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MD Magno

SóPapos
2 0 2 1
SóPapos
2021
MD Magno
Aristides Alonso

SóPapos
2 0 2 1
é uma editora da

Presidente
Rosane Araujo

Diretor
Aristides Alonso

Copyright 2022 MD Magno

Preparação do texto:
Nelma Medeiros
Patrícia Netto Alves Coelho
Potiguara M Silveira Jr

Editoração eletrônica e produção gráfica: Wallace Thimoteo

Editado por
Rosane Araujo
Aristides Alonso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
_______________________________________________________________________

Magno, MD
SóPapos 2021 [livro eletrônico] / MD Magno. -- Rio de Janeiro, RJ :
Associação Cultural Univercidade de Deus - UD, 2022.
PDF
ISBN 978-65-88357-12-5

1. Psicanálise 2. Psicologia I. Título.

22-129732 CDD-150
_______________________________________________________________________

Índices para catálogo sistemático:


1. Psicologia 150
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Direitos de edição reservados à:

Rua Sericita, 391 – Jacarepaguá


22763-260 Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (021) 2445-3177
www.novamente.org.br
Exergo
O passado e o presente murcham. Já os enchi e esvaziei,
Prossigo a preencher minha nova dobra do futuro.
Whitman
Homenagem
Para Annita Iedda Cardoso Dias,
o amor da minha vida,
no ano de sua morte.
28/02/1936 // 09/10/2021

A Morte não existe para a Mente


– que Uma Memória insiste para Sempre
e Começo nem Fim são para a Gente
que Nasce e Some sem nenhum Conceito.

Cada grão do teu Corpo e cada Meme


de nossa Companhia inseparável,
no meu Registro tem a Vida Eterna
como a do Haver por Nós representado.

Tua saliva Sabe a minha boca


e meu hausto é o Perfume do teu hálito
no Gozo do meu Sexo em teu Frêmito.

Nenhum Adeus supera nosso Vínculo.


Nenhuma Dor corrompe nosso Pacto.
Nenhum Destino mata Nosso Amor.
Sumário

1, 13
Duas maneiras de abordar pensamentos pregressos – Expressões do Inconsciente
no passado: Mestre Eckhart e Shankara – Função da NovaMente é ultrapassar
ficções que caducaram – Inconsciente é máquina de produzir art-culações –
Mestre Eckhart e Shankara, precursores da Teoria do Haver – Tradicionalistas
querem fugir para trás – O Haver é perdulário – Construção de pensamento é
invenção de uma chave.

2, 22
Consideração do besteirol do século XX via Francis Fukuyama – “Natureza
humana” é o Originário das IdioFormações – Passagem de Espontâneo a
Industrial como emergência de Revirão na constituição primária – “Digni-
dade humana” situada a partir do Vínculo Absoluto – Abolição de imputação e
livre arbítrio em favor de atribuição e Juízo Atual – Como organizar o Quarto
Império? – Quinto Império será comunista em exercício pleno do capitalismo
– Situação de Zorra no esgotamento de um Império.

3, 32
Apresentação de Aristides Alonso: Stephen Wolfram e o projeto para achar a
Teoria Fundamental da Física.

7
4, 54
Resumo do percurso teórico de Lacan a partir d’A Obra Clara de Jean-Claude
Milner – James Joyce segundo Lacan e a NovaMente – Ceticismo final de Lacan
e a postura gnóstica da Nova Psicanálise – Confiança é aposta provisória e ad
hoc na eficácia de algo – Dissolução da história (Joyce) e atemporalidade do
Inconsciente (Freud) – Sobre sintoma e transmissão.

5, 60
Teoria dos Estilos (Maneiro, Clássico e Barroco) – Clássico é denegação do
Inconsciente – Maneiro afirma expressão do Inconsciente enquanto Revirão –
“Barroco é Maneirismo domado e referido ao transcendente” – Estilos Basais
como Morfoses.

6, 64
Valor da Música para entendimento da Teoria das Formações e do funciona-
mento do Inconsciente.

7, 66
Proposição de três graus de consciência – Pensamento requer HiperDeter-
minação – Significante não é apenas linguístico e demanda imediatamente
significado – Pessoa é aglomerado de formações sem necessária integridade
ou coerência – Teoria do Signo inclui possibilidade de HiperDeterminação –
Indiferenciação é exercício permanente.

8, 76
Retomada do conceito de aglomerado – Reconsideração de René Guénon a
partir do conceito de aglomerado – Análise produz processo de coerência e
entendimento entre formações – Redução do conceito de Falo a Alei – Só
existe uma Pulsão, a qual adere a formações parciais – Spaltung e Bifididade
– Abordagem do aglomerado exige postura de Indiferenciação.

8
9, 81
Real como Impossível Absoluto (não-Haver) e realidades como repercussões
do Real (eventuais impossíveis modais) – Distinção entre estruturas psíquicas
(Lacan) e Morfoses a partir do recalque (Nova Psicanálise) – Caso “Homem
dos Lobos” apresenta HiperRecalque por double bind – Esclarecimentos sobre
o conceito de Real.

10, 90
Homem dos Lobos como transexual em double bind (dupla força paralisante)
– Valor de entendimento da difusão contemporânea de transexuais efetivos –
Borderline como Morfose Regressiva sem surto – Recusa ou pressão contra
desejo trans pode levar à Morfose Regressiva – Grau de satisfação e composição
específicos de cada caso.

11, 96
Mais esclarecimentos sobre o conceito de Real: Esquema do Haver e Esquema
do Secundário – Haver enquanto Homogêneo Absoluto só se dá historicamente
(cosmologia) – Revirão do Haver ecoa no Secundário como Revirão da Língua
– Experiência de Haver é encontro com seu Real – Halo Bífido do Secundário
e do Haver.

12, 101
Apresentação de Aristides Alonso sobre The question concerning technology
in China: An essay in Cosmotechnics, de Yuk Hui.

13, 120
Aby Warburg como precursor da Teoria das Formações – Trabalho de Warburg
como análogo à recepção analítica – Warburg anota repetição sintomática das
imagens – Mnemosyne de Warburg e A Interpretação dos Sonhos de Freud –
Repetição sintomática na música e nas artes plásticas.

9
14, 128
Mais considerações sobre a Teoria das Formações, a partir d’A Vertigem das
Listas, de Umberto Eco, e Orlando, de Virginia Woolf – Recepção analítica:
“é possível passar artificialmente de um elenco para uma forma” – Crítica a
Lacan: máxima de Sade é ironia e denúncia – A psicanálise não é teoria queer
ou teoria de gênero – Formação oculta é capaz de impedir entendimento de
uma análise – Conceitos de gênero, identificação e personalidade são fósseis
sintomáticos.

15, 137
Mais considerações sobre Teoria do Conhecimento em termos de Teoria das
Formações – Metanoia gnoseológica ao invés da paranoia epistemológica do
século XX – Conhecimento é gradual – Psicanálise é pragmatismo no sentido
da cura – Indução e abdução na teoria e na clínica – Teoria das Formações
abrange semiologia.

16, 140
Teoria do conhecimento de M. C. Escher: a mão que desenha a mão que a dese-
nha – Transformações recíprocas na transa entre acervos de formações – Pate-
mática inclui dinâmica, gradientes e sobreposições, sem desenho fixo – Pessoa
não é isto ou aquilo, mas aglomerado de formações – Teoria da Informação é
caso da Teoria das Formações – Sexo é a lógica de constituição das formações.

17, 147
As Mãos de Escher: conhecimento é resultante de transa entre Acervo e Aspecto
– História do conhecimento se passa entre a Sapucaí e a Sapucaia – Paul
Cézanne: fazer ciência com os olhos – Teoria das Formações é emergência de
um novo modo de pensar – Próteses modificam comparecimento dos aspectos.

10
18, 156
Tanatose e Psicopatia não comparecem como Morfoses – Distinção entre Mor-
fose Progressiva Positiva e Morfose Progressiva Negativa – Psicopatia é ano-
malia da ordem do Primário – Na Tanatose, força d’Alei é maior que resistência
dos processos vitais – Tanatoses exemplares: Mark Rothko, Fernando Pessoa e
Paul Celan – Quarto Império é Progressivo à revelia por perda de parâmetros.

19, 163
Polimatia é saída da paranoia especialista do século XX – Gnômica trabalha
com gradação de eficácia ad hoc – Pensamento Complexo faz descrição geral
das funcionalidades das formações – Pensamento Perplexo é complexidade
acrescida de Revirão – Postura da psicanálise não é de tolerância, mas de reco-
nhecimento – Razão Analógica das transas possibilita polimatia.

20, 169
Entendimento de Hannah Arendt (banalidade do mal) e Walter Benjamin
(memória) à luz da Teoria das Formações – Perda de força e sentido dos parâ-
metros exige recomposição radical do mundo – Ordem sintomática permite
alguma pré-visão e pode ser subvertida por HiperDeterminação – Sobre o
Congresso da Banana (1985).

21, 181
Mais esclarecimentos sobre a Teoria das Formações como base da reflexão
metapsicológica – “Mundo é o LUGAR onde tudo acontece” – Ficção fixa
momentaneamente um entendimento do mundo – Sujeito como alucinação –
Linguagem é modalidade do articulatório – Presença da fantasia sexual atravessa
aglomerado – Recepção de informação depende de disponibilidade – Em última
instância, psicanálise transmite Nada.

11
22, 192
Independência do Inconsciente em relação a qualquer teoria – Entendimento
da NovaMente exige mudança de paradigma: Teoria das Formações; Revirão;
postura descritiva – Desenho do Inconsciente n’O Caminho da Serpente de Fer-
nando Pessoa – Formação paradigmática de um pensamento compõe seu enten-
dimento – Aspectos do paradigma descritivo em contraposição à prescrição.

23, 203
Eficácia e correção dos Quatro Dispositivos da Formação dos operadores da
NovaMente – Incongruência entre Secundário e as formações do Haver – Hie-
rarquia gnoseológica ad hoc em função da eficácia na situação – Metaverso
e (é) o Inconsciente – Limites da matemática e da computação na abordagem
do Haver – Oficina Clínica é acompanhamento recíproco dos que estão em
Formação de Analista.
E-mails, 215

Maravalhas, 227

Sobre o Autor, 229

Ensino de MD Magno, 230


DATAS
Os números abaixo correspondem às seções e datas dos SóPapos 2021,
realizados on-line:
Seções: 1: 30 janeiro – 2: 06 fevereiro – 3: 13 e 20 fevereiro – 4, 5 e 6: 06
março – 7: 20 março – 8 e 9: 03 abril – 10 e 11: 17 abril – 12: 01 maio – 13: 08
maio – 14: 22 maio – 15 e 16: 19 junho – 17: 03 julho – 18 e 19: 07 agosto – 20:
21 agosto – 21: 11 setembro – 22: 06 novembro – 23: 27 novembro.

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1
Talvez esteja me repetindo, mas vou insistir no que direi hoje. Passamos
atualmente por uma crise na história da IdioFormação. Pode não ser a maior,
mas certamente é a mais complexa, a mais difícil: uma crise radical de parâ-
metros e paradigmas. Ainda sustentamos alguns deles por mera inércia, pois
nem funcionam mais. Quando leio que esta IdioFormação se depara com
uma grande crise de mudança de regime – que, no caso, é mudança de uma
formação para outra, de um Império para outro –, raramente, ou quase nunca,
nesse momento, aparece um alguém ou um conjunto de pessoas dando um
passo à frente. Logo no começo da passagem, é difícil haver na história
desta espécie alguém que imediatamente dê um passo em frente. Mesmo as
chamadas revoluções – a russa, a francesa –, na maioria das vezes, são, de
saída, um equívoco radical, um mesmo erro a ser processado no longo prazo.
Nesses momentos, a primeira reação é as pessoas olharem para trás.
Bateram com a cara no vidro da próxima situação que ainda não tem passagem,
e a tendência é olharem para trás para ver se lá há algum indício, algum enten-
dimento do percurso, para poderem seguir em frente. Só que há duas maneiras
frequentes de olhar para trás. A primeira, feita pela maioria, é a fuga para trás.
É uma tentativa frustrada de retornar a uma situação anterior que lhes parecia
assentada e segura. Essa é a vontade de retrocesso, é retroação. A outra maneira
é percorrer os caminhos que foram seguidos durante a história da espécie para
pesquisar se, por acaso, alguma invenção importante que poderia ajudar na
passagem necessária hoje e que, por motivos de alta pressão dos poderes de
antanho, ou seja, os conhecimentos e os poderes constituídos a cada momento,
podem ter recalcado ideias e soluções que ainda estavam muito cruas e às quais
faltava tempo para terem condições de ser tomadas. Então, lá para atrás ficaram
vários procedimentos, várias ideias, várias articulações, que foram recalcadas
por seu momento. Esta é a maneira de olhar para trás em busca de alguma
coisa para a frente.

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MD Magno

Certamente conhecem o livro The Discovery of the Unconscious: The


History and Evolution of Dynamic Psychiatry (1970), de Henri Ellenberger, que
começa num momento recente, no século XIX, com o que eram considerados
conhecimentos adequados para a abordagem da ideia de Inconsciente. É um
importante trabalho, sim, mas, se a descoberta do Inconsciente começa naquele
momento como ele diz, por outro lado, suas expressões, as mais lúcidas e, às
vezes, as mais radicais, ou foram maltratadas pelo conhecimento possível, ou
foram adscritas, cooptadas por formações de tipo religioso. Eram formações de
forma legítima, clara, do movimento do Inconsciente, mas que foram tratadas
como verdadeiros espantalhos e vieram a constituir crenças, ideias religiosas.
Isso é assim desde a pré-história desta espécie. Nosso momento requer olhar
para essas expressões do Inconsciente, as mais bárbaras e as mais inteligentes,
buscar limpar seus aparelhos de baixa extração, e procurar se, aqui e ali, há
dicas válidas para hoje. Já lhes apontei que este foi o movimento que fiz na
tentativa de ultrapassar a paranoia do século XX e do próprio conhecimento
do início do século XX em nosso campo.
Fiz, então, a mineração dessas expressões do Inconsciente no passado
mais remoto, e destaquei o pensamento de Mestre Eckhart. Encontramos ves-
tígios de uma expressão mais ou menos articulada do Inconsciente em várias
expressões hoje consideradas religiões locais: hinduísmo, budismo, taoísmo,
xintoísmo, sufismo, cristianismo, islamismo... Enquanto místicos, não enquanto
eclesiásticos, todos, de um modo ou de outro, cabem no escantilhão que venho
preparando. Como sabem, escantilhão é uma peça de aprumar alvenaria, mas,
com o mesmo nome, é uma peça de arame que, em treinamento de tiro de guerra,
serve para marcar os tiros dados, acertados e localizados num alvo. Utilizo o
termo escantilhão para verificar onde batem no alvo os tiros aproximados. O
Eckhart que venho lhes mostrando é um pensador da Europa que viveu entre
1260 e 1328 e morreu com sessenta e oito anos, antes ainda de se ver obrigado
a encarar a fogueirinha que a Igreja costumava armar para quem estivesse
pensando. Portanto, ele era considerado herético. Dando bem mais para trás,
temos, na Índia, outro místico muito intelectualizado chamado Shankara (c.
788 a 820) dizendo praticamente o mesmo que ele. Shankara morre aos trinta
e dois anos e deixa uma importante obra. São, pois, místicos intelectualizados

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MD Magno

que não estavam apenas tentando exprimir o que estavam sentindo, e sim pro-
curando uma teoria do que estavam dizendo.
Acontece que as digressões, digamos, supostamente escorreitas, das
disciplinas regradas pelas metodologias ditas científicas canonizadas pelas
epistemologias de plantão acabaram por deixar de fora tantos e tantos tes-
temunhos do Inconsciente que frequentemente apontaram bem mais longe
para o funcionamento da mente. Temos que considerar o século XX e, nessa
sideração, recuperar o que foi recalcado para trás e que, certamente, está mais
próximo do que está por vir. Não podemos nos esquecer de que isso aqui ainda
é o Planeta dos Macacos, o retardo é enorme. Em termos de IdioFormações
possíveis dentro do Haver, somos ainda muito pobres. Pode ser que existam
por aí IdioFormações bem mais avançadas, mas é preciso continuar no enca-
minhamento. Qual é a função precípua da teoria e da prática NovaMente?
Deslocar e abstrair formações teóricas e sintomas em vigor no sentido da futura
articulação de formações de conhecimento e de comportamento que propiciem
ultrapassar as atuais ficções que caducaram. Não caducaram só porque as que-
remos chamar de caducas, e sim porque o próprio movimento do processo as
tornou fracassadas, sem condições de solução para o futuro. Também é função
da NovaMente fornecer entendimentos e práticas que permitam que as pessoas
suportem e superem as catástrofes e metamorfoses que estão vindo e que ainda,
muito mais, virão.
Mesmo que possamos acolher algo dispensado no passado para dar
um passo para a frente, o momento é de procurar futuro. Não temos mais fer-
ramentas, instrumentos, capazes de sustentar o que está por vir. As que temos
podem conter dispositivos aproveitáveis, mas do modo como se articulam em
grandes composições, já não funcionam – ou não funcionarão – mais. Vejam
um exemplo próximo de nós. A última coisa que mais precisamente tentou
definir o Inconsciente e o modo de lidar com ele – e que, certamente, fracassou
como teoria, como está claramente demonstrado por seu próprio autor – foi
o teorema de Lacan. E o envolvimento das teorias de linguagem, das linguís-
ticas, das semiologias e semióticas do meio do século XX para a frente era
(numa, digamos, definição mediana do pensamento de Lacan): O Inconsciente
é estruturado como uma linguagem. Ditos lacanianos repetem isto até hoje. O

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MD Magno

Inconsciente não é estruturado como uma linguagem. Essa definição serviu


como paradigma daquele momento, mas nossa situação é ter que pensar que:
o Inconsciente é máquina de produção e de estruturação de linguagens e de
outras coisas. A definição de Lacan tomou – e era normal isso acontecer no
século XX – o efeito pela causa. Linguagem é efeito de uma máquina de pro-
dução e estruturação de linguagem e outras articulações. Melhor dizendo, o
Inconsciente é uma máquina de produção de art-culações. Não existe essa
máquina nas espécies que não são IdioFormações. Portanto, alerto nosso tra-
balho para uma posição nova diante do mundo e mediante nosso instrumento
que, supostamente, é a psicanálise.
• Aristides Alonso – Quanto ao Inconsciente como máquina de produ-
ção de articulação, como máquina de produção e estruturação de linguagem,
você desenha essa máquina desde a postulação do Pleroma (1986). Isso vai no
sentido de uma convergência com a física e a computação contemporâneas.
Nesse sentido, interessou-me o trabalho de Stephen Wolfram que você nos
indicou há tempo. Ele está na tentativa de dizer, em último grau, a constituição
dessa máquina. É o que ele busca, e diz que não achou. A pergunta dele é: o
que é necessário para que o primeiro input comece a funcionar? Que máquina
é essa?
Chama-se: Revirão. Temos vários pensamentos convergindo para a
definição dessa máquina: a física quântica, o pensamento de Wolfram, certa
tentativa da física de repensar o elementar (caso da teoria das branas)... Só acho
tudo isso ainda muito precário, é preciso tempo de desenvolvimento.
• Patrícia Netto Coelho – Em seu Arte e Psicanálise (1995), há uma
seção intitulada “Os Precursores do Amém”. Ali temos uma discussão com
a ideia de Modernidade e, do mesmo modo que podemos retornar a alguns
autores e neles tomar certa referência comum, diz você que Modernidade
mesmo ainda não veio. Você fala em Duchamp, em Schoenberg e outros, e
também da situação cultural de Creodo Antrópico na qual seria possível a
dispensa da interdição do incesto, que é uma invenção cultural do Neolítico.
É algo presente na obra desses autores citados como precursores que tam-
bém se referem à ordem revirante como originária desta nossa espécie. Nessa
mineração na história que você está fazendo, minha pergunta é: Qual é seu

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MD Magno

parâmetro para colher certos autores – Eckhart, Shankara... – e não outros?


Em que eles seriam precursores?
O parâmetro é a Teoria do Haver. Da maneira deles, eles a descrevem
com clareza. Não têm os mesmos termos, mas, ao acompanhar o raciocínio
desses autores, temos a impressão de que eu os estou copiando ou de que eles
estavam me prevendo. É praticamente a mesma coisa: o Haver enquanto tal,
enquanto radicalmente homogêneo, inominável, ou seja, absolutamente indi-
ferente. Há neles também certa cosmologia que coincide com uma importante
cosmologia de hoje, que não é o processo de dispersão pela entropia, e sim
cíclico. A ignorância atual é bem grande, é preciso ainda dar conta da energia e
da matéria escuras para mostrar a pressão que fazem no sentido de um universo
girar e voltar ao mesmo ponto de partida. É, aliás, onde aqueles místicos colo-
cam Deus. Leiam os textos com essa lente e verão que se trata do mesmo já lá
na Idade Média com Eckhart e bem antes com Shankara. Justamente por seu
raciocínio depurado, eram heréticos. Aliás, o que digo em relação à psicanálise
do século XX é pura heresia. Fazendo a ressalva de que Lacan, por exemplo,
nada tem de errado, ele é perfeitamente reconhecível como um pensador de
grande porte dentro do escopo de seu momento. Era o que tinha a fazer. E, se
não o fizesse, eu não conseguiria nem pensar.
• Potiguara M Silveira Jr – Você mencionou que uma expressão arti-
culada do Inconsciente pode ser encontrada em religiões locais como hindu-
ísmo, islamismo... Os Tradicionalistas, que estamos estudando para entender os
movimentos de pensamento dos últimos dez anos, retomam o Islamismo como
uma referência do que propõem como política e comportamento futuros. René
Guénon, autor com presença unânime entre eles, converteu-se ao sufismo na
parte final de sua vida...
Note que essa não é uma perspectiva de futuro. É o caso que mencionei
de correr para trás à procura de alguma construção já feita, e que certamente
não serve. É diferente de procurar lá atrás o que foi perdido e que pode ser
material para repensamento. Recomendei que lessem sobre os Tradicionalistas
para verem o tamanho da besteira, o tamanho da fuga para trás. Eles, durante
algum tempo, podem ser vitoriosos. Lá adiante quebrarão a cara, pois as con-
dições não permitem que isso vigore longamente. Se não, a Igreja Católica

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MD Magno

Apostólica Romana ainda estaria no comando. Hoje, é apenas um grande teatro.


E o Islamismo, por sua vez, é absolutamente burocrático, como qualquer Max
Weber perceberia.
• AA – Esse retorno dos Tradicionalistas é a busca de uma espécie de
religião primordial originária de todas as religiões. Ela estaria lá nos Vedas
e no sufismo, em que haveria uma religião muito mais simples, que, de certo
modo, estaria numa posição diferente daquela do cristianismo. Ela estaria na
base, serviria de ponte para a realização do projeto Tradicionalista, no qual
Guénon é uma referência unânime.
Repito, é simplesmente fuga para trás. Se, efetivamente, quisessem
uma religião para a frente, poderiam procurar uma religião negativa. A da
psicanálise se chama: Arreligião.
• AA – Estamos lendo Revolta Contra o Mundo Moderno, de Julius
Evola, e Guerra Pela Eternidade, de Benjamin Teitelbaum, e outros. O que
vemos neles é uma mixórdia, tiroteio para todos os lados. Minha pergunta é
sobre como os mesmos pensadores listados n’A Filosofia Perene – que, aliás,
é título de um livro de Aldous Huxley (1945) –, Eckhart, Shankara, Lao-Tze,
etc., são usados para justificar um processo regressivo da pior qualidade.
Depende da chave de leitura, depende da recepção. A chave de leitura
determina o sentido. Jesus Cristo serve para qualquer coisa, até para igreja
universal.
• AA – O mesmo vale para a história da psicanálise. Freud é tomado
em sentido progressivo ou regressivo. Haja vista à ego psychology, que é um
bom exemplo de regressividade.
Tomam determinado filão regressivo e colocam para funcionar como
parâmetro. Vejam a enorme trabalheira de um Jung tentando arrumar a para-
fernália de efeitos do Inconsciente. Ao invés de buscar um caminho de redução
a um ou poucos conceitos, arrumou um Museu do Inconsciente, conforme sua
aluna chamou. Aliás, ele tentou uma redução com pelo menos dois conceitos,
mas que não reduzem: arquétipo (que não é conceito, e sim nomeação de uma
formação repetitiva) e sincronicidade no universo. Ele se preocupou mais com a
parafernália do Museu do Inconsciente. E em sua obra também estão incluídos
esses autores todos de que estamos falando, mas apenas como efeito. O difícil

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MD Magno

é ter um parâmetro capaz de estabelecer contemporaneamente para aplicar


como leitura.
• P – A sincronicidade supõe que várias pessoas no mundo, ainda que
não se conheçam, estejam pensando no mesmo sentido. Sobretudo, quanto a
vislumbrarem o que está por vir.
Isto porque não estamos pensando, estamos sendo pensados pelas for-
mações. Jamais é algo solitário. Vários pegam esse vírus ao mesmo tempo.
Então, quando as formações emergem em algum lugar, são as mesmas forma-
ções emergindo para qualquer um a quem tenha acontecido emergir em sua
cabeça.
• P – Mas, como você lembrou, ao se difundirem, essas emergências
viram mito, religião.
É como diz Lacan, a religião sempre vence. Pensar dá muito trabalho,
gasta-se muito. Então, fica mais fácil transformar em religião, em uma pequena
crença que passa a ser repetida. Isso se chama: Neo-etologia. Tomem o exemplo
dos espermatozoides, que gosto de usar, e pensem no desperdício que há a cada
vez que comparecem. São milhões que sucumbem para, raramente, um encon-
trar certo lugarzinho de entrada na fecundação. O mesmo acontece com gente.
Não se trata de aleatoriedade, e sim de desperdício. O Haver é perdulário, não
quer saber quanto custará o gozo de alguém. Sabem quanto custa? A Morte, a
entropia. A entropia sempre vence – até bater de frente com o não-Haver. Há
apenas uma neguentropia: o não-Haver.
• AA – Isso me fez lembrar Teilhard de Chardin, alguém que McLuhan
lia muito.
Na adolescência, também o li bastante.
• AA – A fala dele relacionada a esse exemplo do espermatozoide,
é: Deus é um esbanjador. E é mesmo difícil imaginar alguém que tenha esse
raciocínio dentro do catolicismo.
O pessoal católico desconfiava bastante dele.
• P – Ele chegou a pensar em um estado mental superior, que chamou
de Noosfera.
Ele está certo. E o superior aí não é uma questão de hierarquia, e sim
de Technarquia, da techné dos gregos.

19
MD Magno

• PMSJr – Sempre houve a chave de leitura a que você se refere e,


no decorrer da história, várias pessoas a utilizaram para dar conta do que
estavam experienciando como Inconsciente. Como o acesso a essa chave diz
respeito ao que você nomeou Teoria do Haver e não pode contar com o recurso
a conteúdos culturais – os quais devem ser abandonados, aliás –, suponho que
aí esteja a dificuldade e seja a razão da escassez de acessos intelectualizados
por parte de um número maior de pessoas. Isto, mesmo supondo que se trata
da Experiência Comum – com’Um – das IdioFormações.
É efetivamente uma dificuldade. Eckhart repete inúmeras vezes que é
preciso abandonar o já dado.
• PMSJr – Penso, então, que o que é proposto como prática para a For-
mação dos Operadores da NovaMente, com seus quatro dispositivos – análise
pessoal, polo de estudo, polo de formação e oficina clínica –, seria um modo
de buscar acesso a essa experiência. E, recursivamente, sem essa prática, sem
esse exercício de acesso, a Formação não se efetiva.
Não canso de repetir que se trata de Indiferenciação. E isso é absolu-
tamente pragmático. Tenho aqui na mão uma réplica da Ankh, a chave da vida
eterna segundo os egípcios. É preciso achar uma chave.
• PMSJr – Acho que todos pensam que é preciso de uma chave, mas,
em geral, a chave que aceitam é do mito, da religião...
Mas essa chave não está abrindo mais nada hoje, só está fechando. No
passado, até abriu algumas coisas. Ou seja, não é uma chave, é uma fechadura.
• AA – O modo de organizar o mundo é mediante chaves. Há, por
exemplo, a chave-mestra que abre todas as fechaduras de tal recinto.
Por que alguém constrói uma chave-mestra para seu tempo? Mitologia
e religião já foram chaves. Qualquer construção vigorosa de pensamento é a
invenção de uma chave que abre certas portas. Tomem, por exemplo, o conceito
fundamental de Leibniz, a mônada. É quase igual ao conceito de Formação, só
que, depois de generalizar, Leibniz o desenha demais. A definição, de início, é
abstrata, mas passa a ser muito configurada na sequência. O que é uma mônada?
Ao ser configurada demais, o jogo se estraga.
• AA – Leibniz, com seu cálculo, estava interessado na clavis univer-
salis. Diante de um problema, dizia: “Calculemos”.

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MD Magno

Ele pensava que diferencial e integral eram suficientes para calcular


qualquer coisa.
• PMSJr – Você já disse que o Revirão é a chave da psicanálise.
É a Clavis Universalis, que foi título de um Falatório meu (2005). É
um abuso de teoria, mas foi assim que chamei. E, aqui, não há separação entre
teoria e prática. A teoria é uma prática mental e a prática é uma teoria aplicada.
• P – A transmissão da psicanálise feita em consultório é pouca. É
sempre um a um.
Se recuperarmos meia dúzia de pessoas já é bom. Sempre foi assim,
aliás.
• PNC – Uma pessoa é muita gente.
A função deste nosso trabalho é encontrar aqueles que já estejam no
caminho, no começo ou no meio dele.
• AA – Temos que considerar que estamos vindo de uma mentalidade
e uma organização que era sobretudo presencial. Passamos bruscamente para
outro tipo de operação – este online em que estamos – que não tem aqueles
limites de tempo e espaço. E foi mesmo possível a entrada de mais gente, de
outros estados do país.
Durante algum tempo, é melhor evitar um pouco qualquer expansão
de escala maior. O que há a acontecer será no regime dos encontros, e não da
dispersão. Gentalha não precisa saber o que estamos pensando, não é da conta
dela. Daqui a dez anos, conversaremos sobre isso. O que temos no mundo hoje
é apenas a aceleração da informação, e não necessariamente das mentes.

21
MD Magno

2
Tenho aqui três livros de Francis Fukuyama, As Origens da Ordem Política:
dos Tempos Pré-humanos até a Revolução Francesa (2013), Ordem e Deca-
dência Política: da Revolução Industrial à Globalização da Democracia
(2018), e Nosso Futuro Pós-Humano: Consequências da Revolução da Bio-
tecnologia (2002). Minhas considerações hoje se reportarão à segunda parte
do terceiro livro, “Sendo Humano”, com três capítulos: (1) Direitos humanos,
(2) Natureza humana, e (3) Dignidade humana.
Por que falar desse autor? Considero Fukuyama um lídimo represen-
tante do besteirol sócio-filosófico do século XX. Ele faz um lúcido retrato desse
bobajal, o que resulta numa consideração mediana desse tempo. Talvez se
lembrem de que, em 1989, ele veio com a ideia que a muitos pareceu absurda
de fim da história. Achava que a disseminação e a hegemonia aparentes do
liberalismo, do capitalismo, determinariam o fim da história. Não se sabe bem
de onde tirou essa conjetura estapafúrdia, como se tudo dependesse da ideia
de liberalismo e de certo tipo de capitalismo. Hoje, temos uma repolarização
da vontade de hegemonia neste planeta. Portanto, aquele critério de juízo não
servia. Não há fim de história algum, sobretudo, para a NovaMente, que faz a
suposição de que apenas estamos tentando introduzir o Quarto Império e que,
depois, virá o Quinto, o qual tampouco é fim de coisa alguma. Talvez o que
venha em seguida seja outro ciclo semelhante a esse que está aí. O liberalismo
não vai bem das pernas. O Inconsciente é capitalista, sim, mas quantas formas
e performances poderá assumir esse tal capitalismo? Não sabemos ainda.
O capítulo sobre “Direitos Humanos”, de Fukuyama, é uma paraferná-
lia. Podemos resumi-lo com sua conclusão de que o direito positivo não conse-
gue dar conta do que seriam direitos humanos, pois, para tal, seria preciso um
conceito firme de “Natureza Humana” (que tampouco se consegue estabelecer).
Descrevem-se comportamentos sócio-político-econômicos das pessoas sem a
menor noção de natureza humana. E o que descrevem como natureza é uma

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MD Magno

confusão, é coisa de Primário, Secundário, etc. Isso varia e não mostra natureza
alguma, mostra performances e expressões humanas. Para nós, com a ideia de
Nova Psicanálise, ao contrário do que autores dessas áreas denunciam como
impossível de conceber a natureza humana, estamos de volta a esse conceito.
A NovaMente sugere que há, sim, natureza humana. É: o Originário das
IdioFormações. O que, se quisermos chamar de natureza, qualifica esta espécie
é que o Originário é uma formação do que denomino Artifício Espontâneo. O
Originário que supomos é espontâneo. Portanto, pode ser incluído no conceito
de natureza, seja ele qual for. Estamos, então, de volta – e isso pode ser tomado
como base – à ideia de que há natureza humana. Chama-se: o Originário.
Por enquanto, mediante as considerações desde Freud, pelo menos – se
não, desde muito antes, se lá fizermos a leitura (por exemplo, na Idade Média,
como tenho apontado) –, conseguimos destacar o princípio do Revirão fun-
cionando como fundamento desta espécie. Nas demais ele não funciona. Ainda
não temos prova em alguma ciência dita dura – a ditadura das ciências, aliás,
não é mais aquela, elas não são assim tão duras, são meia-bomba – que venha
demonstrar em nível biológico (e este é o melhor nível) o funcionamento do
Revirão para nossa mente. Espero que isso aconteça logo. Assim, nós outros,
se quisermos aceitar esse postulado, supomos existir natureza humana: o Ori-
ginário das IdioFormações. Lévi-Strauss, que dominou o pensamento do século
XX – e mesmo um pouco a cabeça do Dr. Lacan – mediante certa antropologia
de base linguística, quis demonstrar a passagem de natureza a cultura. Passa-
gem que ele situava na interdição do incesto. O incesto, como conceito, anda
bastante desmoralizado atualmente, uma vez que a manipulação genética e de
outros tipos tem dificultado que se determine o exato lugar em que ele possa
ser proibido e essa proibição funcionar. Isso era conforme o paradigma daquele
momento. Para nós, se há passagem, é passagem de Artifício Espontâneo a
Artifício Industrial. Passagem esta que se dá de maneira espontânea, por-
tanto natural, na emergência do Revirão na constituição primária, biológica
mesmo, desta espécie. Este é o nosso princípio. Então, na passagem de Espon-
tâneo para Industrial, temos o Revirão como emergência, como ressonância do
Revirão que há no Haver, como máquina de produção do Artifício Industrial.

23
MD Magno

Não é, pois, passagem de natureza a cultura, e sim de Espontâneo a Industrial


mediante a emergência, digamos, natural do Revirão.
Portanto, até conforme certa linguística contemporânea como mostrei
ano passado, essa dita passagem é anterior à formação de cultura e de lingua-
gem. A passagem do Espontâneo ao Industrial é bem anterior à produção do
Secundário. Não é porque o Originário emergiu espontaneamente nesta espécie,
como supostamente em toda e qualquer IdioFormação, que ele funciona à von-
tade desde que emergiu. Ele emerge, sim, soterrado pelas formações primárias
tanto de ordem autossomática quanto etossomática. É claro que o Etossoma
nesta espécie é meio subvertido pela simples presença do Originário, mas lá
está de alguma forma. Há formações etossomáticas de base em qualquer pes-
soa. Quando a etologia deixar de ser meramente animal e procurar na espécie
humana, verá que lá estão. Então, o Revirão é soterrado, fortemente recalcado
pelas formações primárias e, mesmo depois que lenta e parcamente começa a
funcionar, é recalcado pelo que chamo de formações secundárias repetitiva-
mente neo-etológicas. Daí a dificuldade desta espécie e, suponho, de qualquer
outra IdioFormação de fazer funcionar o Revirão. Leva milênios para começar a
funcionar na produção de linguagem, de cultura, etc. – ou seja, de movimentos
industriais em geral (desde agricultura ou outra formação). Assim, a passagem é
que, mediante a emergência espontânea do Originário, muito fraca e lentamente
tem início a possibilidade de produção de Secundário. Para nós, a suposição
é de que essa passagem está na origem de toda e qualquer possível existente
IdioFormação. Em nosso caso, no momento, até prefiro, junto com Daniel
Everett, datar não do surgimento do dito homo sapiens, e sim, talvez, do homo
erectus. O fato de demorar demais decorre, como eu disse, de recalques pesa-
dos das formações primárias e secundárias (estas, estratificadas em pequenas
formações culturais que se tornam neo-etológicas de tão vigorosas que são). O
sapiens é de trezentos mil anos atrás, o erectus, de um milhão e oitocentos mil.
Fukuyama, então, trata dos direitos humanos, que é uma bela de uma
bagunça, e tenta dizer que esta questão só é apoiada se houver um conceito de
natureza humana. Segundo ele, há certo “fator x” em algum lugar que a deter-
minaria. Esse fator x que ele procura se chama: Revirão – se é que nossa tese
possa ser demonstrada. Portanto, não tratarei de direitos humanos, que é uma

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MD Magno

bagunça dependente de formações primárias e secundárias estabelecidas em


movimentos muito frágeis. Mas e a tal “Dignidade Humana”, que é seu capítulo
seguinte? Como defini-la se é também uma grande bagunça e ele não tem a
definição de natureza humana? Há um monte de autores dizendo bobagens que
não garantem indicação alguma para sustentar a ideia de dignidade humana.
Ao contrário, se nossa tese for correta, não há conceito que possa garantir a
dignidade humana de qualquer membro da espécie senão o de Vínculo Abso-
luto, que apontei [1992] como referido ao Originário das IdioFormações. Se
há o Originário, há Vínculo Absoluto. Ou seja, ainda que provisoriamente, o
conceito de dignidade humana pode se estear no conceito de Vínculo Absoluto.
Ou seja, nas puras e simples existência e emergência natural das IdioFormações.
Então, se conseguirmos demonstrar a existência do Originário, estará salvo o
conceito de Dignidade Humana.
É claro que surgem outras questões, pois a suposição é de que o
nascituro desta espécie, como de qualquer outra IdioFormação, está composto
de Primário, Secundário e Originário. Entretanto, como repeti há pouco, o
Originário está recalcado por uma pletora de formações primárias tanto auto
quanto etossomáticas e, ainda por cima, por formações secundárias que se
estratificaram como Neo-Etologia. Portanto, o movimento existe, subverte as
demais formações aqui e ali, mas não é frequente no sentido de sua repetição ou
de seu espraiamento pelas IdioFormações. No entanto, não é possível eliminar
o conceito de dignidade dessas formações porque nelas o movimento supos-
tamente comparece, mas, às vezes, vem não só recalcado como prejudicado
por malformações cerebrais e outras, ou por deteriorações. Há vários casos de
autismo, debilidade mental, Alzheimer, etc., que parecem prejudicar definitiva-
mente o Originário, e mesmo o Secundário e o Primário. Essas pessoas devem
ser consideradas IdioFormações e, portanto, estarem sob a égide da dignidade
humana, pois, supostamente, seja qual for a ordem de sua defecção, são des-
cendentes de IdioFormações. Mesmo que sejam prejudicadas, são consideradas
IdioFormações pelas IdioFormações a seu redor. Então, também para elas, está
salvo o conceito de dignidade humana.
Se quisermos voltar um pouco, há uma importante questão não ape-
nas da ordem dos direitos humanos, mas da ordem do direito e da punição,

25
MD Magno

e, segundo a via que estamos forçando, ficam abolidos alguns conceitos que
sustentam a ordem jurídica e também a ordem moral. Por exemplo, sem ir
longe, o conceito de imputação, fundamental para atribuir culpa a determinada
defecção da ordem do cumprimento dos deveres segundo a lei. Como é possível
imputar qualquer coisa a uma pessoa à medida que sabemos que, primeiro, ela
está sobredeterminada primariamente tanto autossomática quanto etossomati-
camente, e que, além disso, está secundariamente determinada por formações
sintomáticas poderosas que tomaram o leme de sua situação? E como a atribuir
também a imputação ao fato de que é uma IdioFormação e que, portanto, ter seu
Originário disponível nada garante, pois o Originário não funciona só porque
queremos? Ele funciona eventualmente, não temos controle direto sobre seu
funcionamento. Caso contrário, todos poderiam virar geniais de uma hora para
outra, bastaria invocação. Os movimentos e emergências do Originário funcio-
nam à revelia das pessoas, mesmo que façam grandes esforços para invocá-los
mediante reflexão, pensamento, exercícios espirituais e intelectuais. Mas o
Originário lá está e comparecerá, se não como criação de uma função nova,
pelo menos como possibilidade de reconhecimento quando alguém apresenta
uma emergência sua. São poucos aqueles que a apresentam. Outro conceito
ligado à imputação e que, na ordem jurídica, a garante é o de livre arbítrio.
Este é de morrer de rir. É a suposição de que a pessoa tem possibilidade de
escolher, à vontade e a qualquer momento, o que fazer, o que pensar, como
se comportar... Isto não existe, o que existe é resultante em certo momento da
implicação das formações primárias, secundárias e eventualmente da forma-
ção originária para determinada pessoa. Não pensamos, somos pensados, nos
acontece – ainda que nos esforcemos. Mesmo porque o esforço intelectual,
espiritual, ou outro, é sintomático. A pessoa sintomaticamente fez tal escolha.
Então, como saímos dessa se, na verdade, os conceitos de imputação e de livre
arbítrio são puro animismo?
Ao passo que, teríamos que substituir o conceito de imputação, talvez,
pelo conceito de atribuição. Ali, naquele lugar, naquela pessoa, aconteceu isso
assim: está atribuído àquele lugar – atenção para o que estou chamando de
lugar – determinada situação. Portanto, pode ser governada a transação entre as
pessoas mediante o reconhecimento da atribuição do bem-feito ou do malfeito

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MD Magno

segundo a ordem sintomática de um grupo social. Mas essa pessoa tem que ser
tratada com a mesma dignidade de qualquer outra porque a ela foi atribuído o
que ela fez. Ela não tem culpa, é vítima da situação como qualquer um. Essa é
uma grande mudança a partir do Quarto Império que temos que produzir. Assim
como o conceito de livre arbítrio pode ser substituído por um conceito como
Juízo Atual. Neste momento, o juízo foi este em função das sobredeterminações
e, eventualmente, de uma HiperDeterminação. Não há, pois, motivo algum
para execrar-se uma pessoa ou mesmo para torná-la maravilhosa. O que é um
autor? Eis uma pergunta que sempre retomo. Alguém, por circunstâncias pri-
márias e secundárias em sua história e por eventuais emergências do Originário,
conseguir um grande feito é chamado de gênio, mas não é. Foi o gênio que o
fez, e não o contrário. Ou seja, não cabe atribuir autoria a alguém. Todos são
vítimas. É uma mudança que tem que ser fundamental na constituição do que
possam vir a ser o entendimento e a organização a partir do Quarto Império. O
bobajal que sobreviveu até o Terceiro Império não tem mais como continuar
vigorando. Minha pergunta, então, é: Como fazer?
• Patrícia Netto Coelho – Se cai a noção de culpa não deveria também
cair a ideia de vítima?
Há uma vitimização aí. A pessoa é vítima do Primário, do Secundário
e mesmo do Originário. Só falei em vítima como comparação à paranoia do
Terceiro Império, que é da culpa. Qualquer cristão sabe que é mea culpa, mea
maxima culpa... Isso é a ideia do Terceiro Império em cima do chamado amor.
Falei que a pessoa não é culpada, mas vítima para fazer o contrabalanço. O
Quarto Império tem que suspender isso, pois o pior dos facínoras deve ser tra-
tado com respeito só por ser da espécie que revira. Não estou dizendo que, na
refrega entre as IdioFormações, não haverá conflitos, rupturas de interesses, e
sim que isso tem que ser administrado na referência a essa chamada dignidade
humana. Administrar conflitos sabendo situar, localizar, seus movimentos é
muito difícil. O direito tem regras absurdas. Não sabe efetivamente dar conta,
por exemplo, de quem foi o culpado diante do fato de uma pessoa ter matado
outra. Talvez a tal culpa seja do morto, que extrapolou ao infernizar a vida
daquele que o acabou matando. Vejam que tudo é muito sutil, e o direito não

27
MD Magno

acompanha a sutileza em jogo nas situações. O direito brasileiro, pelo menos,


tem a noção de violenta emoção que pode desculpabilizar um réu.
• P – E se, em vez de vítima, falássemos em inocência, como diria
Nietzsche?
Pode ser, mas se compararmos esta postura com a de Terceiro Império,
o termo melhor é vítima, pois, lá, era culpado. Temos dois tipos de pessoa. Um,
recalcado – em todos os sentidos de alguém primitivo hoje –, de quem imedia-
tamente vem a denegação diante do que quer que seja mostrado como errado
de sua parte. Não foi ele. E outro, que tem um pouco de lucidez, diz: “Que
porcaria que fiz!” Ele abstrai a porcaria que fez sem saber como. O primeiro, é
imputação negada; o segundo, reconhecimento de não-imputação: “Sei lá por
que fiz essa porcaria”. Ele reconhece que foi sede de um acontecimento, que
foi ali, o outro não reconhece. Este é uma pessoa primitiva. Mangabeira Unger
o chamaria de tosco.
• Potiguara M Silveira Jr – Você perguntou “como fazer?” Não terí-
amos uma indicação no que você mesmo coloca como suspensão e suspeição
enquanto práticas de Quarto Império?
Trata-se do que fazer na construção dos princípios diretivos, a partir do
Quarto Império, quando se sabe dessa indicação de suspensão e suspeição, por
exemplo. É preciso criar o Quarto Império todinho, com todos os seus movi-
mentos de consideração seja do que for, da política, da ordem jurídica... Tudo
tem que ser repensado, pois estamos saindo de um Terceiro Império idiota, um
império da culpa, do amor (portanto, do ódio)... A questão é, quando sairmos
desta zorra, como organizar o Quarto Império com seus atributos e atribuições,
a partir da noção de que ele é outra coisa. Como sempre digo, somos a espécie
louca – as outras sabem o que fazem, a nossa não sabe –, somos os macacos
malucos, mas, em certas ocasiões, esses macacos ainda piram, surtam. Sobre-
tudo, nos momentos de passagem de um Império para o seguinte. Estamos
atravessando esse surto, de passagem do Terceiro para o Quarto Império. O
mundo está surtado. O surto de passagem propriamente dito começou entre
1980 e 1985 e, suponho, durará até 2030 e 2035 (ainda não será a construção
do Quarto Império). Imaginem o que as pessoas sofrerão até lá. Quando o surto
assentar e entenderem que o que está para trás acabou, talvez tenha início a lenta

28
MD Magno

implantação específica do Quarto Império, a qual, se o pessoal tiver talento,


durará aproximadamente uns duzentos anos. Depois, virá o desenvolvimento
do Quarto Império propriamente dito, o qual durará de mil e quinhentos a dois
mil anos. O surto seguinte nem consigo imaginar como será. Nós outros, que
temos o tipo de operação mental que dizemos ter, temos que saber que estamos
agora atravessando um surto de cerca de cinquenta anos.
• P – Quanto à necessidade de reentendermos os conceitos do Terceiro
Império, como pensar o conceito de propriedade?
Este é o mais difícil de eliminar. Assim como é possível localizar a
emergência de um acontecimento numa pessoa, é também possível localizar as
correlações dessa pessoa com os haveres a seu redor. Já lhes disse que faço a
suposição de que o Quinto Império será comunista, e não por causa de luta de
classes. Nada tem a ver com Marx, e sim com que, se atravessarmos o Quarto
Império, chegaremos a um lugar em que o conceito de propriedade desaparece.
• P – Na China, fala-se em economia compartilhada, que já funciona
quanto ao uso de certos bens, bicicletas... Aqui também já é um pouco assim.
A posse está ligada à ideia de um sujeito, de privado.
Trata-se, lá para adiante, de um comunismo estritamente capitalista.
A propriedade está também ligada à ideia de imputação, de livre arbítrio, o
que é difícil de ser dissolvido. É um sintoma nosso muito pesado, mas é de
qualquer animal que quanto mais feroz, mais território tem. Leões chegam a
matar filhotes que não são seus.
• Rosane Araujo – Uma das definições do conceito de Pessoa é que
ela é suas propriedades. Isto inclui o aspecto material.
Suas propriedades não são necessariamente de proprietário no sentido
da economia. São as coisas que manejam você. Quais são, por exemplo, as
propriedades do Orlando, de Virginia Wolf?
• P – Quanto ao que você falou sobre o Originário, que exercícios
intelectuais ou espirituais não garantiam acesso a ele...
Os exercícios podem até propiciar acesso, mas não garantem. É preciso
um acontecimento.
• P – Então, não daria para fazer juízo de valor, já que não há como
garantir a experiência?

