja
contribuições, não resta dúvida de que os psicólogos utilidade seja aceita por outras disciplinas" (Fonagy,
do ego foram lutadores na batalha por conformar a 1999. p. 10).
psicanálise aos ideais neopositivistas de ciência, Meu objetivo, aqui, entretanto, é circunscrever
granjeando para ela maior reconhecimento. O a especificidade do saber psicanalitico, quc não tem
esforço a que se dedicaram para demonstrar que a por que ser obscurecida pelo apego a um ideal de
psicanálise seria verificável ou falsificável foi uma cientificidade alheio a seu campo. Ao esclarecer que a
demonstração de desperdício de tah:nto em batalhas psicanálise não visa provar nada, mas tratar, Freud
inglórias. Certamente' não tiveram êxito nessa desautoriza de saida todas as tentativas que se fez de
tentativa: jamais conseguiram "elevar" a psicanálise tomar a interpretação psicanalítica como situação de
ao padrão de teste experimental preconizado por esta leste d~ teoria equivalente à situação experimental nas
corrente filosófica e presente na atividade dcntífica çiênçias da natureza. Ao invés da impessoalidade e
no campo das ciências naturais. Por outro lado, nesta assepsia da situação experimental, quc dcvc podcr ser
tentativa, correram o risco dc diluir a contribuição repetida por qualquer pesquisador com os mesmos
especifica que a psicanálise trazia. resultados, o analista está incluído até o pescoço nas
A investigação analítica tem seu lugar privile- estratégias c táticas dc condução do tratamento. Seus
giado exatantente na situação de tratamento psicanalí- atos são avaliados a posteriori, pelas mudanças de
tico. Mas a elaboração teórica não sc atém ao caso cli- posiç..~odoanalisando que possam advir enãopoderno
nito singular, não se limita a wna teoria do caso, mas ser reproduzidos porque se dão num encontro
supõe o cotcjar de casos clinicos diversos, permitindo singular, no qual o sujeito está em questão.
elaborar conceitos dc maior amplitude. Foi o que fez As referências de Lacan à ética da psicanálise,
Freud ao enfileirar vários analisandos seus que apre- embora interpretadas, o mais das vezes, como uma
sentaram, de formas variadas, fantasias exprcssas chamada à responsabilidade do analista em relaçiio a
nwna mesma fórmula - bate-se numa criança - c ela- seus atos, o que delineia a simpática imagem de um
borar o conceito de uma fantasia fundanll:ntaL A im- mestre Lacan apontando-nos o caminho da virtude,
portãncia da circulação de idéias dentro da com unida- são, na verdade, uma tomada de posição quanto ao
de psicanalítica é, neste contexto, fundamental. estatuto epistemológico da psicanálise. Etica,
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valores e escolhas, sobrc aIO humanu e seus efeitos. Crews, F. (1999). As guerras da memória - o legado de
Tomar a psicanálise como prática teorizada é Freud em cheque. São Paulo: Paz e Term (Tr~ba1ho
considerá-la externa ao campo das ciências naturais e original publicado em 1995)
alheia de direito aos critérios de verificação experi- Dclacampagne, C. (1997). História da Filo!ofw no século
mental pelos quais tem sido aval iada e a partir dos XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (Trabalho original
quais é criticada. SiNá-la no campo dos saberes práti- publicado em (995).
cos, corno ética ou política, significa ressaltar a ava- Dilthcy, W. (l989). lntroduction to the human scil'nces
liaç~o dos at05 e seus efeitos como em questão nesta Em Selecled Worb (Vol. 1). Princeton: Princeton
prática. A panir dos cfeitos dos atos do analista em University Press (Trabalho original publicado em
sua clinica e psicanálise na cultura é possive1julgar o 1883)
saber psicanalítico.
6. M. Riedcl organizou uma colctãnca em dois volumes, R.:habi/ili.:rung der praklischen Philosophie, Frciburg i. B.
1972_1974 sobre este tema
7. Beni mostra como a filoS<lfia de Aristólde., continuou dominante nas univ.:r:sidade~ européias até o séc XVIll,
especialrncnteno qucsc refcreà filosofia prática: ética, política e também retórica e poética c, nosée XX, sua presença se faz
notar na,~ obras de Ileideggcr, filosofia analitica ingl esa. Nos anos 60 e 70, surge urna retomada da filosofia prática na
Europa, com Gadam er, RiUer, Perdlnan, Toulmin, Apel. Ilabennas c outros.
UI.....
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011
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