29
MD Magno

Juízo de valor dá para garantir. Quanto vale o resultado? É preciso um


valor, se não, não há economia. O valor não está na pessoa, e sim no resultado.
Atualmente, atribuímos valor a pessoas, a situações sociais, políticas, indus-
triais, mas o valor está apenas no resultado. Resultou em quê? Essa coisa tem
grande valor – para quê mesmo? A verificar. Há tempo falei numa aristocracia
dos valores, que é ad hoc, não é definitiva. Se houver Quarto Império, será
irreconhecível, não será nada do que estamos vendo agora.
• PNC – Você disse que a emergência espontânea do Originário é como
que a passagem do Espontâneo para o Industrial, o que seria bem anterior ao
Secundário em função da constituição sobretudo primária da espécie. Do ponto
de vista do Creodo Antrópico, a passagem de cada Império a outro seria, em
certo sentido, uma espécie de reemergência do Originário?
Não é reemergência, e sim funcionamento do Originário que estava
recalcado pelo Império anterior. Aparecem surtos, um Império se desgasta
radicalmente até por seu próprio movimento de crescimento. Digamos que ele
perde a razão, as pessoas, durante algum tempo, ficam surtadas e a única saída
que provavelmente acontecerá é que o Originário começa a ser requisitado no
sentido da invenção de outra coisa.
• PNC – São, pelo menos, duas ou três gerações em surto nesses cin-
quenta anos.
As pessoas estão dilaceradas entre a morte de um Império e a invenção
do próximo: há uma enorme confusão de formações primárias e secundárias
em conflito. O surto é o pessoal ter se perdido, estar sem parâmetros. No que
se perderam parâmetros que, pelo menos, eram comuns à grande maioria, cada
um está surtado segundo certa formação sintomática que lhe é típica. Então,
é a zorra, e não adianta buscar para trás, não há nada lá. Vejam nos Estados
Unidos: sai-se de um presidente psicopata e vai-se para um presidente gagá.
Dá-se um interregno de aparência de que as coisas voltaram ao normal. Não
tem normal. A zorra demora a passar.
• P – Não seria apenas que o Ocidente está surtado, e não o planeta?
O planeta está surtado. Só que, em certas partes do Oriente, temos ten-
tativas de soluções prévias. A China, por exemplo, está em tentativas. A Europa,
não. O Ocidente ainda não se mancou, mesmo porque não tem o tempo de

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MD Magno

maturação que a China tem por ser mais antiga. Ela já passou por mais surtos.
E algo que não permitirão é o populismo. Vejam a atitude chinesa em relação
a Hong Kong, que, esta, tem o germe da deterioração.
• PMSJr – Poderíamos dizer que um movimento anti-surto implicaria
reconhecermos a loucura da espécie? Se houvesse esse reconhecimento, talvez
não fosse preciso surtar diante de situações que resultam de certas indiferen-
ciações das situações como vemos hoje.
Surto não é loucura, é maluquice. Loucura é uma coisa nobre. Basta
ver que grandes criadores estavam bem pirados no bom sentido.
• Aristides Alonso – Assim como ficam em crise as noções de imputa-
bilidade – sobre a qual, aliás, você já se deteve longamente em 2001 –, de livre
arbítrio, de culpa, agora você repete que o Quinto Império será comunista em
exercício pleno do capitalismo. Minha pergunta é: o Quarto Império, passado
o surto, será um Império menos alienado? A alienação no sentido do vínculo
por dependência, por designação, por atribuição de domínio a um outro, ficaria
então minimizada?
Sim. Entretanto, ele não pode funcionar sem o reconhecimento de nossa
alienação quase total.
• AA – Entendo que cada Império tem a forçação de um modelo de
alienação. Por exemplo, o Segundo Império teve um forte lastro de vinculação
obrigatória, por submissão, à ordem paterna. O modelo do Quarto Império
seria uma alienação à ordem articulatória?
Trata-se do entendimento de que cada um é demasiadamente sobrede-
terminado e de que é eventualmente hiperdeterminado.
• RA – A emergência da IdioFormação se daria junto com a passagem
do Espontâneo ao Industrial?
Essa passagem está sendo procurada há milênios mediante bobagens
como a passagem do divino ao humano. A última bobagem foi a “geniali-
dade” de Lévi-Strauss ao falar em passagem de natureza a cultura pela inter-
dição do incesto. Esta interdição é apenas um sintoma local e foi engolida
como universal. Com o domínio pleno da biologia – produção e reprodução
de filhotes que envolvem três, quatro, cinco pessoas – que vemos desenrolar-se

31
MD Magno

atualmente, como falar em incesto? Incesto é algo primitivo de, no máximo,


Terceiro Império.
• P – Em 2004, você diz que o Morfótico Estacionário nomeia alguém
para mediar sua relação com o Haver. Já o movimento do Morfótico Progres-
sivo é de apropriação...
O Progressivo se apropria do processo.
• P – O movimento dos chamados Tradicionalistas é de tentativa de
reinstalação do Terceiro Império...
Eles acham que podem restaurá-lo. É possível que, durante o surto,
momentaneamente consigam fingir que restauraram. Mas falirá, pois o Terceiro
Império morreu de morte natural. Morreu de morte morrida, não foi preciso
matá-lo. O que esse pessoal quer são regimes de certeza, de certeza de que
têm a verdade (pois as pessoas teriam perdido a noção da verdade). Mas é
paranoia deles.
• AA – Ou mesmo pretendem reinstalar o Segundo Império: diferença
radical entre homem e mulher, entre raças...
Todo Império carrega um monte de sujeiras do anterior. O Terceiro
Império enquanto cristão é assim, com essas diferenças marcadas. Há padre
mulher, por exemplo, na Igreja Católica Apostólica Romana?

3
Nas seções de hoje e a próxima, Aristides Alonso fará a gentileza de falar
sobre o trabalho de Stephen Wolfram. Desde que publicou A New Kind of
Science (2002), tenho comentado suas ideias. Seu novo livro, A Project to
Find the Fundamental Theory of Physics (2020), um projeto para encontrar

32
MD Magno

a teoria fundamental da física, é uma espécie de vontade de Teoria de Tudo


em projeto. Suponho que o que rege o processo de Wolfram seja seu conceito
de equivalência computacional. Como projeto, isso pode querer dizer, em
primeiro lugar, que fracassou redondamente o paradigma de Galileu, tomado
como orientação científica até o final do século XX e que se tentou impor às
ditas ciências humanas (Lacan, inclusive) mediante o chamado estruturalismo.
Ele não conseguiu continuar, sobretudo nas ciências ditas moles. Em segundo
lugar, o novo paradigma – também válido para a Psicanálise NovaMente – está
começando sua era de determinação do conhecimento, inclusive do conhe-
cimento dito científico. Trata-se de um work in progress que veremos onde
vai dar. O que temos que entender com urgência é que acabou a era Galileu,
que começou junto com o Terceiro Império. E que agora já começou o que
quero chamar de Era Turing. A NovaMente dá seus passos nesse sentido com
a sugestão, que suponho ser profícua, da Teoria das Formações, que se quer
compatível com o novo paradigma. Para melhor entendimento disso, assim
como na época pedi que lessem A Obra Clara: Lacan, a Ciência, a Filosofia
(1996), de Jean-Claude Milner, peço agora que leiam também o capítulo “O
Paradigma”, publicado em seu Le Périple Structural: Figures et Paradigme
(2002).

***

Stephen Wolfram
e o projeto para achar a
Teoria Fundamental da Física
Aristides Alonso | A9-Cyb

1. Estrutura do livro e de sua plataforma interativa – Princípio de


equivalência computacional. 2. Autômatos celulares – O algoritmo
mínimo que, ao ser rodado, rodaria o universo inteiro – Princípio
de equivalência computacional e irredutibilidade computacional.
3. Previsibilidade é local – Teoria de Tudo: um programa que,
quando rodado, poderia fazer acontecer tudo que existe. 4. Trans-
formática: acompanhamento, redução computacional e arquiva-
mento – Mente humana é um processo computacional. 5. O que é
tempo? O que é espaço? – A entropia. 6. Citações de MD Magno

33
MD Magno

sobre Wolfram em Ars Gaudendi, 2003. 7. Relações do projeto


de Wolfram com a NovaMente.

Em 2020, Stephen Wolfram publica A Project to Find the Fundamental


Theory of Physics, com mais de setecentas páginas. Está diretamente conectado
a seu livro inicial, A New Kind of Science (2002) – doravante referido como
NKS –, que também é um calhamaço, este com quase mil e duzentas páginas.
A base de seu projeto atual, à qual somos remetidos o tempo todo, já está em
seu primeiro livro. Nesses dezoito anos, ele lançou alguns livros intermediá-
rios, principalmente sobre as linguagens que produz nas áreas da computação,
da matemática e da física teórica. O programa computacional que o tornou
conhecido foi o Mathematica, em que desenvolve os algoritmos que usa em
seus projetos. Para cada projeto, ele abre uma empresa. Tornou-se, então, CEO
de várias empresas conectadas que se vinculam a seu novo projeto. Além disso,
mais amplamente, tem o Wolfram Alpha e o Wolfram Language, que, este, é uma
espécie de introdução a seu sistema computacional. Sua empresa, a Wolfram
Research, organiza todas essas partes.

1. Seu livro atual é lançado junto com uma plataforma na internet em que
todo o projeto é apresentado. Dado o tamanho da empreitada, é um projeto
aberto que convoca a participação de todos e se abre a áreas para além daquela
especificamente relacionada à física: computação, inteligência artificial, nano-
tecnologia, robótica, vida artificial... Sugere mesmo sua importância para
a filosofia, as ciências sociais, os estudos de linguagem... Para ele, não há
limite entre os campos de conhecimento, todos se entrecruzam a partir de sua
ideia de princípio de equivalência computacional, mediante o qual é possível
reduzir o entendimento de todas as formações.
O livro é, pois, o que está no site: www.wolframphysics.org. Lá temos:
Project Announcement, com as bases gerais do projeto; e Technical Introduction,
com a exposição das bases técnicas da pesquisa. Nestes dois itens, temos as
referências essenciais do projeto em sua abrangência. Os demais itens apresen-
tam material complementar com documentos técnicos, entrevistas, palestras,
seminários, intervenções nas redes sociais... Uma das teses fundamentais de seu

34
MD Magno

pensamento é: organizar toda a computação a partir da lógica dos grafos que


se complexificam mediante regras (mais de duzentas) e algoritmos específicos
que ele já tinha construído em seu primeiro livro. Grafo é definido por um
conjunto de nós ou vértices e pelas ligações ou arestas que ligam pares de nós.
Grande variedade de estruturas do mundo real pode ser representada
abstratamente mediante grafos. A operação é de tal ordem que chega à forma-
ção de um grafo de grande complexificação mostrado no site. Trata-se de uma
conexão mínima de pontos – dois, três – a partir da qual, autômatos celulares e
regras computacionais inseridas fazem com que tenha início uma repetição de si
mesma, cuja intensificação por recursividade passa a gerar a complexificação.
A tese de Wolfram é: tudo que existe no universo é constituído analogamente a
esse processo computacional a partir da conexão mínima dos pontos e a geração
de formações complexas das mais diversas ordens. Ele imagina, então, que será
possível uma unificação das teorias da física mediante o uso desses grafos e
hipergrafos. Sua tese fundamental é que, por baixo da física da relatividade e
da quântica, há um solo comum, são a mesma teoria.
Para ele, a computação que existe, esta de base binária, turinguiana, é
análoga à computação da physis, da natureza. Esta é um processo computacional
de alta complexidade que, entretanto, não é mais complexa que o sistema com-
putacional que temos. Há uma analogia entre as duas complexidades. Trata-se,
pois, de tomar tudo como computação. É o que já está em Turing como máquina
universal, pois outras computações inventadas não eram além da máquina de
Turing. Hoje, temos a computação quântica que parece ser mais ampla e incor-
pora a computação binária. Wolfram, mesmo falando da física quântica, diz
que, no momento, a computação quântica não tem serventia para ele por ser
em paralelo, extrair várias resultantes, mas depois precisar que seus resultados
sejam reduzidos à computação binária. Seu ponto de partida é que a physis e
a criação do que quer que exista seguem um modo de operação análogo ao da
computação já existente: executam programas simples que geram comporta-
mentos sistêmicos complexos. Daí sua proposta do princípio de equivalência
computacional.

35
MD Magno

2. Trata-se, então, de traduzir as teorias e os pensamentos para modelos


computacionais, programas e algoritmos. Ele busca uma ciência de base
computacional que, diferentemente da ciência tradicional dependente da
matemática, dos teoremas e das equações, constrói-se a partir de programas
computacionais. Seu ponto de partida, já apresentado no primeiro livro, são
os autômatos celulares, originalmente desenvolvidos por Von Neumann nos
anos 1940. Depois, foram trabalhados por outras pessoas. Por exemplo, John
Conway, que morreu em 2020 por causa do Covid-19 aos 82 anos, inventou
em 1970 o “Jogo da Vida”, em que, em sua replicação, o autômato vai apre-
sentando células que, à medida que desaparecem, fazem renascer outras. Visto
na sequência computacional com mais velocidade, o movimento parece uma
coisa viva se modificando e se construindo por ajuntamento e desaparecimento
de elementos que o compõem.
Temos, assim, elementos mínimos conectados que gerarão um processo
que está dentro de um hipergrafo, que, este, é o modo de organização do uni-
verso: o universo é um hipergrafo. Suas resultantes localizadas são formações
as mais complexas. Em termos da Nova Psicanálise, é uma enorme maranha
de elementos. E é nesse hipergrafo que se desdobram os modos de funciona-
mento das teorias da relatividade e da física quântica. Essa combinatória de
elementos acaba gerando partes relativas às ideias de tempo, espaço, buraco
negro, curvatura do espaço, ou ainda sobreposição, entrelaçamento quântico,
paralelismo... Ou seja, a operação da tese de Wolfram, que parte do princípio de
equivalência computacional, é jogada na teoria dos grafos. Ele não apenas usa
os grafos, mas cria computacionalmente novas formas de grafos para dar conta
dos desenvolvimentos que apresenta para achar a teoria fundamental da física.
Aliás, diz ele que não está interessado apenas na física deste universo, e sim
em pensar como qualquer universo pode se produzir. Na tal teoria fundamental
que busca, nenhuma das fórmulas que ele já gerou em computação deve ser a
rule, a regra, o algoritmo mínimo, suposto ser sem estrutura, structureless. Diz
mesmo que talvez sua física proponha uma nova ideia de abstração. Qual seria,
então, a rule que, ao ser rodada, rodaria o universo inteiro? Como supõe que
haja essa regra, a reflexão de Wolfram bate com toda a história do pensamento,
com as questões e temas que pesquisamos em psicanálise. Sua pergunta é: qual

36
MD Magno

é o limite do princípio de equivalência computacional? Veremos que é o que


chama de irredutibilidade computacional.
Temos, então, por um lado, um princípio de equivalência da operação
computacional, e, por outro, várias formações – quem sabe, o próprio universo
como tal – que talvez não possam ser reduzidas a um sistema computacional
tal como faz um algoritmo. E para saber como seria essa redução, é preciso
acompanhar passo a passo todos os passos para saber como ela acontece. Não
haveria, nesse caso, como reduzir a um algoritmo, a uma composição mínima.
A irredutibilidade computacional pode ser um limite de tal modo intransponí-
vel que não seja possível fazer uma teoria completa. Pode-se fazer uma parte:
chega a determinado ponto e para. Não haveria como ir além, mesmo porque
está-se computando esse universo de dentro desse universo. A computação é
interna, e não há um ponto que possibilite generalizar por fora do sistema. Só
poderemos saber testando. Rodamos o sistema e vemos até onde chega. Na
máquina de Turing ocorre uma parada, o cálculo termina e temos que aquele
sistema é completo. Ou é universal: dada determinada instrução, ele calcula por
inteiro. Ou ainda, rodado um pouco mais, ele cumpre por inteiro até determinado
ponto que parecia simples, começa a ratear e a gerar complexidade – e também
irredutibilidade. Ou, ao contrário, parte-se de algo aparentemente muito com-
plexo e aquilo se mostra uma banalidade que se reduz a um sistema simples.

3. A proposta é: o universo pode ser modelado usando-se pontos no espaço


e regras que, ao serem aplicadas, geram mais pontos. A rede é construída à
medida que outros pontos são adicionados. Ele sugere que modelos do uni-
verso podem ser construídos por grafos e hipergrafos que descrevem essa
rede, e as regras são aplicadas a determinadas características que compõem
o universo. No site, ele apresenta uma animação para mostrar a composição
mínima de um grafo. Vejam aí na tela compartilhada:
Uma regra: {{1,2}, {2,3}, {3,4}, {2,4}} aplicada ao grafo inicial gera
o sistema todo:

37
MD Magno

• MD Magno – A fantasia de uma pessoa é algo assim tal qual está


sendo mostrado nos grafos acima [na animação].
Vejam que partimos dos autômatos celulares, que são, desde o primeiro
livro, a base do pensamento de Wolfram. Ele conseguiu produzir alta complexi-
dade com eles. É a computação mínima, uma regra simples geradora. Começa
com três elementos cuja combinatória vem a produzir algo de uma extensão
que se torna tão complexa que fica parecendo não haver computação para ele.
No primeiro livro, ele constrói mais de duzentas regras que, cada uma aplicada,
obtém um resultado diferente. É isso seu programa computacional que citei no
início, o Mathematica. Ele percebeu que a regra simples aplicada ao sistema
fazia com que, a partir de certo momento da computação, o próprio sistema
começasse a dar uns pulos, a não mais suportar a ordenação que vinha sendo
produzida até então. Como Wolfram insiste na forma binária, parece-me, aliás,
que ele tem uma vontade de Consistência, sobre a qual fiz uma exposição aqui

38
MD Magno

ano passado. Não que abandone a Inconsistência, mas a coloca como aquilo a
ser superado. Ele fica se perguntando sobre que matemática teremos daqui a
duzentos anos, capaz de computar coisas inimagináveis que são inconsistentes
até o momento, ou da ordem da indecidibilidade (Kurt Gödel) para o momento
atual.
É possível produzir um programa que, com três ou quatro passos,
preveja o que acontecerá. Na irredutibilidade, não há como prever, é preciso
acompanhar passo a passo, não se tem o antes da coisa. Wolfram diz que esse
é um problema que a humanidade sempre enfrentou, e cita os egípcios para os
quais havia três questões. Como prever o movimento dos astros; a meteorologia;
e quem será o vencedor da guerra. O primeiro problema é mais fácil – a física
tradicional prevê com bastante precisão o movimento da Lua daqui a cinquenta
anos –, mas os outros dois já são da ordem do complexo e do randômico. Então,
mesmo sabendo como as coisas deveriam se comportar, isto não significa que
saibamos como acontecerá. Onde vivemos, é possível fazer uma quantidade de
previsões, mas isto não significa que o mundo seja previsível, e nem sempre há
atalhos para reduzir o processo para previsão. Há uma irredutibilidade muito
grande, mas vivemos frequentemente num campo de certa redutibilidade em
que os cálculos funcionam razoavelmente.
A Teoria de Tudo que ele busca é um programa que, quando rodado,
poderia fazer acontecer tudo que existe. Trata-se de operar uma redução, um
algoritmo, e poder dizer como o mundo funciona. E se rodar esse programa
por tempo suficiente, ele poderia produzir qualquer coisa, qualquer fenômeno
do universo. Então, se rodar uma regra, uma rule, por tempo suficiente teremos
todo o universo, a redução de tudo a um programa computacional. Sabemos que
essa ideia vem da digital philosophy, de Edward Fredkin, Konrad Zuse, Seth
Lloyd, Gregory Chaitin e outros. Por isso, muitos críticos da teoria de Wolfram
dizem que ele está tomando ideias da teoria do caos, da teoria dos fractais e
da digital philosophy sem dar os devidos créditos. Não é bem assim, pois essa
turma toda está mencionada no final do livro.
Sua experiência inicial é com os autômatos celulares (von Neumann) e
a descoberta sobre programas simples, pois com esses autômatos celulares era
possível a criação de um sistema de alta complexidade gerado por um programa

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MD Magno

bem simples. Aplica-se a um autômato qualquer uma determinada regra (rule)


e passa-se a rodar esse programa um grande número de vezes, o que gera um
sistema de alta complexidade. Podem acontecer duas coisas: o programa que
foi rodado produz um sistema repetitivo bem complexo, mas finaliza a opera-
ção (programa universal Turing completo), ou bem, a partir de dado momento,
começa a apresentar um comportamento randômico imprevisível. Portanto, de
um programa simples emerge uma grande complexidade sistêmica.
A tese de Wolfram, desde NKS, é dupla: a natureza da computação
deve ser explorada experimentalmente; e as resultantes desses experimentos
têm grande relevância para a compreensão do mundo físico – há equivalência.
Desde o início da década de 1930, a física foi abordada segundo duas tradi-
ções: da engenharia e da matemática. A física estava basicamente conectada à
matemática, e sua prática ligada à produção de objetos. Ele coloca uma terceira
derivada – a computação – como método inteiramente novo, necessário e supe-
rior porque a matemática tradicional falha em descrever sistemas complexos
de forma significativa. É superior para a complexidade em todos os sistemas.

4. O assunto básico de NKS é o estudo de regras abstratas e simples, essencial-


mente programas de computador elementares como os autômatos celulares,
dos quais Wolfram se utiliza de modo diferenciado dos demais pesquisadores.
Sua questão é: por que programas tão simples podem levar a grande comple-
xidade? De onde ela vem?
De certo modo, Wolfram parece usar essa ideia para qualquer formação
do Universo. E o processo que ele chama de emergência se dá justamente a
partir de elementos simples. Há evidência de que programas simples são sufi-
cientes para capturar a essência de quase qualquer sistema complexo. Isto é feito
mediante mapeamento e mineração do universo computacional para estudar
regras simples de comportamentos frequentemente complexos. É necessário
explorar regularmente todos esses sistemas computacionais e documentar o que
fazem. Ou seja, ele faz o que a NovaMente colocou, em 1996, como Trans-
formática: fica rodando as regras, descrevendo e arquivando os movimentos
das formações.
• MD – São movimentos ad hoc, caso a caso, momento a momento.

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MD Magno

E, então, temos um sistema simples que gera uma complexidade a ser


estabelecida, ou passa à categoria dos que não podem ser reduzidos, mas podem
ser conhecidos uma vez feito o passo a passo do processo inteiro.
• MD – Não podem ser reduzidos por enquanto. É a diferença entre
o absoluto e o modal.
Diz ele, sem desdobrar o raciocínio, que uma extensão dessa ideia
é: a própria mente humana é um sistema computacional. E, portanto, forne-
cer dados brutos de maneira mais eficaz possível é crucial para a pesquisa. A
mente sofre da mesma coisa, dos princípios de equivalência e irredutibilidade
computacionais. É no campo da irredutibilidade computacional que teríamos
o que foi pensado como liberdade de pensamento ou livre arbítrio, por parecer
não submisso a determinado sistema repetitivo...
• MD – Só parece, mas não é, pois o Haver enquanto tal não pode
ter duas legislações. A tese é: o Haver só tem uma legislação, funcionando
espontaneamente ou industrialmente. Por isso, Wolfram acha que é possível
computabilizar. Daí também não ser possível diferenciar com precisão ciências
moles e ciências duras, são a mesma coisa.
Ele está dizendo que não é possível não haver uma base comum para
as físicas quântica e da relatividade.
• MD – Quem sabe se não são dois alelos da mesma física? Vista
segundo o Revirão, suponho que a física seja Bífida.
O Princípio de Equivalência – de Analogia, podemos dizer – Com-
putacional afirma que sistemas encontrados no mundo natural podem realizar
cálculos de nível máximo universal de poder computacional. Ou seja, que os
sistemas encontrados no mundo natural podem realizar cálculos até um nível
máximo (“universal”) de poder computacional. A maioria dos sistemas pode
atingir esse nível. A computação é, portanto, simplesmente uma questão de
traduzir entradas e saídas de um sistema para outro. Consequentemente, a
maioria dos sistemas é computacionalmente equivalente. A maioria dos sis-
temas pode atingir esse nível. A princípio, os sistemas computam a mesma
coisa que o computador. A computação é uma questão de traduzir entradas e
saídas de um sistema para outro. Consequentemente, a maioria dos sistemas é
computacionalmente equivalente. Se podemos traduzir de um sistema biótico

41
MD Magno

para outro cibernético – como já está sendo feito – e rodar na mesma máquina,
há equivalência entre eles.
• MD – Por isso, digo que é possível construir um robô IdioFormação.
Daí Wolfram entender o próprio universo como um hipercomputador. É
o universo dos sistemas computacionais como programa simples, um novo tipo
de ciência (NKS), e a exploração do universo computacional e da implicação
dos fenômenos nele observados como princípio de equivalência computacio-
nal. Princípio este que permite que a ciência seja mais geral ao apontar novos
modos para os quais os humanos não são especiais, pois a complexidade não
é apenas deles, e sim do sistema inteiro.
• MD – É do Haver.
O Princípio de Irredutibilidade Computacional é o fenômeno pelo qual
o comportamento de um sistema não pode ser determinado com mais eficiência
do que a simulação explícita de cada etapa de sua evolução. Ela decorre de o
princípio de equivalência computacional implicar o fato de os observadores não
poderem ser mais computacionalmente sofisticados do que os sistemas que estão
observando. Ambos estão embutidos, embedded, no mesmo universo. Não se
pode construir uma redução, um atalho há que rodar o programa, acompanhar
o passo a passo e ver onde vai dar. Nesse caso, como já foi dito, não é possível
fazer previsões.
• MD – É a isso que chamamos de Análise Infinita.
No caso de um sintoma, tomado como um elemento repetitivo, se for
longamente repetido, começará a ratear. É o contrário do que dizia Einstein
sobre o louco ser alguém que fica a vida toda repetindo a mesma coisa, mas
querendo obter resultados diferentes. Aqui, no caso, de tanto repetir o mesmo,
ele vai ficando diferente mesmo.
• MD – Não é o que acontece numa análise?
A ideia de irredutibilidade é conexa à de indecidibilidade, da qual, em
última instância, não se pode extrair uma resultante que feche a conta, torná-la
consistente. Na matemática, isso é bastante conhecido: o número pi, a sequência
dos números primos... Tudo se inclui na ideia da máquina de Turing e do pro-
blema da parada. A máquina, para ter utilidade, tem que apresentar um cálculo
final, tem que computar e parar. Se entrar em looping, em infinitização, não há

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MD Magno

algoritmo que informe se vai ou não parar. Foi, aliás, o que derrocou o projeto
dos Principia Mathematica, de Russell e Whitehead, que sofria de uma vontade
de consistência final. Ano passado, fiz aqui uma exposição sobre inconsistência
e consistência nas lógicas paraconsistentes, e vejo que é o mesmo problema
com que Wolfram se depara em seu projeto: transformar o inconsistente em
algo sequenciado e consistente...
• MD – Não é preciso, deixa rolar. Lacan achou que fosse possível
achar o Fim da Análise, mas jamais o mostrou.

5. Entro agora nas questões da física que estão na base do projeto de Wolfram
de achar sua teoria fundamental. Com seu aparato computacional, ele propõe
um encaminhamento para a física tradicional, denominada física básica –
relatividade, quântica, cordas, branas, gravitação quântica em loop... Trata-se
de fazer a redução desses operadores a um sistema computacional na ordem
dos grafos em direção a um hipergrafo final que as incluiria. Num grafo, o
que interessa é o que está conectado com o que, e não do que os elementos
são chamados. O que importa é serem elementos distintos. E o que se faz
nessa coleção de relações do grafo é aplicar regras simples repetidamente,
em operação recursiva, over and over...
Então, para pensar a física, Wolfram parte da ideia de grafo ou de hiper-
grafos: conexão de pontos a partir de uma regra básica (rule) que gere o processo
e a geração de formas originariamente simples, mas que resultem em sistemas
complexos. Grafo constitui rede (network). O espaço resulta dessa conectividade
entre pontos, nós e espaço, é tudo que há. E o hipergrafo representa o espaço
e tudo que há nele. É necessário grande trabalho para construir as bases desse
espaço e nós, humanos, estamos em uma ínfima parte dele. Esse modelo seria
capaz de considerar / abranger toda a física existente até o momento. A título
de exemplo, citamos os principais modelos de grafos e hipergrafos apresen-
tados no projeto: o hipergrafo (hypergraph), o grafo causal de múltiplas vias
(multiway causal graph), grafo de múltiplas vias (multiway graph), sistema
de múltiplas vias (multiway systems), grafo causal, grafo de invariância causal
(causal invariance graph), gráfico branchial (branchial graph), foliação (folia-
tion), hiperbias (hyperedge), etc.

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MD Magno

• MD – Para nós é: Transa entre Formações.


O importante não é apenas o grafo, e sim haver a máquina de operação
que ele está construindo em sistemas computacionais extraídos dos próprios
computadores, dos programas, da mineração do que existe, reduzindo e arqui-
vando. Por isso, há pouco, mencionei a Transformática que lança mão do que
está disponível para operar com esses sistemas com arquivos. A regra simples
aplicada repetidamente gera a complexidade. Uma de suas ideias de base é: o
que há é espaço – talvez só haja espaço: um conjunto de pontos abstratos abs-
tratamente conectados juntos. Ele chuta que, no universo, haveria 10400 desses
pontos. Sua pergunta é: de todas as regras construídas, qual seria a regra básica
do universo? Não sabemos. Provavelmente, nenhuma delas, ainda não chega-
mos lá – e talvez não se possa chegar por não ser computável. O espaço como
experimentamos é tridimensional e as regras de Wolfram também são capazes
de reproduzi-lo do mesmo modo que aborda o espaço-tempo de Einstein. Seja
pelo modo como nós o operamos, seja pelo modo como o resto se constrói.
Vivemos em uma parte muito ínfima do grafo, convivemos com configurações
de espaço organizado segundo esses elementos. Não dá para imaginar como
seria o restante e as reconfigurações que tem. Que matemática teria um extra-
terreste para operar com ele?
• MD – É só esperar mil anos que chegamos lá.
Nesse modelo, o espaço é definido pela estrutura de larga escala do
hipergrafo que representa nossa coleção de relações abstratas. Continuando, ele

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MD Magno

pergunta: o que é tempo? Espaço e tempo são duas coisas diferentes. Quanto
ao tempo, só sabemos como os pontos se conectam e mais nada. O universo é
feito de átomos e conexões entre eles: os átomos-espaço.
Nesse projeto, o que é espaço-tempo? Essa ideia é um ganho da física
moderna. Mas, para Wolfram, espaço e tempo não são a mesma coisa Só sabe-
mos como os pontos se conectam, não sabemos mais nada. Uma tela de com-
putador, por exemplo, é feita de pontos discretos. Do que é feito o universo?
De átomos e da conexão entre eles. Então, para Wolfram, tempo é a progressão
dessa computação das regras aplicadas a esse hipergrafo. Tempo é computação.
Espaço e tempo são considerados em nível mais fundamental: espaço é o hiper-
grafo e tempo é a evolução do hipergrafo. Tempo é a computação progressiva
(progressive computation). Um modelo computacional em que a progressão do
tempo comparece como resultado de mais degraus na computação.
• MD – A flecha do tempo esbarra numa neutralidade absoluta. Cha-
ma-se: Revirão.
Para Wolfram, a Irredutibilidade Computacional é responsável pela
encriptação inicial das condições iniciais associadas à lei do aumento de
entropia, à flecha do tempo da termodinâmica: um hipergrafo que representa o
espaço, uma progressão do hipergrafo, que representa a progressão do tempo.
Para ele, a segunda lei da termodinâmica continua válida e importante, mas
em suas experiências com os autômatos celulares, vários deles se mostraram
reversíveis, contrariando a ideia dominante da irreversibilidade da flecha do
tempo. Ele não deixa de criticar a segunda lei da termodinâmica, que está
associada à ideia básica da NKS de que sistemas simples podem produzir alta
complexidade. É uma lei importante como princípio geral, mas a experiência
com sistemas e regras mostra que essa lei tem suas limitações. Wolfram veri-
fica que o que denomina regra 37R, por exemplo, produz sistemas reversíveis.
Então, na ordem da termodinâmica, nem todos os sistemas seriam irreversíveis
e as ideias de desorganização e desordem que comparecem na informação são
falta de computação do que está acontecendo, são falta de calculabilidade do
que se passou por ali. Assim, surge ordem da desordem, há reordenações a
partir de um processo entrópico: o sistema se reorganiza. Repetindo, parece
ser entrópico apenas por não haver computação para calcular a desorganização.

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MD Magno

• MD – É como o psiquiatra que não entende qual sintoma está em


jogo. Ele acha que há desordem. A partir da NovaMente, o Haver é tomado
como entrópico: Haver desejo de não-Haver – ou seja, Pulsão de Morte, em
Freud. Então, em termos de Haver enquanto Alei, só existe um momento de
neguentropia, chamado: não-Haver. Não-Haver é neguentrópico, mas, assim
como o Revirão repercute dentro do Haver como IdioFormação, aqui e ali
dentro do Haver é possível que repercuta a neguentropia do não-Haver no
seio do Haver. É o que Wolfram está dizendo. Repetindo, para a NovaMente,
o algoritmo de origem é absolutamente entrópico, é a Pulsão de Morte de
Freud. Ou seja, a coisa fica tentando até encontrar uma neguentropia radical.
Como Wolfram achou sistemas reversíveis, diz que a segunda lei da
termodinâmica é importante, mas há que ser tomada em sua generalização. É
mais ampla do que dizem os físicos (que, aliás, não têm a noção de reviramento
em suas operações).
• MD – Na cosmologia, falam em Big Crunch. Notem também que,
para nós, há Pulsão de Morte, mas Morte não há.

6. Registro agora que Magno é leitor de primeira hora da obra de Stephen


Wolfram. Lembro que o desenho do Revirão a partir do oito-interior é um
circuito, um grafo e desenha um hipergrafo. Portanto, a teoria do hipergrafo
é útil para considerar as concepções da NovaMente como minimalidades.
• MD – Seja qual for a possibilidade de equivalência da teoria de Wol-
fram, repito que estamos na tentativa – que deve ser continuada – de substituir
a Era Galileu pela Era Turing. Esta é a intenção da NovaMente.
Diz Wolfram que somos um conjunto de nós dentro do mesmo universo.
O universo está em nós tanto quanto estamos no universo.
• MD – É quase hologramático.
Isso é compatível com a ideia de IdioFormação como replicação do
Haver. Mas a concepção de hipergrafo, em Wolfram, mesmo tendo indícios da
operação em Revirão, ainda é demasiado devedora da teoria da computação
binária. Ele faz operações de reviramento, mas considera tudo na ordem do
binário, quer a resultante, o que resultou no grafo.

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MD Magno

• MD – Seria preciso perguntar-lhe sobre o movimento anterior à


resultante.
Sim. De onde terá sido tirado o tal ponto em looping para gerar o
segundo, o terceiro?
Então, retomando, desde 2003, com certa frequência, Magno tem se
referido à operação de redução computacional feita por Wolfram com seu Princí-
pio de Equivalência Computacional. Citarei agora alguns trechos de referências
desse ano:
Aí vem Wolfram agora dizer que, se começarmos a fazer a combinatória
dessas notas, teremos até o aleatório. Ele tem o saco de ficar esperando que um
hipercomputador faça um processo extremamente longo de acompanhamento
disso. A teoria dele é algo que dá um grande sentido de liberdade. Ele demonstra
que uma regrinha, se a fizermos funcionar, lá adiante nos perdemos porque a
regra mínima produz uma complexidade randômica. É pura repetição. Se muito
repete, sai do lugar. Quem repete pouco, não sai do lugar. A estrutura do I Ching
é a repetição alternada em combinatória de dois traços (Ars Gaudendi, 2003:
p. 177 [MetaMorfoses, 5]).
(...)
O que ele produziu é simplesmente a ideia de que o Haver é homogê-
neo. Ele reduz o universo por inteiro, todas as áreas científicas, a um processo
informacional, com uma teoria que ninguém supunha (Ars Gaudendi, 2003:
p. 171 [MetaMorfoses, 2]).
Acho que Turing, como criador da inteligência artificial, intuiu
justamente isso, sem ter máquina para fazer.
• MD – Sim. Por isso, digo que estamos entrando na Era Turing.
Saímos da era das equações, dos cálculos, para aquela da computação
e dos algoritmos.
• MD – Por que Lacan diz que a ciência é cristã? Porque a ciência
galilaica é nitidamente de Terceiro Império.
Muitas das queixas das pessoas hoje parecem dever-se ao fato de as
formações mentais ainda estarem jogando com formas de analogia e compor-
tamentos anteriores. Custa-se a entender que estamos sendo forçados a nos
tornar, digamos, autômatos binários pela computação banal vigente.

47
MD Magno

Continuando, temos:
...quando observamos a multiplicidade do mundo ou uma complexi-
dade, ela parece grande demais, mas suponho que a tendência seja de mostrar
que são coisas profundas e pequeninas que desenvolvem processos extrema-
mente complexos e grandes. É o que quero dizer com “mais fundo do que
extenso” (Ars Gaudendi, 2003: p. 193 [MetaMorfoses, 15]).
• MD – O verso de Fernando Pessoa é: “Não sejas curioso do amplo
mundo, / Ele é menos extenso do que fundo”.
Tanto na frase de Pessoa quanto nos trabalhos que se opõem à multi-
plicidade desbragada, temos que, ao invés de procurar uma diversidade muito
grande, basta tomar o essencial e se aprofundar nele, pois ele é que gera tudo.
Ou seja, que se aprofunde no mínimo que dele sairá o máximo (Ars Gaudendi,
2003: p. 193 [MetaMorfoses, 15]).
Antes, Magno dissera:
Fazendo um resumo, antes dele a ideia era de que as complexidades
existentes no Haver teriam que ser entendidas mediante formulações complexas.
Assim, uma complexidade é difícil de ser abordada, pois só uma formulação
complexa daria conta dela. Mas Wolfram disse que todas as complexidades
derivam de ideias extremamente simples, e demonstrou que, com uma regra
mínima, produz-se o aleatório, o randômico, o complexo. É como se dissesse
que podemos depreender toda a estrutura do Haver a partir da seguinte regra:
Haver desejo de não-Haver. É claro que isto teria que ser modulado com pola-
rizações, etc. (Ars Gaudendi, 2003: p. 171-2 [MetaMorfoses, 2]).
Na sequência, fazendo uma correlação com a ontologia matemática
de Alain Badiou, que Magno trabalhou bastante nos anos 1990, temos a pro-
posta de que Wolfram estaria construindo uma ontologia algorítmica, que seria,
digamos, turinguiana, já de outra vertente que não a galilaica. É a passagem
de um modelo de teoria dos conjuntos para teoria dos grafos e computacional:
Embora Wolfram não tenha utilizado o termo, pelo menos no que li até
agora, talvez, do ponto de vista da reflexão filosófica, se quiserem, sobre o que
ele está fazendo, poder-se-ia falar numa Ontologia Algorítmica. Vocês lembram
que, para relativizar o lacanismo, durante algum tempo lancei mão do que apa-
recesse. Nessa época, me referi à Ontologia Matemática, de Alain Badiou, que

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MD Magno

não é senão a Teoria dos Conjuntos como ordenadora de tudo. Suponho que,
no caso de Wolfram, se ele pode demonstrar, como pretende, que o que quer
que haja tem origem simples, mínima, numa formação pequena, minimalista
de proliferação das complexidades, que chama de Autômato Celular... (Ars
Gaudendi, 2003: p. 193 [MetaMorfoses, 15]).
Para finalizar as citações, ao tratar da Clínica, da fantasia – que foi
bastante trabalhada como algoritmo em 2019 e 2020 – e da falação do anali-
sando, diz Magno:
As formações, o bobajal, a falação que o analisando despeja numa
análise, é preciso não deixar proliferar, pois aquilo, como multiplicidade, não
vale nada. Basta catar uma multiplicidade e uma formulinha, um pequeno pen-
telho que pentelhou sua vida e que agora está pentelhando a nossa... Lacan teve
essa intuição no que diz respeito à fantasia, que é uma fórmula mínima, quase
algébrica. Estou dizendo que não só a fantasia, mas a estruturação inteira do
psiquismo de uma pessoa é uma formulinha mínima. E mesmo a produção do
próprio cérebro, suponho eu (Ars Gaudendi, 2003: p. 194 [MetaMorfoses, 15]).
É o que Wolfram também supõe.

7. Para finalizar minha apresentação, trago agora algumas questões gerais,


relativas às concepções da NovaMente, que me foram suscitadas ao fazer
esse percurso sobre a obra de Wolfram.
Magno disse recentemente que o Inconsciente, o Haver, era uma
máquina de produção e estruturação de linguagem. Entendo que o Ics é uma
máquina de articulação, daquele input inicial articulatório que vai rendendo a
composição das formações. O Haver, então, computa as formações do Haver
e, no limite, é, em si mesmo, empuxado pela Alei. Não há a computação final
desse processo. O Haver funciona analogamente a um hipercomputador, sem
fechar o programa. Pode-se, pois, pensar o Haver como um hipergrafo, com
todas as possibilidades de grafos em sua construção, mas que inclui o Revirão
e o Princípio de Catoptria. E que o Revirão se esclarece dentro do grafo.
• MD – O Haver, assim como o Inconsciente, faz um só com um único
algoritmo que é: Haver desejo de não-Haver. Este algoritmo gera todo o resto.

49
MD Magno

Isso coloca o Artificialismo Total do Haver. Este nosso é um dos mun-


dos possíveis, praticamente mera contingência.
• MD – Por isso, falei em Artifício Espontâneo e em Artifício Industrial.
E quem inventou tudo isso foi o Dr. Freud, está tudo lá em sua obra.
Trata-se das ideias de articulação e linguagem. Esta, como tem sido
trazida mais recentemente por Magno: mero processo articulatório. Grafos
e hipergrafos, então, podem ser tomados para pensar a artificialidade total
do Haver, constituídos que são por conexão de pontos e mais pontos. E a
conectividade de pontos dos grafos também pode servir como analogia para a
ideia de Transa das Formações. Uma formação, ao transar com outra, resulta
noutra formação, e assim por diante. Há complexidade porque as formações
emaranharam. É, aliás, complexo apenas de nosso ponto de vista. De outro,
poderia ser não como macro, mas mesmo como micro, ou seja, um complexo
de menor magnitude. Wolfram, ao apresentar seus grafos, diz, por exemplo, que
tal resultado se deve a seis mil e poucas repetições do mesmo algoritmo, mas
que devemos imaginá-lo multiplicado por bilhões. Então, qual seria o limite
de cálculo de um autômato celular?
• MD – A franja.
O Haver é uma máquina proposta por Magno, em 1986, com o nome de
Pleroma. Talvez lá esteja o hipercomputador que Wolfram busca. Seus dados são
computáveis em parte e, em parte, sofrem de irredutibilidade computacional. O
Revirão é a suspensão momentânea de um processo computacional, pois leva
as formações ao grau zero. É um instante em que o algoritmo e seu, digamos,
avesso têm chance de comparecimento, mas com um ponto da computação que
foi esvaziado. É um ponto de indiferenciação. Wolfram não tem esse racio-
cínio, mas é possível apontar esse ponto em seu hipergrafo. É a Bifididade lá
aparecendo. Quero dizer que, sem colocar o Princípio de Catoptria em corre-
lação com os Princípio de Equivalência e de Irredutibilidade Computacionais,
e sem colocar a ideia de HiperDeterminação como suspensão do processo,
alguma coisa ficará faltando ser apontada no hipergrafo.
• MD – Há que construir uma teoria do Bífido. O universo é Bífido,
mesmo que uma parte esteja oculta. Temos que esperar melhores definições do
que sejam matéria e energia escuras. Não sabemos nada ainda.

50
MD Magno

Em 2005, Magno fala em HiperIcs como tentativa de fazer a teoria


unificada da psicanálise. Justo o que Wolfram está tentando fazer com a física:
tomar as microteorias e aplicá-las a determinado processo. Isto, sem ficar recon-
siderando o modo como foram operadas, mas destacando o que as causou
em certo momento no sentido de refazer aquilo de forma mais abstrata, mais
inteligível e mais conectada a um processo mais amplo. Diz Magno que é uma
vontade de passar o pensamento a limpo, ou seja, refazer mundo:
HIPERICS. A tentativa é de fazer uma teoria unificada da psicanálise.
Já chamei atenção para que tanto Freud quanto Lacan, talvez mais Lacan, pro-
duziram a psicanálise como uma série de pequenas teorias aglomeradas num
pacote. Freud tinha todas as justificativas por estar iniciando o processo. Como
em qualquer produção de saber, as coisas vão se fazendo e se corrigindo pari
passu com a experiência (Clavis Universalis, 2005: p. 154 [54]).
Em seguida, ele diz o que já foi mencionado várias vezes nesta
exposição:
Esta é minha pretensão, que é menor que as de Wolfram e da física
contemporânea. Embora queira unificar a psicanálise tornando-a capaz de abrir
para a escuta de tudo, não é preciso que sejam seus produtos que se capacitem a
explicar. É preciso mostrar que as pontes que ela permite construir trazem para
dentro de seu campo os outros saberes. Ao invés de explicar tudo, a psicanálise
pode ser uma teoria tão geral que vai conectando e aceitando explicações. Esta
é a meta (Clavis Universalis, 2005: p. 156 [54]).
Outro ponto que destaco é podermos dizer que Alei (Haver desejo
de não-Haver) e o consequente Revirão operam como invariância causal do
grafo. A resultante final será sempre a mesma. O Princípio de Catoptria leva os
Princípios de Equivalência e de Irredutibilidade computacionais à sua máxima
extensão. Ou seja, o limite desses dois princípios de Wolfram é o Real do Haver,
o Real do Revirão. O nome que ele dá é ponto em looping, mas não trata dele.
Pelo visto (e preciso pesquisar mais), então, como disse antes, não há nele algo
análogo à HiperDeterminação. Seu máximo é expresso pela irredutibilidade
computacional.
Quanto à Teoria das Formações, sabemos que as formações são consti-
tuídas de Polo, Foco e Franja. E talvez possamos entender o computável como

51
MD Magno

mais restrito ao foco. Quanto mais franjal, menos disponível à computação do


momento. Temos, assim, que a Transa das Formações resulta em novas forma-
ções, portanto, em ampliação do grafo. Daí Magno ter proposto em 1996, como
mencionei antes, a Transformática, que me parece dialogar bem de perto com o
projeto de Wolfram no sentido de uma computação ampla e geral. É uma teoria
genérica da comunicação, um mapeamento da imensa quantidade de formações
resultante da transa entre as formações. Ela é um longo, infinito e invariado pro-
cesso de colheita e arquivamento de transas de quaisquer formações. É também
um tratamento das possibilidades generalizadas de transação, de transformação,
entre elas, inclusive terapêuticas e curativas. Se houver uma Transformática,
trata-se de anotar toda formação possível e verificar qual transa está rolando
entre elas. É o que Wolfram faz com os algoritmos, com os autômatos celulares.
Não se trata de recortar e muito menos excluir qualquer formação. Temos aí o
verdadeiro big data, que seria uma Transformática.
Então, se pensamos pelos princípios de Wolfram, temos que considerar
que, na Gnômica da NovaMente, há que incluir o Conhecimento Absoluto e a
HiperDeterminação. O Conhecimento Absoluto é que, de saída, possibilita todo
conhecimento que virá depois, inclusive a criação de novos mundos.
• MD – E é preciso, quanto ao Conhecimento Absoluto, pensar em
Meister Eckhart.
Já é possível extrair consequências dessa proposta: exigência de um
lugar de articulação que amplia a noção de mente, dispensando o lugar de
sujeito e mostrando sua redução a ego; a proposição do estatuto ad-jetivo das
formações; e o avanço de um sentido pragmático novo para o conhecimento
sustentando o valor de uso das formações como postura adequada da clínica.
Destacamos, então, os seguintes aspectos do projeto da física de Wol-
fram e da NovaMente de MD Magno: (1) Artificialismo Total do Haver: arti-
culação e busca de abstração máxima. A abstração existente não é suficiente e
não é o limite. É possível abstrair mais, até o sentido do que seja abstração; (2)
Modelo computacional: grafos, sistemas, formações na abordagem da Teoria das
Formações; (3) Modelo mínimo: reducionismo pela simplicidade do processo,
o hipergrafo e outros grafos (lembrando que o Revirão também é um grafo, um
circuito, um hipergrafo). A busca da Teoria de Tudo é comum aos dois sistemas.

52
MD Magno

Generalização de um pensamento: ontologia algorítmica, de Wolfram, e Haver


e Ser, na NovaMente.
• MD – Em nosso caso, não seria ontologia, mas uma Haverologia.
É isso. Ressalto que esse trabalho de Wolfram tem um modo de
trabalhar diverso do usual no século XX. Ele não se utiliza de revistas científicas
para dar conta de seus achados, mas, além de publicar livros, é atuante na
internet em interlocução com pesquisadores do mundo todo e de várias áreas do
pensamento. O diálogo é feito, por exemplo, mediante vídeos de longa duração,
sem preocupação com edição ou sucesso de público. É o ad hoc da Era Turing.

* * *

• MD – Agradeço a apresentação esclarecedora de Aristides. Tomo o que ele


apontou em Wolfram sobre a produção de novos mundos. É um apontamento
importante sobretudo porque, desde o início da teoria da NovaMente, sabe-
mos que não há heterogeneidade entre as formações do Haver e as formações
psíquicas.
Chamo, então, a atenção para algo importante na clínica, referente à
possibilidade de produção de novos mundos. O que é a cura? É a possibilidade
de o analisando produzir para ele um novo mundo. E temos uma prova concreta
dessa possibilidade do ponto de vista psíquico em alguns casos nítidos de psi-
cose. Tomemos o caso concreto de uma pessoa que produziu um HiperRecalque
por extrema pressão da ordem familiar sobre ela. Produziu um surto, e passou a
um estado psicótico. Ela montou o delírio – sabemos que, na psicose, o delírio é
uma tentativa de cura, de sair dela – de ser filha adotiva e que teria encontrado
a verdadeira família, situada numa ordem qualquer de nobreza externa à sua
vida. Criou um mundo radicalmente novo, só para ela, não consentâneo com
sua realidade familiar. Isto, do mesmo modo que alguém que não passa por um
HiperRecalque, numa análise, tem a possibilidade de sair de um processo de
Estacionamento. Ou seja, sai-se de um processo Estacionário produzindo um
mundo novo para si. Ele tem muitos elementos do mundo antigo, mas é um
mundo novo. O delírio psicótico demonstra que é possível produzir um mundo
novo no nível do Secundário, pelo menos. E desse nível passar a ações no nível

53
MD Magno

das formações do Haver. Observem que estou mostrando a produção do mundo


novo na psicose, na cura, e no lugar mais importante quanto ao que estamos
tratando neste momento: a produção de Criação. Trata-se de conseguir sair do
Estacionário – por exemplo, de uma teoria – e inventar um mundo, uma teoria
nova. Tudo faz parte da mesmíssima formação mínima – se quiserem dizer,
do mesmíssimo algoritmo.
• Aristides Alonso – Uma experiência radical de análise não é uma
virada de tal ordem que explode o mundo tido? Assim como vai junto tudo que
ele produziu? E mais, joga-se mesmo fora a análise que gerou esse mundo
novo. Outra coisa deverá nascer daquilo.
Se não jogar fora, permanecerá Estacionário. Heidegger achava que
pensar fosse mais ou menos isso. Para ele, pensar era a coisa mais perigosa
– e é!

4
Tenho aqui uma frase de Lacan, do Seminário 1 [1953-54], enquanto ainda
estava em luta com a questão externa, sobretudo dentro da IPA. Ela ainda está
valendo: “O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão.
É um erro reduzi-lo a palavras gastas”. Vejam que ele já achava o mesmo
que continuo achando.
O lema de Lacan na época em que surgiu era: “Se há Secundário, há
sujeito”. Eu o substituiria por: “Se há Secundário, há Originário”. É louvável
o esforço de Lacan – sobretudo naquele seu Primeiro Classicismo, como foi
chamado por Milner – em procurar uma abstração radical para o funcionamento
do Inconsciente. Por isso mesmo, dizia que tomava o sujeito como pensamento

54
MD Magno

sem qualidades – o que se demonstrou impossível. Sem qualidades somente o


Haver enquanto homogêneo em neutralidade e o Revirão enquanto máquina
de Pulsão secundária. Nada mais existe sem qualidades. O livro A Obra Clara:
Lacan, a ciência, a filosofia, de Jean-Claude Milner, cuja leitura recomendei
quando foi lançado (1995), é excelente, um pouco pedante, mas esclarece o
fundamental. Faço agora um resumo brutal. Eu diria que o primeiro classicismo
de Lacan é: o classicismo do significante. Lacan pretende que o Inconsciente
seja constituído de significantes sem qualidades. Ele tenta levar ao extremo a
função do Haver em seu estado homogêneo igual a nada. Daí ele tira uma ideia
de sujeito do Inconsciente apenas representável de significante para significante.
Ou seja, o significante é coisa alguma que representa nada para coisa alguma. E
assim continua sendo sua cadeia de significantes. Notem que, na Idade Média,
Mestre Eckhart tinha dado um salto maior e mais vigoroso: imaginar a ideia
de deidade como nada – i.e., como homogeneidade zero.
Na verdade, o sujeito de Saussure é que é mesmo significante, à medida
que é atrelado, como duas faces da mesma superfície, a algum tipo de signi-
ficado ainda que desejante. O significado, então, pode deslizar ou pode ser
específico para determinada pessoa, mas, dado um significante (no sentido
de Saussure), não deixa de imediatamente comparecer. Ou seja, não existe
significante sem qualidades. Ao descobrir isso, Lacan parte para um segundo
classicismo. Assim, como o primeiro – do significante – acabou em redondo fra-
casso, Lacan tenta inventar outro classicismo. Se passarmos a limpo a segunda
fase de Lacan – esta que Milner chama de segundo classicismo –, teremos: o
classicismo do sintoma. Acabou o significante puro. A letra, como ele chama,
não é o significante de Lacan. É: escrita do sintoma (como ele mesmo deixou
claro). E o que ele queria que a letra fizesse – transmitir algo integralmente – é
puro wishful thinking, não existe. Não há como transmitir um sintoma. Pode-
-se falar dele, mas não passar de um para outro. Mesmo que seja uma cópia
por relação próxima não é a mesma coisa. Nenhuma relação ponto a ponto é
possível – e não apenas a relação sexual –, coisa que, aliás, já está em Lacan.
Então, para além da letra, Lacan resolve mostrar o sintoma. Talvez na
influência de Wittgenstein: “O que não se pode dizer, deve-se calar” [Wovon
man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen] – ou pode-se apenas

55
MD Magno

mostrar. Lacan toma a ideia de mostrar o sintoma, ao invés de escrever sua


letra, e inventa uma aplicação do velho nó borromeano, retirado do brasão da
família Borromeo lá da Idade Média. Com o nó borromeano, ele tenta mostrar
o sintoma topologicamente sem letra. Coloca uma letra [ Ʃ ], mas que só está
valendo como nomeação. O nó de três – Real, Simbólico e Imaginário, no caso
dele – é puro sintoma, o que se verifica facilmente com o nó de quatro, o nó
quadrúpede com as quatro patas em alguma Formação do Haver. [Ficou um bom
trecho inaudível]. E, desse nó, Lacan faz mil avatares, mil desenvolvimentos
cada vez mais enredados. Quando os nós começam a se embolar demais, e
mesmo quando as outras figuras topológicas passam a não responder favora-
velmente, como é o caso do toro e de seus recortes, Lacan, finalmente, parece
cair em si. Mesmo em si bemol, tristonhamente. Então, vai para o poema e
para a literatura. Ou seja, agora é que voltou para Freud. Por isso, faz aquele
seminário sobre Joyce [Le Sinthome, 1975-76].
Por que Joyce? Ele quis dizer que Joyce, pessoalmente, talvez fosse
psicótico. Não sei de onde pôde tirar essa ideia. A meu ver, o que acontece com
a produção de Joyce – que li muito antes de conhecer Lacan – é ele tomar sua
língua, dita materna, o inglês, e misturar com as outras dezessete línguas que
conhecia bem. Tenta passar certo liquidificador linguístico para ver se consegue
ficar livre do sintoma de sua língua. É impossível – mas ele tenta dissolver
o sintoma. Assim como, na narrativa do texto, tenta dissolver o pesadelo da
história [“A história é um pesadelo do qual tento despertar” (History, Stephen
said, is a nightmare from which I am trying to awake)]. Faz isso dissolvendo
os ditos fatos da história e construindo uma espécie de riocorrente que chama
Riverrun, e que traduzi por: Revirão. O rio que desemboca na própria nas-
cente, o rio unilátero. Por isso, mostrando como ele tenta resolver Tomás de
Aquino, fiz a brincadeira de que encontramos Joyce como Sense in Thomas –
sem sintomas. Este era seu projeto: dissolver o sintoma da história e da língua.
Impossível, mas é o projeto. Vemos nisso tudo o dedo de Wittgenstein – pelo
menos, com o que supõe terminar seu Tractatus: o que não se pode falar, só
se pode mostrar – o que não se pode dizer, deve-se calar. Engraçado é que
ele, Wittgenstein, sabiamente, nunca se calou. Haja vista a sua obra posterior,
chamada de “segundo Wittgenstein”.

56
MD Magno

Lacan descobriu isso, que o Inconsciente não se cala, mesmo não


podendo falar o que não pode, e parece terminar esse périplo declaradamente
concluindo que “não podemos saber nada” – como se o ceticismo fosse pos-
sível. E, continuo eu: se não podemos saber nada, então vamos saber – Gnose
e Gnômica. O título da revista de sua Escola, em certo momento [1968-76],
era Scilicet: “Você pode saber” – pode saber o que dá para saber aqui e agora.
Todo saber é provisório, inclusive toda teoria, inclusive as psicanalíticas. Toda
produção de saber é ad hoc. Disse tudo isso para tentar resumir o que vocês
leram n’A Obra Clara, que é onde chegamos. Por causa disso foi que aban-
donei o lacanismo, e parti para a não utilização do conceito de sujeito ou de
objeto na composição de uma Teoria das Formações que opera na mera transa
aqui e agora das formações em jogo em qualquer situação. Sujeito (sujet) é
um cacoete Francês. Mesmo nessa língua quer dizer também outra coisa. Em
Português, há sujeito na gramática. Imitação do Francês. Inteiramente dispen-
sável. A propósito, repito que, para funcionarmos com referência a algum ins-
trumento teórico, não é preciso crença alguma. Crença só destrói o pensamento
porque o paralisa, é uma composição da ordem da Morfose Estacionária. Não
é preciso, portanto, de crença para manejar um instrumento teórico, e sim, de
algo parecido com uma aposta na eficácia da teoria, o que pode se traduzir, em
última instância, em confiança. Vamos confiar na possibilidade de esta teoria
funcionar enquanto funcionar. A crença é Estacionária, é a suposição de que algo
vai funcionar necessariamente em qualquer circunstância. Já a confiança, ou
a aposta, é reconhecimento provisório de que algo pode bem funcionar dentro
de suas características e em função de dado momento da situação. Pensamento
algum é válido mediante uma crença. A confiança, sendo provisória e ad hoc,
é em função de uma situação de conhecimento e temporalidade, com prazo de
duração, de validade. E, justamente, o nascimento da NovaMente dependeu da
perda de confiança genérica da formação nomeada “pensamento lacaniano”.
• Patrícia Netto Coelho – Você disse que só no final de sua obra, no
segundo classicismo, já na desconstrução, segundo a divisão feita por Milner,
Lacan teria retornado a Freud. Quero entender melhor por que você acha que
haveria aí, nesse recurso à literatura, à poesia, um retorno a Freud.

57
MD Magno

Freud, em sua obra, trabalhava sobretudo com os poetas, escritores, etc.,


procurando uma ordenação sintomática. Lacan retorna a isso depois de todo
o processo de abertura que fez – e com bastante abertura, aliás, pois, no final,
recorre à escrita e à poética chinesas mediante o trabalho de François Cheng.
Ou seja, que saídas há quando se chega aí? Custei demais, muitos anos como
vocês podem ver nos volumes publicados, até conseguir saltar fora de Galileu
e pensar numa ciência das formações sintomáticas e da transa entre as forma-
ções. Isto, sem sujeito para atrapalhar e sem objeto para procurar. Pura transa
e resultado das transas. São transas entre sintomas. Não há senão sintoma. Para
fora da sintomática, o que existe é o caminho de Eckhart: procurar o processo
infinito de Indiferenciação para poder ficar disponível para acolher a especifi-
cidade de cada letra, dada sua sintomática. Esta foi a saída que pude encontrar.
• Nelma Medeiros – Você falou no modo como Lacan entendeu Joyce,
o qual, para você, queria como que sair da história, dissolver seu sintoma
linguístico nas outras línguas. Penso também que se trata de dissolver certo
sintoma histórico no sentido de um pesadelo da memória, da lembrança, das
inscrições que retornam... Joyce escreve Ulysses entre 1915 e 1921. Em 1915,
Freud publica seus textos da Metapsicologia. É quando diz que o Inconsciente
não tem tempo. Haveria em Joyce quase que uma analogia para mostrar essa
condição atemporal do Inconsciente...
Sim. Ele faz uma narrativa em que mistura Adão e Eva com seu tempo
e com a cultura.
• NM – Haveria mesmo uma Progressão no sentido de efetivar um
estado civilizacional de pura transa de formações, que traria um alívio em
relação a esse sintoma histórico, e também aos sucedâneos que Nietzsche
explorou como ressentimento, etc.
E nem por isso talvez haja fim da História. E mais, essa transa de forma-
ções já está bastante em exercício atualmente na entrada do Quarto Império. As
pessoas estão apavoradas com esse fenômeno, perderam as estribeiras – ainda
mais com esse vírus aí para ajudar.
• PNC – Lacan traz a amarração borromeana antes do seminário
sobre Joyce. Penso sobre isso quanto à forma de ler Lacan, um pouco como
você fez hoje, com uma chave de leitura. Pergunto, então, se já não haveria

58
MD Magno

ali uma espécie de prenúncio da ideia de transa de formações. O que está


sendo apresentado é menos a questão estrutural do que a das relações e de
borromeaneidade.
Mas não compareceu como tal. As ideias de formação, de programas
computacionais e de algoritmo são fora de época para ele. No final, ficou
enrascado na topologia, junto com aqueles maluquetes matemáticos, Pierre
Soury e Michel Thomé. Como eu disse, saltou fora para a escrita chinesa, para a
literatura, para a poesia. Ou seja, pulou mesmo fora. Sempre conto a vocês que
havia uma escrivaninha muito engraçada no consultório de Lacan. Eu sempre
parava para olhar: sobre ela um monte de dinheiro e uma confusão enorme
de nós borromeanos. Era um contraste interessante. Ele jogava lá o dinheiro
recebido dos analisandos junto com um monte de nós. Eu pensava em com-
prar os nós com aquele dinheiro... O que importa é que o dele foi um percurso
maravilhoso, brilhante, genial – para desembocar onde? No Quarto Império.
• Aristides Alonso – Lacan, quanto à questão do sujeito, chega ao
extremo que você utilizou para falar em sujeito em abismo, e mesmo jogar fora
o sujeito. Ao se livrar dessa ideia, estava se livrando de uma ideia de homem
segundo uma tradição filosófica de mais de dois mil anos. Com a introdução
do conceito de IdioFormação para jogar essa questão para adiante, temos
uma formação que não é homem ou sujeito, que é capaz de comparecer em
qualquer lugar além deste planeta e de se replicar em formações artificiais.
Então, podemos dizer que os pensamentos de Freud e Lacan são incompatíveis
com a ideia de inteligência artificial, do que se pensa hoje como possibilidade
de replicação plena da atividade cerebral. Vejo que esta é a proposição de
abandono radical da ideia de sujeito, da qual mesmo filósofos mais recentes
tentam sair, mas acabam voltando a ela de algum modo.
No fundo, não saem da antropologia. A NovaMente não é antropológica.
Ao escrever Creodo Antrópico trata-se, para mim, de falar do sintoma desta
macacada aqui. E aqui o Primário é de macaco. Se fizermos um exercício de
science-fiction, poderemos imaginar lá longe uma civilização cujo Primário seja
de réptil. Ou uma cujo Primário seja máquina. Se mudar de Primário, tudo muda.

59
MD Magno

• AA – Interessante é que o pessoal está voltando a Freud para pen-


sar a Inteligência Artificial. Principalmente, à segunda tópica, que é um bom
modelo a ser implantado em robôs.
Talvez nem seja um bom modelo, mas, na cabeça deles, é melhor do
que o resto. Eles ainda não sabem do outro resto.
• P – Você disse no início que “não há como transmitir um sintoma”.
Em 2011, tratando da transmissão em termos institucionais, você disse: “Já
notaram que só se transmite doença? Só doença pega, não pegamos saúde
dos outros”...
Acho que hoje, com o coronavírus, está na cara. A doença não é igual
ao sintoma do outro. Ao mesmo tempo que disse isso, disse que não me chamo
Jacques Lacan. Podemos tomar uma vasta construção sintomática – não uma
qualquer – como modelo, como instrumento de operação, mas jamais ela se
transmitirá integralmente. Foi engano Lacan achar que, se matemizasse, a psi-
canálise se transmitiria por inteiro. Isto não existe, ninguém mais é Jacques
Lacan. O que podemos é tomar o instrumento inventado por ele e trabalhar
para adiante.
• P – Me pareceu que, lá em 2011, você estaria encarecendo a trans-
missão da doença...
Claro! Vocês todos estão fazendo o quê aí? É como gripe...

5
Dou agora resposta a uma pergunta sobre minha Teoria dos Estilos. Ela ainda
estaria valendo na Teoria das Formações? Sim! Essa Teoria dos Estilos já tem
características da Teoria das Formações.

60
MD Magno

Repito, então, que o assim chamado Clássico, em última instância, é


pura denegação do Inconsciente. Tentativa de racionalização mediante, sobre-
tudo, a cientificidade suposta garantida dos estudos da Natureza. Principalmente,
na época de sua fundação, nos estudos do corpo humano e da geometria eucli-
diana, inclusive como perspectiva geométrica. É como se um saber constituído
desse numa crença capaz de produzir uma obra em que o Inconsciente não
entrasse. Além disso, nessa época chamada Renascimento surge concomitan-
temente com o Classicismo o conceito de Maneirismo, que chamo de Maneiro.
Ele vem em reação ao Clássico. Parece que alguns acharam que não era para
reprimir ou recalcar o Inconsciente. Antes de mais nada, o Maneirismo afirma
o reconhecimento do Inconsciente, de sua Bifididade em Revirão – que, desde
então, os artistas apresentam – e a consequente vigência do sintoma. Ele assume
a maneira, digamos, o estilo de cada artista como a própria expressão de sua
diferença sintomática, isto é, de sua assinatura, de sua letra.
E adiante, séculos XVII e XVIII, aparece o Barroco. Poderíamos cha-
má-lo, entre aspas, de “maneirismo ortodoxo”, que saiu pela tangente. Ele
canonizou alguns argumentos do Maneirismo e colocou esse cânone sob a
égide dos poderes mancomunados da Igreja Católica e do Estado. É, pois, o
Maneirismo domado e referido ao transcendente que, em última instância, são
o Papa e o Rei. Na representação gráfica, isso resulta num jogo de infinitização
que, de dentro da regra, pretende ir ao transcendente e é apresentado de duas
maneiras. Na primeira, temos um impulso imediato para a transcendência, a
saída, a corrida, a fuga para o infinito, que ilustrei com a espiral que continua,
continua e nunca se fecha. Lacan percebeu isso bem – pois era fácil – na Santa
Teresa, de Bernini. Ela, infinitamente, está gozando – com o anjo lá como
testemunha e como Falo. Não é o orgasmo múltiplo, e sim o orgasmo infinito.
Não gozou, está gozando, não para, o que é o terror. Podemos ver também
nessa primeira maneira a obra de um maluquete chamado Caravaggio. Na
segunda maneira, é ou a infinitização pelo jogo de espelhos, o jogo regrado
que temos em Velázquez. (Já lhes mostrei esse jogo com clareza geométrica
n’As Meninas e em outros quadros seus como La Venus del Espejo. É um jogo
geometricamente desenhado, mas é espelho contra espelho, é infinitização).
Ou é também a infinitização pelo claro/escuro, de Rembrandt.

61
MD Magno

Temos sempre que ter em mente que o Barroco ocorre no tempo da


expansão do casamento da Igreja com o Estado. Ao passearmos pela arte dos
séculos XVII e XVIII, vemos que é a cara de Descartes, que fica procurando
um Sujeito. Então, o artista barroco ou obedece aos ditames da igreja papal, ou
os critica veladamente dentro da mesma canônica, sem sair dela. Faço a brin-
cadeira de dizer que o Barroco é um Maneirismo de Estado. Acaba respeitando
a individualidade do estilo dos artistas, mas tudo regrado. Mantém os estilos
pessoais dos artistas no impulso para o transcendente, para Deus, representado
pelo Papa e pelo Rei. E não esquecer que falar em “Barroco Mineiro” é bes-
teira. Aquilo é puro Maneirismo. A influência que há nele é da cabeça de tipo
Maneirismo, e não da contenção barroca, apesar de estar falando de religião, etc.
• NM – Foi chamado de Barroco Mineiro pelo IPHAN, Instituto do
Patrimônio Histórico e Artísitico Nacional, nos anos 1930-40, que tentou dar
uma primeira arrumação canônica às artes no Brasil.
É uma desculpa.
• AA – Você chama esses estilos de Estilos Basais. Ou seja, não apenas
circunstanciais a momentos da história, mas comparecentes no arco de toda
expressão estética humana a qualquer tempo com preponderância de um ou
de outro. Vemos, por exemplo, como a Lógica da Paraconsistência inconscien-
temente insistia sob a pressão da Consistência, que foi dominante por mais
de dois mil anos. O fato de ela não ter dominado não significa que não tenha
comparecido com veemência no pensamento de vários autores durante esse
tempo. O que estranhei foi sua referência ao jogo de espelhos em Velázquez
no Barroco. Sempre achei que fosse uma grande expressão maneirista das
artes plásticas daquele momento pelo comparecimento do Revirão, como você
mostrou há quarenta anos, em 1981.
Por isso, fiz a brincadeira de dizer que, em última instância, o Bar-
roco é um Maneirismo de Estado. Mas alguns escaparam e continuaram no
Maneirismo em seu reconhecimento do Inconsciente. Há uma infinitização
n’As Meninas. O que Velázquez faz com o rei e a rainha? Não deixa de os
colocar regendo o processo, mas por via de espelho. Tirou-os, e os colocou em
cena. Deleuze [em A Dobra: Leibniz e o Barroco (1988)] faz grande confusão
entre Barroco e Maneirismo, pois, ao invés de privilegiar – como faço – o

62
MD Magno

Maneirismo, privilegiou o Barroco e o chama de Barroco. O Barroco é que é


um Maneirismo. Este veio antes, junto com o Clássico. Por quê? Os artistas
tinham o direito de ser rebeldes.
• AA – Caso de Michelangelo, que vai amaneirando tudo.
Ele é o grande maneirista, mesmo tendo sido durante anos apresentado
como clássico.
• AA – Em sua insistência de que Clássico e Barroco são duas expres-
sões, quase que decadências do Maneirismo, este teria hierarquicamente um
lugar acima dos outros dois em que, num, teríamos recalcamento e, noutro,
infinitização. Então, como o Maneirismo só foi recuperado como estilo no
início do século XX, tivemos um prejuízo enorme nas nomeações. Inclusive,
de Aleijadinho como barroco. Na época em que se começou a nomear o estilo
dos artistas, o Maneirismo era praticamente desconhecido.
Isto porque, como eu disse, o Maneirismo é expressão imediata do
Inconsciente enquanto Revirão. A dominância era o classicismo como recalque
imediato do Inconsciente e o Barroco fingindo que fala com o Inconsciente,
mas referido aos poderes supremos de Deus e do Rei.
• P – Você falou em Deus e no Rei. Se o Barroco é um estilo basal,
poderíamos ainda assim nomeá-lo como Barroco se o poder fosse outro?
Aristides chamou a atenção para esses três estilos poderem ser consi-
derados basais. Digo agora algo que nunca disse: O Maneirismo é expressão
direta e imediata do Inconsciente enquanto Revirão; o Classicismo é a Morfose
Estacionária (não sei, aliás, se Milner estava de gozação ao chamar de primeiro
e segundo classicismos o percurso de Lacan); e o Barroco, pressionado por essas
duas figuras violentas, Papa e Rei, é HiperRecalque. Chama-se: Psicose. Aí são
delírios pós-surto psicótico. Por isso, chamo de Estilos Basais. Só temos essas
três formações: Estacionária, Progressiva e Regressiva. É como se o Barroco
fosse uma consequência delirante de um processo de HiperRecalque.
• PNC – O livro de Schreber, aliás, é bastante barroco.
E as pessoas costumam chamar Lacan de barroco. Eu o acho mais para
Maneiro, mas, literariamente, ele tinha, sim, certo gosto para o Barroco. Não
esquecer de sua frase: Moi, je suis psychotique.

63
MD Magno

6
Em nosso futuro de trabalho, gostaria – e não sei se vai dar, pois serão
necessários conhecimentos especialistas –, para além das simples ideias de
computação, de inteligência artificial e outras, que refletíssemos sobre um
campo de produção, até mesmo de nossa espécie, que é bastante explicativo
do que chamo Teoria das Formações: a Música.
Já disse algumas vezes que o Haver é feito de Música. Os físicos estão
chegando a essa conclusão. Então, se quisermos entender uma Teoria das For-
mações como mero jogo de formações, nada mais esclarecedor do que entender
as construções musicais que esta espécie já pôde produzir, desde as mais care-
tas – digamos, clássicas – até as mais maneiristas. Se tirarmos a ideia mais ou
menos idiota de música programática – que pensam que tem conteúdo quase
literário, mas é só maneira de dizer –, se tirarmos as tais canções populares,
que fingem estar dizendo alguma coisa, e tomarmos a música em seu sentido
abstrato (a música instrumental, por exemplo), entenderemos com clareza que as
formações e as franjas das formações são coisas claras. Ao ouvir um maluquinho
musical, percebemos que ele está funcionando numa repercussão infinita de
formações sobre um algoritmo. A música ocidental até a metade do século XIX
é inteiramente tonal e diatônica. Assim, algo chamado escala tonal diatônica é
um algoritmo. Ela funciona em várias tonalidades [inaudível] e com a produção
da pletora de formações musicais que foram constituídas, até estilisticamente,
de acordo com o sintoma de cada músico. Mas vemos que é algo enorme, pura
transa de formações construída sobre um único algoritmo chamado escala tonal.
O Inconsciente é parecido com isso. Fora o que, no Ocidente, veio depois: as
loucuras que os músicos fizeram com algoritmos novos que inventaram.
Ou seja, qual é a fantasia da música tonal clássica? É um algoritmo
chamado tonalidade. Ela goza para todos os lados com uma fantasia, igualzinho
a nós. Se acompanharmos os movimentos, que posso chamar de maneiristas,
de rebeldia contra essa ideia tonal, veremos que são invenções espetaculares

64
MD Magno

que resultam em formações as mais diversas. É mais fácil entender o Incons-


ciente musicalmente do que matemática ou literariamente, pois a música não
tem semântica própria. A semântica é atribuída. Ao contrário, o esforço dos
grandes escritores para romper com a quadratura da literatura é imitação da
música. São eles que imitam a música.
• AA – Você falou em tonalidade, em cujo movimento temos determi-
nado arranjo, uma composição e, depois, retorno praticamente ao ponto de
partida e um fechamento segundo aquele mesmo modelo tonal. No caso das
narrativas, uma narrativa clássica, por exemplo – com começo, meio e fim,
partindo de um ponto zero, indo a uma tensão máxima, e depois a um desfe-
cho –, você disse há tempo que ela imitava até o movimento do orgasmo em
sentido mais elementar: após uma tensão, chega-se a uma distensão. Até hoje,
as narrativas permanecem nesse algoritmo. Os escritores, então, começam a
tripudiar sobre ele: revirar, inverter, cortar, fragmentar, infinitizar.
Os músicos fazem mais isso por não dependerem da semântica. Depen-
dem apenas das possibilidades acústicas. E passaram por cima até da noção de
consonância. Isso sem falar na música oriental, que não tem escala diatônica.

[Segue bibliografia sobre música enviada por e-mail:]


a) Para quem puder, tecnicamente:
MENEZES, Flo. Música Maximalista: Ensaios sobre a Música Radical Espe-
culativa. São Paulo: UNESP, 2006. 548 p.
______. Apoteose de Schoenberg. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. 452 p.
b) Para leitura mais amena:
Alex ROSS. O Resto é Ruído: Escutando o Século XX. São Paulo: Cia das
Letras, 2009. 679p.
Outros:
MENEZES, Flo. A Acústica Musical em Palavras e Sons. São Paulo, Ateliê
Editorial, 2004.
______. Música Eletroacústica: História e Estéticas. São Paulo: EDUSP,
1996.
MOLES, Abraham. Les Musiques Expérimentales. Paris: Cercle d’Art
Contemporain, 1960.

65
MD Magno

SCHAEFFER, Pierre: Traité des Objets Musicaux. Paris: Seul, 1966.

7
Tratarei hoje de alguns temas corriqueiros em várias teorias, inclusive na
psicanálise, que merecem reconsideração no escopo da NovaMente.
Há, na psicologia, a velha ideia de Consciência de Si. Para esta nossa
espécie, só no desmaio e na morte não há consciência de si. Ela é apenas cons-
ciência – no sentido animal, do vivo, se quiserem – que toma consciência dessa
consciência. Quando uma consciência toma consciência de consciência, cha-
mam de consciência de si. Este é o caso das IdioFormações: tomar consciência
de si é emergência de Revirão. Digamos que, aí, passamos ao segundo grau
da consciência. Quero, então, propor que existem Três Graus de Consciência.
Há transas entre formações que não dependem de tipo algum de consciência.
É quando há transas que são puras reações entre formações, que não tomam
consciência de nada. Já usei o exemplo de um pedaço de ferro enferrujar ao
ser jogado ao ar livre. Existe aí uma transa de formações entre as moléculas do
ferro e o oxigênio, mas ninguém tomou consciência. Apenas a transa aconteceu
química ou fisicamente.
Ao entrarmos na área dos seres vivos, por mais primitivos, por mais
intermediários que sejam – como é o caso de um vírus, mais ou menos interme-
diário entre o orgânico e o vivo –, entramos no primeiro grau de consciência.
Acontecem transas do que, em psicologia, chamam “ato reflexo”. É um movi-
mento, dito reflexo, que contém estratégias de funcionamento e sobrevivência.
Essa consciência pode ser simplória ou complexa: do vírus ao unicelular, de uma
lesma até um mamífero. E mesmo de alguns robôs mais ou menos complexos

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MD Magno

não se pode dizer que não tenham consciência. São mais ou menos como um
animal. Passamos, pois, de mero ato reflexo para a consciência tout court e
chegamos ao segundo grau da consciência que apenas comparece nas IdioFor-
mações mediante a emergência de Revirão, como disse há pouco. Ou seja, por
replicação do processo por causa do Revirão, comparece a IdioFormação, que
é aquela que tem consciência de si. Isto significa que é uma formação que tem
consciência de ter consciência. Acontece que esse segundo grau de consciência
vem de cambulhada com a emergência do que chamamos de Inconsciente, que
não é senão a consciência em estado latente ou recalcado. Até hoje, não surgiu
robotização alguma com segundo grau de consciência, com consciência de si.
Os robôs assim como os animais ficam mais complexos e mais competentes e
até aprendem, mas isto não identifica uma IdioFormação. Não há aí consciência
de si, i.e., consciência de ter consciência. Este é o fenômeno emergente com o
segundo grau da consciência.
Por não terem conceitos como os exarados pela NovaMente, as psico-
logias, e mesmo a antiga psicanálise, não consideram o Revirão. Juntamente
com isso, não têm como considerar o que posso chamar de terceiro grau da
consciência que, como disse, vem de cambulhada com o Inconsciente. Esse
terceiro grau simplesmente significa que o Revirão pode ser retomado, pode
continuar a funcionar requisitado por processos IdioFormação que necessa-
riamente remetem à HiperDeterminação. Algebricamente falando, o terceiro
grau tem consciência de – escrito entre parênteses – (ter consciência de si). O
nome disto no jargão comum costuma ser: reflexão – e não “reflexo” como é o
primeiro grau. É o que podemos chamar: intelecto em funcionamento. Então, a
uma IdioFormação em pleno desenvolvimento não basta ter consciência de si.
É claro que o terceiro grau que chamo reflexão, intelecto ou consciência de (ter
consciência de si), é insistência e exercício do Revirão, pensamento em ação,
mas ocorre que, nem por ser uma IdioFormação, portanto com consciência de
si, ela estará em bom (e muito menos em pleno) exercício do terceiro grau. E
o pleno desenvolvimento de uma IdioFormação exige esse terceiro grau – o
qual é muito pouco desenvolvido na extensa maioria das pessoas. É tristonho,
mas infelizmente é verdade. Lidamos com seres da mesma nossa natureza,
todos IdioFormações – humanas, no caso – em relação de igualdade, e está

67
MD Magno

certo ser assim. Isto não quer dizer que estejamos lidando com pessoas que
colocam o terceiro grau da consciência em exercício. Começa aí certa minoria.
Infelizmente, repito.
Pensamento não é mera associação de ideias, mero juntar coisa com
coisa, e sim um processo – motivado por exercício de Revirão – de plena refle-
xão sobre o fato de ter consciência de si. Daí, nascem ciências, pensamentos,
etc. A psicanálise, sobretudo, vive ocupada com esse terceiro grau de considerar
o fato de ter consciência de si. Repetindo, estamos no regime do intelecto, da
reflexão, que pode crescer indefinida e infinitamente – até mesmo aos atos de
criação em qualquer área de criação possível.
Além de consciência de si, é preciso reconsiderar alguns conceitos em
exercício nas várias áreas do pensamento que tomaram a psicanálise no caso
de Lacan. Retomo, então, a ideia de significante, sobre a qual comecei a falar
em nosso encontro anterior. Quando foi fundado por Ferdinand de Saussure,
esse conceito era a ideia de um elemento qualquer – no caso da língua, pode
ser fonológico – pespegado a outro elemento, sendo cada um face da mesma
superfície. Portanto, em Saussure, não existe significante sem significado. A
composição é de um signo para quem possa lidar com uma língua. Lacan fez
um esforço de abstração – que acabou resultando no que Jean-Claude Milner
chamou de primeiro classicismo – com a suposição de um significante sem
qualidades. Ou seja, um significante que é só significante e que não faz mais
do que representar o sujeito para outro significante também sem qualidades.
Hoje, é possível reconhecer que significante sem qualidades simplesmente não
existe. Na presença de um falante, como Lacan chama, qualquer significante de
uma língua necessariamente, saussureanamente, encontra imediatamente seu
significado. Se não imediatamente, ele o procura ou lhe atribui algum, ainda
que seja pessoal (i.e., dependendo da história sintomática de cada um).
Além disso, qualquer significante, seja qual for sua constituição física,
uma vez percebido, requer significado, que o tal falante procurará encontrar
ou atribuir. Com esta frase, extrapolo a ideia de significante da língua e da
linguística. É para este ser, IdioFormação – e não necessariamente apenas
falante –, que o conceito deve ser ampliado. E requer seu funcionamento e
seu reconhecimento como funcional para todo e qualquer animal. Na língua, o

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MD Magno

significante é o que disse Saussure, mas ele comparece em todo e qualquer ser
vivo, sobretudo em animais complexos, independentemente de fala. Qualquer
Teoria da Informação não pode não reconhecer isto, uma vez que não é neces-
sário que o signo seja linguístico para ter efeito de significado. Mesmo para o
tal falante, há várias ou muitas formações efetivamente significantes que não
são propriamente linguísticas. O que quer que compareça diante de um animal,
que nem consciência de si tem, dependendo de seu repertório de informações,
funcionará como significante e propiciará uma estratégia qualquer. Daí certos
animais complexos terem a competência de aprendizado, ou seja, de juntar
significantes com significações. Só não sabem quem está fazendo aquilo. São
meros animais, não têm consciência de ter consciência daquilo.
Juntemos agora com os Três Graus de Consciência que apresentei.
Desde o primeiro grau de consciência, no nível simplesmente vivo, já há sig-
nificante com significado, ou demandando, ou inventando significado ad hoc.
Não é invenção no sentido da reflexão, e sim recurso ao repertório próprio
para dar alguma solução ao processo exercido no momento. Peço que prestem
atenção, pois trago pequenas modificações na abordagem dos conceitos que são
necessárias para incluir essas ideias no processo decorrente dos conceitos fun-
damentais da NovaMente. Temos também que pensar sobre alguém na posição
de analista, seja lá como for, que recebe um analisando. Ele se põe disponível
para a recepção daquilo que vem do analisando e à consideração mais indife-
renciante possível do que comparecer. Com quem ele está falando? Trata-se
do quê quando um analisando se expõe ao analista? Já lhes disse que não há
sujeito algum aí, e sim um polo com foco e com franja de muitas formações,
às vezes indo tão longe que ficamos sem acesso a suas inter-relações. Anti-
gamente, quando se denegava o Inconsciente, pelo menos no nível do social,
havia conceitos demasiado autoritários: “homem íntegro”, “mulher íntegra”,
“pessoa de caráter”... Um monte de bobagens que aí estava simplesmente por
ser da ordem do exercício do poder. Para dizer que uma pessoa se apresenta
como íntegra, é preciso que se tenha limitado seu design e exigir que caiba
nele. Mário de Andrade ao escrever Macunaíma (1928) não está apenas falando
do Brasil, está falando de gente. Macunaíma, como todos nós, é um herói sem
nenhum caráter, sem nenhuma integridade ou integralidade.

69
MD Magno

Com quem estamos falando? Quem estamos considerando com nossas


formações em transa com as da outra pessoa? Tiro outros conceitos, e agora
crio o conceito de aglomerado. Estamos falando com um aglomerado, que
não é necessariamente coerente e muito menos íntegro. Se isto não for levado
em consideração, faremos muita bobagem. Sobretudo porque, sem exercício
da análise, as pessoas são inteiramente incongruentes. Em certa região, podem
ser gênios, em outra, uns babacas – sabichões numa, pilantras noutra. Então,
como arrumar as formações em jogo numa pessoa, numa IdioFormação? Como
as considerar já que não têm integração alguma? Não existe construção carac-
terológica de fato como a psicologia tenta discernir. Cada caso é um caso.
Como considerar as formações todas que comparecem? E mais, considerá-las
no sentido de que as formações do chamado analisando possam transar umas
com as outras e, aí sim, procurar um mínimo de integração? Quero supor que
uma análise bem realizada junta os cacos, ou pelo menos arruma o polo. Mesmo
com foco e com certas franjas, dá a essas formações condição de transa entre
elas de maneira a sair dali um reconhecimento de formação polar.
Se as pessoas são cacos, são aglomerados, como fazer para que os cacos
conversem uns com os outros? Tanto isso é verdade que existe o fenômeno
chamado dupla personalidade ou mesmo múltipla personalidade. Existem for-
mações capazes de arrolar várias formações deixando outras de fora, e a pessoa
é esse monte de cacos. Assim como, na clínica de um caso de dupla ou múltipla
personalidade, há que fazer com que essas “personalidades” – personalidade é
um conceito da psicologia – conversem entre si, ou seja, que essas formações se
considerem de maneira reflexiva, mesmo que não compareça dupla ou múltipla
personalidade, em cada caso já estamos em caso de múltipla personalidade.
As pessoas não conseguem ser inteiras, são um monte de cacos. Então, como
disse, o mais frequente é a pessoa ser brilhante de um lado, e imbecil de outro.
Vejam que mexi em três pequenos conceitos que possam se arrumar no campo
da NovaMente: Significante, Consciência de si e Pessoa como aglomerado de
formações.
• P – Então, dada sua franja, uma pessoa já tem múltiplas personali-
dades que frequentemente não conversam. As pessoas são cacos, aglomerados.
As formações não conversam em função de algum recalque?

70
MD Magno

Às vezes, nem é diretamente caso de recalque. As formações foram


fundadas em isolamento. No processo de fundação dessas formações não foi
cultivado momento algum de transa entre elas. Enfiam-se troços nas cabeças das
crianças, depois enfiam-se outros troços sem comparecimento do que chamei de
terceiro grau da consciência. Ou seja, sem reflexão, que é transa de formações.
Observem as pessoas, sobretudo os analisandos que estão mais disponíveis para
nosso entendimento, e verão o quanto são aglomerados, não juntam os cacos.
A meu ver, uma das funções da psicanálise é juntar os cacos, fazer com que as
formações conversem umas com as outras. O mais banal, repito, é uma pessoa
ser brilhante em lógica e matemática e ser cheia de preconceitos na área afetiva
ou sexual. Por quê? Onde estão a lógica e a matemática nesse lado? Elas são
um recanto cerceado da mente que impede a pessoa de exercer a funcionali-
dade da área em que supõe pensar no restante das formações de sua vida e de
seu mundo. Por isso, vivemos nesta zona, neste planeta dos macacos. Já uma
pessoa com exercício intensivo de análise toma suas formações e as coloca para
transar umas com as outras, e pode, então, se perguntar: Por que isso? Por que
aquilo? Por que penso em álgebra por um lado e, por outro, raciocino como um
animal? Eis uma questão grave do processo mental. Basta tomar o exemplo de
filósofos que votaram em partidos extremistas.
• P – Heidegger não apoiou o nazismo?
A psicanálise não tem condição de aceitar esse tipo de transa. Como
alguém pode ser tão partido assim? Há algo patológico aí. Já lhes contei que,
quando jovem, fiz uma palestra em que apresentei a ideia de Artifício como
superior a qualquer Formação Espontânea. Uma moça psicóloga – naturalmente
– lá presente me disse que eu não estava considerando o que era natural, que
devíamos viver de acordo com a natureza. Pedi-lhe que se levantasse e perguntei
por que ela estava vestida. Roupa não é algo natural. São cacos das pessoas,
que não juntam as ideias. Até onde sabemos, natureza não veste roupa. O mais
comum é a fragmentação nas pessoas.
• Aristides Alonso – Em 2000, você falou sobre a consciência de si e
a HiperDeterminação. Mencionou que Daniel Dennett achava que era possí-
vel pensar num computador, num robô, que tivesse consciência de si e listava
três máquinas: de Turing, de Von Neumann, e a Joyceana. Esta referida à

71
MD Magno

capacidade combinatória de, por via computacional, intervir nas composições


linguísticas e produzir sentido novo. Na época, você disse que essas três máqui-
nas ainda eram muito pouco. Era preciso mais uma, a máquina de MD, dotada
de consciência em Revirão e capaz de ser afetada pela HiperDeterminação.
Agora, você separa em três graus essa consciência que, lá, você apresentou
em forma de tetraedro. O terceiro grau que você traz hoje é a inclusão do
entendimento dessa consciência de si, reflexiva, como capaz de ser afetada por
HiperDeterminação e produzir sentido novo. Trago isso porque me parece que
a inteligência artificial também está nesse afã.
Uma máquina pode jogar xadrez por estar sobredeterminada. Ela é,
então, mais veloz do que um jogador humano. O que não vejo é o caso de
alguma verdadeira reflexão aí. Não há HiperDeterminação e Reviramento.
• AA – Por exemplo, querer abandonar o jogo...
Por exemplo, de ficar de saco cheio e ir embora.
• AA – Ou seja, não é capaz de perplexidade.
Não tem Pensamento Perplexo.
• AA – É só complexo.
Sim. Quando tomo consciência de mim, fico perplexo e me estranho.
Imediatamente, sofro um grande estranhamento. Só pulando fora é que alguém
consegue se rearrumar. Como alguma pessoa pode ser eu? Fernando Pessoa, na
Tabacaria, dizia: “Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu”.
• Patrícia Netto Coelho – O que você trouxe sobre o significante já está
indicado em 2008 (AdRem), por exemplo: há signo (Significante/significado)
entre os seres vivos. Neles, a transa é regrada primariamente, etologicamente,
com toda plasticidade que pode ter, mas aquilo é restrito.
Pode ser complexo, mas é etossomático.
• PNC – Ao falar em segundo e terceiro graus de consciência, a relação
Significante/significado ganha uma complexidade que acho que é o que você,
antes, na Est’Ética da Psicanálise (1989), chamou de Gnomo. É a possibilidade
de os três termos – Significante, significado e Gnomo (S/s/G) – serem afetados
pela HiperDeterminação. A introdução do Gnomo seria, no mínimo, a ideia
de um Inconsciente que, hoje, você teve o cuidado de colocar como recalcado

72
MD Magno

e, no máximo, a possibilidade de HiperDeterminação nesse jogo entre Signi-


ficante e significado?
Portanto, possibilidade de deslizamento e, portanto ainda, de reflexão.
Por que posso hoje tomar a palavra significante e deslizar com ela? Porque,
para mim, o significante não é o regente de uma neurose, e sim apenas um
termo. Ao virar lacaniano, o significante é regente de uma neurose. Ao virar só
saussureano, também. Mas ele pode deslizar à vontade reflexivamente.
• PNC – Em Lacan, ele desliza metonimicamente.
É o que Lacan diz. Deslizará para onde se é sem qualidades? A letra,
esta sim, pode deslizar. Sempre que Lacan co-move o significante, ele deixa
de ser significante, passa a ser letra, tem sintoma. Ou seja, imediatamente vira
Saussure. O significante sem qualidades deslizaria para outra falta de qualida-
des? Porra nenhuma que representa nada para porra nenhuma... Jean-Claude
Milner mostra muito bem esse processo. Não há que criticar Lacan quanto a
isso, pois ele estava fazendo grande esforço de abstração. Mas...
• AA – O ganho, na época, relativo aos estudos de linguística, de semi-
ótica, etc., foi Lacan mostrar de que modo o signo ia se despegando da ordem
de um significado fixado e deslizava para outros significados em sequência. Ele
dizia que uma palavra pode significar qualquer coisa desde que haja tempo
para a produção de outro significado.
Mas isso é Saussure, que não diz que o significante tem apenas um
significado. O que ele quis dizer é: uma vez posto um significante, algum signi-
ficado aparecerá. Não há o “sem qualidades”. Lacan, ao falar em deslizamento
do significado, está se referindo ao significante de Saussure, e não ao dele, que
não tem qualidades. Pergunto de novo: deslizará para onde? Ou não desliza para
lugar algum, ou só desliza o tempo todo, não tem parada de espécie alguma.
Logo, não significa nada.
• AA – O primeiro grau de consciência que você apresentou fica bas-
tante conhecido nos estudos de língua, de linguagem e de gramática. Já, pas-
sando para o segundo e o terceiro, como seria esse acoplamento ao significado
sofrendo um violento processo de HiperDeterminação com relação à ordem
imposta por certo conjunto de signos, por certos significantes?

73
MD Magno

É Joyce. E tudo com significação. Minha questão é: nada comparece


fora do sintoma.
• P – Joyce faz um exercício de indiferenciação?
Joyce exercita a dissolução do sintoma. Já disse várias vezes que ele
quer cair fora de dois sintomas graves que o perseguem: a história e a lín-
gua. No que faz isso, provoca sintomas nos outros. É, aliás, o mesmo que faz
Mallarmé com seu Cudedado, como traduzo, que incitou o pessoal aqui a criar
a poesia concreta. Faz sentido chamar assim por estar escapando da vontade
de significação da outra poesia. O pessoal da música busca fazer o mesmo e
chama de música concreta, que não existe, pois música instrumental abstraída
não tem semântica a ser concretizada. A música concreta não é uma bobagem,
embora o nome seja. O nome serve para a literatura, e não para a música. A não
ser que façam uma ópera concreta... Ninguém fez ainda. As óperas, mesmo as
dodecafônicas, têm libreto, história.
• PNC – O mesmo ocorreria em relação ao L’Étourdit, de Lacan?
Comparado com Finnegans Wake, de Joyce, L’Étourdit é simplíssimo,
de uma clareza impressionante. Ele é rebarbativo, não entendo por que ficam
assustados com esse texto. Já disse que é uma espécie de narrativa de sua pró-
pria análise. Portanto, resumo de seu curso: Le Tour Dit. A quem quiser ler a
obra de Lacan, basta ler L’Étourdit. É o resumo da ópera, o libreto. É possível
chamar Schoenberg para fazer uma ópera intitulada L’Étourdit. Ou, se não,
música eletrônica...
Mas o único exercício possível – e que constitui o exercício mais impor-
tante do psicanalista – é um processo de indiferenciação. Só processo, pois
só tangencialmente consegue-se indiferenciar. É neste ponto que me valho de
Meister Eckhart para mostrar como ele pensou isso com clareza. Processo de
indiferenciação é possível, mas é processo. Não se pode fingir que está indife-
renciado. Exercita-se a indiferenciação o mais que puder. Aquele que a exercita
está querendo chegar onde Lacan pensa que começou. Ele quer um significante
sem qualidades. Não lhe acontecerá simplesmente porque isso só é possível lá
nos primórdios do Haver, quando ele é homogêneo. Nós outros, por processo
de reviramento, de abstração, de reflexão, a cada momento, podemos fazer o
exercício de indiferenciar diante do analisando. E, se não for assim, estaremos

74
MD Magno

projetando nele. Se considerarmos a fundo, veremos que Lacan começou pela


tentativa de indiferença. Ele teve uma sacação importante e a reação maior a
ela foi a Filosofia da Diferença – Deleuze, por exemplo, para quem só há dife-
rença. Quanto a mim, estou dizendo uma terceira coisa: indiferença impossível,
indiferenciação permanente – exercício.
• P – Não haveria algo rentável, alguma vantagem, na falta de inte-
gridade entre as formações da pessoa? No sem-caráter de Macunaíma, por
exemplo?
Se as pessoas funcionam assim é porque economicamente lhes inte-
ressa. Uma pessoa pensante em alguma região possível de pensar e que tem
uma região sintomática braba, preconceituosa, que não consegue dissolver,
está fazendo um negócio: ter uma zona de conforto, um lugar em que não
mexe em seus males. É, aliás, o que a maioria faz. Com Macunaíma, Mário
está mostrando, para além do brasileiro, que as pessoas são fragmentos. A aná-
lise deveria culminar num processo de transa dessas formações umas com as
outras. A pessoa, então, deixaria de ser um monte de cacos e passaria a ser uma
conversa entre eles. Macunaíma é: os cacos. Não vejo vantagem alguma nisso.
Heidegger foi citado há pouco: um excelente poeta, alguém que pensa estar
fazendo referência ao pensamento de Eckhart – e se inscreve no partido nazista.
Com qual dos dois conversamos? Mário não estava elogiando Macunaíma, e
sim mostrando o que é bem brasileiro. Estava tirando a roupa de Macunaíma em
público, o qual, aliás, se transforma numa constelação. Constelação é, sobretudo,
fake, produzida por nossa visão de determinada posição estelar. Somos nós que
as arrumamos visualmente, é algo plástico, projetivo. As estrelas estão pouco
se lixando umas para as outras.
• AA – Parece-me que a última grande porrada que a filosofia levou
foi com o surgimento da cibernética. Lacan começa por ela, como vemos no
Seminário II (1954-55), mas sai e vai pela vertente linguística. A cibernética
lembra a Teoria das Formações: não há sujeito, só há sistemas, programações,
máquinas acopladas a máquinas e interação entre elas. Há, também, desde
Turing, a possibilidade de uma máquina que pensa. Então, o que a NovaMente
explicitamente afirma sobre a IdioFormação e a consciência de si reflexiva,
em Revirão, não há na psicanálise pregressa. Acho que são ideias fundantes

75
MD Magno

do pensamento sobre o Quarto Império. A guerra que veremos ocorrer com


veemência será entre o pessoal Progressivo e o Estacionário quanto à implan-
tação disso. Em 2002, você falou sobre um Novo Racismo contra as máquinas
pensantes...
Máquinas pensantes somos nós.

8
Conversarei hoje sobre o destacamento e a precisão de alguns conceitos da
NovaMente. Às vezes, me parece que não ficaram bem entendidos ou que,
mesmo bem entendidos, alguns se esqueceram de sua aplicação. Ao operar
mediante uma teoria, são os elementos, os conceitos, as formulações dessa
teoria que devem ser aplicados a cada caso, sobre cada questão ou cada
problema. Do contrário, quando se deixa misturar com conceitos exteriores,
tudo fica confuso. Toda teoria é assim.
Da vez anterior, trouxe uma ideia nova, que posso mesmo conside-
rar um novo conceito: Aglomerado. Quis mostrar que, diante de uma Pes-
soa qualquer, ou diante de um fato qualquer – histórico, literário, etc. –, não
podemos contar com alguma radical coerência. Sobretudo, quanto às pessoas.
Basta prestar atenção às manifestações de um analisando para ver que ele é um
monte de cacos. Muito frequentemente, as formações não têm coerência alguma
necessária com as outras formações. Um dos sentidos e um dos interesses da
psicanálise seria, no processo analítico, propiciar que a pessoa fizesse com
que as formações conversassem umas com as outras para ter um mínimo de
coerência e de entendimento de como foram construídas essas formações. Isso
diz respeito a qualquer produção humana não só de um analisando. Daí eu falar

76
MD Magno

em Clínica Geral, em considerar os aglomerados em termos de Clínica Geral.


O objetivo hoje é, então, retomar alguns conceitos da NovaMente e mesmo
alguns com os mesmos termos usados em outras teorias, inclusive psicanalíticas.
Dou agora um exemplo de aglomerado que me ocorreu, e que mostra
a necessidade de o considerarmos como tal. Fizeram-me uma pergunta sobre a
citação de René Guénon que fiz no Seminário Velut Luna: A Clínica Geral da
Nova Psicanálise (1994). Eu o citei no sentido de que, em sua leitura do pen-
samento oriental, ele chama atenção para que, mesmo havendo uma distinção
clara entre o pensamento Zen de Lao-Tsé e o pensamento governamental de
Confúcio, ambos fazem referência ao Tao. Na ocasião, achei importante – e
ainda acho hoje – esse raciocínio por mostrar que esses dois pensamentos do
Oriente têm referência ao Nada a que, assim como em psicanálise, se resume
o Tao. A meu ver, ambos têm a mesma regência. Guénon mostra que um se
encaminha para o pensamento reflexivo e o outro para o pensamento de governo,
de Estado. Já citei aqui alguns autores que acham que o que há de interessante
no comportamento mental da China é parecer que os chineses, em sua vida
privada, usam a referência a Lao-Tsé, ao Tao, ao Zen e, em sua vida pública,
a referência a Confúcio. É um raciocínio interessante, de grande inteligência:
dois comportamentos necessariamente diferentes. E no nível do governo, da
administração, é preciso alguma regragem para a convivência das pessoas, dos
comportamentos...
Foi exatamente isso que me levou a citar René Guénon na ocasião.
Aí me perguntaram sobre o fato de ele ter sido considerado o pai do Tradi-
cionalismo, o grande conservador, o pai dos Regressivos... Como estaria eu o
tomando como exemplo? René Guénon é o nome do autor. Está aí um exemplo
nítido de caso de aplicação do conceito de aglomerado. Uma pessoa pode ter
obras fracionárias, ou fracionadas, é o que mais acontece. Freud era o pai da
psicanálise – e vocês viram no que deu: supostas descendências completa-
mente abstrusas. O fato de Guénon ser conservador e ser tomado por esses,
que suponho idiotas, do pensamento Regressivo Tradicionalista nada tem a ver
com o que pensou sobre o Tao e o Confucionismo. Ele pensou direito, e não
tem importância se há, nele, outros pensamentos passíveis de serem tomados
de maneiras as mais obtusas. Mesmo porque ele não tem necessariamente

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coerência total. Ninguém, autor algum tem. É muito difícil conseguir construir
um sistema de pensamento inteiramente coerente – é quase impossível. Imagi-
nem um cirurgião diante de alguém com grave processo de apendicite, no qual
tem que realizar uma apendicectomia. Retirará ele todos os órgãos? O que me
consta é que retirará apenas o apêndice que apodreceu, e não o resto. Eis algo
que está nas obras e também nos analisandos. Qual órgão está podre? Não é o
analisando inteiro que está podre. Há que fazer a cirurgia no lugar certo.
Isso é a Teoria das Formações, e é o conceito de aglomerado. Ao
pensarmos em termos da Teoria das Formações, não é possível arrolar todo
um conjunto de acontecimentos de formação como se fossem um pacote só e
coerente em todas as suas situações. Isso não existe. Quem dera existisse! É
preciso muita análise para lentamente produzirmos um processo de coerência
com nossas formações. Em qualquer filosofia, em qualquer filósofo, qualquer
pensador – mesmo no campo da ciência –, que tomarmos, teremos sempre
que observar quais formações frequentemente são díspares daquelas que são
apresentadas como fundamentais. Da outra vez, disse que Heidegger, a meu
ver, foi excelente poeta e pensador, mas entrou para o partido nazista... Ou seja,
Heidegger não era inteiro. Já que falei no partido nazista, que tal pensarmos
no nazismo alemão, em Adolf Hitler e seus comparsas? Os aliados, ao destru-
írem aquela situação, não foram estúpidos a ponto de não usar os engenheiros
de Hitler. Sem Wernher von Braun e sua equipe ter ido para a América, não
haveria viagem à lua. Ou seja, se idiotamente achar que todo o nazismo está
podre, serei – um idiota. Nada impede que existam formações que interessam
dentro de um péssimo pensamento. Não é do pensamento da psicanálise ter a
atitude de anatemizar completamente uma situação como se fosse inteira. Ela
não o é. É, sim, um conjunto de formações em estado de aglomeração. Com
isso, respondo à questão sobre ter citado René Guénon – e, a propósito, deve
também ser considerado como as pessoas tomaram o que ele disse. Certamente,
não posso acreditar que, com o pensamento um pouco refinado como é o seu,
ele fosse realmente ser pai dos Tradicionalistas. Não me parece possível.
Assim, diante de qualquer filósofo, de qualquer pensador, de qualquer
situação de país, de Estado, não busquem coerência, nem mesmo no Primário.
Já lhes apontei que, em termos do Primário desta nossa espécie, o Etossoma

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não tem obrigação alguma de corresponder ao Autossoma. É um engano


daqueles que não sabem lidar com esses problemas mais difíceis da relação da
sexualidade com a anatomia. Há pessoas que, no nível Primário, do Autossoma,
são anatomicamente de um sexo e que, no nível Primário, do Etossoma, recla-
mam outro sexo. Não quer isto dizer que sempre que nos depararmos com um
transexual, por exemplo, seja um problema Primário. É preciso prestar atenção
porque o estranhamento pode vir também por via Secundária. Esta é a diferença
entre a postura da Teoria das Formações e a das teorias anteriores. Trata-se de
considerar formações e transas entre formações sem exigência de coerência de
uma formação com outra, pois, mais frequentemente, não há.
Por causa dessa questão de aplicação dos conceitos da teoria, quero
hoje reapontar certas coisas. Por exemplo, o conceito de Falo no pensamento
de Lacan. Phallus, em latim, e Phallós, em grego, são o nome do Tesão. Se ele
se apresenta com facilidade visual no pênis ereto e com mais dificuldade visual
no clitóris, não quer isto dizer que sejam coisas diferentes, são o mesmo tesão.
Algumas mulheres, aliás, sabem mostrar isso com grandeza e com a mesma
clareza. Portanto, em termos de NovaMente, Falo é: Alei (Haver desejo de
não-Haver). Desde Freud, o falo está situado como representação do desejo e
representação da castração, tal qual está escrito n’Alei – a qual, repito, é: Haver
desejo de não-Haver. E o que é isso?: Tesão. Qual é o resultado?: Castração
(porque o não-Haver não há). Então, Falo é Alei, e não é preciso invocar sig-
nificante algum.
Outra coisa engraçada que está em Freud desde o começo, e que deve-
mos abandonar, é a oposição entre pulsão sexual e pulsão de autoconservação.
Para a NovaMente, não há essa oposição. Só existe uma Pulsão que é sexual
e corresponde à Alei e, portanto, ao Falo, que é: Haver desejo de não-Haver.
Autoconservação, renitência do ego, é: resistência das formações. Sobretudo, se
tomarmos como esclarecimento o conceito de Conatus, de Espinosa. Só há uma
Pulsão, mas as formações, por serem formações, resistem a serem dissolvidas
no movimento da Pulsão. Uma coisa é a Pulsão Sexual, que é uma só, outra,
é sua aderência a formações parciais. Ao falar em pulsão parcial, Freud está
falando de algo que não existe. O que existe é aderência da pulsão a formações
parciais – que podem, portanto, mostrar tesão localizado. Outro conceito de

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Freud é aquele denominado Spaltung, que Lacan traduz por Clivagem. Ele
não é senão a Bifididade. Em qualquer texto de Freud que tomarmos, reitera-
damente encontraremos indicações de Bifididade, de virada ao contrário em
todos os sentidos. Se há significante, ou formação de base, ela é sempre bífida.
Portanto, não é questão de clivagem, e sim de que o mais frequentemente as
pessoas oscilam quanto à Bifididade de suas formações.
Vejam que esses pontos levantados trazem uma mudança de olhar, de
recepção e de postura em relação, pelo menos, a outros pensamentos: filosofia,
psicologia, etc. Não podemos recusar formação alguma em bloco. Qualquer for-
mação é composta de formações. Se recusamos em bloco, jogamos fora o bebê
junto com a água do banho. Alguém disse um monte de asneiras, mas também
disse alguma coisa brilhante. O que fazer com isso? Aproveitar o aproveitável.
• Potiguara M Silveira Jr – Isso é compatível com o terceiro nível de
consciência que você colocou da vez anterior: considerar as formações em
suas transas de onde quer que venham. Vejo professores, intelectuais, dizerem
que se recusam a ler certos autores por terem posições diferentes...
A universidade é primorosa em matéria de eliminar autores, ao invés
de perguntar sobre o que estão pensando. Toma-se doentemente partido de um
autor, e o resto não presta. Eis algo que morreu com o Terceiro Império.
• PMSJr – Podemos também pensar sobre uma Política que conside-
rasse esses três níveis de existência das pessoas...
Como entender a política chinesa? Vamos jogar fora? Vamos querer
entender mediante os parâmetros do Ocidente? Jamais entenderemos. Já lhes
disse que detesto a Igreja Católica, o que não me impede de considerar que, no
Ocidente, ela inventou para si a melhor forma de governo. Há, nela, todo um
longo preparo da sua aristocracia para o exercício do governo.
• Aristides Alonso – A ideia de aglomerado – que já está em sua con-
cepção de Pessoa, desse polo de formações que abrange todo tipo de coisa
– exige de nós uma postura inédita na consideração de qualquer formação.
Não é uma postura inédita. Já está em Freud com o nome de escuta
flutuante. É o que chamei de Indiferenciação. A escuta analítica foi inventada
nesse sentido. É novidade apenas fora da psicanálise.

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Outro conceito que reaponto é o de Real. Freud não fala muito em Real, e
sim em realidade. Sobretudo, em realidade psíquica. Lacan comparece com
a ideia de Real como aquilo que não foi simbolizado. No teorema da Nova-
Mente, o Real também é impossível, tal como diz Lacan. Entretanto, o que
há de especificamente Real é o não-Haver – este é o Impossível Absoluto.
Dentro das formações do Haver o que comparece como repercussões do Real
são realidades. Elas são formações do Haver que, como chamei, são even-
tualmente impossíveis modais, pois queremos dar conta dessas realidades e
damos conta mais ou menos. O de que falta dar conta é do caroço, do núcleo
duro da repercussão do Real nas realidades. E Freud, ao falar em realidade
psíquica, dá concretude ao que acontece na mente humana.
Lacan aproveitou seu conceito de Real – aquilo que, não tendo sido
simbolizado, recai na impossibilidade como Real – e, no sentido de uma coe-
rência teórica (não foi à toa que o fez), criou na psicanálise que desenvolvia
o conceito de foraclusão de um significante. Isto, para responsabilizar esse
acontecimento pela causação da psicose. Ele chega a dizer que interessante não
é haver psicóticos, e sim que a pergunta é: por que não somos todos psicóticos?
É uma pergunta incoerente com seu conceito de foraclusão, pois é enorme a
quantidade de coisas que não cabem no simbólico. Então, somos todos malucos?
Não é bem uma foraclusão, e sim uma enorme quantidade de acontecimentos
reais, como ele chama, que não cabem no simbólico. Tanto é que a ciência
tem o tempo todo que fazer correções. Ultimamente, aliás, está fazendo várias.
Sobretudo, em ciências duras como a física. Dentro de dez anos, a física velha
irá para o lixo, estamos em plena mutação. Se, então, a questão é estrutural,
cada funcionamento psíquico precisa ter sua própria estrutura. Daí ele apontar
para o que chamam de neurose – que chamo de Morfose Estacionária – uma
consequência de recalque. E, ao tratar da psicose, se ela não é neurose, tem que
ter outra estrutura. Já lhes disse que ele faz um seminário sobre As Psicoses

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(1955-56) que, quando li, achei excelente até a metade. Daí para o fim, já na
época, comecei a ficar desconfiado de que havia uma forçação. Assim, por
entender que tem que achar uma estrutura para a psicose, inventa a tal foraclu-
são, a qual, a meu ver, não existe. Observem que é foraclusão do significante
do Nome do Pai – algo que parece católico. Do mesmo modo, tentará incluir
outra estrutura – completamente diferente – para o que chama de perversão.
Ele continua usando esse termo indecente, que é jurídico e policial, e que por
isso não nos interessa. Lacan, portanto, inventa três estruturas.
Como não sou estruturalista, parto do princípio freudiano de que
tudo depende de funcionamento de Recalque. Por isso, digo que o que existe
é Morfose Estacionária (funcionamento de recalque), Morfose Progressiva
(suspensão de recalque), e, sim, Morfose Regressiva (HiperRecalque, recalque
extremamente forçado). Pensem bem, se não entrou o Simbólico, a suposição
é de que não houve inscrição – a não ser que tenha havido inscrição puramente
perceptiva ou sensitiva –, mas, então, por que comparece como delírio ou
como alucinação? Só pode ser porque – como disse Freud – não há foraclu-
são. Em lugar algum Freud fala em foraclusão. Vejam o que está no texto do
“Homem dos Lobos” [História de uma Neurose Infantil (1918 [1914])], cap.
VII: ‘Erotismo anal e complexo da castração’, que, como sabem, foi de onde
Lacan supôs estar tirando sua ideia de foraclusão. Diz Freud: “Já conhecemos
a atitude inicial do paciente para com o problema da castração. Ele a rejeitou e
permaneceu no ponto de vista da transa sexual pelo ânus”. Pelo que me consta,
qualquer ser humano, qualquer IdioFormação aqui de nosso caso, pelo menos
do sexo dito masculino, macho, imagina na infância que era pelo cu por não
encontrar outro lugar na própria anatomia. Talvez as meninas, como foi indicado
por algumas autoras, tenham dúvida quanto a isso. É um caso de feminismo:
parecem, desde crianças, saber que têm dois buraquinhos. Freud sempre pegou
pelo lado dos meninos. É claro que estes podem imaginar, como aliás declarou
Artaud literalmente, que nasceram pelo buraco do cu.
Continuando, diz Freud: “Ao dizer que a rejeitou” – que houvesse
um sexo fêmeo (e é mesmo forçado Freud dizer que rejeitou, pois o menino
não tomou noção, não tinha ciência disso, só-depois é que o fará: ele não
tinha como saber, sobretudo quanto à sua própria anatomia) –, “o significado

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imediato da expressão é que não quis saber dela, no sentido de que a recal-
cou” (grifo nosso). Já aí está mostrado que se trata de puro recalque. Não é
que tomou aquilo e jogou no Real, ou não inscreveu o significante, e sim que
imediatamente registrou e recalcou. “Com isso não se pronunciava um juízo
sobre sua existência, mas era como se não existisse”. É óbvio, se nunca viu,
logo não existe... ainda. Lacan se aproveita desse pedacinho, desse deslize
da língua, para dizer que houve foraclusão do Nome do Pai e ficar bem com
o estruturalismo. Como sabem, foraclusão é um conceito jurídico. Em portu-
guês, não se usa o termo. Em francês, dois nomes são usados para o mesmo
conceito: forclusion – que, em português correto é foraclusão: ficar fechado
fora – e préclusion, i.e., o elemento que precisava ter entrado no processo
jurídico para ser considerado não entrou a tempo, ficou fora. No Brasil, usa-se
o termo preclusão: o juiz exige certo documento para o julgamento, o qual não
foi entregue pelo advogado no prazo dado. Ele é entregue depois, e é rejeitado
pelo juiz. Assim, o juiz, o advogado e o réu estão sabendo desse documento, só
que ele foi proibido de entrar no processo. Então, cadê a foraclusão? É, pois,
uma questão puramente normativa da ordem jurídica. Repito, não há foraclusão
alguma no caso de Freud.
Continuo citando: “Mas essa posição não podia ser a definitiva, nem
mesmo no período de sua neurose infantil” – no caso do homem dos lobos era
o que Freud chamava de neurose obsessiva. “Depois se encontram boas provas
de que ele havia reconhecido a castração como um fato”. Freud está dizendo
que o processo é: primeiro, a criança não fazer noção de que havia outra for-
mação sexual – ela era sem noção; segundo, ela reconhecer a tempo que isso
existe e, no entanto, recalcar (por motivos óbvios no caso: o tesão do homem
dos lobos era ser enrabado pelo pai). No entanto, ao mesmo tempo – e aí entra
o HiperRecalque – lhe era insuportável o mesmo problema que aconteceu a
Schreber: não é possível aceitar virar mulher, com sempre viu sua mãe. É algo
inaceitável. Schreber pensou de outra maneira: se terei que transar com o pai,
só virando mulher. Aí, começa a virar: nascem tetas, etc. O homem dos lobos é
diferente: não admite perder o pênis. Então, toma uma multidão de elementos
de sua história para construir um HiperRecalque sobre a castração. Monta um
recalque vigoroso a partir da rejeição absoluta de tirar o pênis (coisa que achava

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necessária para virar mulher) e ao mesmo tempo querer ser mulher. Queria
simultaneamente as duas coisas como bom obsessivo pregresso: fica pulando
de um lado para outro – e Freud parece não se dar conta disso. Ou seja, foraclu-
são zero. O conceito que está valendo na situação é o de HiperRecalque: uma
pletora de formações recalcando, proibindo, a manifestação de uma formação.
Peço agora desculpas ao chamado Gregory Bateson que, em sua teoria
lá em Palo Alto, decidiu que a psicose era resultante de double bind, de uma
ligação dupla e contraditória. Sempre achei que double bind tem efeitos terrí-
veis, que já encontrei na história familiar de muitos analisandos, mas descon-
fiava de que ela talvez não fosse possível de criar a psicose. Hoje, desdigo-me:
é bem provável que double bind tenha vários efeitos em razão das diversas
situações que pode criar. Situações de dificuldade de distinção que deixam os
analisandos em tal indecidibilidade que passam muito mal. Pergunto-me, então:
que tipo de HiperRecalque aconteceu com o homem dos lobos? Suponho que
tenha sido no nível de double bind. O que nele está em conflito são duas forças
iguais e opostas em sentido contrário: desejo disso e impossibilidade disso.

O desenho acima é uma das maneiras de se representar um HiperRecal-


que: há uma formação e um monte de formações a impedindo de se manifestar,
pressionando para que não se manifeste. Mas há também o outro caso:

Duas forças opostas de mesmo valor em sentido contrário fazem a


mesma paralisia que ocorre no outro caso. No recalque comum são várias as

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forças pressionando. Mas não é tanta força, tanta formação – como vemos no
caso do homem dos lobos –, envolvida na paralisação da mente. É double bind.
Lacan diz: não apareceu no Simbólico, cai no Real. Cai no Real? Como
uma coisa cai no Real? Segundo disse Freud, há que estar inscrito em algum
lugar, e de algum modo, para poder surgir driblando o recalque como retorno
do recalcado, ou mesmo driblando o HiperRecalque produzindo uma aluci-
nação com um elemento que está inscrito. Como a pressão é tanta, ele não
comparece nem como retorno do recalcado na fala. E por que comparece como
alucinação? Vocês já tiveram sonhos extremamente reais? Em que acordam
impressionados com sua extrema realidade? Uma alucinação é isso, só que
a pessoa está acordada: a realidade psíquica sonha acordada. A pessoa está
acordada, mas está vendo uma coisa como se estivesse sonhando. Portanto, não
há foraclusão alguma, e sim que o retorno do HiperRecalcado é hiper repre-
sentado como alucinação. Freud diz que a coisa reaparece como projeção. Na
história da psicanálise, esse termo foi muito criticado, pois achavam que tinha
outro sentido. Freud nos diz que a pessoa projeta essa imagem de algum modo
segundo uma imaginação de força compatível com o HiperRecalque. Repetindo,
é igual aos sonhos de extrema realidade, mas que comparecem com a pessoa
em vigília. É o mesmo fenômeno. As ciências do cérebro que esclareçam isso.
Estou aventando a hipótese de que uma alucinação é o mesmo fenômeno de
um sonho realístico que comparece com a pessoa em vigília.
Vejam que fiz faxina em alguns conceitos para aplicarmos com mais
rigor em nossas considerações. E não deixem de reler O Homem dos Lobos.
• Patrícia Netto Coelho – Seu conceito de Real também é impossível.
Entendi como uma ressalva você dizer hoje que o Impossível Absoluto é o
não-Haver. De que impossível que se trata quando você fala do Real? É o
Impossível Absoluto? Ao mesmo tempo, você diz que Real é a Bifididade. A
Bifididade é impossível?
É impossível darmos conta da compleição das formações. Chamei de
impossível modal por ser impossível... por enquanto. Por isso, a ciência tem
progresso: esbarra em certo impossível, diz dele o que pode, no entanto, se o
desejo insiste, esse impossível muda de regime, de grau e a ciência progride

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– e continua lidando com o impossível modal. Já a Bifididade é o Real que


comparece no Secundário como reverberação do Real Absoluto.
• AA – O conceito de Real é fundamental para a NovaMente. Sempre
entendi que o Real, tal qual você o coloca, seria o próprio Haver...
O Haver não é absolutamente impossível de ser abordado. O não-Ha-
ver, este, é que é absolutamente impossível de ser abordado. Podemos abordar
as formações do Haver. Por isso, por ter possibilidade de progresso, falo em
impossível modal. Lá atrás, pode-se inventar que uma situação qualquer ocorreu
pelo desígnio dos deuses que empurravam os astros. Depois, pode-se perceber
a existência de uma força chamada gravitacional. E no futuro, o que veremos?
É o Haver com seus impossíveis modais. O não-Haver é que é absolutamente
impossível, não se consegue e jamais se conseguirá alcançá-lo.
• AA – Minha questão é com a diferença entre Haver e Ser. Haver
como puro impacto, pura presença de algo inabordável...
É uma porrada que levamos em nossa ignorância. Aí, começamos a
querer entender e dizer provavelmente do que se trata – e isto é Ser. Estaremos
atribuindo Ser à porrada do Haver.
• AA – Não é a porrada do Real como tal?
Não. É a porrada de nossa ignorância, de nossa impossibilidade de dar
conta das formações aqui e agora. Ignorância dói.
• Nelma Medeiros – Quando pensamos sobre a facilitação da inscri-
ção topológica do Revirão, temos lá o Real como inscrição do Ponto Bífido.
A Bifididade não é a ignorância, mas, enquanto tal, também é inexprimível.
Ao exprimir-se, decai...
A Bifididade não é totalmente inexprimível. Ela tem duas expressões,
e não é Real senão enquanto Secundário. Por isso, chamei de Ponto Bífido,
de inscrição em bifididade. Ela é um terceiro momento da oposição. Podemos
dizer que é uma realidade. Portanto, só estamos falando uma parte dela. É
uma realidade na qual, nesse caso, há uma repercussão de Real. Entendam
que Real é o nome que dou ao não-Haver, é um conceito. Não posso pular
a palavra Real do conceito que está na teoria para qualquer conceito ou para
um sentido genérico de Real. Na teoria constituída, chamei de Real o não-Ha-
ver. A suas repercussões no interior do Haver chamo de realidades, as quais

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são abordáveis, mas não todas. São abordáveis com incompletude, pois uma
parte é ressonância do Real. Por isso, chamei de impossível modal. Já o Real
é o Impossível Absoluto, igual ao não-Haver. Realidades estão nas formações
do Haver, portanto, têm impossibilidade modal. Podemos abordá-las, dizer o
que são, na sua face de Haver e Ser, e dizemos mal porque as realidades têm
repercussão lá no Real e são modalmente impossíveis. Elas aqui e agora têm
impossibilidades. Ou seja, temos um conceito de Real Absoluto e temos um
conceito de realidade modal. Sentimos a porrada da ignorância como uma das
realidades do Haver, e sequer sabemos explicar toda nossa ignorância, pois é
modalmente impossível. O Ponto Bífido é uma realidade como outra qualquer,
só que é a realidade do Inconsciente. Ou seja, a realidade psíquica se constitui
bifidamente e comparece, se explicita, em oposições. Por isso eu a chamo de
Real enquanto assinada no Secundário. Ela não é impossível de ser dita, é
impossível de ser dita em si mesma.
• P – Por isso, no esquema do Revirão, você grafou R no mesmo lugar
terceiro em que estão a indiferenciação, o neutro, o Ponto Bífido?
Podemos chamar o Ponto Bífido de realidade psíquica e podemos dizer
que ele, sobre a estrutura do Revirão, é a aproximação do Real, é a realidade
psíquica plena. Diante do Impossível Absoluto, que é o não-Haver, o ponto fica
ambíguo por ser ao mesmo tempo o representante do choque Real do não-Haver
e ser a última instância do Haver.
• PNC – Topologicamente falando, é um rastro do Plano Projetivo na
banda de Moebius.
Sim. Em última instância, é o limite entre o Impossível Absoluto e o
comparecimento do Haver. Repetindo, o lugar é ambíguo. É lido para dentro
ou para fora?
• PNC – Lido para dentro do Ser, é modal, lido para o lado do não-
-Haver, é Absoluto.
É o representante do não-Haver dentro da realidade psíquica enquanto
Haver pleno, Absoluto. O Ponto Bífido é a primeira e imediata repercussão do
Real. Há lugares no pensamento que são fronteiras. Como dar conta deles? O
Ponto Bífido é – Bífido. Fica difícil seccionarmos. E digo mais: Graças, adeus!
Se seccionarmos isso, ficaremos doidos. Ou o pensamento não tem limites?

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• PNC – Ele tem?


Claro! A burrice é um fato.
• PNC – Ela anda.
Sim e, quando anda, há que fazer outra teoria. Basta acompanharmos
os experimentos do que chamam de nova física, que farão com que a física
padrão vá inteira para o brejo. Ficamos ignorantes de novo.
• NM – Mas não é também nesse lugar do Real, extremado entre Haver
e não-Haver, que você situa o Gnoma?
Gnoma é dentro, não-Haver é fora. No esquema do Pleroma [1986],
o R foi colocado entre Haver e não-Haver por ele ser uma suposição teórica.
Ao nomear o Real como não-Haver, é uma nomeação, cai no nominalismo. Se
não, como falar disso? Na verdade, é o lugar do Silêncio, de Wittgenstein. Se
nomeio, ele fica um pouco deslocado. Chamar não-Haver já é abuso da língua.
• AA – Você distingue seu Real do de Lacan dizendo que Lacan define
o Real pela negação: o que não cessa de não se escrever, o que não comparece
em seu lugar, o que falta...
Também digo que o Real Absoluto é impossível de se exprimir.
• AA – Ao mesmo tempo, você diz que o Real é o causador de todo o
processo. Seu Real é positivo, pura afirmação e causação de tudo. Por isso,
falei em Real como pura havência.
O Real é produtor de havência. É, como disse, silêncio absoluto, não
há o que falar. Nem realidade modal ele tem. Mas a gente diz essas bobagens.
Se falamos, já estragou. Se chamei de não-Haver, já estragou. Daí Lacan falar
apenas negativamente, como a Teologia Negativa. Aliás, não-Haver também
parece negativo. Não adianta insistir por aí porque recairemos num misticismo
radical. Daqui para Lá, quem tem razão é Wittgenstein. Já repararam que Meis-
ter Eckhart não tem esse elemento, ele para na neutralidade do Haver, no Haver
enquanto neutro. Ali é além de Deus, é Deidade. Ele não coloca o não-Haver.
• AA – Nesses pensamentos não há a radicalidade da Pulsão lida como
Haver desejo de não-Haver. A própria física ao chegar no limite do entrópico
traz conjeturas vagas como Big Crunch. A gravidade quântica em loop, de
Martin Bojowald, que supõe o Revirão de um universo em outro, é o que vejo
mais parecido com sua conjetura de não-Haver.

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Nomear como não-havente é maneira de dizer. Isto porque o Impossí-


vel já está escrito no próprio cerne do Haver: ele não passa, volta; não passa,
volta... Estou chamando de não-Haver o lugar de não-passagem. Eu poderia
só dizer que ele revira por si mesmo. Já é bastante conceito que o Haver revire
por si mesmo porque não há aonde ele quer ir. Isso, além do que você colocou,
também está na ideia de Big Crunch em contraposição a Big Bang.
• PNC – Tenho a impressão de que você está também fazendo uma
faxina em seu conceito. Dizer Haver desejo de não-Haver ainda é linguístico
demais.
Sim. Mas é o que Freud chamou de pulsão de morte. Em algum lugar
digo também que a morte não há. Aí chegamos no lugar em que, daqui para
Lá, é misticismo puro. Pode ser uma deficiência de nosso cérebro. Quem sabe
se algum ET não resolve isso?
• NM – Penso também que nos acostumamos a certos esquemas con-
ceituais – por exemplo, imanência / transcendência – que, de repente, são
pobres, resolvem mais ou menos...
É o que temos. Não é o Real, é uma teoria. Uma teoria também é uma
realidade. Logo, querer ultrapassar esse ponto é perda de tempo. Como disse,
então fazemos outra teoria mais abrangente. Por isso, por todas chegarem a
esse ponto, as teorias se sucedem. Elas têm a serventia que têm, não mais. Não
existe essa coisa maluca que os Estados Unidos chamaram de A Teoria, que é
todo aquele melê francês decadente nomeado assim.
• AA – É com o que conviveremos a partir de agora nas formas de
conhecimento de Quarto Império. As teorias que, basicamente, são de Segundo
ou de Terceiro Império estão passando por outra ordem de organização.
Com o século XX, isso acabou. Continuamos usando por inércia.
• AA – Já nem se fala mais em teoria, e sim em modelização,
simulação...
Qualquer nome serve: carnaval...
• AA – ...parangolé...
Desde que possamos perceber mais ou menos do que se trata. São os
parangolés, como chamei – depois de Hélio Oiticica.

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• AA – Quanto a isso, acho interessante a ideia de ciberespaço, no


qual temos uma boa analogia com o Inconsciente freudiano: não tem dimensão,
não tem tempo, não tem não, não tem morte...
Estão tentando concretizar o Inconsciente.
• AA – Penso que será de grande utilidade como prótese clínica.
Espero que isso venha a acontecer. Seria muito bom o psicanalista, um
dia, ficar dispensado, perder o emprego.

10
Da vez anterior, falei sobre o Homem dos Lobos. É um dos casos mais inte-
ressantes de Freud. Seu trabalho sobre ele é brilhante, uma obra prima. Freud
não foi seu único analista, e outros autores também falaram sobre o caso.
O homem dos lobos nunca conseguiu resolver seu problema. Tenho minhas
impressões a respeito, e mesmo um diagnóstico que pode, quem sabe?, ser
verdadeiro – foi o que me pareceu das muitas vezes que abordei o texto.
No tempo de Freud, esse tipo de caso era praticamente inexistente,
não comparecia com a nitidez que temos hoje. Por isso, acho que ele ficou um
pouco sem recursos, embora tenha apontado com clareza o que chamava de neu-
rose obsessiva do homem dos lobos – em meus termos, Morfose Estacionária.
Minha suspeita é de que se trata de um transexual, um transexual bloqueado.
Nos elementos descritos por Freud, seja na chamada cena primitiva, seja em
outras ocorrências como delírios e mesmo alucinações, vejo um desejo efetivo
de castração para funcionar como alguém na cena originária. Ao mesmo tempo,
em oposição a esse desejo, uma radical recusa de perda do pênis. As duas forças
parecem ter o mesmo valor e a mesma potência agindo em sentido contrário.

90
MD Magno

Nessa hora é que posso recuperar o termo double bind, de Gregory Bateson: uma
força paralisante e, portanto, HiperRecalcante (não há nada no texto de Freud
que justifique algum Nome do Pai). Isso veio em sequência à Morfose Regres-
siva negativa e reativa da infância do homem dos lobos. E, por causa da dupla
força paralisante, a emergência posterior de uma Morfose Progressiva positiva
e reativa – o que torna qualquer análise praticamente impossível. Por isso, ele
nunca deu certo com análise alguma. Além de dizer que essas Morfoses foram
o que foram, ainda as chamo de reativas porque quase todas as performances
sintomáticas do caso são respostas a ações de outros, e não iniciativas próprias.
Ele está sempre sintomaticamente reagindo a ações de terceiros.
Hoje, é mais fácil entender o problema pelo fato de o aparecimento de
transexuais efetivos, e não meramente delirantes, ser algo que se tornou quase
vulgar. Schreber, por exemplo, não é um transexual efetivo. Ele precisava virar
mulher, e virou de maneira delirante, não pediu que seu órgão sexual fosse
retirado. Insisto nesse ponto por fazer a suposição de que esse ato de castração
efetiva tenha se tornado não apenas possível como frequente. Quantas vezes
encontramos a possibilidade de uma emergência de psicose – ou seja, de Mor-
fose Regressiva –, por impossibilidade psíquica do paciente ou do mundo, no
processo de cirurgia para transformação efetiva em outro sexo? É mais fácil
para nós entender que, assim como no caso de Schreber, a recusa em assumir
uma homossexualidade corriqueira e normal – que ele transformou em psicose
paranoica e, portanto, em delírio [no caso do homem dos lobos, transformou-se
em alucinação e efetiva recusa de perder o órgão] – pode comparecer apesar das
facilidades de hoje. E acho mesmo que comparece bem mais do que supomos.
Se não como emergência efetiva de uma Morfose Regressiva, pelo menos como
aproximação muito chegada da situação que a nomenclatura antiga chamava
de borderline. Está cheio disso por aí. Façam uma pesquisa nos textos sobre
transexuais e verão como é próximo do que estou dizendo.
• Susanne Bial – Há o livro Conversas Com o Homem dos Lobos, de
Karin Obholzer, publicado aqui pela Zahar em 1993. Fui revisora de língua
alemã para essa edição que foi traduzida do francês. A autora o entrevistou
aos noventa anos. No livro, há mesmo menção a malfeitos de seus analistas
ao lidarem com o caso.

91
MD Magno

Fizeram muita maldade com ele. Não li esse livro, vou procurá-lo.
• P – Pelo que sei de pesquisadores sobre o assunto, há uma comissão
que avalia se a cirurgia de mudança de sexo será permitida ou não a alguém.
E o diagnóstico de psicose seria uma condição para liberar...
Melhor seria liberar antes de pirarem.
• P – Ocorreu que muitos interessados teatralizavam o que era preciso
fazer na entrevista, fingiam ser doidos.
O pessoal dá sempre um jeitinho.
• Potiguara M Silveira Jr – É notável você ter se referido ao tempo
para o diagnóstico ser repensado. O texto sobre o Homem dos Lobos já tem
cem anos, e é impressionante ler Freud avançando seu diagnóstico mediante
hipóteses que eram originalíssimas, de difícil entendimento e difícil aceitação
pela cultura do momento (cena originária, castração). Ser possível pensar hoje
incluindo dados novos é exemplar para acompanharmos o trajeto progressivo
do pensamento reflexivo desde seu início como hipótese.
Naquele momento, era um pouco difícil pensar em transexualidade. O
mais corriqueiro era o travesti. Hoje, segundo alguns que lidam com adoles-
centes, há um aumento no número daqueles que querem fazer cirurgia. Ou seja,
abriram a porteira da possibilidade, e muita gente quer passar. Suponho mesmo
que seja um motivo bastante suficiente para a Morfose Regressiva – por motivo
de HiperRecalque produzido por luta psíquica interna do próprio paciente, ou
por pressão externa de impossibilidade de conseguir.
• P – Você falou em borderline...
De fato, não há essa categoria em meu sistema. Tomei emprestado do
que dizem na psiquiatria. Alguns franceses a chamam de psicose branca. Ou
seja, segundo meus termos, como consequência de um HiperRecalque, a pessoa
entra em estado de psicose, mas não surta efetivamente, fica numa situação
limite criando muitos problemas. Isso não se dá apenas em casos de transexu-
ais, mas também em caso de efetivo procedimento de recalque muito forte em
relação à sexualidade, seja homo ou hetero. Há muitos meninos – as meninas,
menos – que, sabe-se lá por que em suas historinhas, têm uma recusa tão forte
à sua tendência normal a episódios homossexuais que ficam “borderline”. Há
que observar se surtarão ou não.

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MD Magno

• Patrícia Netto Coelho – Nomear como border não fica sem valor, dado
que seu critério não é a ocorrência do surto, e sim o gradiente de recalque?
Citei o bordeline por se tratar de uma Morfose Regressiva sem surto,
pelo menos por enquanto. Como disse, é o que alguns autores chamaram de
psicose branca.
• PNC – Sobre a ideia do trans como Morfose Regressiva...
O trans não é Morfose Regressiva. O trans que recusa sua situação, ou
que sente grande pressão contra seu desejo, este sim pode entrar em Morfose
Regressiva. São outros motivos.
• PNC – Quais? Não há sempre, de algum modo, recusa?
Há recusa do que ele recebeu e desejo de outra coisa. Isso tem duas
fontes possíveis. A fonte psíquica é ter acontecido em sua história esse percurso,
mas aposto mais na fonte primária em que há divergência entre Autossoma e
Etossoma.
• PNC – Qual a razão para alguém querer fazer cirurgia, mudar de
sexo anatômico?
A situação é conflituosa. Foi o que disse sobre o homem dos lobos:
ao mesmo tempo que é desejo disso em sua formação, sobretudo quanto ao
que Freud chama de cena originária – encaixou nessa cena... Em toda análise,
aliás, há que chegar ao ponto de ver em que lugar a criança se encaixou aí.
Todos se encaixaram nela em algum lugar. O desejo de mudança anatômica é
um desejo de trans motivado ou por uma fortíssima constituição de sua posição
na cena originária, ou por incongruência entre Autossoma e Etossoma. São as
duas causas de querer a transexualidade. A causa da Morfose Regressiva não
é essa, e sim uma forte construção de recalcamento, de não suportar isso. Ao
mesmo tempo que, para os machos, há o desejo, há a impossibilidade de perder
o órgão. Suponho que não aconteça assim para as moças. O HiperRecalque
pode vir ou por confusão própria da pessoa – que chamei de double bind: dois
desejos contrários, paralisantes –, ou pelo fato de o psiquismo não aguentar o
excesso de pressão externa e pirar.
• PNC – Por que se dá mais com os homens?
As mulheres não têm tanto a perder, têm a ganhar. Há aí um problema
de prótese.

93
MD Magno

• P – Pessoas transexuais mulheres que conheço dizem que é insatis-


fatória, não consegue reproduzir a função erétil do pau. Fica meia bomba.
Hoje, pelo menos tem meia bomba. Antes, nem isso. Na ordem da teoria
genética, talvez consigam algo. Assim como tentam fazer um dedo amputado
crescer de novo, quem sabe se no lugar do clitóris não conseguem fazer um
pintinho?
• P – Um procedimento bastante comum hoje junto aos adolescentes é
o que chamam de terapia hormonal como processo de transição.
Isso não faz prótese.
• P – Mas resolve bem a situação. Os rapazes tomam hormônio, vão
ficando sem pelos, com seios...
O difícil continua sendo colocar o órgão nas meninas.
• P – Talvez as meninas, mesmo com prótese, jamais consigam atingir
o mesmo gozo dos homens.
Temos que considerar o grau de satisfação, se a pessoa se satisfaz com
certo grau, ou com boa aparência para ela mesma.
• P – Estou dizendo isso por um amigo meu de infância ter uma filha
de dezessete anos – amiga de meu filho da mesma idade – que, desde os doze,
diz querer mudar de sexo. Ela pede que meu filho a chame de Marcelão. Virou
um problema, pois o pai não queria ouvir meu filho a chamar assim. No início,
parecia bullying com ela que era toda machinha. O pai já está entendendo. A
mãe foi embora, virou as costas. Fico pensando no que acontecerá com ela...
Será preciso ver qual é seu grau de satisfação. Meia bomba servirá?
Cada um tem seu grau, não podemos generalizar quando a pessoa fez moções
no sentido de seu desejo. Onde o desejo de alguém fica razoavelmente satis-
feito? Totalmente satisfeito jamais ficará. E isto vale para qualquer um. Você
está satisfeito com seu gradiente?
• P – Não mesmo.
É uma questão de proporção. Trata-se do fator econômico do psiquismo
da pessoa. Sempre lembrar que não somos estruturalistas e sabemos que há um
gradiente em todas as situações. Aqueles de gradientes muito altos sofrem de
sérias frustrações. O errado é o gradiente que os faz sofrer. Talvez abrandar o
gradiente seja uma saída razoável numa análise.

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MD Magno

• P* – Essa questão sempre foi uma dificuldade para mim. Nos anos
1980, atendi durante vinte anos uma pessoa que se dizia homossexual, neutro.
Era uma ótima pessoa, morreu recentemente. Ele queria ser transexual, dizia
não querer mais brincar de mulher, e sim efetivamente passar a ser como se
sentia internamente: uma mulher. Você, na época, me disse que ele era tra-
vesti. Determinado dia, ele me comunica que faria uma transformação em seu
corpo e queria que eu fosse uma testemunha de sua transformação. Durante
um ano, fez tratamento hormonal, retirou pelos, colocou seios, etc. Passou a
usar saia e batom...
Ele cortou o pau?
• P* – Passou um tempo no exterior e disse a todos que tinha tirado,
mas, depois, me disse ter mentido. Agora, você falando sobre o grau de satis-
fação, lembro-me de que o que contava para ele/a eram sentimentos, coisas
do coração, dar tratamento vip a seu homem... Importava mais jogar no papel
da mulher na cultura do que o gozo sexual propriamente.
Mesmo nunca tendo sido analista dessa “senhora”, só sei o que você
me contava. Por isso, disse que me parecia ser travesti. Ela queria ser consi-
derada mulher.
• P* – Tive também um analisando que tinha tesão em travestis. O que
lhe interessava é que eram mulher e homem.
É diferente. E mesmo essa sua analisanda, não acho que fosse
transexual, pois, repito, ficava satisfeita em ser considerada mulher, em ser
tratada como mulher. Ou seja, não era preciso cortar nada. É bem diferente
alguém querer mudar de gênero e querer mudar de sexo. Há, aliás, entre os
machos, muitas “moças” por aí que nunca se vestiram de menina. Assim como,
entre mulheres, há muito veado... Já lhes disse que a sexualidade é sui generis.
Temos que entender cada caso para saber como é sua formação. Não é estrutura.
A composição de uma é diferente da outra.
• P* – Para mim, tudo isso continua bastante nebuloso.
Sempre será. Nada mais nebuloso do que a sexualidade. Nunca será
suficientemente clara.

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MD Magno

• P – Há um antropólogo gaúcho que escreveu um livro sobre travestis


intitulado Toda Feita. Ele mostra os elementos que elas usam na composição
de suas pessoas.
E você conhece alguém, de qualquer sexualidade, que não seja todo
feito? Como vocês, também sou todo feito. Não sou um animal, sou da espécie
que vareia.

11
Retomo outro ponto que tratei em nosso encontro anterior. Quero desmanchar
certo quiproquó quanto ao conceito de Real. Não há erro algum na teoria,
mas, na conversa, eu falava de uma coisa, e Aristides e Patrícia de outra, o que
resultou em embrulho. Patrícia, depois, fez a gentileza de pesquisar nos livros
o surgimento da questão. Posso supor algum erro de revisão nas publicações,
posso ter feito algum ato falho e dito algo trocado em certo momento, mas
lendo o texto, e não apenas observando os esquemas, está tudo muito claro.
São dois esquemas diferentes.
Existe o esquema do Haver. Ao falar do Haver – que obedece Alei
Haver desejo de não-Haver –, o que lá está escrito como Real é fora, é o não-
-Haver. Ou seja, está chamado de: Impossível Absoluto. O não-Haver é, pois,
o Real propriamentissimamente dito como Impossível Absoluto. Dentro do
esquema, no lugar do Haver, é o que ali chamo de realidade ou de realidades – e
digo: as realidades são impossíveis modais. Ao nos depararmos com algo que
chamamos de realidade, vemos que falta alguma intervenção, protética ou não,
científica ou outra, para que seja possível ampliar nosso conhecimento dessa
realidade. Chama-se realidade àquilo que falta conhecer. O que conhecemos,

96
MD Magno

já conhecemos, passou para o lado da Gnômica. O que não conhecemos não é


uma Impossibilidade Absoluta, e sim uma impossibilidade modal. Tanto é que
a ciência pode e pôde frequentemente mudar de rosto no sentido do acrescen-
tamento da abordagem da realidade.
Já o esquema do Secundário é outro, diz respeito à transa entre dois
surgimentos opostos e avessos, que chamo de alelos. Podemos recalcar como
se estivéssemos suprimindo um alelo e trabalhar com outro. É o que frequen-
temente fazemos. No ponto que chamo Ponto Bífido, às vezes escrevo Real ali.
Não estou falando do Real do Haver, e sim daquilo que, no Secundário, acaba
funcionando como Real por não podermos dizer o Bífido. Não há como dizer
o Bífido, não existe o andrógino absoluto no Secundário. Chamei de Ponto
Bífido como construção teórica para mostrar que um ponto se desloca sobre a
banda de Moebius, e vira ao contrário. Se tomarmos qualquer ponto da banda de
Moebius e supusermos que ali tem um positivo e do “outro lado” está negativo,
chamei de Bífido esse ponto para expressar que, se a banda não tem espessura
de espécie alguma, se é uma superfície, não tem terceira dimensão, posso supor
esse ponto como capaz de se apresentar como dois alelos. Chamo-o de Real
dentro da construção do Secundário por não existir língua alguma que possa
dizer esse ponto. As línguas são partidas. Podemos fazer poesia, podemos,
como Lacan, chamar de Amódio, mas é impossível dizer ou funcionar no nível
do Bífido. Apenas indicamos sua conjetura teórica.
O que chamo de Bífido no Secundário seria, no esquema do Haver, o
correspondente à situação do Haver enquanto Homogêneo Absoluto – a qual
situação só pode ser histórica. Quando e como o Haver passou, terá passado
ou passará por essa situação? Jamais agora. É a mesma diferença que Meister
Eckhart faz entre Deus, que chamo de Haver, e Deidade, que ele não sabe dizer
o que é e que, em meu esquema, digo que é o Haver enquanto homogêneo. Terá
sido, quem sabe?, virá a ser. Chamo, portanto, de Real o Impossível Absoluto
não porque seja modalmente impossível de dizer, e sim porque é Impossível
de dizer.
• P – O Bífido, então, é impossível de dizer?
É possível, no Secundário, fingir estar dizendo, mas sequer se conhece
a língua que tenha uma nomenclatura bífida. O que temos é poeticamente dito

97
MD Magno

como Freud mostrou em seu texto sobre O Sentido Antitético das Palavras
Primitivas (1925). O sentido opositivo não é imediatamente bífido e suponho
que língua alguma consiga dizê-lo, mas aquilo se diz opositivamente. Digo
melhor, acho que se diz reflexivamente como num espelho, em avesso.
• PNC – Então, o sentido antitético em Freud não seria bífido porque,
de algum modo, ainda permanece na opositividade?
Freud descobriu a Bifididade do Inconsciente, que só se diz opositiva-
mente. Ele descobriu a Bifididade, e também que ela só se diz opositivamente
na melhor das hipóteses. Se não, fazemos poesia e dizemos Amódio. Isto não
é nada, é apenas um truque poético dentro da língua.
• Aristides Alonso – Com relação ao esquema do Secundário que você
apresentou, me parece tranquilo acompanhar. Como tento destrinchar toda a
extensão do conceito de Haver, e mesmo vendo autores caminhando para ideias
convergentes, caso de Wolfram apresentado aqui, pergunto se a Bifididade que
não pode ser dita – que você chama de Real na ordem do Secundário –, quando
você faz a analogia do Haver como Espelho Absoluto e instala o Princípio de
Catoptria (que é o Princípio de Bifididade) no coração do Haver, esse Ponto
de Bifididade não é a mesma questão que se replica?
Sim. É a mesma questão que se replica no Secundário como modo
Secundário.
• AA – E no seu Haver como modo cosmológico?
Sim. É mera analogia, e não uma realidade. Lá no Haver, se quiser a
analogia do cosmológico, a suspeição que temos é de que essa Bifidade terá
comparecido, virá a comparecer antes do Big Bang. Antes da explosão, houve
implosão e homogeneidade total. Então, lá deve ser realmente Bífido. Agora,
fora dessa situação, é Impossível Absoluto conseguir isso. Só quando chegar
Lá – e quando chegar Lá, não terá ninguém, físico algum para pensar isso. É,
portanto, um construto teórico como o Big Bang. Faço a suposição de que essa
homogeneidade repercute no Secundário como Bifididade. O essencial nem
é pensar o Ponto Bífido ou a homogeneidade do Haver no caso, pois o que
repercute é o Revirão. Se repercute, ele está amostrado na teoria como banda de
Moebius, como unilateralidade, seja ela qual for. Por acaso, a banda de Moebius
serve. Então, o que a teoria faz a suposição de acontecer é que o Revirão do

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MD Magno

Haver – o Revirão cosmológico, se você quiser – não encontra o não-Haver,


revira para dentro e explode. E isso está ecoado dentro do Secundário como
Revirão da língua, que Freud chamou de opositividade das palavras primitivas.
Veja, repito, que um esquema se refere ao Haver e outro ao Secundário.
• AA – Minha questão está no entendimento do Haver como Espelho
Absoluto. Como algumas vezes, você também colocou o espelho como Real,
pergunto: a catoptria absoluta do Haver é da ordem do modal?
Não. O Real, que é o Haver enquanto homogêneo, é catóptrico, explo-
dirá em oposições. Este é o conceito de catoptria no Haver. O Princípio de
Catoptria é: a coisa vai ser dividida em oposição. Isso é o que ecoa no Secun-
dário e é encontrado por Freud até na língua. Assim como não temos a menor
possibilidade de nos defrontar com o homogêneo do Haver no sentido cosmo-
lógico – pois é quando acontece, se acontece –, tampouco temos a possibilidade
de encontrar o dito Bífido dentro do Secundário. Foi o que Freud percebeu (e
foi de lá que tirei a ideia de Revirão) no que chama de palavras primitivas, que
só comparecem com sentido opositivo. Escolhemos para lá ou para cá, pois não
é possível dizê-las na língua, assim como jamais encontraremos um andrógino
verdadeiro. Biologicamente, não dá – e acho que nem com prótese dá.
• P – Quanto ao Real, você colocou algo da ordem de uma Experiência
de Haver e essa experiência como Real.
Sua experiência de Real é experiência de Haver. Você jamais se encon-
trará com o Real do Haver em seu estado de homogeneidade. Não há como
chegar lá. Mas quando você tem experiência de Real – que chamei de porrada
–, quando você sente que tem Real, você então pergunta: O que é? Isso é o
verbo Ser. O que eu disse é que, em minha experiência, quando a coisa bate, é
o meu Real – e aí começo a procurar nomeação. Aí, repito, é o verbo Ser, que
é falho, pois nunca dirá aquilo que passei. Pode-se falar em traumatismo em
qualquer sentido: uma porrada física ou psíquica. A pessoa passa o resto da
vida querendo dizer, faz uma obra imensa e não consegue. Por isso, chamo de
experiência de Real.
• AA – Minha questão é que seu pensamento é atravessado desde o
início pela ideia do Espelho, e você também coloca a ideia de Espelho Absoluto.
Você o coloca como máquina de Bifididade, que cinde tudo, mas ele próprio

99
MD Magno

é incindível. O movimento de cisão está no desejo pulsional de avessamento


absoluto. É essa a eternidade do espelho, a eternidade do Haver. Até agora,
entendi que você chamava esse lugar de Real.
Por que não?
• AA – Ao colocar o Real aí, o Haver é uma formação da qual decor-
rem as outras formações. São as formações do Haver.
Digamos assim, do ponto de vista da internalidade do Haver – tiremos
o não-Haver que é do lado de fora, é um Real Absoluto, um Impossível Abso-
luto para o próprio Haver de chegar lá (pois o não-Haver não há) –, o Real de
impossibilidade absoluta repercute o tempo todo no seio do Haver. Tanto do
Haver cosmológico que, por não poder chegar lá, explode catoptricamente e é
um lugar de Real, de porrada interna do Haver, assim como repercute em nosso
Secundário que não consegue dizer isso. Ao mudarmos de lugar, temos que
considerar que o Real está acompanhando o processo. Então, Real para valer
só o Impossível Absoluto. Os impossíveis relativos, digamos, a situação do
Haver, a situação secundária, são outra coisa. A coisa vai se deslocando teori-
camente, nem que seja por analogia. Portanto, ao falar do esquema Secundário,
o Real não é nem homogêneo, nem o Espelho catóptrico, e sim o Impossível
Absoluto para o próprio Haver. O Haver não tem como chegar lá. Caso con-
trário, morreríamos e iríamos para o céu do não-Haver. Há uma dinâmica na
teoria. A pessoa toma suas porradas pelo menos desde que nasce, e a porrada é
tão grande que jamais dará conta dela. Daí, Otto Rank estar certo ao falar em
trauma do nascimento (seu erro, como Freud viu, está em querer determinar
as formações – as Morfoses, por exemplo – a partir daí). A criança já nasce
chorando da porrada que tomou.
• PNC – A propósito de seu esquema do Halo Bífido do Inconsciente
(2010), onde situar o Real?
Depende do esquema do Halo. Estamos falando do esquema do Haver
enquanto tal, ou do esquema do funcionamento secundário? Se for do Secundá-
rio, o Real, como eu disse, está situado no mesmo lugar do Ponto Bífido porque
ele é indizível. Escritores e poetas sempre falam no impossível de dizer. Do que
estão falando? Da precariedade de qualquer língua, que eles tentam vencer. O
poeta apenas indica, mas não vence. É uma repercussão imediata do não-Haver

100
MD Magno

para o Secundário. O mesmo acontece com o Halo Bífido do Haver: o homo-


gêneo explode para dois lados, pelo menos. O problema da física de hoje é,
depois de terem descoberto a matéria escura, a energia escura, etc., responder se
a primeira explosão é entre matéria e anti-matéria ou é entre matéria bariônica
e matéria escura. Quem sabe se a explosão entre matéria e anti-matéria não é
a segunda explosão em fragmentos mínimos de segundo? Quem sabe se não
há que juntar matéria escura e matéria bariônica para chegar ao homogêneo?
Esta seria a primeira explosão. São teorias, tentativas de abordar a realidade.
Aonde dará a matéria escura? Recomendei que lessem o livro de Carlo Rovelli,
Helgoland (2020), pois é bem parecido com a NovaMente. Lá está a Teoria
das Formações – e quando chega à física, estamos salvos. É a cabeça de um
físico pensando na física quântica e chamando de Nova Física. Diz ele que tudo
isso é teoria, que vamos construindo um mundo que não sabemos qual é. São
tentativas. Acabou a pretensão de a ciência ser o saber. Não é. Mas, dado que o
Terceiro Império foi para o brejo, o pessoal do Quarto Império está chegando.
Por isso, digo que são ficções, algumas sérias, positivantes do conhecimento.
Elas nos ajudam a sobreviver melhor, mas ninguém dirá o Ponto Bífido do
conhecimento. Tentemos NovaMente.

12
Hoje, chamo de novo Aristides Alonso para apresentar e comentar um livro,
The Question Concerning Technology in China: An essay in Cosmotechnics
(2016), de Yuk Hui. A palavra é dele:

***

101
MD Magno

Apresentação e comentários sobre


The question concerning technology in China:
An essay in Cosmotechnics,
de Yuk Hui

Aristides Alonso | A9-Cyb

1. Sobre o autor. 2. Questão de Toynbee sobre a introdução da


tecnologia ocidental na China – Crítica à dominação unilateral do
planeta por um modelo tecnológico ocidental norte-americano.
3. A Cosmotécnica – A implantação do modelo ocidental ocultou
outras formas de tecnologia – Busca de resposta a Heidegger
em A questão da técnica. 4. O projeto de Yuk Hui – Prometeu x
Shennong – China: tudo se passa entre Tao e Chi – Primazia do
Chi sobre o Tao. 5. Sinofuturismo – Analisar a possibilidade de
futuros tecnológicos.

1. O exemplar do livro que comentarei hoje – The Question Concerning


Technology in China: An Essay in Cosmotechnics, de Yuk Hui (Urbano-
mic, 2016) – me foi dado por Magno antes da pandemia por que passamos
atualmente. Disse-me para dar uma olhada. Li e vi que o autor já estava se
tornando bastante conhecido, esteve no Brasil e teve outro livro traduzido
aqui (Tecnodiversidade. Ubu, 2020), este uma coletânea de artigos. Seus
interesses estão nas áreas entre filosofia e tecnologia. Ele estudou engenharia
informática e filosofia na Universidade de Hong Kong e no Goldsmiths Col-
lege de Londres, especializando-se em filosofia da tecnologia. Atualmente,
vive e trabalha em Hong Kong. Além de artigos, alguns dos quais publicados
regularmente em revistas como E-flux, ele tem mais dois livros importantes
traduzidos para vários idiomas (sem publicação no Brasil): On the Existence
of Digital Objects (2016) e Recursivity and Contingency (2019). Uma curio-
sidade é ele ter sido listado entre autores do Tradicionalismo, do populismo
e do neo-gnosticismo que Magno mencionou no final dos SóPapos do ano
passado, mas ele próprio se declara fora desse grupo. Suas questões de algum
modo se situariam aí, mesmo ele sendo bem mais sofisticado que os demais,

102
MD Magno

chamados de neo-reacionários, que também apontam certas questões que,


nele, se repetem de maneira diversa em relação à modernidade.
A formação internacional de Yuk Hui é bem visível nos autores que o
influenciaram. Por um lado, o pós-estruturalismo francês e a filosofia técnica,
de Simondon e Stiegler. Por outro, o idealismo alemão e Heidegger – princi-
palmente o Heidegger da Questão da Técnica (1953). De certa maneira, o livro
que vou apresentar é uma resposta ao que Heidegger trouxe sobre a técnica. Ele
também convive com os autores da chamada virada ontológica no âmbito da
antropologia, como Philippe Descola, Bruno Latour, Tim Ingold e, no Brasil,
Eduardo Viveiros de Castro. No mais, ele traz muita informação sobre a China.

2. Farei alguns recortes do que é apresentado no livro. Ele parte de uma ques-
tão trazida pelo historiador britânico Arnold Toynbee nas Reith Lectures, da
BBC: “Por que os chineses e os japoneses rejeitaram os europeus no século
XVI, mas aceitaram que eles entrassem em seu país no século XIX?” Sua
resposta foi: “No século XVI, o objetivo dos europeus era exportar tanto sua
religião quanto sua tecnologia para a Ásia, mas, no século XIX, entenderam
que seria mais eficiente exportar a tecnologia sem a cristandade”. Este é o pri-
meiro ponto: a incorporação da tecnologia ocidental principalmente na China.
Ele está particularmente interessado no modo como a China recebeu a
tecnologia ocidental e pouco fala do Japão e demais países asiáticos. Ao adota-
rem uma tecnologia estrangeira, os chineses estariam levemente se sujeitando a
uma disponibilidade de colonização, pois não há como adotar uma tecnologia e
não aceitar uma série de aspectos que ela promove. Aqui, é útil lembrar o que
diz McLuhan sobre algumas tecnologias constituírem não apenas um meio de
comunicação, mas também um ambiente de comunicação que altera as transas
das pessoas ali envolvidas. O ponto de Yuk Hui diz respeito a pessoas que estão
praticamente pulando de uma situação tribal para uma situação cibernética. O
salto é enorme. Toynbee diz também que “a tecnologia em si mesma não é neu-
tra, carrega formas particulares de conhecimentos e práticas que se impõem aos
usuários, os quais, por sua vez, se veem obrigados a aceitá-las”. São questões
que Yuk Hui traz com grande força. Para nós, elas são bem conhecidas. Para

103
MD Magno

ele, o importante é o entendimento da questão colonialista que vem junto com


o processo de disseminação tecnológica.
Outro ponto do autor é que, do final do século XIX para o XX, as tec-
nologias modernas se espalharam pela superfície da Terra e, ao convergirem,
deram corpo a uma noosfera, no sentido dado ao termo por Teilhard de Chardin,
numa esfera informacional, espiritual, compatível com o que a NovaMente
chama de Império d’Oespírito. É a formação de uma secundarização generali-
zada e amplificada, que constitui uma espécie de desdobramento das produções
mais sofisticadas da humanidade do ponto de vista da informação e da comu-
nicação. A noosfera, segundo ele, é uma competição tecnológica que organiza
a geopolítica e a história desse momento. A vitória japonesa sobre a Rússia na
Guerra Russo-Japonesa (1904-05) levou à lamentação formulada por Oswald
Spengler de que o maior erro cometido pelos brancos na virada do século foi
ter exportado suas tecnologias para o Oriente – o Japão, de início um aprendiz,
agora se tornava professor. E a China agora está entrando na mesma situação.
Ele fala de uma “consciência tecnológica”, que persistiu ao longo do
século XX e foi marcada pela bomba atômica, pela exploração espacial, e hoje
se manifesta na cibernética e na inteligência artificial. Este é um ponto que ele
critica, pois acha que o caminho que a modernidade tomou – e acabou con-
vergindo para o que se desdobra como cibernética, cibercultura e inteligência
artificial – é o que de pior poderia acontecer para a humanidade. A posição
dele não é favorável, por exemplo, à posição que está vindo sob o nome de
Singularidade (Ray Kurzweil, Peter Diamandis, o vale do silício). Daí eu ter
mencionado acima que ele é alocável na turma neo-reacionária da crítica da
modernidade. Ele fala disso, inclui René Guénon, Aleksandr Dugin, Evola, etc.,
que a criticam no sentido da dominação unilateral do planeta por um modelo
tecnológico ocidental norte-americano às custas de outras formas de tecnologia
que também existem, mas sem vez e sem voz. Seu raciocínio é interessante por
bater em possibilidades tecnológicas não computadas como tais ou recalcadas
e desperdiçadas como inferiores ou coisa parecida.

3. Chego ao conceito de Cosmotécnica. Segundo Yuk Hui, estamos teste-


munhando os últimos momentos da “globalização unilateral”. É uma visão

104
MD Magno

renovada da relação entre tecnologia e cultura. Em geral, pensamos a tec-


nologia como um fenômeno universal. Neste sentido, fala-se de civilizações
ou povos “mais avançados tecnicamente” que outros, e assim se explicou,
por exemplo, a “superioridade” dos europeus ao conquistarem o território
americano e também em suas incursões político-militares na Ásia durante
os séculos XIX e XX. Ele faz o levantamento de que, nessa implantação do
modelo tecnológico ocidental (europeu-norte-americano), outras formas de
tecnologia foram ocultadas, destruídas ou não revelaram suas próprias cons-
tituições. É fundamental em seu projeto a vontade de recuperar em todo o
planeta as mais diversas expressões tecnológicas para que façam sua história
e exibam seu modo de existência no sentido de colaborar para a saída do
impasse dessa universalização tecnológica. Diz ele, então, que é preciso uma
nova linguagem de cosmopolítica para que possamos formular uma ordem
mundial que vá além de uma única hegemonia.
Outro problema central para ele – e para vários autores, sobretudo os
relacionados à virada ontológica – é a espécie humana se encontrar diante da
crise do Antropoceno. A Terra e o Cosmos foram transformados em um imenso
sistema tecnológico, o que é o ápice da ruptura epistemológica e metodológica
da Modernidade. O antropoceno diz respeito à Terra acusar as intervenções
humanas mais diversas no clima, no ecossistema e é uma das resultantes do
modelo dessa tecnologia unilateral hegemônica que está sendo implantada.
A Tecnodiversidade – que é o título de seu livro publicado no Brasil – é
outra noção que Yuk Hui desenvolve visando redescobrir uma multiplicidade
de cosmotécnicas e reconstruir suas histórias para projetarmos no Antropo-
ceno as possibilidades que nelas estão adormecidas. A grande influência desse
entendimento vem de Heidegger, e seu projeto busca mostrar alguns passos:
(a) a ideia de cosmopolítica como enraizada no conceito de natureza
em Kant (e a busca do “universal”) e como aquilo que apoia e dá justificativas
ao modelo vigente de universalidade tecnológica. Trata-se de sair dos modelos
kantianos de natureza, de universalidade, e do projeto moderno de paz universal
para que seja possível pensar com mais realismo e diversidade a situação crítica
em que o planeta acabou se metendo.

105
MD Magno

(b) o “multinaturalismo” proposto pela “virada ontológica” é sair de


uma ontologia para outras possibilidades ontológicas, outras expressões e iden-
tidades no sentido de também considerá-las expressões humanas possíveis e
cabíveis que aí estão à disposição e que, por alguma razão, foram destruídas ou
recalcadas pela hegemonia ocidental. É uma virada ontológica na antropologia
enquanto uma cosmopolítica diferente, a qual, em contraste com a busca kan-
tiana pelo universal, sugere certo relativismo e é propiciadora de coexistência.
(c) o projeto de considerar o avanço da cosmologia em direção à cos-
motécnica como a política por vir, como possibilidade de saída desse impasse
(Tecnodiversidade, p. 25). Ele até faz o desenho de uma série de tecnologias
convergindo para um ponto a partir do qual, para adiante, elas se abrem para
outras possibilidades. Neste sentido é que diz que as outras cosmotécnicas
podem colaborar para apresentar soluções para o impasse que a visada hege-
mônica da Modernidade nos conduziria.
Resumindo os três passos, temos:
(a) Crítica à ideia de natureza em Kant, da qual decorre a ideia de
universal. Kant admite uma única natureza que a razão nos impele a reconhe-
cer como racional; a racionalidade corresponde à universalidade teleológica
organicista ostensivamente concretizada na constituição tanto da moralidade
quanto do Estado.
(b) Contra o universalismo kantiano, ele articula a ideia de “multina-
turalismo”, trazida recentemente pela antropologia da “virada ontológica”, e
propõe a cosmotécnica e a tecnodiversidade. Ele menciona outras possibilidades
ontológicas existentes que não a moderna – animismo, totemismo, analogismo...
–, que se perderam mais ou menos em função da dominação do modelo natura-
lista. Este sendo a suposição de existir tanto uma cisão entre natureza e cultura,
quanto uma natureza igual para todos.
(c) Defesa de um “pluralismo ontológico”, que só poderá ser concreti-
zado após uma reflexão sobre a questão da tecnologia e da política ligada a ela.
Ele propõe ir além da noção de cosmologia e abordar a cosmotécnica definida
como “a unificação do cosmos e da moral por meio de atividades técnicas, sejam
elas da criação de produtos ou de obras de arte” (id., p. 39). Não há apenas uma
ou duas técnicas, mas muitas cosmotécnicas.

106
MD Magno

Cito agora um trecho em que ele comenta esses três passos: “[...] Que
tipo de moralidade, qual cosmos e a quem ele pertence e como unificar isso tudo
variam de uma cultura para outra de acordo com dinâmicas diferentes. Estou
convencido de que, a fim de confrontar a crise diante da qual nos encontramos
– mais precisamente, o Antropoceno, a intrusão de Gaia, (Latour e Stengers)
ou o ‘Entropoceno’ (Stiegler), todas essas noções apresentadas como o futuro
inevitável da humanidade –, precisamos rearticular a questão da tecnologia,
de modo a vislumbrar a existência de uma bifurcação de futuros tecnológicos
sob a concepção de cosmotécnicas diferentes” (id., p. 39).
Sua proposta, como dito no início, é no sentido de dar resposta ao que
Heidegger apresenta em seu ensaio A questão da técnica (1953): para repensar
o projeto de superação da Modernidade, devemos desfazer e refazer as tradu-
ções de techné, physis e metaphysica não como conceitos independentes, mas
inseridos nos sistemas que os empregam. Sabemos de Heidegger que ele propôs
a distinção entre a essência da techné grega e a tecnologia moderna (modern
Technik). Ele dizia que a questão da técnica não era relativa à técnica, e sim ao
próprio Ser: a essência da techné é a poiesis, ou a produção (Hervorbringen),
mas a tecnologia moderna descambou para um aparato de composição (Ges-
tell), virou um depositário de possibilidades não apenas relativas à natureza
como também ao próprio homem. A techné, então, passa a outra modalidade
de produção, agora escalonada pelo cálculo, pela possibilidade de ser transfor-
mada em tecnologia. Esse modo de considerar a técnica interessa a Yuk Hui
por ser parecido com a questão chinesa. Quanto a isto, ele falará de Tao e de
Chi. Retornarei a esses dois conceitos mais adiante.
Cito Yuk Hui, ainda em Tecnodiversidade: “Se a essência da techné é a
poiesis, ou produção, então a tecnologia moderna é um produto da modernidade
europeia que deixa de possuir a mesma essência da techné e se torna um aparato
de composição (Gestell) no sentido de que todos os seres se tornam disponíveis
(Bestand) para isso. Heidegger não inclui essas duas essências como técnicas,
mas também não dá espaço para outras técnicas – como se houvesse uma única
e homogênea Machenschaft [maquinação] depois da techné grega, uma técnica
calculável, internacional e até planetária” (p. 40-41). Sabemos que Heidegger
dirá que o fim desse processo baterá na cibernética. Acho mesmo uma grande

107
MD Magno

sacada ele ter falado em fim da metafísica e mencionar a cibernética (que só


será melhor entendida quarenta anos depois). É a questão do deslocamento da
ideia de humano. Eu diria que são pontos bem melhor encaminhados pela Nova-
Mente. Por não terem o conceito de IdioFormação, ficam deblaterando sobre
o humano e a máquina, esta com um sentido quase que negativo, diminuidor,
como se a maquinação fosse meramente uma produção de repetição e de des-
truição do que o humano teria de mais, digamos, essencial. Então, retornando a
The question concerning technology in China, dirá ele: “Heidegger caracteriza a
tecnologia moderna como aquela que transforma a natureza em uma reserva de
matérias-primas, em um estoque disponível para ser explorado” (p. 3). Assim,
o problema da tecnologia moderna não concerne à Europa ou ao Ocidente, e
Yuk Hui está interessado na pergunta: em que medida é possível transplantar
esta pergunta para o solo oriental? Como a China responderá a essa questão?

4. Dito isso, o projeto geral de Yuk Hui se monta mediante as seguintes


considerações:
(a) o desejo de responder à virada ontológica na antropologia, que
pretende tratar do problema da Modernidade com sua proposta de pluralismo
ontológico;
(b) o desejo de atualizar o discurso insuficiente largamente associado
à crítica de Heidegger à tecnologia; e
(c) a proposta de colocar a questão da técnica como uma variedade da
cosmotécnica, e não como techné ou tecnologia moderna.
Para tanto, ele, então, põe em xeque a premissa da universalidade. O
que aconteceria se não existisse somente uma tecnologia, e sim muitas cosmo-
técnicas? Como se veria afetada nossa percepção da história? Talvez o para-
digma ocidental, que afirma que o desenvolvimento tecnológico se apresenta
como uma progressão unidirecional acumulativa, seja apenas um dos modos
de pensar a tecnologia. Sua pesquisa vai usar a China como laboratório na
tentativa de reconstruir uma genealogia do pensamento tecnológico chinês.
Mas ela não se limita à China, pois sua ideia central é de que todas as culturas
não europeias deveriam sistematizar as próprias cosmotécnicas e as histórias
dessas cosmotécnicas.

108
MD Magno

Ele vai, então, analisar dois mitos fundadores da tecnologia na Grécia


e na China: Prometeu e Shennong. Na história de Prometeu, há a descrição
da invenção da tecnologia como um conflito violento entre os seres humanos
e os poderes da natureza governados por deuses e deusas imortais. A rebelião
de Prometeu trouxe uma enorme vantagem ao ser humano sobre as demais
espécies que habitavam a terra: a inteligência discursiva. No entanto, isso impli-
cava uma separação radical entre a humanidade e a ordem divino-natural. Em
entrevista com Anders Dunker (disponível on-line), diz ele: “Para os gregos,
‘cosmos’ significa um mundo organizado. Ao mesmo tempo, o conceito aponta
para o que está além da terra. A moralidade é antes de tudo algo que diz respeito
ao reino humano. Cosmotécnica, a meu ver, é a unificação da ordem moral e
da ordem cósmica por meio de atividades técnicas. Se compararmos a Grécia
e a China nos tempos antigos, descobriremos que têm uma compreensão muito
diferente do cosmos e também concepções muito diferentes de moralidade”.
A referência a Shennong se deve a ele ser o inventor dos aparatos e
artefatos técnicos na China. É um mito relacionado a invenções como a da
agricultura e de outras tecnologias. Havia lá uma antiga escola de pensamento
chamada Nongjia (a escola de cultivadores ou agricultores) à qual ele deu um
papel central. Seu nome indica que ele era o “Agricultor Divino”, o inventor
do arado, da cerâmica, da metalurgia e do tecido. A diferença para com o relato
prometeico é que é o próprio Shennong quem ensina sua arte aos povos. Então,
segundo Yuk Hui, não parece haver nessa operação conflito entre o divino e o
humano. Ele se utiliza bastante desse raciocínio de que, na Grécia, existe uma
ruptura para a instalação de uma nova ordem e, na China, há uma transformação
em continuidade.
Diferentemente do Ocidente, sobretudo da Grécia para cá, a China não
tem especificamente um pensamento, uma teoria sobre tecnologia ou sobre
técnica. Isto porque lá tudo se passa entre o Tao e Chi. No taoísmo e no confu-
cionismo, as duas principais correntes chinesas da antiguidade, Tao é a ‘ordem
cósmica’, e Ziran é costumeiramente traduzida por ‘natureza’, “algo que flui
por si mesmo”. São duas noções conceitualmente próximas (id., p. 64). Chi
tem muitas traduções, podendo mesmo significar a técnica (aparelhagem, ins-
trumento...), mas é o que está abaixo das coisas. Poderíamos mesmo dizer que

109
MD Magno

é o campo das formações ou mesmo das configurações. Ao passo que o Tao é


indizível, é o caminho, a via, e sua resultante é o que está acima das coisas. É
o que raramente se pode perceber, por exemplo, na fervura do arroz, no vapor
que sai e se dissipa, algo etéreo abstrato. Veremos que o caminho funciona na
busca do modo de lidar com os instrumentos, com os aparatos, na harmonia
entre Tao e Chi. Diz Yuk Hui: “podemos entender sistematicamente a filosofia
chinesa por meio da análise das dinâmicas entre Chi e Tao” (id., p. 129).
Ele diz mais, que, no pensamento grego, a tecnologia enquanto poie-
sis é algo que produz transformando a natureza. O conceito grego de natureza
(physis) está ancorado em sua produtividade (pensada como crescimento e
desenvolvimento). Assim, a “ideia de que a tecnologia poderia complementar
e aperfeiçoar a natureza não poderia ocorrer no pensamento chinês, já que,
para este, a tecnologia está sempre subordinada à ordem cosmológica” (id., p.
70). Em dado momento, ele faz uma grande listagem sobre o funcionamento
da natureza e o da sociedade: o vento está em tal direção, plantar; em tal outra,
julgar os condenados... Havia mesmo uma relação direta da saúde do impera-
dor com o movimento da natureza a seu redor. Portanto, as ferramentas não
são pensadas como algo desapegado, completamente autônomo, e sim como
recipientes, containers. É assim que Chi necessita do Tao, e vice-versa. E como
Chi às vezes se traduz como ‘coisas materiais’, como ‘o que está debaixo da
forma’, os utensílios, entendidos como recipientes, requerem então, quase que
por definição, algo “além da forma” que funcione como seu conteúdo. Acho
mesmo que Heidegger tinha uma intuição chinesa ao falar, por exemplo, do
vaso de barro como algo para conter o que está contido, mas é contido por
outra coisa que o contém.
Assim, para Yuk Hui, a China não desenvolveu um pensamento espe-
cífico sobre a técnica ou a tecnologia. O pensamento cosmotécnico chinês
consiste em uma longa história de discursos intelectuais sobre a unidade e a
relação entre Chi e Tao. Há momentos de prevalência de um e de outro. Na
situação atual, haveria na China uma preferência do Chi em relação ao Tao.
• MD – A oposição Chi / Tao deve ser a oposição Confúcio / Lao-Tze.
Os dois se combinam na mesma tarefa.

110
MD Magno

Em certo momento, principalmente na virada comunista do século


passado, tentou-se banir essa relação. Segundo Yuk Hui, ocasionou grande
estrago no entendimento que a China teria sobre seu próprio percurso. Ela
acabou aderindo a um modelo ocidentalizado.
Continuando, a união do Chi e do Tao também é a união da moral e
do cósmico, já que a metafísica chinesa é, em sua essência, uma cosmologia
moral ou uma metafísica moral, segundo Mou Tsung-San, pensador do novo
confucionismo (lá também tem isso). A filosofia chinesa reconhece e cultiva
a intuição intelectual que Kant associa à apreensão do númeno, mesmo que
Kant descarte a possibilidade de que seres humanos possam vir a ter esse tipo
de intuição. O númeno estaria mais do lado do Tao, e o fenômeno, do lado do
Confucionismo. Tao não é um objeto, um conceito, uma différance, e sim, como
dito antes, é apenas tido como “acima das formas”, enquanto Chi é o que está
“abaixo das formas”.
• MD – Chamemos o Haver enquanto neutro de Tao e enquanto for-
mações de Chi. Por isso, Heidegger foi a Meister Eckhart, mas parece não ter
entendido muito bem.
No fundo, seu “esquecimento do ser” é isso.
• MD – É o esquecimento do Haver enquanto homogêneo. Ele chamava
de Ser o que chamo de Haver. O Ser, para nós, é o Chi e o Haver é o Tao.
A denúncia dele é de que só o Chi foi sobrando, e o esquecimento do
Tao faz com que os processos se tornem mecânicos, no mau sentido.
Diz Yuk Hui: “Para nossos propósitos, basta dizer que Tao pertence
ao númeno de acordo com a distinção kantiana, enquanto Chi se relaciona ao
fenômeno. Mas é possível infinitizar o Chi de modo a infinitizar o eu e adentrar
o númeno – essa é a questão da arte” (Tecnodiversidade, p. 43).
• MD – Não apenas da arte, é a questão da psicanálise. Trata-se de
entender o que pode ser um polo com foco e franja no infinito.
Uma boa aproximação ao conceito de Cosmotécnica é o exemplo
favorito de Yuk Hui: o caso do açougueiro Pao Ding, ou simplesmente açou-
gueiro ou cozinheiro Ding, tal como é contado no texto de Chuang Tzu. Ele era
famoso por sua habilidade excepcional em cortar e desmembrar o boi sem tocar
seus ossos e tendões. Quando o imperador lhe pergunta sobre sua técnica, diz:

111
MD Magno

“O que amo é o Tao, que é muito mais esplêndido que a técnica” (The ques-
tion concerning technology in China, p. 102). Ele buscava o vazio entre cada
parte. A cada vez que topava com alguma resistência, não insistia e procurava
o melhor caminho para fazer a passagem. “O segredo da habilidade de Ding
não é precisamente sua relação mecânica com as ferramentas, e sim que as
ferramentas ali funcionam de acordo com o Tao, que flui intuitivamente através
da mão do açougueiro. A razão instrumental, que poderia se entender casu-
almente como a lógica que unifica os movimentos individuais com resultados
individuais, parece fora de jogo”.
• MD – Esta é a técnica da psicanálise, a técnica do açougueiro. Bateu
numa resistência, cai fora e sai para outro lado.
Diz Ding que um açougueiro mediano troca de faca com grande fre-
quência; um açougueiro bom, uma vez por ano; já “minha faca foi afiada há
dezenove anos e continua com o mesmo fio”. Como não topa com a resistência,
tampouco se desgasta. Lacan também conhecia essa narrativa e faz uso dela
para falar da resistência. Segundo Yuk Hui, Ding conclui que um bom açou-
gueiro não confia nos objetos técnicos que estão à disposição, já que o Tao (o
caminho) é mais essencial que o Chi (a ferramenta).

5. Yuk Hui terminará seu livro tratando do conceito de Sinofuturismo. Qual é o


futuro da China em relação a tudo isso? Ela não desenvolveu um pensamento
sobre tecnologia, ficou entre o Tao e o Chi, e a exposição de uma cosmotéc-
nica chinesa se organiza como reconstrução histórica. Ele toma Lao-Tze e
Confúcio, considera como cada um ia tratando da questão e destaca que foi
após a chamada primeira guerra do ópio (1839-1842) que a tecnologia se
tornou mais permeável na Ásia, em particular no Japão e na China. Foi aí que
teria havido uma primazia do Chi sobre o Tao. Qual preço a China pagará a
propósito dessa mudança de modelo? Mesmo porque ela é aquela que mais
contribui para a piora do quadro descrito pelo Antropoceno.
Yuk Hui diz não ser contra o atual aceleracionismo tecnológico, mas,
por haver hegemonia de um único modelo baseado na lógica capitalista, ele
resulta em grande estrago para o planeta (clima, desmatamento...). Outra virada
é com relação ao estilo das pesquisas, principalmente em cibernética, que,

112
MD Magno

retomando Heidegger, se posicionam fora do modelo humanista, grego, onto-


lógico ou metafísico. É um fato que a cibernética seja outra modalidade de
entendimento – muito mais consentânea com o século XXI, aliás. Há nela a
redução de tudo a sistema, a conexão, o que muda a ideia de homem que vigo-
rava até a década de 1940.
Então, para finalizar esta breve apresentação das ideias de Yuk Hui, cito
um trecho de Tecnodiversidade: “... este não é um projeto de substancialização
da tradição, como no caso de Tradicionalistas como René Guénon e Aleksandr
Dugin”. Isto é importante para nós que estamos estudando o Tradicionalismo,
para o qual a modernidade deu errado e há que voltar lá atrás. Yuk Hui não é
dessa turma, quer uma modernidade plural – embora ainda trabalhe com a noção
de sujeito e esbarre em noções como inteligência artificial, transumanismo,
convergência humano-máquina... Continua ele: “o objetivo aqui não é recusar
a tecnologia moderna, mas analisar a possibilidade de futuros tecnológicos
diferentes. O Antropoceno é a planetarização das composições (Gestell), e a
crítica de Heidegger à tecnologia é hoje mais significativa do que nunca. A
globalização unilateral que chegou ao fim está dando lugar a uma competição
de acelerações tecnológicas e às tentações da guerra, da singularidade tecno-
lógica e dos sonhos (ou delírios) transumanistas. O Antropoceno é um eixo de
tempo global e de sincronização que tem como base essa visão do progresso
tecnológico rumo à singularidade. Recolocar a questão da tecnologia é recu-
sar esse futuro tecnológico homogêneo que nos é apresentado como a única
opção” (p. 46).
Chega a ser engraçado ler o que Yuk Hui comenta sobre os “sonhos
(ou delírios) transumanistas” (p. 46), pois é algo que já está sobre nós com
bastante força. O que vejo é a posição dele bem na dinâmica de Quarto Impé-
rio: com várias ideias progressivas e algumas regressivas como, por exemplo,
supor que nada há fora do humano. Esta me parece sua ideia mais pesada. Não
se colocam para ele coisas como IdioFormação, como possibilidade de outras
IdioFormações que não a de nosso caso...
• MD – Isso, nele, não é compatível com a ideia de continuidade entre
natureza e cultura. Se ele pensou em continuidade, teria que sair do humano.
Um pequeno defeito em sua obra.

113
MD Magno

O pensamento dele nos ajuda na noção de Diferocracia, na afirmação


e reconhecimento de todas as diferenças, mas esbarra numa não consideração
do Antropoceno, do planeta Terra e de Gaia sob o vigor de um inarredável prin-
cípio entrópico, portanto, em constante mudança. Se tomarmos o que ele traz
segundo o Creodo Antrópico, a ideia de pessoas convivendo bem parece coisa
de Terceiro Império. E sua ideia de modernidade é apenas uma modernidade,
não considera o moderno e o pós-moderno como Magno fez em 1995 ao falar
em “Chega de pós”. Magno, aliás, toma naquele momento a dica de Bruno
Latour: “jamais fomos modernos” e toma a mostração da Nova Psicanálise
como um projeto “Pró-Moderno”, isto é, na consideração da possibilidade
perene de reviramento. A modernidade só se instalaria de fato como tal, como
Quarto Império, quando se pudesse reconhecer o Quinto. Além disso, Yuk Hui
tampouco considera o moralismo que há em Heidegger ao falar das tecnologias
antigas e dar o exemplo do moinho no rio que não estragaria o rio e mesmo se
diluiria nele. Já as tecnologias modernas como a de uma represa, uma usina
hidroelétrica, não seriam um moinho no rio, e sim o rio no moinho. Haveria
aí alto impacto destrutivo no modo como a dita natureza está comparecendo
naquele momento.
• MD – Esta é uma concepção muito bobinha de natureza.

***

O que nos importa nesses autores cujas obras peço que sejam apresentadas
aqui são os elementos que fazem parte de seus pensamentos e dizem res-
peito à entrada no Quarto Império. Mesmo com algumas dubiedades, Yuk
Hui é alguém tentando entrar no Quarto Império e formulando essa entrada
de algum modo. Esses que poderíamos chamar de autores do futuro recente
efetivamente acabam por mostrar e demonstrar o funcionamento da teoria
da NovaMente.
Por exemplo, não foi por mera diferença que a NovaMente eliminou a
oposição natureza / cultura (como, aliás, Yuk Hui também faz). Por isso, chamei
de Artifício Espontâneo e Artifício Industrial, os dois sendo da mesma ordem,
podendo ser mal ou bem-feitos, dependo da agilidade do Chi e da referência ao

114
MD Magno

Tao. E, sobretudo, a NovaMente eliminou o Sujeito, que é um cacoete francês


e ocidental. E também eliminou da ideia genérica de humano, que passa a ser
de IdioFormação – o humano é um caso e, portanto, está incluído na ordem
dos Artifícios Industrial e Espontâneo. O que interessa é entender que, com a
NovaMente, estamos numa posição de experiência futurista. Estamos tentando
olhar para a frente e não podemos compactuar com posições de regresso. O
regresso é pura neura.
• AA – A ideia de IdioFormação é evidência de que o que aconteceu
com as tecnologias foi elas irem ganhando poder. O passado não significa ter
sido mais “bonzinho”, e sim que tinha menos poder.
A postura de entendimento faz enorme diferença. Antigamente, a natu-
reza era oposta à cultura. Quando algum autor como Lévi-Strauss queria esta-
belecer alguma conexão entre uma e outra, procurava um lugar de passagem
mediante a bobagem – hoje podemos chamar assim – da interdição do incesto.
Não há oposição ou tampouco ponto de passagem, o Artifício é o mesmo.
Consegue-se manejar o Artifício Espontâneo porque o Artifício Industrial é
compatível com ele. Vejam que foi preciso chegar ao Quarto Império para
pensar isso, que é algo simples. Porque era difícil movimentar os processos do
Artifício Espontâneo pensaram ser oposição, mas não é. É igual ao açougueiro
mencionado por Yuk Hui: se não achar o lugar de conexão, não há como fazer
a passagem. A ciência vive procurando lugares de passagem para introduzir
possibilidades tecnológicas. Nosso interesse é, portanto, o de entender o que é
a Teoria das Formações (que é o que Yuk Hui está tentando fazer): considerar a
multiplicidade de formações e encarar cada formação como formação. Ela não
pertence necessariamente a campo algum de investigação que determine sua
natureza como queria a modernidade. A própria psicanálise, apesar da geniali-
dade de Freud e de Lacan, esteve aprisionada lá. Até o final do lacanismo, ela
está aprisionada nessa perspectiva à procura de grandes formações determinan-
tes da ordem das formações, com conceitos de tentativa de totalidade: Édipo,
sujeito... Não é o nosso caso.
• AA – O que você está dizendo não é incompatível com as ideias de
Tao e Chi. O raciocínio de Yuk Hui sobre Prometeu e Shennong é o de mostrar

115
MD Magno

que a ideia de aperfeiçoamento da natureza é simplesmente o reviramento


exigido pela postura catóptrica da mente.
E do Haver. Por isso, fiz questão de inserir o psiquismo no campo do
Haver. Não há oposição entre physis e logos.
• AA – O que Spengler falava sobre a Decadência do Ocidente dizia
respeito a tecnologias fáusticas e prometeicas, e redunda na distinção mora-
lizante entre tecnologias do bem e do mal.
A questão não é moral, e sim de interesse nosso de momento: como,
quando, onde e para quê.
• P – Quanto ao lacanismo, parece que o corpo, a natureza, foi eli-
minado e buscou-se cuidar apenas da cultura, do campo da linguagem, do
simbólico.
É claro que Lacan tentou enfiar o corpo na fêmea, na mística. Podemos
escutar “um corpo” no título em francês de seu seminário Encore, mas o corpo
aí passa pelo corpo de Santa Teresa e não tem atividade Primária. Tem os chi-
liques dela. Por isso, ao fazer a versão brasileira do seminário, tirei o corpo
fora e coloquei Mais, Ainda. O que nos interessa é que Freud considerava o
Primário. Ele sempre lembrava da importância das injunções do Primário. Não
há Primário em Lacan. É como se a psicanálise fosse algo estranho à chamada
natureza. O que a NovaMente reintroduz é que não há descontinuidade. Quod
est inferius est sicut quod est superius – são a mesma coisa: assim na terra como
no céu. Ou seja, o Revirão é do Haver e está replicado aqui.
• P – Portanto, desfaz-se a questão de saber se a psicanálise é uma
ciência humana ou uma ciência natural.
Não interessa mais essa fronteira, pois todas as ciências são do Haver.
E a multiplicidade de que os autores chineses falam é o que podemos abordar
mediante o conceito de Teoria das Formações. Trata-se de considerar as for-
mações aqui e agora – tal qual faz o açougueiro Ding. Isto, mesmo do ponto
de vista teórico: saber onde não cortar. Notem que ele não corta, passa a faca
sem cortar, vai separando, distinguindo as formações. Por isso, o fio de sua faca
dura. Ele conversa com o boi na língua do boi. Se for falar a sua língua, o boi
não entenderá. Vejam que é muito simples, o difícil para o analista é aprender

116
MD Magno

a língua do analisando. Às vezes, esbarramos por não termos ainda aprendido


sua língua para poder falar direito.
• AA – Na tradição chinesa, trata-se, no cotidiano, de fazer da melhor
maneira possível o que quer que se esteja fazendo.
Eles são duchampianos: faz-se obra de arte com qualquer coisa. Museu
e galeria são mercado, nada têm a ver com a obra. Ou esse açougueiro não era
um refinadíssimo artista?
• P – O que está em jogo aí, então, é respeitar o Tao.
E o Chi, que é o trabalho de executar o respeito e a atenção absolutos
ao material e à produção, aqui e agora. Não é a psicologia de aplicar imediata-
mente conhecimentos sobre o outro. É claro que os conhecimentos proliferam
quando vemos que há repetição. Mas é preciso ir na tentativa de falar dentro
daquela formação, de conseguir abordar a formação enquanto tal. É difícil,
mas é possível.
• AA – Daí Yuk Hui se perguntar como seria uma cosmotécnica maia,
inca...
Eles fizeram coisas incríveis, difíceis de entender como conseguiram.
• AA – Em outro momento, ele mostra como toda cultura derivada da
Grécia ficou marcada pela geometria até Einstein.
Pela geometria euclidiana.
• AA – E a China praticamente desconheceu a geometria, mas tinha
grande operação de álgebra.
Por falar nisso, o que foi o Renascimento? O retorno da geometria
euclidiana. E o nome disso é: denegação do Inconsciente. Daí eu ter dito de
outra vez que o Classicismo era a denegação do Inconsciente. Tentativa apenas,
pois não consegue. O artista faz toda a regragem e, de repente, desmunheca.
Isto está até no Tratado da Pintura, de Leonardo: a diferença entre a organi-
zação geométrica e a sensibilidade da pintura. E o que comparece diante dessa
denegação? A rebeldia dos maneiristas, que dizem que não se vai encobrir o
Inconsciente, pois ele é doido. Uma coisa que até permitiu que fizessem a zorra
que fizeram foi a Reforma que afrouxou as exigências. Depois, a Igreja Católica
produz a Contrarreforma e o Barroco, que, este, é o Maneirismo de Estado.
Tem certa condescendência com os estilos pessoais, mas dentro da regragem

117
MD Magno

barroca. São as três formações possíveis: ou se denega o Inconsciente; ou se


o aceita; ou se tenta domá-lo. O Maneirismo é inteiramente compatível com a
psicanálise. O Classicismo e o Barroco não são.
• Nelma Medeiros – Quanto ao que Aristides trouxe sobre Yuk Hui, cujo
texto não li, lembro que um dos autores que Magno cita desde os anos 1970 é
André Leroi-Gourhan, que estudava a Técnica por dentro da antropologia. É
curioso que ele, primeiro, tenha estudado a China (junto com Marcel Granet
no Instituto de Línguas Orientais de Paris).
Tenho em minha biblioteca um livro de Leroi-Gourhan muito bonito,
bastante ilustrado, sobre a China. Ao escrever sobre a Técnica, considerou cada
objeto em sua perspectiva própria. E ele não estava no Quarto Império, estava
no meio do Terceiro...
• NM – Estava no meio dos estruturalistas.
E não se tornou um.
• AA – Yuk Hui menciona Leroi-Gourhan de passagem. Aproveito para
acrescentar que o projeto dele é de descolonização, na linhagem da tendência
decolonial. É a afirmação das diferenças por elas mesmas, e não nomeadas
por outros.
O Brasil até hoje é colônia. Sobretudo, em termos de psicanálise. Há
muita gente escrevendo por aí, mas não vemos pensamento algum nascido aqui
que falasse a língua geral. Não falamos apenas português, falamos a língua
geral, com palavrão e tudo. Aliás, porque há Revirão, tomamos o xingamento
e o colocamos como nome de algo grande, como fizeram com nomes de estilos
artísticos: impressionismo, cubismo...
• P – Teoria queer também...
Sim.
• AA – Retomo o que você disse sobre a modernidade em 1995, na
seção ‘Chega de Pós’ (Arte e psicanálise: Estética e Clínica Geral. Rio de
Janeiro: NovaMente, p. 101): “Eu diria que o Quinto Império é o momento do
projeto MANEIRO. Isto está embutido na cultura, através de várias manifes-
tações, e até mostra um pouco as caras num certo Maneirismo do século XV.
Digamos, então, que fizéssemos uma recomposição – como os historiadores
gostam de fazer – da série das eras como: o Antigo, o Medieval, o Moderno,

118
MD Magno

e o Maneiro. Seria uma boa ideia”. Eu diria que há vários pontos de ordem
progressiva em Yuk Hui, mas ele ainda está apoiado em uma filosofia meio
antiga. Sobretudo, quanto a suas noções de gente, de humano, de mente, de
criação, de arte, de rebelião...
A informação dele está um pouco velha. Felizmente, ele também tomou
algumas ideias para a frente. Efetivamente, já estão se espalhando pelo mundo
técnicas de comportamento que são ad hoc, que certamente passarão para as
tecnologias atuais. Têm que passar para possibilitar que se façam intervenções
no Primário no sentido de aprimorá-lo. O que se quer, como sempre, é invadir
o Primário.
• Patrícia Netto Coelho – A própria ideia de diversidade, tal como Yuk
Hui pensa, é colocada a partir de referências ingênuas, pois é aquela que se
apresenta sob formas culturais. Uma leitura mais sintomal, como chamamos,
talvez caracterizasse melhor a China. François Jullien, ao fazer o contraponto
entre os modos ocidental e oriental, é mais próximo dessa leitura sintomal,
é menos preso a uma versão cultural, ou mesmo histórica. Há lá um sintoma
que não cede à simples importação de uma tecnologia.
Jullien é um exemplo claro dessa leitura sintomal.
• PNC – E mais, para nós a tecnologia diz respeito a um processo de
superação de recalque. Assim, não importa se é preservador, conservador de
natureza. Nesse sentido, a crítica dos aceleracionistas pode ser mais interes-
sante. Para eles, a tecnologia está em dívida, está muito aquém de providenciar
as suspensões de recalque de que precisamos. Isso talvez seja o mais funda-
mental para além de ser China, Ocidente, decolonial...
Temos sempre que ter em mente que a dissolução relativa ao Quarto
Império já começou.

119
MD Magno

13
Enviei a vocês uma pequena bibliografia sobre o tema da minha fala hoje:
• Aby WARBURG:
- L’Atlas Mnemosyne [1926s]. Paris: L’Écarquillé, 2012. Essai
de Roland RECHT.
- A Renovação da Antiguidade Pagã [1932]. Ensaios Reunidos.
Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
• George DIDI-HUBERMAN:
A Imagem Sobrevivente. História da Arte e Tempo dos Fantas-
mas Segundo Aby Warburg [2002]. Rio de Janeiro: Contraponto,
2013.
• Ernest CASSIRER (1953):
La Philosophie des Formes Symboliques. Paris: Minuit, 1972.
Vol. I, Le Langage, Cap. I: Le Concept de Forme Symbolique.
p.13 ss.
De uma vez anterior, sugeri que observassem as construções da música
como bom exemplo de organização de formações para melhor entendimento
da Teoria das Formações. Hoje, quero apresentar um personagem interessante
do ponto de vista da teoria das formações na história da arte. É um verdadeiro
precursor da nossa Teoria das Formações: Aby Warburg. Nasceu em 13 de junho
de 1866 – é contemporâneo, porém dez anos mais novo que Freud. Treze de
junho é também o dia de nascimento de Fernando Pessoa. É um personagem
estranho, mas muito importante. Tanto em sua época como bem depois, a
maioria dos historiadores, críticos e teóricos da arte nada entendeu do que ele
estava fazendo. Foi relegado durante muito tempo, e só recentemente sua obra
começou a ser valorizada. Não apenas os textos indicados na bibliografia, mas
também o extensivo catálogo que fez de obras de arte em comparação com a
arte clássica grega e a arte do renascimento – esta o tema mais importante por
ele escolhido –, a biblioteca gigantesca que montou e a exposição dessas obras

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MD Magno

que chamou de Mnemosyne. Morreu em 1929, teve um enfarte. Era alguém de


uma família rica que abriu mão da governança dos bens por estar interessado
em produzir essa biblioteca e esse catálogo na tentativa de demostrar sua teoria
sobre Arte.
Dizem que se trata de história da arte, mas ele dizia que era a história
das imagens, o que é bem mais correto em seu caso. Ele considerava as imagens
da história da arte, sobretudo relativa ao Classicismo e sua suposta repetição
no renascimento, exatamente do ponto de vista que nos interessa. Observava a
repetição sintomática das imagens: repetição de sintomas de uma época para
outra com algumas transformações. No que fazia esse tipo de observação, não
se interessava, como os ditos historiadores da arte, em aplicar um conceito de
história da arte, um conceito de estética ou coisa dessa ordem sobre as obras, e
sim procurava quais configurações se repetiam sintomaticamente. Isso é exata-
mente uma espécie de antecipação do entendimento das formações – portanto,
sintomáticas – em jogo numa produção. Por isso, considero-o um precursor da
Teoria das Formações. Importava para ele a configuração isomórfica entre as
imagens desses dois momentos.
Do mesmo modo, podemos entender a composição das formações sin-
tomáticas de uma pessoa em análise. Em relação a essas imagens, ele consi-
derava todas as formações que estivessem em jogo, não apenas representadas
nas imagens como também aludidas à cultura de cada época. Portanto, dava
importância à astrologia por ela comparecer com muita força, como podemos
observar, nas obras de arte do renascimento. É uma sintomática da cultura
daquele momento. Lembro isto por não sermos astrólogos ou irmos acredi-
tar nos ditames da astrologia, entretanto quase todos os analisandos estão de
alguma forma impregnados pela cultura astrológica do Ocidente. De vez em
quando, comparece que fulano ser do signo tal é uma espécie de determinação
inconsciente, ou mesmo consciente, para a composição de sua pessoa. É algo
a ser considerado: o que essa pessoa pensa sobre sua situação dentro das confi-
gurações sintomáticas da astrologia? Às vezes, ela obedece a essas indicações
que, sabe-se lá por que, são até parecidas mesmo. Com isso, estou dizendo que
não há preconceito na recepção do analista. A ele interessa toda e qualquer

121
MD Magno

formação em jogo na composição do Inconsciente de uma pessoa enquanto


configuração sintomática em jogo nessa configuração. Tudo interessa.
Já que falei em astrologia, apontei o nascimento de Warburg na mesma
data do nascimento de Fernando Pessoa: são do signo de gêmeos, o que deve ter
influenciado suas cabeças. O interessante é que Warburg surtou, sabe-se lá que
tipo de surto. Foi internado – e foi se tratar com Ludwig Binswanger, alguém
com certa mentalidade existencial esquisita, o qual parece não ter entendido
nada, deu-lhe o diagnóstico de esquizofrênico e, após um tempo, disse que ele
tinha se curado e podia voltar ao trabalho. Vejam que não dá para acreditar
que tivesse curado uma esquizofrenia. Ou seja, o diagnóstico estava errado.
Warburg era extremamente obsessivo, caso contrário não faria sua famosa e
gigantesca biblioteca organizada do modo que organizou, a qual interessa até
hoje aos melhores intelectuais.
Atualmente, temos o livro que citei de Didi-Huberman que passa por
perto de entendê-lo, mas acho-o bastante confuso. Ele tenta reabilitar a figura de
Warburg. Também Roland Recht, que escreve o ensaio do catálogo da exposição
dele em Paris, está tentando recuperar firmemente a figura de Warburg agora
entendendo melhor. Mas nenhum dos dois dá a impressão de ter entendido que
era algo como uma teoria das formações dentro da catalogação das obras de arte
clássicas e renascentistas, o período que ele tomou para trabalhar. Engraçado
é que, em 1920, data da Pulsão de Morte, Ernst Cassirer visita a biblioteca
de Warburg e fica tão chocado com a multifariedade de sua composição que
nem consegue sair de lá. Dizem os historiadores da filosofia que ele sofreu um
verdadeiro abalo e, a partir daí, tenta fazer uma teoria geral da representação.
Impregnado pela obra de Warburg, escreve quatro volumes enormes sobre a
filosofia das formas simbólicas. A meu ver, sem entender coisa alguma, mas,
de qualquer forma, no primeiro capítulo que cito na bibliografia apresenta seu
conceito de forma simbólica que pensa estar ancorado em Warburg. Acho que
não tem muito a ver por ele não ter sacado a razão sintomática declarada por
Warburg, que leu Freud, que diz ser uma visão sintomal das imagens dessas
duas épocas e como que aconselha que a história da arte deveria ser observada
assim, no levantamento dos sintomas e das repetições sintomáticas. Portanto,

122
MD Magno

ao descrever e separar as imagens dentro de seu catálogo, ele o faz de maneira


a ser uma observação de razão sintomática.
• Patrícia Netto Coelho – Cassirer, vinte anos depois, publica uma
espécie de síntese desses quatro volumes intitulada Antropologia Filosófica.
É uma leitura, na verdade, kantiana. As formas simbólicas são uma extensão
do a priori para as formações culturais.
Ele não se deu conta da existência contemporânea de Freud, da leitura
que Warburg fez dele e da indicação de uma visão sintomal. Pulou para o lado
de Kant e continuou seu caminho. Ou seja, o impacto que teve foi talvez muito
forte, mas não equivalente ao projeto de Warburg.
• Potiguara M Silveira Jr – Em 2016, houve uma exposição no Grand
Palais, em Paris, intitulada Carambolages, que apresentava sequências de
vários tipos de obra associadas por analogia. Em 2017, no Sesc Pinheiros
de São Paulo, houve a exposição intitulada Levantes, esta sob a curadora de
Didi-Huberman e parte de uma mostra itinerante que começou na França,
passou por Barcelona e Buenos Aires. Nela, foram inseridas obras relativas
ao contexto do Brasil. Em ambas as exposições, as ideias de Warburg estavam
explicitamente aplicadas.
Vejam que ele já foi bastante reconhecido.
• P – Você, falando sobre Cassirer, mencionou as formas simbólicas.
Lembrei-me do livro escrito por Jung e seus discípulos, O Homem e Seus
Símbolos (1961), em que há a ideia de um levantamento de várias formações.
Jung faz aí um levantamento de suas ideias de símbolo e de inconsciente
coletivo. Não tem a ver com o projeto de Warburg, que é mais sério, preciso,
inteligente e completamente fora de época. Minha impressão, como disse, é
de que ele, mesmo sem declarar, tem forte influência de Freud, pois faz um
rigoroso levantamento sintomal. É mais ou menos como deveria ser nossa con-
sideração do analisando, tomando todas as formações em jogo e a composição
esquisita que elas fazem em todos nós. Isto, no sentido do esclarecimento e,
talvez, até do rearranjo dessa composição no processo de tratamento, no pro-
cesso de cura, como se diz em francês. Aliás, talvez Cassirer tenha a ver com
Jung, Warburg, não.

123
MD Magno

• PNC – Ao falar em formação, você já disse que há uma composição


mínima que a forma, mas também há co-moção. Isto é interessante para dife-
renciar de símbolo, de simbólico, Gestalt... Há uma dinâmica que, em Warburg,
aparece quase como recalque, mesmo que ele não use o termo: situações de
anacronismo, de esquecimento das imagens...
...de retorno de recalcado. Ele faz o levantamento sem os nomes. O
único nome que aproveita é: Sintoma. Não é possível que um contemporâneo de
Freud, dez anos mais jovem, que está lendo sua obra, não tenha sido tomado por
ela. Pelo menos, ela comparece na obra de Warburg. Ele tocou numa repetição
sintomática dentro da produção de imagens e, como disse, de preferência entre
duas épocas nítidas: o classicismo grego e o renascimento europeu. É óbvio
que o renascimento é uma repetição sintomática do classicismo.
• PNC – É interessante a ideia dele de prancha, em que as imagens
estão justapostas (um quadro, um recorte de jornal...) como aglomerado, no
sentido que você dá ao termo.
É um aglomerado de imagens. É claro que ele pode fazer comparações,
e faz, com a cirurgia, talvez com algumas outras formações imagéticas de
primitivos, etc., mas o importante é não estar se guiando por autor algum da
história da arte, o que era importantíssimo fazer em sua época, ou tampouco por
alguma teoria estética. Ele apenas considerou as formações enquanto sintomas
que se repetem ou se desencadeiam do Inconsciente como retorno. A meu ver,
ele tem uma recepção psicanalítica, e não na base da ignorância, pois leu Freud
muito bem. É um grande mestre quanto à recepção da composição que nos traz
o analisando. Composição esta que, como a de qualquer um de nós, não tem
coerência. Já lhes disse que é um aglomerado e a pessoa precisa arrumá-lo
para ver se entende. O bacana é que ele arrumou e dá uma clareza sobre a
constituição sintomática daquelas imagens, da sua arrumação.
Fico é meio boquiaberto com Binswanger que lhe dá o diagnóstico de
esquizofrenia. É preciso entender que não é apenas o Regressivo que surta.
Um obsessivo, no sentido antigo, um Estacionário dessa ordem extremamente
forte como ele era, também surta. Surta obsessivamente, e pira. Ele foi parar
num tratamento entre psiquiátrico e psicanalítico de Binswanger e “ficou bom”.
Ficou curado de que psicose?

124
MD Magno

• PNC – A inspiração de Binswanger é Heidegger.


Não é preciso fazer esse diagnóstico com Heidegger. É um existen-
cialismo pré-Sartre. Sartre tem um existencialismo francês, urbano e tangen-
cialmente marxista.
• P – Se Warburg está trabalhando com o renascimento, não é de estra-
nhar que haja nele referência à astrologia.
Qualquer estudioso dos astros se metia com a astrologia. Vemos essa
referência nas obras de arte como um saber adequado da época. E não pode-
mos nos esquecer de que pessoas de mente rigorosa se dão com a astrologia,
ainda que indiretamente. A cultura está espalhada e está impregnada em nossas
cabeças. Cada um de nós aqui não sabe qual é seu signo e seu ascendente? Eu
sou capricórnio com ascendente capricórnio. Sou regido por Saturno. O planeta
da Melancolia. Cuidado comigo!
• P – Muita gente olha para os outros a partir dessa lente. Perguntam:
qual é seu signo?
Se olham a partir dela, é porque essa lente está instalada. É um sintoma
que difere entre Ocidente e Oriente. A astrologia oriental é bem diferente, mas
também está regendo as coisas. Meu signo lá é: búfalo de fogo.
• P – Warburg dizia que Mnemosyne era uma história de fantasmas
para gente grande. Há nele um trabalho de arqueologia. Freud se referiu a ela
para falar da psicanálise.
Ele chamou de arqueologia por estar futucando os arquivos, e sua
contemporaneidade com Freud não pode ser esquecida. Não se trata da arque-
ologia de Foucault, pós-Foucault, Alain de Libera... É um arquivo de memória
das imagens. Em nosso sentido, ele está pesquisando repetições sintomáticas,
ou seja, formações que se repetem no Inconsciente.
• PNC – O texto de Freud que conversa com o trabalho de Warburg
sobre as imagens é justamente A Interpretação dos Sonhos.
Reparem que é quase a mesma coisa. Freud levanta as formações de
imagens e de falas e coloca umas ao lado de outras. Para quem é leigo, parece
espantoso como aquelas coisas se juntam. O mesmo acontece com os viciados
em história da arte e estética diante da obra de Warburg, acham espantoso o
que ele faz.

125
MD Magno

• P – Falo agora de algo que me ajudou em nosso estudo sobre a Teo-


ria das Formações. Na aviação, ao planejar um voo, consultamos a “carta de
vento”, que é um estudo dos vetores de vento na atmosfera. Esse estudo é feito
em camadas e, dependendo do nível do voo a ser realizado, conseguimos ver
os vetores e os aglomerados dos ventos. Assim, é possível traçar uma forma
em que vemos as agonísticas da circulação de vento. Achei que poderia ser
uma boa analogia.
São formações espontâneas em jogo com nossas formações não espon-
tâneas, e como elas transam umas com as outras. Ou seja, como se transa uma
máquina de produção secundária como o avião, ou qualquer coisa que voe,
com as transas espontâneas da chamada natureza.
• P – Warburg também tem a noção de “oscilação entre polos”.
Foi bom você lembrar. “Oscilação entre polos” não é senão o Revirão.
Até isso, ele sacou.
• PNC – Há algum tempo, você trouxe a ideia de mineração, que me
parece ser um movimento desses aglomerados históricos.
Assim como dos aglomerados dos analisandos. Interessante no exem-
plo de Warburg é ele estar metido numa situação de consideração das obras de
arte, de estética, de história da arte, etc., ficar inteiramente de fora e fazer uma
transposição radical e séria. Por isso, não querer falar da história da arte, e sim
da história das imagens. Em trabalho algum seu, ele está pensando estética ou
artisticamente o valor das obras. Está apenas levantando as formações como
repetição sintomática. Ali, de cambulhada com a pintura do renascimento e
arredores – maneirismo, etc. –, há de tudo. Alguém muito importante na época,
Botticelli – uma bichona maravilhosa que andava vestida de musa com dois
galgos e era favorito do papa – nada tem de renascimento em sua obra (e War-
burg considera isso). Não há geometria ou teoria da perspectiva em sua obra, e
sim apenas as formações figurativas de representação de mitologia, etc., como
repetição de lá de trás.
Sugeri que vocês observassem um pouco as obras da música, pois lá
é mais fácil fazer esse levantamento de que estou falando. A repetição sinto-
mática numa obra musical é de enorme evidência, muito mais do que nas artes
plásticas. O princípio de repetição é da própria existência da música. Nas artes

126
MD Magno

plásticas, esse princípio comparece mais nas artes decorativas: a repetição


como decoração de uma superfície. Ela é menos evidente nas grandes obras
pictóricas ou arquitetônicas. Por isso, Warburg busca a repetição não dentro
do renascimento, mas entre ele e o classicismo grego. A repetição está numa
grande distância.
• Aristides Alonso – Pensando na Teoria das Formações, há certas for-
mações que se implantaram, algumas há milênios, e têm um poder extremo de
permanência por mais que transformações ocorram a seu redor. Por exemplo,
o poder da geometria euclidiana e do modelo platônico de concepção filosófica
– mundo das ideias, essência, ser... – nos impregnou demais de uma noção de
estabilidade e de permanência das formações. Não herdamos em nossa cultura
imediata as noções de transformação, de transmutação, de metamorfose... A
noção de disciplinas escolares e a separação em pacotes já mudaram sobre-
maneira, mas a cabeça das pessoas permanece com essas separações...
Há quantos séculos a educação no Ocidente, pelo menos, é euclidiana
e, no fundo, platônica? A geometria euclidiana não tem variância. Qualquer
variância transforma. Nela, o erro de um milímetro dá um resultado errado.
Durante anos, fui professor de geometria descritiva, que era o terror dos alunos
e dos vestibulares. Hoje, está meio desmoralizada. Era uma geometria projetiva,
mas inteiramente euclidiana, sem topologia, sem elasticidade mínima.
• AA – Falei sobre isso por termos a contrapartida do momento atual
de instalação de uma cultura computacional digital em que tudo invade tudo.
Há, então, uma pororoca no meio de campo: a cabeça é antiga, mas a dispo-
nibilidade na cultura já não é.
Essa pororoca será tão violenta que, daqui a vinte, trinta anos, acabou.
A universidade vai para o lixo. As disciplinas ainda continuam sendo dadas do
mesmo jeito, e uma não conversa com a outra – é o chamado aglomerado, a
Formação por aglomerados. É um aglomerado de ignorâncias.

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MD Magno

14
Continuo com algumas considerações sobre a Teoria das Formações. Reco-
mendo alguns livros que ajudam na compreensão do que possam ser forma-
ções, nos mais diversos sentidos.
Primeiro, um título de Umberto Eco, que é um semiólogo importante da
segunda metade do século XX, e também um romancista bastante conhecido,
autor de O Nome da Rosa, que se passa na Idade Média em torno da obra de
Aristóteles. Já indiquei [em 2012 e em 2018] e reforço agora a indicação do
livro A Vertigem das Listas, originalmente publicado em 2009 (Rio de Janeiro:
Record, 2010). Ele faz levantamentos os mais diversos de listas escritas, de
descrições de coleções, de arranjos, e mesmo de elementos de uma composição.
Também apresenta obras de arte, que são grandes descrições de formações com
a mais diversa multifariedade. Tomar contato com isso nos dá certa ideia do
que são formações. Cito uma frase do livro quando ele considera Arcimboldo,
um pintor do século XVII que faz retratos e outras composições utilizando, por
exemplo, elementos de flores, frutas, legumes. É o tipo de formação que não
esperamos e, de repente, comparece desse modo. O comentário de Umberto
Eco resume tudo que possa esclarecer sobre a Teoria das Formações na recep-
ção do que um analisando tem a dizer: “É possível passar artificialmente de
um elenco para uma forma”. Se, em nossa escuta, conseguirmos dar atenção
a todas as formações em jogo na composição do analisando, eis senão quando
comparecerá uma forma que lhe é característica. É algo importante em análise,
e é assim que opera a Teoria das Formações.
Recomendo também, de novo, Orlando (1928), de Virginia Woolf, que
ela chama (não de romance, mas) de uma biografia. É um exemplo literário
bem-sucedido de descrição da composição de uma formação cheia de elementos
espaciais, figurativos, narrativos e mesmo temporais sobre um personagem. A
história suposta de Orlando se passa em diversos séculos com um único per-
sonagem. O mais interessante nessa dita biografia é Orlando passar por várias

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MD Magno

peripécias, por vários países, por várias épocas e, num desses momentos, de
repente virar mulher. Não é um transexual no sentido que damos ao termo hoje,
ele realmente vira mulher, passa anatomicamente para outro lado, continua
como personagem desse modo até, lá adiante, desvirar. Parece uma alegoria de
Tirésias, com quem também isso teria acontecido na mitologia grega. Trata-se
da composição de um personagem que é descrito e qualificado pelas formações
que o compõem, assim como é a composição de um personagem analisando,
digamos, no Inconsciente: sem temporalidade cronológica real, em espaços
múltiplos e com mudança anatômica espontânea do sexo.
Alguns críticos literários tomaram esse texto de Virginia Woolf como
abordável ou como um exemplar relativo à chamada Teoria Queer. Aí, entramos
no aspecto mais importante da questão de hoje. Além dela, como sabem, há a
chamada Teoria de Gênero, com outro tipo de enfoque. Tenho em mãos dois
volumes enormes e engraçados, é o caso de dizer, de Eric Marty. São trabalhos
de professor com um balanço possível do encerramento do século XX e do
Terceiro Império. É aquela pletora francesa de meados para o final do século
XX, que acabou por influenciar vários pontos do planeta: Brasil, EUA... Nesses
livros estão todos eles: Lévi-Strauss, Sartre, Lacan, Barthes, Foucault, Derrida,
Deleuze et caterva. Um é Le Sexe des Modernes: Pensée du Neutre et Théorie
du Genre (2021), em que ele discute longamente certa relação desses pensadores
com a obra de Judith Butler, esta, uma espécie de campeã da teoria queer com
postura psicossociológica. Duvido que tenhamos paciência para ler tudo, mas
é bom tomar noção. O outro livro é Pourquoi le XXe Siècle a-t-il Pris Sade au
Sérieux? (2011). O que temos a ver com isso?
Segundo meu ponto de vista, Lacan fecha com chave de ouro não
só o século XX como o Terceiro Império. Trata-se de cristianismo, se não
mesmo de catolicismo, passado a limpo em termos da psicanálise e do final do
século XX. Na verdade, podemos encontrar na obra de Lacan a manutenção
das ideias de cristianismo e de catolicismo com novas definições inteiramente
abstraentes. Mas, se perseguirmos o raciocínio, veremos que se trata de, talvez,
o modo psicanalítico de ter passado a limpo o Terceiro Império com todas as
suas características mais evidentes no pensamento ocidental. Quanto a Eric
Marty que se pergunta sobre a relação do século XX com a obra do Marquês

129
MD Magno

de Sade, e por que o século o levou a sério, digo-lhes que, muito pelo contrário,
o século XX não levou Sade a sério. Nem mesmo Lacan. Acho que Marty
está dizendo que levar a sério é considerá-lo segundo a composição das teorias
desses autores de que ele trata.
Como sabem, Lacan tem um texto primoroso e considerado um dos
mais importantes de sua obra, Kant com Sade (1963). Há tempo, fiz a brin-
cadeira com o título: Cante com Sade. Chamava a atenção para o fato de que
devia considerar o Marquês de Sade um verdadeiro cientista da relação da
sexualidade com os poderes constituídos, um cientista da sexualidade. Con-
tinuo achando isto, entretanto quero supor que, no caso do texto de Lacan, a
máxima de Sade – o direito sem limites ao gozo que qualquer pessoa pode
invocar sobre outro – foi tomada com relação a um princípio de Kant como
se fossem a mesma coisa. Lacan a toma como correspondente ao imperativo
categórico de Kant. Sade tomado como kantiano ao extremo, em obediência às
duas regras kantianas: a universalidade da máxima e a indiferença da máxima
quanto ao bem, quanto ao objeto. Não concordo. Do ponto de vista que assumo,
além de Sade ser um cientista da sexualidade e da relação dessa sexualidade
com os poderes, considero que ele escreve ironicamente. Sua máxima não é
uma repetição séria – levada a sério, no sentido de Marty – como foi tomada
por Lacan. Para mim, é uma máxima irônica. Basta entender um pouco de sua
biografia para ver como ele sofreu nas mãos dos poderes e passou a assumir
uma posição irônica, como se estivesse dizendo: Os outros, os poderes, é que
são kantianos e sádicos no sentido usual. A obra de Sade é uma denúncia do
que os sistemas fazem com as pessoas. Somos a vítima de toda aquela aparente
maldade sexual. Considero agora um pequeno fato da história do Ocidente: a
escravidão negra, que é absolutamente cabível no raciocínio do Marquês de
Sade. Tomamos uma pessoa, transformamos em propriedade particular e usamos
dela, gozamos dela das maneiras que quisermos, até de sua própria morte. Eis
aí um exemplo de exercício sadiano. Continuando, repito: o Marquês de Sade é
irônico. Descreve as barbaridades que o sistema ocidental, francês, etc., exerce
sobre as pessoas. Como lembrete, quem são os personagens que constituíram
o teatro de Os 120 Dias de Sodoma ou a Escola de Libertinagem (1785)? São
nobres, bispos...

130
MD Magno

Vamos ao ponto chave para nossa crítica e consideração. A psicanálise


não é teoria queer. A psicanálise não é teoria de gênero. Não é a baboseira
que corre o planeta ante a explosão dos comportamentos sexuais e eróticos,
que está sendo considerada das maneiras as mais idiotas quando vista a partir
do pensamento psicanalítico. Ou seja, a psicanálise não precisa de teoria queer
ou de teoria de gênero, que são inferiores a seu pensamento. Isto porque a psi-
canálise pode ter, se quiser utilizar, a Teoria das Formações, a qual considera
cada caso em sua especificidade. Ela tem a consideração sobre um Primário
composto de duas formações – Autossoma e Etossoma –, para as quais, como
lhes apontei, não há necessidade alguma, mesmo do ponto de vista genético,
de que o Autossoma seja congruente com o Etossoma. Já temos, por aí, em
nível Primário, uma miríade de formações de comportamento sexual possível.
Acrescente-se que esta espécie não é meramente animal. Ela, mediante o com-
parecimento do Originário, construiu um Secundário vigoroso e muitas vezes
poderoso. Secundário este que também interfere na composição das sexuali-
dades e dos pendores eróticos. Portanto, teoria queer e teoria de gênero são
bobagens se comparadas com a consideração dos comportamentos eróticos
da espécie segundo uma Teoria das Formações que leve em consideração as
formações primárias e as secundárias e que aponta que cada caso é um caso. Se
alguns casos podem fazer coletividade, tudo bem, podem encontrar parceiros
da mesma composição – que, aliás, jamais será exatamente a mesma.
• P – Para essas teorias, existiria identidade, uma identidade de
gênero...
Nada impede que se retire uma identificação numa análise. Trata-se, ali,
de uma pessoa, que tem uma composição específica. Se quisermos chamar isso
de identidade, podemos chamar. Ou seja, um analisando, em sua análise, pode
concluir por uma identidade pessoal, mas isto nada tem a ver com o conceito
de identidade dessas teorias de que estamos falando.
• Patrícia Netto Coelho – Suponho que você colocaria as configura-
ções cromossomiais no Autossoma. Digo isto porque, na própria biologia, no
estudo da determinação cromossomial do sexo, já se mostrou que não temos
dois sexos...

131
MD Magno

Isso já é bastante complicado. A aparência da anatomia pode até gene-


ricamente parecer binária, mas não o é. Tanto mais no nível do Etossoma, em
que será uma composição específica do ponto de vista, digamos, do compor-
tamento neo-etológico da pessoa. E quando o Secundário comparece, aí é a
zorra. Tudo isso estava aprisionado numa ideologia que funcionou mais ou
menos até quase final do Terceiro Império. Ela explodiu, não se acredita mais
nesse ideologema, e sexualidade é: sabe-se-lá-o-quê. É a saber, caso a caso. As
teorias que têm aparecido com sabor sociológico ou pseudo-biológico são tão
falsas e ideológicas quanto as antigas. Feminismo, etc., tudo besteira, falta de
reconhecimento do falecimento do Terceiro Império. Não estão dando passos
adiante, e sim dentro do mesmo esquema, inventando teorias absurdas para
situar a questão sexual no comportamento contemporâneo.
• P – As tecnologias e as próteses em expansão atualmente não fazem
diferença, não estão indo para a frente?
Isso é apenas uma das circunstâncias do fenômeno. Do ponto de vista
da psicanálise, o importante é entender a composição de uma pessoa em sua
história clínica. É a pessoa conseguir se reconhecer nessa composição e se
libertar dentro de seu próprio processo.
• P – Você citou Umberto Eco: “É possível passar artificialmente de
um elenco para uma forma”...
É uma frase precisa do ponto de vista da Teoria das Formações.
Recebemos todas as informações de um analisando, um elenco, uma composição
vastíssima. Como passar daí para uma forma que, digamos, o desenha de modo
que possa assumir essa composição para ele?
• P – Quando se faz o elenco, estamos ainda no nível do aglomerado
das formações?
Estamos distinguindo as formações em jogo. É interessante, às vezes,
quando, há décadas – existem pessoas que ficam esse tempo todo interessadas
em se pronunciar em análise –, estamos considerando uma analisanda, por
exemplo, e a vemos trazer uma formação que não tinha coragem de apresentar
antes. Ou seja, no caso, não tinha coragem de fazer uma crítica clara, até com
certa vidência, do comportamento de sua família. Dos pais, por exemplo. Aquilo
nunca tinha sido dito, e quando ela se deu conta e contou, deu sentido ao resto

132
MD Magno

todo da análise. Alguma coisa estava faltando para aquilo fazer sentido. Uma
formação oculta é capaz de fazer a pessoa não entender sua análise. Isto por
ela não levar em consideração uma formação importantíssima na composição
de sua sintomática. Ela sequer pôde reclamar aquela formação evidente para
seu elenco porque estava debaixo de uma interdição amorosa ou de outro tipo.
Frequentemente acontece de essa coisa que ficou não dita durante tanto tempo
ser a que vai organizar todas as outras. Aquilo estava como último recalque
remanescente da repressão. Como é uma composição, se há um elemento impor-
tante que permanece recalcado e não dito, ele, de certa forma, está organizando
todo o resto, mas não está sendo reconhecido nessa organização. Então, aquilo
fica meio sem sentido e, quando comparece, organiza tudo.
• P – Haveria, então, um salto qualquer de um aglomerado para uma
forma?
A coisa se configura, a pessoa agora tem um retrato, um desenho geral
de sua sintomática primária e secundária. A pessoa pode reconhecer seu retrato
e, melhor ainda, pode aceitar e aplaudir, desde que seja mesmo a sua formação.
Por outra via que não essa, Lacan dizia que uma análise termina no “Tu és
isto”. Só que a análise de Lacan termina, a minha jamais. Para mim, só defunto
termina a análise.
• PNC – Na teoria das listas de Umberto Eco não temos uma classifica-
ção. O que ele está chamando de “forma” é algo infinito em sua possibilidade
de enriquecimento. Tem franja ali.
E percebemos o reconhecimento de certa lei de composição, que é (não
uma classificação, mas) uma descrição.
• PNC – O que você enfatiza em relação à Teoria das Formações é
justamente sua capacidade descritiva.
Como as formações são polos com foco e franja, o que temos é certo
retrato. Não as abrangemos por completo, mas elas têm configuração. Começa
a aparecer um rosto e a pessoa, em sua análise pessoal, pode acabar por se
reconhecer em sua composição – e assumi-la com todos os comportamentos
que ela preconiza.
• P – Você já disse que a análise mexe no texto do Secundário.
É por aí que ela começa.

133
MD Magno

• Aristides Alonso – Na literatura, as listas constituem um modo essen-


cial de muitas obras. No Quixote, a parte sobre a biblioteca é exemplar. O
padre e o barbeiro tentam eliminar os livros um a um jogando-os pela janela.
Há todos os livros conhecidos de cavalaria, livros aliás que Cervantes usou
para compor o próprio Quixote. Temos também A Divina Comédia com a lista
das punições e do inferno.
E também temos a biblioteca de Warburg.
• AA – E a própria biblioteca de Umberto Eco, que tinha trinta mil
livros. Os 120 Dias de Sodoma, que você mencionou, não deixa de ser uma
lista das possibilidades de exercício de práticas sexuais. Quanto à questão da
teoria de gênero, acho mesmo a teoria queer mais avançada, entretanto, ape-
sar da fractalização que ambas apresentam, são teorias de Terceiro Império.
Empregam a mesma modalidade e o interesse é de exercício político. Essa
multiplicidade, em vez de trazer uma convivência, acirra as diferenças a ponto
de levar à luta quanto a modos assentados das formações.
Essa mentalidade de Terceiro Império está constituindo guerra, luta,
inútil. Para que serve o conceito de gênero? Para nada. Nem do ponto de vista
autossomático serve. Quando é meramente ideológico, o que acontece é haver
excessiva configuração e, ao invés de ser uma teoria de libertação, o que temos
são teorias de embate político.
• AA – Ao dizer que Sade escreve ironicamente, há o deslocamento
para uma dimensão artificialista que não fica evidente no texto de Lacan.
É exatamente isso.
• AA – O mesmo valeria para Maquiavel: a descrição da situação
serve tanto para seu entendimento como também explicita seu avesso.
Sim. Acho mesmo que Lacan quis dar uma porradinha em Kant e errou
o alvo. Como disse, considero a obra toda de Sade irônica. Ele está descrevendo
quem? Nós.
• PNC – A ideia de gênero está em Aristóteles. É algo reificado.
Não tem mais sentido depois das descobertas da ciência, da psicanálise.
E mais, devemos evitar certos tipos de termo – identificação, por exemplo – por
serem parentes próximos das bobagens de Aristóteles. São termos infectados
demais.

134
MD Magno

• PNC – A literatura também sofre disso. A ideia de gênero literário é


hegeliana: romance, poesia, teatro...
E também de personalidade do escritor. Algo que Fernando Pessoa
e Joyce destruíram. O que vemos, então, é um vasto sofrimento de sintomas
velhos, desgastados. São fósseis sintomáticos. Como já disse, só há um gênero:
o sui generis.
• Potiguara M Silveira Jr – Você mencionou recentemente que a física
pode soltamente discorrer sobre processos de reversão e inversão das for-
mações por não estar lidando com a sexualidade. A psicanálise é vista como
problemática justo por partir do Sexo e das articulações da sexualidade. Já se
passaram mais de cento e vinte anos de seu início, e a questão do sexo insiste
em continuar num primarismo de consideração teórica e em termos de mundo.
E também pela psicanálise. É o ponto mais difícil. Se o paradigma da
psicanálise é sexual, podemos imaginar as dificuldades decorrentes disso. A
própria psicanálise tem vários pequenos defeitos ideológicos em sua concepção
desde Freud.
• AA – Em grandes construções teóricas, muitas vezes o pensador está
em agonística com seu tempo, com as heranças que recebeu, está respondendo
a eles. Freud, diante da questão da modernidade, da racionalidade, teve que
colocar uma cunha ali e ficar martelando. Quando lançado para a frente,
esse pensamento fica um pouco contaminado das resultantes das formações
da guerra que teve que travar.
Ninguém escapa disso. A coisa está configurada ao seu tempo e, inclu-
sive, dentro do estágio a que pertence. Terceiro Império não é brincadeira,
existiu mesmo, poderosamente, com uma absurda capacidade de definição para
resolver seus problemas de poder. Como devem saber, os negros escravizados
no Brasil não tinham alma, eram animais. Os jesuítas eram a garantia disso.
Notem que isso aconteceu anteontem aqui.
• AA – As mulheres também foram suspeitas de não ter alma.
Elas tinham uma alma muito esquisita. Vejam que eles inventavam
qualquer coisa para sustentar o poder.
• Lia Guarino – Também, quanto a isso, houve um debate em relação
aos índios. Descobriu-se que eles riam e o riso, segundo Aristóteles, é uma das

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MD Magno

descrições do homem. Então, o índio era homem. Uma peça teatral sobre essa
situação, A Controvérsia, baseada no debate entre o frei José Bartolomeu de
las Casas e o teólogo Juan Ginés de Sepúlveda (1550-51), foi encenada com
Paulo José no Rio em 2000.
Os precursores da PUC é que declararam que eles não tinham alma.
Imaginem a brincadeira que é Sade diante dessa realidade. Ele é de uma leveza
encantadora.
• AA – Na escola em que dei aula, decidiu-se que pessoas trans pode-
riam usar o banheiro das mulheres. Na porta, colocaram uma tabuleta, o que
suscitou uma longa discussão. É algo tão bizantino quanto essa discussão
sobre os índios.
Na casa das pessoas, não há tabuletas e todos usam o mesmo banheiro.
Lacan colocava a diferença sexual como uma questão de tabuletas nas portas
dos banheiros. Vejam que se trata apenas de tabuletas.
• P – Em Ad Rem (2008), diz você que “Não há possibilidade de se
falar de algum universal. O que há, sim, é possibilidade de tomar como univer-
sal, de considerar como universal para efeitos de operação” (p. 147). É mais
uma questão de postura do que de alguma universalidade na consideração das
situações e dos casos.
Limita-se o problema tomando como tal, o que é estritamente local,
regional, momentâneo, etc. Mudada a situação, muda de configuração. Na
própria física, a rainha das ciências duras, o universal acabou. Não se sabe se o
universo ali do lado tem outro tipo de legislação. O Quarto Império é movente.
• LG – Você tem se referido também ao campo musical para exempli-
ficar a composição das formações...
No campo musical é mais evidente encontrar e distinguir formações,
mas é menos claro porque elas não têm conteúdo necessário. O conteúdo geral-
mente é uma regra de composição. A não ser quando a música é programática
ou está ligada à literatura com texto, como é o caso da ópera, da canção, etc. A
música propriamente dita não tem semântica determinada.
• LG – Vê-se o desenho sonoro.
E mesmo pela escrita vemos as formações com clareza.

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MD Magno

15
O foco hoje será colocado sobre Teoria do Conhecimento em termos de Teoria
das Formações.
Outro dia, na chamada CPI da Covid, uma jovem médica defensora
da vacina, etc., com a visão bastante antiga e defendendo a ciência, pedia que
se partisse da distinção entre fato e opinião. Algo interessante, mas completa-
mente datado. Já não há mais possibilidade de fazer com alguma precisão essa
distinção. Os paradigmas faliram, e esse tipo de paradigma é de vertente antiga.
Um pedido desses, que parece conduzir a uma situação mais respeitável em
relação à chamada ciência, não colabora com nada. É uma pena.
Podemos considerar conhecimento a resultante utilizável de qualquer
transa entre formações. Não apenas do conhecimento científico, que costuma
ser assim denominado pelas chamadas epistemologias. O conhecimento será
maior ou menor, mais ou menos preciso, em função do refinamento da transa
entre aquelas formações. Ao contrário da paranoia epistemológica do século
XX, a metanoia gnoseológica de agora não coloca barreiras distintivas nos
conhecimentos. O conhecimento é gradual. Ao invés de distinções, consideram-
-se gradientes. Isto, desde os conhecimentos primitivos até a mais requintada e
abstraída das teorias da física contemporânea. Nem epistemologia, nem herme-
nêutica. Não existe nenhum “espelho da natureza”, como já apontou Richard
Rorty (1979). Para a psicanálise, o que existe é a transa entre as formações.
É Phrónesis contra episteme. Todo conhecimento só pode ser progressivo e
em gradientes, desde o mais primitivo gesto, ou gesticulação, por uma crença
ingênua até a mais refinada e sofisticada dita teoria científica – tudo é conhe-
cimento. Toda transa entre formações resulta em conhecimento.
A psicanálise, em sua tarefa – que, em última instância, é clínica e,
portanto, repercute em suas posições teóricas –, não pode não ser pragmatista.
Não há outra posição para ela. Teoria alguma psicanalítica interessa se não
mantiver o sentido da cura. Portanto, do exercício da clínica. Portanto, uma

137
MD Magno

prática em busca de resultados. Freud, Lacan e tutti quanti só interessam ao


exercício da clínica. Clínica pessoal ou Clínica Geral são a prova dos nove da
ciência do Inconsciente. Não pode não ser um pragmatismo, repito. Tomem
contato com os iniciadores e desenvolvedores da ideia de pragmatismo. Parece
que começa com Charles Sanders Peirce, que viveu entre 1839 e 1914. Há, em
seguida, alguém menos conhecido e também menos interessante para nós, Josiah
Royce, membro do idealismo americano, que tem Hegel demais na cabeça e
viveu entre 1855 e 1916 – portanto, contemporâneo de Peirce. O grande nome
que vem a seguir é o do filósofo John Dewey, que tinha vinte anos a menos
que Peirce e viveu de 1859 a 1952. Ele encarava a filosofia, e a definia assim,
como uma reflexão sobre a experiência dos homens no mundo, o que é bem
mais abrangente do que qualquer ideia epistemológica. Aluno direto de John
Dewey foi o meu mestre Anísio Teixeira, que viveu entre 1900 e 1971. Nos
Estados Unidos, houve uma rebarba pragmatista com o filósofo Richard Rorty,
que chamava seu trabalho de neo-pragmatismo e viveu de 1931 a 2007. Em sua
obra, estabeleceu uma intensa e permanente guerra com a filosofia. Ele concebia
seu pensamento da filosofia como tratando com um mundo sem referenciais
fixos – o que é bastante mais próximo da ideia de Quarto Império.
Para o pragmatismo, a validade de uma doutrina é determinada por seu
êxito prático, por servir para alguma coisa. Mesmo que não ache aplicações
exatas, uma teoria pode ficar em suspenso esperando por isso o tempo que for
preciso. Mas é ao achar sua aplicação que ela nos servirá. Então, o pensamento
pragmatista que temos na clínica psicanalítica exige consequências práticas.
Uma afirmação sem relação com a experiência passa a não ter sentido. Algo
importante no pensamento pragmatista, bem trabalhado e explicado por Peirce,
é a diferença entre indução e abdução, que para nós em análise interessa muito.
São duas posturas diversas de conhecimento. Para a indução, o pensamento
indutivo, tudo que fazemos é generalizar a partir de um número de casos sobre
os quais algo é verdadeiro e inferir que o mesmo é provavelmente verdadeiro
sobre toda uma classe. O pensamento indutivo é o mais utilizado e recomen-
dado. Segundo Peirce, na posição de abdução – que é parecida com o que
chamamos de sacação – passamos da observação de certos fatos à suposição
de um princípio geral que, se fosse verdadeiro, contaria como, isto é, explicaria

138
MD Magno

os fatos inferindo o que eles são. A mais importante manifestação da abdução


é o processo de chegar a uma hipótese. Notem que, no trato analítico, é bem
mais frequente a abdução do que a indução. No estabelecimento da teoria, a
indução é importante, mas, no trato da análise, a abdução é mais frequente:
manter a observação dos fatos psíquicos no sentido de destacar uma hipótese.
Isto, mesmo para produzir a teoria psicanalítica. Podemos, então, dizer que a
indução é raciocinar de particulares para uma lei geral. Já a abdução raciocina
dos efeitos para as causas: observa os efeitos e faz hipóteses sobre suas causas. A
indução classifica as coisas, a abdução explica. É parecido com o famoso “Freud
explica”. A posição pragmatista diz que a ciência é fruto da busca concreta de
um grupo real de acontecimentos, sendo assim algo em perene e persistente
crescimento – work in progress. Qualquer definição precisa e acabada deve ser
evitada. A ciência para Peirce é, pois, conhecimento em movimento. Ou seja,
não é uma definição epistemológica, e sim o resultado do desejo do cientista.
É uma postura mais parecida com a nossa.
Como sabem, esse pessoal do pensamento pragmatista, sobretudo
Peirce, é fundador da semiótica. Toda anamnese – e isso é pensável em clínica
psicanalítica – é uma semiótica. Não gosto deste termo por parecer semi-ótica,
um olho que enxerga pela metade. Prefiro o termo mais usado pelos europeus:
semiologia. A semiologia médica, por exemplo, é muito antiga na formação
dos clínicos e, portanto, presente nas mais antigas faculdades de medicina do
mundo. Sem essa percepção abdutiva semiológica do médico, ele não fará diag-
nóstico algum. Já a semiologia geral é a visão geral dos sinais e sintomas, que
começa na Europa depois de Saussure como ciência geral dos signos. Sêmeion,
em grego, quer dizer sinal, signo. Na década de 1970, eu trabalhava numa edi-
tora universitária de livros e criei uma coleção com esse nome. Se consideramos
a obra de Freud, veremos que ele sempre buscou uma compreensão semiológia
das formações do Inconsciente. Lacan, no abandono da semiologia, entrou
fazendo referências diretas à linguística como uma semiologia muito particular
até à chegada da abstração de seu (não de Saussure) conceito de significante.
Eu estou de retorno à semiologia reconsiderada como Teoria das For-
mações, a qual pode ser considerada um abrangente da semiologia. Durante
anos, fui professor de semiologia em várias faculdades: PUC, Hélio Alonso,

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MD Magno

Estácio, Eco/UFRJ. Na linhagem europeia, temos: Saussure, Barthes, Eco...


Na América, o pragmatismo com Peirce, William James, Dewey... Pergunto:
a Teoria das Formações é uma semiologia? Não! A semiologia é que é uma
teoria das formações. Qualquer semiologia depende, primeiro, de uma teoria
das formações. Então, não é que estejamos subditos à ordem semiológica, e sim
que ela é considerada por nós no cerne da Teoria das Formações. Isto porque a
Teoria das Formações inclui o pensamento freudiano mais grande quantidade
de conhecimentos paralelos além da conhecida semiologia. Posso, então, dizer
que a Nova Psicanálise, ou NovaMente, é um pragmatismo instrumentalista, um
positivismo gnoseológico sem metafísica. Ou seja: metapsicologia freudiana.

16
Tentarei, então, agora, introduzir o que pode ser nossa teoria do conhecimento.
Enviei a vocês a reprodução da litogravura de Escher, Mãos Dese-
nhando [Drawing Hands] (1948). Escher viveu de 1898 a 1972, é bem con-
temporâneo nosso (e também de Anísio Teixeira). Estudem toda sua obra, é
fundamental. Seu pensamento é plástico, sobretudo através de gravuras. Nele,
iremos entender o quê?: Metamorfoses, anamorfoses, revirões aos montes...
Tecnicamente, ele se baseia na arte muçulmana, que não tem figuras, só cons-
truções geométricas. Sua obra tem figuras, e porque as tem vemos claramente
o que é um Revirão. Há, por exemplo, anjo e demônio como dois alelos do
mesmo Ponto Bífido (Limite Circular IV, 1960): xilogravura com uma con-
figuração em que anjos e demônios são avessos um do outro sobre a mesma
superfície plana. São: várias viragens, uma coisa vira na outra; inúmeras bifi-
didades; a unilateralidade (suas gravuras sobre a banda de Moebius apresentam

140
MD Magno

o pensamento unilateral); o conceito de nodulação, que Lacan usou demais; e


a retomada da perspectiva exata do renascimento mediante deformações que
mantêm e anulam a ideia de perspectiva (como se mostrasse aquilo figurado
e geometrizado euclidianamente e não euclidianamente) – é a geometrização
euclidiana e não euclidiana do Inconsciente.
Digo, então, que, para nossa teoria do conhecimento – que não é episte-
mologia ou hermenêutica –, devemos tomar a gravura Mãos Desenhando como
um dos mais sutis pensamentos de Escher – mediante o pensamento plástico, é
claro. São: As Mãos do Escher. Ele desenha um aglomerado sobre o qual está
desenhada uma folha de papel presa com quatro tachinhas. Neste papel, dese-
nhado sobre o desenho do aglomerado, desenha duas mãos, cujo modelo são
as mãos dele mesmo (por isso, disse que são as mãos do Escher). Ele começa a
desenhar os punhos da camisa em termos estritos de um desenho sobre o papel
e, à medida que vai evoluindo, o desenho vai saindo do papel. É o efeito plástico
que ele dá: o desenho transborda o papel e vai parar sobre o aglomerado como
se as mãos estivessem saindo do desenho e se tornando realidade. Isto interessa,
pois como se constitui uma realidade? Exatamente assim – uma realidade não
é senão isso: essa construção nova que sai da articulação dos pensamentos se
constitui como exemplar da realidade. Mas esse trabalho de Escher, juntamente
com todos os outros, é mais importante do que isso.
O que se concerta com essas mãos na gravura de Escher? Temos a
mão que desenha a mão que a desenha. Esta é a teoria do conhecimento
de Escher, de que me aproveito para ser a minha teoria do conhecimento. Com
isto, estou dizendo que todo conhecimento, de qualquer tipo, de qualquer nível
ou qualquer valor, depende do que se passa entre as mãos de Escher. É uma
concepção que me parece radicalmente nova da teoria do conhecimento em
função da Teoria das Formações. E o que acontece entre as mãos de Escher?
O mesmo que acontece na produção de qualquer conhecimento, de qualquer
tipo, nível ou valor, que são formações que produzem as formações que o
produzem. Existem formações do lado de cá, nossas, que estão em transa com
formações do lado de lá, seja o que forem lado de cá e de lá. As formações do
lado de cá estão tentando desenhar formações que lhes parecem estar do lado
de lá. Acontece que as formações do lado de lá, seja qual for sua realidade

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MD Magno

real, digamos assim, só expõem para formações que as podem considerar.


Então, elas só se constituem mediante a constituição das formações de cá.
Por isso, o conhecimento é tão difícil e tão precário, passa por formações
primitivas singelas e pode chegar a formações sofisticadas. Tudo depende do
que as formações de cá podem destacar nas formações de lá – as quais, nessa
transa, começam progressivamente a se mostrar a novas composições mediante
o funcionamento e a transação interna das formações de cá. E as formações
de cá participam de um grande acervo de formações que pode se modificar à
medida que as formações de lá mudam. Isto porque são consideradas por outras
novas formações. Elas não mudaram, mas começam a se apresentar de outra
maneira. Então, elas, que estão desenhando minha ideia daquelas formações,
estão desenhadas por minhas concepções pelas formações que me constituem.
Uma mão desenhando a mão que a desenha. Nunca vi coisa mais brilhante em
termos de teoria do conhecimento, o que está completamente de acordo com
nosso tempo. Epistemologia e hermenêutica acabaram, estamos entrando numa
nova era de pensamento.
Generalizemos o termo científico. A ciência do homem primitivo,
repito, também é ciência. Foi o conhecimento que ele produziu. É precário,
simplório, pobrezinho, mas foi produzido do mesmo modo: tomando o acervo
de formações de cá, aplicando sobre o complexo de formações que estão se
apresentando diante dessas formações. E numa transa tal que o conjunto desse
acervo modifica o comparecimento do outro no outro, que, no que comparece,
modifica o comparecimento de cá: a mão que desenha a mão que a desenha.
Cientistas e epistemólogos deviam ter olhado Escher a tempo.
Quanto a nós, precisamos desenvolver muito a Teoria das Formações
e testá-la cada vez mais. Nosso próximo Mutirão de Estudos será justamente
sobre a Teoria das Formações – mãos à obra! Como um Escher.
• Patrícia Netto Coelho – A propósito da abdução e da semiologia,
lembro-me de sua teoria dos signos (1989), em que há modificações tanto em
relação à linguística quanto à própria semiótica. Assim, a ideia de Gnomo como
uma formação de formações do Haver arroláveis na formação Significante /
significado também pode ser lida a partir da análise que você fez da litografia

142
MD Magno

de Escher. Isto porque, à medida que outras formações do Haver são arroláveis
pelo signo, haveria ali também uma metamorfose desse signo.
A realidade começa a entrar em metamorfose. O que acontece é que ela,
por isso, desenha o lado de cá que também entra em metamorfose. E o conhe-
cimento depende de metamorfose, anamorfose e de todas essas transposições
de configurações que se dão na transa da mão de lá com a de cá. Essa é a teoria
gráfica de Escher. Em geral, o melhor que dizem os autores é que é paradoxal,
mas não há paradoxo algum na obra de Escher. O que há é, sim, constituição, o
mais possível geométrica, de transa de formações. Ele fica muito impressionado
com a trama dos desenhos da arte muçulmana que, proibida de representar a
figura humana, partiu para um geometrismo quase delirante. Escher não segue
essa linha e insere a figuração de maneira bífida, sempre com Revirão.
• PNC – É possível comparar o que ele fez com a temática árabe com
o que você fez com a nosologia? Tínhamos lá um sistema classificatório, indu-
tivo – não foi por abdução que se chegou às categorias nosológicas (psicose,
neurose e perversão) –, e você, mediante a Tópica do Recalque, constitui a
Patemática (2005) como descrição e explicação segundo uma perspectiva não
apenas dinâmica como também econômica. A ênfase está mais na transforma-
ção do que nos estados que, estes, são aqueles considerados pela nosologia.
A descrição da Patemática é de momentos significativos, mas os gra-
dientes todos devem ser considerados. Esta teoria situa momentos de significa-
ção que não são estanques, têm uma dinâmica, os gradientes e as sobreposições.
São indicações de configuração. É como olhar uma gravura de Escher e ver
um demônio, um anjo... Há gente que fica só com demônios. A nosologia é
limitada e indicada para uma pessoa. Não é assim que deve ser o trato, pois
cabe buscar as formações que lá estão. Encontraremos várias, às vezes com
uma hegemônica, uma histeria dominante, por exemplo, mas o resto não está
necessariamente ausente. São formações do psiquismo que comparecem com
muita frequência. Já repararam que há dias em que acordamos obsessivos, outros
em que ficamos muito histéricos? Há mesmo dias em que ficamos inteligentes,
produtivos... Não há desenho fixo, isto é que é bacana em Escher e seu processo
plástico, a gravura, é da maior fixação.
• P – A passagem de um a outro patema seria algo como a anamorfose?

143
MD Magno

Anamorfose não é metamorfose. Esta é a transformação de uma con-


figuração em outra completamente diferente. Por exemplo, se você observar
uma lagarta no momento certo – como, aliás, ocorreu comigo na infância –,
poderá vê-la entrar em metamorfose, virar borboleta e voar. Anamorfose é
quando se pratica uma deformação sobre uma figura de modo a não reconhe-
cê-la mais. Será preciso achar o ângulo ou a recomposição certa. Uma figura
desenhada sobre uma lâmina de borracha, quando esta for puxada ela entrará
em anamorfose e não mais se reconhecerá a figura. Como sabem, é o caso do
quadro Os Embaixadores (1533), de Holbein, colocado na capa do Seminário
XI (1973), de Lacan. Temos lá a empáfia dos embaixadores com uma folha de
papel enrolada jogada no chão meio em diagonal, a qual, olhada pela tangente,
mostra-se como um crânio. É a morte ali introduzida sacaneando os personagens
sem que percebam. Na Patemática, o que temos são: Morfoses Estacionárias na
dependência de certo vigor de recalque; Morfoses Progressivas que conseguem,
digamos, burlar o recalque de algum modo; e as Morfoses Regressivas que
têm a mesma relação com o recalque, mas, nelas, o recalque é excessivo de tal
maneira que o conjunto de formações recalcantes é tão grande que como que
cobre radicalmente a formação de base que poderia ser Progressiva tornando
quase que impossível chegar a ela. Isso não é metamorfose ou anamorfose, e sim
da ordem do gradiente de pressão recalcante. E mais, há pessoas Progressivas
numa região de suas formações e Estacionárias em outra.
Ninguém é, na terminologia antiga, obsessivo, histérico, psicótico.
Temos o caso famoso de John Nash considerado psicótico, mas que ganhou o
prêmio Nobel de economia. Ele era alguém atacado por formações regressivas,
tinha alucinações, mas em seu campo de conhecimento era genial e produtivo.
Não há paradoxo algum aí, são formações vizinhas, uma funcionando sem
incomodar a outra. O mesmo acontece com a sexualidade: uma formação pri-
mária autossomática nada tem necessariamente a ver com a formação primária
etossomática. Há que entender que, em Nash, havia uma psicose e também um
Progressivo. Ele é composto de formações, não é sujeito ou animal definido
algum. Por que os professores de Einstein achavam-no um menino burro? Que
formações em sua cabeça estavam competindo com as formações de interesse
dos professores a ponto de ele não lidar bem com aqueles interesses? Já lhes

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contei que quando jovem dava aula de geometria euclidiana no primeiro ano
de um ginásio do estado. Certo dia, coloco o compasso no quadro, desenho
um círculo, e um garoto que todos, os professores inclusive, achavam meio
doidinho levanta a mão e diz: “Não dá, não é assim. O Sr. rodou o compasso e
quando ele chega lá já não é o mesmo”. Ele não sabia dizer, mas era genial seu
raciocínio. O que lhe disse foi que Euclides, em seu raciocínio, não considerou
aquilo, e sim outra coisa. Eu estava ensinando apenas uma forma de contar, e
não uma realidade. Do ponto de vista do garoto – topológico, digamos assim
–, como poderia ser o mesmo ponto se o compasso girou? Era, para ele, uma
questão séria.
• Aristides Alonso – Primeiro, o que você acaba de dizer muda a abor-
dagem do que quer que seja que venha como formação de um aglomerado que
chamamos de Pessoa. Isso tem um importante efeito clínico e muda a postura
em relação às outras concepções. Segundo, à medida que você falava sobre o
conhecimento, lembrei-me das questões que você abriu em Ad Rem (2008). A
teoria da transa das formações implica toda a concepção da Nova Psicanálise
enquanto paradigma sexual. Não há como pensar o que você está falando fora
dessa ordem paradigmática. Essa transa tem o timbre do pulsional inscrito em
todas as suas operações. Ao mesmo tempo, está subdita à ordem da Quebra de
Simetria que vem em sucessão no processo inteiro dentro do Haver. Portanto,
paradigma sexual e Quebra de Simetria são pontos de partida fundamentais
para articular as questões que você traz. Terceiro, a Teoria da Informação é
bem poderosa hoje e algumas vezes há confusão entre informação e conheci-
mento. Eu diria, então, a partir do que você vem trazendo desde o Ad Rem,
que há uma diferença enorme entre os dois. Embora a Teoria da Informação
seja um modelo extraído do conceito de entropia na física, não implica a ordem
do sexual como a NovaMente coloca. Assim, a teoria do conhecimento da
NovaMente, a Gnômica, é mais ampla do que a teoria da informação, a qual
pode servir como ferramenta de abordagem do conceito de Formação. Ou seja,
é possível, uma vez polarizada com foco e franja, tomá-la como ferramenta.
A Teoria da Informação é um caso da Teoria das Formações. Se a
Teoria das Formações é um passo, ela é mais abrangente. A partir dela, é pre-
ciso entender quais são as efemérides dos elementos que compõem a teoria da

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informação. É algo complicado de pensar, pois são efemérides de transas que


constituem até a informação. Qual é a constituição da informação? É entre as
mãos de Escher.
• AA – Já, quanto à sua concepção de conhecimento que inclui o
Conhecimento Absoluto, suponho que não seja possível falar em Informação
Absoluta.
Não existe isso. Informação Absoluta é: nada. É lá em Meister Eckhart
que se vai achá-la.
• AA – Uma vez polarizado, com seu foco, aí é possível entrar com uma
calculabilidade probabilística de ordem logarítmica para extrair informação.
Dependendo da transa entre uma mão e outra. A informação também
é conhecimento produzido. Como se produz uma informação?
• AA – Na teoria da informação, parte-se da hipótese de estarmos
lidando com um segmento entrópico. Segundo Shannon, a entropia é suposta
ser informação, a ser mensurada para ser possível extrair seu modo de
organização.
Quero ver ele calcular.
• AA – Por isso, é probabilística, é redução de incerteza.
Prefiro as mãos do Escher. Qual é a resultante dessa transa agoraqui?
• AA – Leibniz diria: calculemos!
Pois é.
• P – O que permite a metamorfose na transa entre as formações é
a inclusão da experiência de desejo de simetria e a de Quebra de Simetria?
Desde o início de sua exposição pública, Freud foi invectivado como
pansexualista, por ver tudo no sexo. Não entenderam que Sexo é lógica. Por
isso, ele entendeu de saída que a lógica da constituição das formações depende
da sexualidade como função de desejo e de Quebra de Simetria. Ele disse isso
com vários conceitos: castração, diferença sexual... O paradigma da psicanálise
é sexual. O Haver não faz outra coisa, só faz sexo. Isso, entre os seres vivos,
repercute na reprodução. Na espécie humana, ultrapassa a reprodução e vira
pura sacanagem. Ou fazer ciência não é sacanagem? A experiência do Haver
é: Haver quer não-Haver – como não-Haver não há, fodeu!

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• PNC – Você falou em metanoia gnoseológica. A ocorrência da poli-


matia poderia ser pensada a partir da Teoria das Formações e mais especifi-
camente da ideia de aglomerado?
O paradigma em nossa cultura se chama: Leonardo da Vinci. Ele é
raro. Outros da melhor grandeza não entram nessa qualidade. Michelangelo,
por exemplo, é maneirista, mas não é polímata.
• P – Estou pensando sobre suas ideias de conhecimento metanoico
e conhecimento paranoico. Em Clownagens (2009), você diz que não existe
lucidez paranoica. Para Lacan, a estrutura do conhecimento é paranoica. Há
algum passo a mais aí?
Lacan diz isso porque é a estrutura do conhecimento do século XX.
Sempre repito que o século XX é paranoico e o modelo tomado por Lacan é
paranoico. Lacan é colega de Dalí, que falava em paranoia crítica.

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Insisto na temática da vez anterior, mesmo sendo repetitivo. Eu falava no
sentido de tomar a Teoria das Formações como Teoria do Conhecimento, o
que derroga necessariamente muitos dos aspectos da consideração anterior
sobre o conhecimento.
Coloquei as Mãos de Escher como o modelo de entendimento de como
se constitui um conhecimento enquanto transa entre formações. Disse que o que
acontece de conhecimento é o que se passa entre as mãos de Escher, a transa.
Se quisermos, poderemos chamar a mão de cá de Acervo – em latim, acervus
–, e a de lá, Aspecto – aspectu: o conjunto maior ou menor de formações que
está em jogo no acervo em transa com o conjunto disponível aqui e agora no

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aspecto que se nos apresenta, ou que se apresenta a esse acervo. Disse também
que conhecimento é qualquer resultante do que se passa entre duas formações:
qualquer resultante de uma transa entre qualquer acervo e qualquer aspecto é
necessariamente conhecimento, do mais primitivo ao mais sofisticado. O que
importa é haver um imenso gradiente de riqueza ou pobreza desses resultados
e dessa transa. Então, para situar aproximadamente um conhecimento como
resultante, é importante saber considerar o grau de riqueza de uma transa.
Qualquer variação no acervo resulta em reconfiguração no aspecto. Assim
como qualquer reconfiguração no aspecto resulta em variação no acervo. Esta
é a dinâmica, esta é a transa.
Talvez alguns que não são da área específica da filosofia, por exemplo,
não saibam do poder acumulado pela ideia um tanto estapafúrdia de epistemo-
logia. Ela foi a rainha e governante do conhecimento, capaz de decidir sobre sua
verdade. Era assim que pensava o século XX, e para trás também. Em contra-
posição, porém não menor ou desregrada, a hermenêutica é mais conciliadora,
pretende estar tecendo considerações sobre a produção de conhecimento. Dois
poderes em permanente conflito, mas ambos desejosos de hegemonia nessa
parada. Como sabem, com o tempo – e na reconsideração dos acontecimentos,
sobretudo a verificação do fim do Terceiro Império e a emergência do Quarto:
finda a paranoia do século XX e a vocação progressiva já começando no século
XXI –, para meu uso, juntamente com objeto e sujeito, joguei fora ambas essas
pretendentes à dominação. Digo, então, que a história do conhecimento é aquela
que se passa – desculpem a analogia divertida – entre a Sapucaí e a Sapucaia.
Entre a [rua Marquês de] Sapucaí, do desfile do Carnaval [na cidade do Rio de
Janeiro], e a Sapucaia, que é o antigo sobrenome do Lixão [também no RJ]. As
grandes formações de conhecimento se apresentam como exuberantes desfiles
de Escolas, de samba ou qualquer outra, depois vão para o lixo enquanto novos
desfiles se apresentam, não servem mais como grandes formações escolares e
se amontoam na cambulhada dos saberes dejetados. Contudo, nossa miséria
cognitiva pode eventualmente nos tornar catadores de alguns fragmentos do
lixo que venham a servir aqui e ali para a sobrevivência.
O atual momento é de preparo de um novo desfile. Nosso momento de
crise e de reformatação em direção ao Quarto Império vem transformando, e vai

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transformar mais, toda a tralha dos Impérios anteriores, mormente a do Terceiro.


Isso vai virar uma gigantesca Sapucaia onde ainda podemos – e até poderemos
– catar umas migalhas de serventia. Trata-se – e me parece uma necessidade
de comportamento quanto ao conhecimento – de abandono definitivo dessas
proposições e de reconhecimento de uma Teoria das Formações aberta em todos
os sentidos, capaz de reconhecer todos os gradientes de conhecimento como
conhecimento sem a pretensão de dominação das posturas anteriores, apenas
podendo reconhecer os graus de valor atribuível entre essas formações. Por isso,
comecei falando de teoria do conhecimento a partir da inteligência brilhante
e refinada de um artista gráfico, Escher. Ele conseguiu pensar essa transa de
formações numa excelente produção mediante aquela gravura A mão que dese-
nha a mão, uma mão que desenha a outra e que digo que é a mão que desenha
a mão que a desenha. Se quisermos entender mais abrangentemente a ideia de
conhecimento como transa de formações talvez seja interessante no momento
afastarmo-nos de projetos filosóficos e outros, e abordarmos outras transas de
produção de conhecimento que sejam explicitantes desse jogo entre formações.
Posso hoje, por exemplo, tomar a obra de um dos pensadores mais
importantes das artes plásticas. Chamo de pensador, pois ele pensa mediante
outras ferramentas, mediante pintura no caso: Paul Cézanne, que dizia pensar
com os olhos. Como sabemos, os olhos fazem parte do cérebro – aliás, o que
não faz? Grande quantidade de pessoas pensa com as mãos. Lacan dizia pensar
com os pés, é onde achava algo de concreto. Suponho que fosse com os pés
que propunha o (seu) Real. Eu, justamente como Freud, penso com o Sexo,
que é o paradigma da psicanálise. Olhos, mãos, pés, sexo, tudo isso está no
cérebro. Os intelectuais, por exemplo, pensam com a bunda, são o pensamento
sedentário. Cézanne faz ciência com os olhos. Conseguiu fazer uma abstração
na transa de seu olhar com o aparecimento dos aspectos que abordava. Digo que
faz ciência com os olhos, pois, além de toda sua pintura, explica sua abstração
com clareza nas falas em que busca explicitar o que faz. Só está interessado em
pintura – pintura são cores –, só pensa em cores. Mesmo o aspecto de desenho
do que pinta é resultado das manchas de cores que coloca sobre a tela com
sérias observações dos aspectos que se lhe apresentam mediante seu acervo
mental. Ele cita o famoso feixe de lenhas de Gustave Courbet, o qual estava

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pintando uma paisagem e não sabia o que estava pintando: observava apenas as
cores e as tonalidades, colocava-as na tela para, depois, descobrir que pintava
um feixe de lenhas. Antes, à distância, não sabia o que era [p. 199]1. Essa é
também a mentalidade de Cézanne. Não importa o que esteja pintando, e sim a
abstração das cores e das tonalidades que pode apreender mediante seu modo
de olhar: transa entre formações. Ele não está representando uma paisagem, e
sim registrando o que se passa entre seu cérebro-olhos e um agoraqui-paisagem:
a mão que desenha a mão que a desenha.
A título de ilustração, trago algumas frases de Cézanne: “Tudo que
vemos, não é o mesmo, se dispersa, se vai. A natureza é sempre a mesma, mas
nada permanece dela, daquilo que nos aparece” – é a maneira que, na época,
ele tinha para dizer. “Eu tomo, à direita, à esquerda, aqui, ali, por toda parte,
seus tons, suas cores, suas nuances, e eu os fixo, os aproximo... eles conformam
linhas. Eles se tornam objetos, rochedos, árvores, sem que eu pense nisso” – é
seu método de abstração. “O artista não é mais que um receptáculo de sen-
sações, um cérebro, um aparelho gravador...”, com suas características, no
caso. Parece Fernando Pessoa. “A arte é uma harmonia paralela à natureza”.
Observem como ele tenta explicar essa transa: “Os dois textos paralelos, a
natureza vista, a natureza sentida, aquela que está ali... (mostrava a planície
verde e azul) aquela que está aqui (batia na própria testa), que devem ambas
amalgamar-se para durar, para viver uma vida metade humana, metade divina,
a vida da arte, escute só... a vida de Deus. A paisagem reflete-se, humaniza-
-se, pensa-se em mim. Eu a objetivo, a projeto, a fixo em minha tela...” – só
tem transa entre formações. “Dois textos paralelos”: a mão de cá e a mão de
lá. “O torvelinho do mundo, no fundo de um cérebro, resolve-se no mesmo
movimento percebido” – é como podia explicar. “Eis o que devemos saber”
– ele trata isso como oportunidade de saber. “Eis o banho de ciência, se ouso
dizer, em que devemos mergulhar nossa placa sensível”. Ou seja, está dizendo
que seu quadro é da ordem do conhecimento de alguma aparência do Haver.
Encaixemos isso na teoria do conhecimento. Termina ele: “...para Deus (...), se

1 Esta referência e as demais citações estão em: Conversas com Cézanne, organizado
por Michael Doran. São Paulo: Editora 34, 2021. Trad.: Julia Vidile.

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um pouco de ciência nos afasta de lá” – do que está vendo –, “bastante ciência
nos aproxima da natureza”. “Sim, quero saber” [p. 182-193] – ele pinta para
saber, em busca de conhecimento.
Paro por aqui, para conversarmos e estabelecer uma decantação dessa
vertente teórica.
• Potiguara M Silveira Jr – Parece haver grande dificuldade em apre-
ender uma teoria como a Teoria das Formações ainda agora, já nos anos 20
do século XXI. Fazer isto seria como que uma ferida narcísica em relação aos
modos anteriores de considerar o conhecimento?
O falecimento das formações anteriores se torna cada vez mais explí-
cito. É só uma questão de tempo para a Teoria das Formações, ou qualquer outra
do mesmo naipe, vir substituir essa vontade de dominação do conhecimento pre-
gresso. Basta ver que certos textos que foram comandantes nas epistemologias
se tornaram ridículos. A teoria de Popper, por exemplo, teve enorme domínio
no campo da filosofia e adjacências, mas, hoje, aquilo é meio ridículo. Sempre
lembro que ele, num de seus últimos artigos, ao ser cobrado sobre o limite de
competência da teoria que forjou para sustentar a razão de conhecimento que
propunha, disse que era preciso acreditar nela. O papa diz o mesmo, qual é a
diferença? Mas não é questão de crença, e sim de ferramenta aplicável ou não
em determinado momento. Seu projeto de falsificação é absurdo e abusivo.
Por que poderia ele tirar a psicanálise e o marxismo da razão científica? Estou
propondo o contrário. O pensamento de Cézanne – como, no resvalo, ele acaba
dizendo – é científico, é produtor de conhecimento com outro modelo. Quanto
ao que hoje acontece, temos que buscar pensar no que é a cabeça de alguém
com quinze anos de idade, depois de passar pelo desfazimento de parâmetros
que acometeu o mundo. Então, assim como o conhecimento da pré-história
foi derrogado pelas formações mais eruditas de um futuro, esse passado até
o final do século XX está em total periclitância. Foi uma fase de tentativa de
pensamento daquele modo – acabou! Está se tornando irrisório. A derrocada nos
obrigou a pensar, as pessoas do século XX vão morrer, o Quarto Império con-
tinua e esses textos vão para a prateleira – ou seja, para o lixão. Não confundir
a emergência de um novo modo de pensar com a possibilidade de as pessoas
se livrarem de seus sintomas. Que façam análise durante uns trezentos anos...

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• Aristides Alonso – O modelo que se inaugurou a partir da derrocada


dos constituintes do processo antigo de conhecimento dependia da noção de
razão clássica: terceiro excluído, sujeito e objeto. As fichas foram postas neste
modelo de origem grega, que se recompôs na Idade Média e se colocou como
projeto de Modernidade. Mas, no interior desse projeto – principalmente de
meados do século passado para agora –, por vários caminhos brotaram mode-
los que pensam as coisas na base de circuitos-fixações-circuitos. Isso me parece
bem próximo da Teoria das Formações. Penso na cibernética e na computação.
São Formações-Transações-Formações: uma transa só. Computador
não tem sujeito ou objeto, e tampouco escolhe conhecimento.
• AA – Isso não tem começo ou fim, é uma cobra sem cabeça ou rabo.
É um processo entre redes, maranhas, circuitos... É uma concepção análoga
à da psicanálise, a qual, por sua vez, contribuiu para esse novo modelo de
conhecimento.
O modelo é psicanalítico. Já estava lá antes do computador.
• AA – Heidegger percebeu bem que o modelo da cibernética inaugu-
rava um modo pesado que ia contra toda uma tradição filosófica e metafísica
que chegava até meados do século passado.
O lixão não consegue dar conta da tecnologia. O esforço, apesar dos
vícios, ou seja, dos sintomas externos e impregnados, é fazer essa mudança de
mentalidade para podermos arcar com o que vem por aí.
• P – Como pensar a diferença entre o Acervo e o Aspecto se é tudo
transa de formações? O lado de cá e o de lá não estão maranhados?
Você tem razão em perguntar, pois é um pouco difícil. O que estou
chamando de Acervo é o conjunto total – Cézanne chama de temperamento,
que é um termo antigo e se refere até a cachorros – das formações que fazem a
composição do, digamos, estado mental de uma pessoa. Inclusive, as formações
primárias ali envolvidas. É um conjunto que sequer podemos arrolar, pois, como
sabem, uma formação tem Foco e Franja. E esse conjunto, esse Acervo, vai se
deparar com Aspectos que se lhe apresentam mediante o Acervo. São, repito,
as mãos do Escher: isso aqui desenha aquilo lá; aquilo lá se modifica, desenha
o de cá – é work in progress. Antes, havia o tal sujeito dominante que chegava
no mundo, conhecia e acontecia. O brilhantismo magnífico de Nietzsche já

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denunciou que ele é uma superstição. Hoje, aqui em nosso trato específico,
digo que sujeito é um cacoete francês. Observem que o Acervo não domina
nada, ele transa. Portanto está no meio, entre. A transa é entre, não é do meu
cérebro: está entre tal conjunto de formações e tal outro. Aí também se desfaz
o mito do autor, o qual é apenas uma situação, uma localização aqui e ali de
um fenômeno de transa. Se retirarmos alguns aspectos, o lado de cá nada vê.
Se retirarmos o lado de cá, o aspecto estará lá de graça, não há ninguém para
ver. Isso tira bastante a arrogância do antigo sujeito, o que é certa ferida nar-
císica. Precisamos nos acostumar a essas abstrações radicais, pois facilmente
resvalamos para o sintoma anterior, em que a gente começa a “se” achar por
estar com o vício da personalidade, que inclui sujeito, etc.
• P – Quanto ao Aspecto, qual é a relação com o que você, há tempo,
falou sobre as aparências não enganarem?
Antes, chamei de aparência, mas, depois, não quis mais usar o termo.
Aspecto é aquilo que se nos apresenta. E só se apresenta assim para nós porque
é assim que nos apresentamos para ele. É recíproco. Mudando alguma coisa
de um lado, também muda de outro. Desde a pré-história, é essa a história do
conhecimento. Eles, lá, sabiam caçar um bisonte, nós não sabemos. Perdemos
esse conhecimento. Ou, se não, ganhamos mediante tecnologia, mediante armas
de precisão. Os tolinhos paranoicos do século XX, sobretudo os da episte-
mologia, queriam porque queriam dominar a certeza do que é e do que não é
conhecimento. É uma bobagem, quase fascista. O que é preciso saber é o grau
de resultado, de eficácia, de um conhecimento seja qual for.
• AA – Fosse nosso olho constituído de outra forma, os aspectos com-
pareceriam de forma diferente.
Donde o cyborg.
• AA – Por dominação cultural e ideológica, temos a impressão de
que o nosso é o modo de ver que retrata determinada realidade com precisão.
Entretanto, mudada uma composição qualquer na formação de cá, a outra se
mostrará de maneira diferente.
Como um cego pinta? E mais, o cérebro tem competência para criar
seu olho. O que importa é o olhar. Vemos isso com clareza geométrica no
Renascimento, sobretudo o italiano. Foi lá que se começou a cientifizar a visão

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pictórica mediante uma regragem hiper-euclidiana da visão. Da visão de um


olho só, aliás. O Tratado de Leonardo da Vinci nuança isso com a sensibilidade
do pintor, mas a perspectiva renascentista é caolha e regradíssima.
• AA – Uma vez feitas próteses que acrescentam modos de transação
a uma das mãos, a outra certamente comparece com aspectos transformados.
O pessoal não tinha lentes até o Renascimento, quando elas progri-
dem a ponto de Galileu conseguir um monoculozinho para enxergar melhor.
Hoje, enxergamos sem colocar o olho, pois o robô vai ao espaço, tira fotos
e nos envia. Já imaginou o tesão que Galileu teria nisso? O Quarto Império
nos ensinará muito, com novas gerações com sintomas diferentes dos nossos,
podendo abstrair, separar as coisas, sem ficar misturando como fazemos até hoje.
Observo que é interessantíssima a transa com o sexo de certo tipo de garotada
de classes média e alta que está entre dezessete e trinta anos. Para eles, sexo é
uma coisa, amor outra. Gerações anteriores têm dificuldade de conceber isso.
Para entender, há que apelar para a Transa. Basta ver Cézanne, que é do século
XIX e já pensava assim.
• Nelma Medeiros – Penso que o Terceiro Império com sua face cristã,
tal qual o Ocidente conhece, conseguiu imprimir uma espécie de arquétipo,
um modelo dos modelos que tem a ver com a transcendência genérica que o
caracteriza. Assim, todas as transas são marcadas por uma transcendência
para um lugar exterior...
Sejamos mais obscenos: esse pensamento é cristão.
• NM – Toda a Sapucaí / Sapucaia tem essa marca e faz parte do
momento nosso de mutação também deixar isso para trás, pois é o que tem se
repetido e atrapalhado a continuidade para a frente.
Já insinuei que o Terceiro Império não precisava ter sido cristão. O
cristianismo, digamos, garroteou o Terceiro Império.
• NM – Essas mutações têm que comparecer na ordem jurídica, pois
é preciso fazer desaparecer o sujeito do Direito: a culpa, a responsabilidade...
É o mais difícil, pois é o lugar do governo dos comportamentos.
• NM – É importante o que você trouxe da outra vez sobre o Pragma-
tismo. Por essa visada, o que há a fazer são: acertos, desacertos e consertos.

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Não é preciso culpar ninguém, pois são apenas ajustes, transas. Para tanto, é
preciso continuar a análise.
Ainda é cedo, é preciso tempo.
• NM – É como fazer a ficção de uma transa social em que a emergên-
cia de sensação de interioridade e de individualidade seja mínima, convivendo
com uma presença de reconhecimento, na transa, das diferenças.
As próprias formações são diferentes. Qual rol de formações há numa
formação? Elas são diferentes. Ou seja, em última instância, não é possível
existirem duas pessoas iguais.
• AA – No decorrer de sua obra, você sempre fez passagem de campos:
de filosofia para ciência, para arte. Ou seja, demonstração de pensamento
dos mais refinados no que se estudava como mera arte. Penso em sua análise
[1981] do quadro As Meninas, em que você traz a exemplaridade do pensador
Velázquez, que estava à frente, progressivamente, em relação aos pensadores
assim supostos de seu momento. Sua ciência em relação à mente estava mais
up to date do que o standard do conhecimento de então.
Velázquez tinha todos os motivos para fazer isso. Aquela Corte espa-
nhola era uma escrotidão e ele, ali aprisionado, tendo que fazer retratinhos. Ele
foi à forra inteligentemente: com seu olhar soberano, sacaneou o rei, a rainha
e ultrapassou seu século.
• AA – Nesse sentido, podemos também falar de Antônio Francisco
Lisboa, injustamente chamado de Aleijadinho, que constrói um pensamento
poderoso a partir do material de que dispunha – pedra sabão, madeira como
o cedro – e nas condições em que estava. Ele retrata toda uma situação socio-
política e mental de seu momento.
E, como já disse, de modo bem Maneiro.
• AA – É mesmo preciso olhá-lo sob o aspecto de transa das formações.
Já coloquei a reprodução de um anjo dele na capa de nossa revista
Revirão [n. 3, dez. 1985].
• AA – Há também Augusto dos Anjos, que pensa em sonetos.
“Senhor da alta hermenêutica do Fado, / Perlustro o átrium da Morte...”
Como sair destes dois versos? Continua: “É frio o ambiente / E a chuva corta
inexoravelmente / O dorso de um sarcófago molhado”. Vejam que está tudo aí.

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• Patrícia Netto Coelho – “Hermenêutica do Fado” é uma boa forma


de falar do sentido do Haver.
Não é? E ele publicou isso em 1912. Morre em 1914, aos trinta anos.
E ainda existiram tolinhos que chamaram isso de “poesia preparatoriana”, ou
seja, em termos de hoje, poesia de vestibulandos...

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São dois assuntos para conversarmos hoje. Primeiramente, tenho notado às
vezes, em comentários nossos, certa confusão sobre a Tanatose e sobre o
conceito de Morfose Progressiva em relação à Psicopatia. São questões rela-
tivamente parecidas.
A Tanatose, assim como a Psicopatia, não comparece como as Mor-
foses dependentes do estatuto do Recalque. Estatuto este que é, sobretudo, da
ordem do Secundário, para aquém do Recalque Originário, etc., como vemos
nas Morfoses Estacionária, Regressiva e Progressiva. São Morfoses que têm
a ver com a referência à ordem dos Recalques, especificamente ao Recalque
Secundário. Como sabem, a Morfose Estacionária é uma resultante dos Recal-
ques. As Morfoses Regressivas são resultantes do HiperRecalque, ou seja, de
um conjunto de formações recalcantes tão poderoso que não deixa comparecer
como mero sintoma ou simplesmente na ordem dos sonhos, etc., e comparece
como aquilo que, no passado, ficou nomeado como psicose. Chamo, então, de
Morfose Regressiva dependente de HiperRecalque. Já a Morfose Progressiva,
também relacionada à ordem dos Recalques, é uma formação que consegue
driblar o recalque. Não é que, nela, não haja recalque, talvez mesmo lá esteja
em funcionamento, mas pode acontecer – o que nas outras não acontece senão

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como sintoma, como ato falho... – como uma espécie de suspensão do recalque.
É como se a ordem recalcante fosse mais frágil do que a potência de expressão
da pessoa. Ela, então, suspende o recalque de várias maneiras. Positivamente,
como uma função criativa. É o que vemos acontecer na história das ciências e
das artes: a pessoa, sob uma poderosa ordem recalcante no nível do conheci-
mento e da aceitação dos valores artísticos e estéticos, suspende e acaba criando
e inventando coisas novas.
Em sua função Negativa, Morfose Progressiva é o que antigamente
chamavam de perversão, um termo policial que não nos interessa. Já lhes mos-
trei diversas vezes sua desvalorização, inclusive me referindo ao livro Lecture
des Perversions: histoire de leur appropriation médicale (1979), de Georges
Lantéri-Laura. Prefiro, portanto, chamar de Morfose Progressiva Negativa, que
é da ordem da ultrapassagem dos valores sociais, morais, etc., e em que a pessoa
se torna abusada em relação ao próximo. Isto nada tem a ver com psicopatia.
O conceito de psicopatia da NovaMente é o de uma anomalia cerebral, é da
ordem do Primário. Aproveitei-me dos trabalhos de Ramachandran, em que
ele considera as possíveis deficiências de neurônios-espelho no cérebro. Ele
faz referência ao autismo e me aproveito de sua descoberta para considerar
que chamo de psicopatia a falta de empatia para com o próximo, o que permite
os maiores abusos – mesmo politicamente, como vemos na situação atual do
país. A psicanálise não dá conta disso analiticamente, pois, repito, é da ordem
de deficiência cerebral.
A Tanatose tampouco é da ordem do Recalque Secundário. Não per-
tence àquelas Morfoses que dependem da estrutura do Recalque Primário e,
sobretudo, do Recalque Secundário. Se a Tanatose tem alguma relação com
o Recalque é com o Recalque Originário. Ela, quando vence as resistências,
é a confluência radical na força d’Alei: Haver desejo de não-Haver. Ou seja,
quando as resistências que nos mantêm aderidos a processos vitais, de prazer,
etc., ficam menos fortes do que a Pulsão d’Alei, estamos em caso de Tanatose.
Tenho o exemplo de um analisando tanático, em suspensão por apresentar a
grande sintomática da Tanatose, mas que não desiste de viver. Isto dá bastante
resistência em sua mente. Entretanto, prefiro trazer o exemplo de três pessoas
mais ou menos recentes, mais ou menos da mesma época, que são artistas da

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maior importância. O primeiro é o pintor norte-americano de origem letã e


judaica, Mark Rothko. Ele nasceu em 1903 e morreu em 1970, com sessenta
e sete anos, portanto – suicidado, suicidou-se. O segundo, vocês podem estra-
nhar que seja colocado como tanático: Fernando Pessoa. Nasceu em 1888 e
morreu em 1935, aos quarenta e sete anos. Foi suicídio? Foi! Explicarei por
quê. O terceiro, Paul Celan, grande poeta. Mesmo não sendo francês, situou-se
em Paris. Nasceu em 1920 e morreu em 1970, aos cinquenta anos – suicídio,
jogou-se dentro do Sena. Um suicídio de mau gosto, aliás: aquele rio fedorento.
Rothko, além de ter se matado depois de tentar fazer uma obra de radi-
cal dissolução do sentido – mas com sentido tanático, com sentido de morte, de
desaparecimento –, costumava se referir a Nietzsche na Origem da Tragédia.
Referência que arrumou para ele sua Tanatose como compreensão da tragédia
humana, como sendo sua determinação para a morte. Seu sintoma, além de sua
pintura que era de dissolução e termina com a desistência, se manifestava como
sendo uma figura engraçada, divertida, mas que alimentava uma raiva radical do
mundo, das pessoas, de seus comportamentos, sobretudo daqueles que chamava
de burguesia. Certa vez o convidaram para pintar painéis nas paredes do mais
caro restaurante da alta burguesia americana. Ele fez uma imundície, e disse
pintar aquilo para a burguesia não conseguir comer e ter mal-estar. É um dos
sintomas da Tanatose: uma indisposição com sua situação no Haver – é o que
Freud chamava de Unbehagen. O mal-estar que ele dizia ser na cultura, mas
que é um mal-estar de Haver, simplesmente o mal-estar no Haver. A pessoa
não consegue superar isso mediante suas resistências e o que Freud supunha
poder chamar de pulsão de vida (esta, aliás, não existe: são meras resistências
à Alei). E quando essas resistências são enfraquecidas, fica, o tempo todo, uma
insuportabilidade de fundo: a vida e o mundo são insuportáveis e, um dia – ou
todo dia –, a pessoa dá um jeito de se afastar. Daí o suicídio de Rothko ser
bem compreensível em sua pintura. Lembremo-nos também de que, mais ou
menos contemporâneo dessa gente, houve a filosofia de Heidegger nomeando o
homem como ser para a morte. Ele tomou isso de Nietzsche. Ser para a morte
é reconhecimento d’Alei: Haver desejo de não-Haver.
Outro que reconheço e entendo como tanático é Paul Celan. Recen-
temente, foi publicada a tradução de seu livro A Rosa de Ninguém (1963) pela

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MD Magno

Editora 34. Nele, podemos ler com clareza sua vocação tanática. Ele era um
judeu que teve a família destroçada pelo nazismo e que, o tempo todo, apresenta,
não apenas em sua poesia, o não-senso, o não sentido da existência assim como
um mal-estar radical dentro do Haver. Há também em sua obra a permanente
presença da Bifididade do Inconsciente: os dois polos tentando comparecer
conjuntamente. Como disse, jogou-se no Sena aos cinquenta anos, deixando
uma obra excelente. Outro que coloco como tanático é Fernando Pessoa.
Podemos ver em sua vida e em sua obra a relação com Alei, Haver desejo de
não-Haver, sempre perseguindo suas funcionalidades dentro do mundo. Isto, a
ponto de viver numa estranheza em relação a si mesmo e à existência. Que eu
conheça, é o único grande poeta que entendeu claramente o aglomerado das
pessoas. Ao considerar o seu aglomerado, repartiu numa série de personalida-
des diferentes. Há as grandes que todos conhecem, mas há muitas outras que
aparecem com mais leveza em sua obra. Ele percebeu que Fernando Pessoa é
esse aglomerado e sempre se referindo a seu mal-estar dentro do Haver. Podem
dizer que não se suicidou, mas digo que se suicidou sim. Existe o suicídio coti-
diano que aparece representado por ele numa fotografia em que está bebendo
no bar, em cujo verso escreveu: Fernando Pessoa. em flagrante delitro [uma
dedicatória à sua namorada Ofélia Queirós]. Ou seja, foi pego em flagrante
delito de suicídio – bebeu desesperadamente até destruir alguns órgãos vitais
e morrer aos quarenta e sete anos.
• P – Ao dizer que o conceito de psicopatia é de ordem primária, tra-
ta-se de algo que tem a ver com as fundações mórficas, mas, depois, não se
desdobra em uma relação com o Secundário?
Sua origem é específica, e é claro que terá relações com o Secundário.
Para entender isso, basta olhar para algum palácio no planalto.
• P – Teremos que pensar essa relação em termos das Morfoses Esta-
cionárias, Regressivas e Progressivas?
Estão envolvidas com isso. Quanto à formação específica, os efeitos
comparecerão, pois há transa de formações. A formação pode ser primária, mas
temos que perguntar como ela repercute no Secundário. Pode, por exemplo,
repercutir como remédio errado aconselhado às pessoas. Não é o que atualmente
assistimos na televisão?

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MD Magno

• P – Li em algum lugar que o psicopata seria um mito criado pelo neu-


rótico. Essa figura sem empatia alguma, que não sofreria do pathos comum...
Isso é modo velho de dizer. Temos hoje um neurocientista, Rama-
chandran, que, repito, não fala em psicopatia – fala em autismo –, mas me dá
a possibilidade de pensá-la como consequência da falta de neurônios-espelhos.
• P – Ao definir a Progressividade Negativa como característica de
alguém ser abusado em relação ao outro, esse abuso e essa falta de empatia...
Uma coisa nada tem a ver com a outra. Pessoas abusadas é o que vemos
todo dia no Brasil. Podemos mesmo denunciar seus abusos, pegá-las. Outra
coisa, é um psicopata propriamente. Este nunca é pego. Pode-se deixar claro
que tal remédio não serve, mas ele quer que sirva – e danem-se os outros.
• P – Li a entrevista de uma neurocientista sobre a falta de empatia no
psicopata ser diferente daquela no autista. Este não a consegue entender, mas,
no psicopata, ela não ressoa.
É o que estou dizendo, que a deficiência do autista é diferente do
psicopata. O autista, além de não ter empatia, não consegue articular o
entendimento. A psicopatia nada tem a ver com entendimento.
• P – Quanto à Morfose Progressiva Negativa, o caso de alguém abu-
sado em relação a outro...
No sentido de que não é que não tenha passado pela ordem do recalque,
e sim que a pessoa, digamos, cinicamente suspende o recalque em função de
certo interesse aqui e agora. A composição do psicopata é outra.
• P – Então, onde colocar a fobia? Você a colocava no caso do Pro-
gressivo Negativo. Em 2015, a psicopatia foi colocada como caso de Autarcia,
que pode estar em qualquer Morfose. Era a maldade. Na Morfose Progressiva,
a pessoa vai em frente e o recalque é poroso...
Ela dá um safanão no recalque e passa por cima. Dou um exemplo
perigoso. Alguém é um facinorazinho, mas como é católico vai ao padre e
confessa. O padre o perdoa, e ele está livre para continuar sendo um escroto.
• P – É o álibi perfeito.
O mecanismo que se passa no psiquismo é a pessoa arranjar um álibi
e passar por cima do recalque. Isso não é psicopatia. A Igreja inventou maravi-
lhosamente a Morfose Progressiva Negativa, cujo mecanismo é alguém cometer

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MD Magno

um pecado grave e receber absolvição. É um truque que permite passar por cima
do recalque e cometer um abuso. A Morfose Progressiva Positiva é criativa, é
alguém se permitir suspender determinado poder de conhecimento para inventar
outro. Ele sabe suspender recalques que são da ordem do, digamos, exógeno. A
cultura o pressiona, mas ele suspende, vai em frente e cria algo novo. A pressão
não é dentro, não é um recalque seu que está suspendendo por ter recebido
alguma absolvição. Tomem o caso de Galileu Galilei, que sofre pressão de
poderes externos. Temos ali um Progressivo procurando maior entendimento do
que se passa no regime do Haver, e um poder de fora recalcando seu processo.
Já o Morfótico Progressivo Negativo é um nojento que comete coisas graves
em relação ao outro, ou ao mundo, e consegue fazer suspensão disso mediante
um álibi que pode ser religioso, por exemplo.
• P – Você, antes, dizia que a fobia era o avesso da perversidade. O
que posso entender hoje é que, ao sofrer um reviramento interno qualquer, o
Morfótico Progressivo Negativo vira fóbico.
Quando a Morfose Progressiva Negativa se avessa, a pessoa entra em
pânico, fica fóbica. O álibi não funcionou, e aquilo vai se virar contra ela.
• P – Não há certo juízo de valor na diferença que você está fazendo
entre o Positivo e o Negativo? Mesmo o Positivo não tem que ser abusado?
Ele é abusado em relação a uma pressão que não é recalque dele, é
uma força recalcante externa. Como não virou recalque dele, consegue pas-
sar por cima e suspender a força recalcante externa. O Negativo suspende a
ordem recalcante interna. Ele sabe que está sendo escroto, mas arranja um
álibi. Quando a pressão está instalada dentro, é uma coisa. Quando se sofre
uma força recalcante externa, é outra. A maioria, diante do recalque externo,
bota o galho dentro e fica bonitinha.
• Patrícia Netto Coelho – Esta é uma distinção útil para diferenciarmos
uma situação fóbica propriamente de uma situação de ansiedade. Por exemplo,
a situação de ansiedade generalizada por que passamos atualmente.
Sim. É diferente a maioria, mediante um recalque externo, colocar o
galho dentro por medo de estar sendo o outro lado. Ela quer acreditar na verdade
da força recalcante. Já o outro está sabendo e dá um drible completamente fake.

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MD Magno

Isto é claro em nossa situação brasileira atual. Então, no caso do Progressivo


Positivo não se trata de abuso, e sim de libertação de uma opressão.
• PNC – É ao que você se referiu em 2007 ao falar em Eleutéria e
Exousia, liberdade de e liberdade para.
Sim. Por que teria eu obrigação de ser lacaniano? Só porque outros
achavam que sim?
• Potiguara M Silveira Jr – Em que sentido, então, cabe dizer que o
Quarto Império tem vocação Progressiva?
No sentido de que os parâmetros se ferraram. Ele é Progressivo à reve-
lia, pois os parâmetros que tinham força, perderam a força e ficaram soltos.
Eles perderam não apenas a configuração como também os poderes. Portanto,
há menos força repressiva quanto a andar para a frente. Mas há ainda muita
força repressiva dos Morfóticos Estacionários, que ficam apavorados com andar
para a frente.
• P – Aqueles que hoje invocam a democracia, sabendo ou não, mantém
os Morfóticos Estacionários em seu lugar de Estacionários?
O resultado é esse. Não é que sejamos contra a democracia, e sim que
não há mais condição mundial de sua funcionalidade. Sobretudo num país
sem educação, onde se poderia distribuir certa noção de tentativa de respeito à
ordem democrática, mesmo que seja ficcional. Acontece que a movimentação
do mundo contemporâneo dissolve a possibilidade de, mediante um voto livre
e universal, votarmos em algo razoável. Pode-se votar num monstro. Não se
trata de xingar a democracia, e sim de saber de sua falência. Ninguém ainda
apresentou um teorema para ajustar isso. A ideia de democracia nasceu na
Grécia, é uma invenção ocidental, ela não há no Oriente antigo. Lá na Grécia
ela era apenas o voto dos cidadãos, e não do resto. No que isso se transforma
em voto universal, dana-se tudo. Segundo o que posso enxergar, o mundo terá
que inventar a Diferocracia para sair dessa situação e sobreviver. Isso não é
para nós, não veremos. A velocidade da Progressividade dissolveu o sistema,
que se aguentava quando ela era mais lenta e demorada em sua permanência.
• P – Há, então, que inventar novas contenções?

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MD Magno

É preciso uma nova ordem política que nada tenha a ver com qualquer
outra do passado. Daqui a duzentos anos, ninguém de hoje estará presente, e a
gente de então poderá inventar essa nova ordem.

19
Outro assunto sobre o qual quero falar hoje é a Polimatia. Enviei a vocês a
indicação de vários livros. Sobretudo, O Polímata, de Peter Burke (São Paulo:
Unesp, 2020), recebido de presente de Patrícia Netto Coelho que fica me cha-
mando de polímata. Outro livro dele, interessantíssimo, é O Que é História
do Conhecimento? (2015) (São Paulo: Unesp, 2016). Há ainda Introdução
ao Pensamento Complexo (1990) (Lisboa: Instituto Piaget, 1995), de Edgard
Morin, que é da ordem do reconhecimento da complexidade das formações.
E, também dele, O Método (Porto Alegre: Sulina, 2005), em seis volumes,
que são chatos, mas convincentes. Não sei por que chamou com esse nome.
Faz lembrar Feyerabend, Contra o Método (1975). O método de Morin, sem
que ele soubesse, é uma tentativa de descrição da zorra das formações. Não
é uma teoria das formações, mas é uma abordagem complexa, discursiva e
narrativa das formações em vários sentidos dentro de nossa experiência. Indi-
quei também o livro de David Epstein, Por que os Generalistas Vencem em
um Mundo de Especialistas? (2019) (Rio de Janeiro: Globo, 2020). Isso tudo
quer dizer que, ao começarmos recentemente a sair da paranoia do século XX,
estamos igualmente saindo da paranoia do chamado rigor especialista. Lacan,
que prezava tal rigor, chegou a dizer que a psicose é uma tentativa, um ensaio
de rigor – e é isso mesmo. Em termos de conhecimento, a paranoia do século
XX culminou nessa vontade estapafúrdia de especialização que desreconhece

163
MD Magno

os outros campos de saber e de vivência da humanidade, o que se torna um


desconhecimento. Estamos saindo dessa paranoia e por isso mesmo, com
a ajuda da tecnologia e da zorra que é a internet, partimos de novo para o
interesse em todos os assuntos, mesmo que tenhamos uma profissão relati-
vamente especializada. Não é preciso ser um estúpido no geral por ser um
sábio no particular. Lá pela década de 1950, li um grande tratado de clínica
médica de José de Letamendi que tinha como exórdio: “Quem sabe só medi-
cina nem medicina sabe”. Ele era um polímata. Grandes desastres, grandes
erros ocorreram no século XX por causa dessa vertigem da especialização.
Nós outros temos uma Teoria do Conhecimento, a Gnômica, por transa
entre formações, sem hierarquia, apenas com gradação dependente de maior
aproximação, de maior quantificação das formações em exercício e de maior
eficácia em sua aplicação. É ad hoc, aqui e agora, é o que está funcionando no
caso presente. Repetirei agora como se fosse um mantra para nossa higiene
cerebral: a Teoria das Formações derroga o sujeito e o objeto assim como
derroga epistemologia e hermenêutica, componentes da paranoia do século
XX. Naquilo que considera, a Teoria das Formações arrola e opera todas as
formações possíveis de serem registradas numa qualquer situação sobre a qual
haver decisão. Portanto, ela é necessariamente uma polimatia. Querendo ou
não, é o que está acontecendo na cabeça das pessoas em função da visitação
permanente à pletora de informações que estão, por exemplo, na internet. A
polimatia transformou-se hoje numa computação enciclopédica com recurso
permanente à grande nuvem de informação. Finalmente, chegamos a ser nefe-
libatos, aqueles que andam pisando em nuvens. Caminhamos sobre nuvens,
estamos entrando na nefelemancia. O que temos de melhor semelhança disso
no passado é a Semiologia Médica em que, na composição do entendimento
para a produção de um diagnóstico, entrava toda a informação disponível sobre
certo paciente.
Edgard Morin, em contraposição à paranoia do século XX com a qual
conviveu, inventou o tal Pensamento Complexo. É uma espécie de teoria das
formações: a descrição geral das funcionalidades das formações. Mas, como é
francês, mantém o cacoete do sujeito. Muito antes, Nietzsche já avisara que o
sujeito é uma superstição – e completo esta noção dizendo que, hoje na cultura

164
MD Magno

funcional do mundo, sujeito é, sobretudo, um cacoete francês. O Pensamento


Perplexo, que é o da psicanálise, é uma espécie de pensamento complexo
acrescentado das rasteiras perpetradas pelo Inconsciente, mormente o chamado
Revirão. Estamos compondo o Pensamento Perplexo, levamos uma rasteira do
Inconsciente e ele revira para onde quer. Nós que pensamos dirigir nossa exis-
tência, na verdade, mais fundamentalmente, somos possuídos das mais diversas
maneiras. Liberdade é apenas um momento de HiperDeterminação, raro.
E a liberdade não é minha, é do Revirão. É interessante perceber que Lacan
não se considerava cartesiano por causa de sua crítica – aliás, muito acertada
– do cogito. No entanto, manteve sujeito e objeto como funções escritíveis em
suas fórmulas. O sujeito de Lacan é subvertido, como ele próprio escreveu –
subversão do sujeito –, mas não adianta subvertê-lo se o deixamos vivo. Seu
sintoma não desaparece. Ele é tão sintomático que, mesmo subvertido, continua
a ser sujeito. A subversão feita por Lacan foi desconfigurá-lo, apresentá-lo como
mero intervalo entre um significante e outro. Pior, como sendo aquilo que um
significante “representa” para outro significante. Que diabo é representação? É o
representante de Freud? O que é, efetivamente, um significante “representar” o
sujeito para outro significante? É o que os franceses chamam de tour de passe-
-passe, pelotiquice. Foi como ele conseguiu dar a volta na situação francesa do
saber naquele momento e parecer estar suspendendo a funcionalidade do sujeito
deixando-o como mero intervalo. Mas o que, exatamente, é representação para
Lacan? Procurem saber. Então, para não ser radicalmente cartesiano – como não
somos nós –, seria necessário abolir sujeito e objeto. Lacan não fez isto e, assim,
de algum modo, continua cartesiano francês. E ainda tem o suposto império
da razão, mesmo com a existência e a referência ao chamado Inconsciente. No
século XX, foi evidente a tentativa de imperialismo da razão. Cito uma pequena
frase de Morin: “Entre a paranoia, a racionalização e a racionalidade, não há
fronteira nítida”. Não é que não existam fronteiras, mas cadê?
• Potiguara M Silveira Jr – Morin fez um resumo da Teoria da Com-
plexidade numa conferência em São Paulo, em 1996. Diz ele lá que “há uma
ética da complexidade que é uma ética da compreensão”. É “uma ética da
aposta em relação à incerteza” contra Kant, pois na aposta “não temos abso-
lutamente certeza de conseguir os resultados que queremos”. É uma “ética

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MD Magno

da tolerância”, em que há o “princípio da livre expressão” e a “instituição


democrática”. Assim, ao mesmo tempo que ele destaca o fato de estar lidando
com formações – o que é claro no método que apresenta –, também precisa
colocar a democracia e a compreensão. É como se o destino das pessoas, no
bom caso, demandasse haver tolerância entre elas. O que fica faltando em sua
teoria parece ser o que você há pouco falou sobre as rasteiras perpetradas
pelo Inconsciente [Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997].
Morin, mês passado, fez cem anos de idade. Ele é, portanto, contem-
porâneo disso tudo, e com o mérito de já ter questionado a situação do conheci-
mento junto com a paranoia do século XX. Foi também o caso de Feyerabend.
Os termos usados por ele não são para nós. Reconhecimento não é propriamente
compreensão, é mais potente. É reconhecimento puro e simples de alguma
formação, de alguma pessoa seja qual for, pode ser o pior facínora. A psicanálise
observa e reconhece aquela composição. Além disso, a psicanálise não funciona
no nível da mera tolerância, a qual acaba ao chegar a certo momento, pois
você é gente, é cheio de sintomas. Ou seja, a postura da psicanálise não é de
tolerância, não há que tolerar o analisando, e sim reconhecê-lo como Pessoa e
saber que podemos recebê-lo seja qual for sua composição, que temos recepção
possível para ele. É, portanto, no nível da pura e simples aceitação do que quer
que haja. E isso é aqui e agora, hic et nunc, ad hoc, dentro das circunstâncias
de mundo. Outra coisa é a política disso entre as pessoas, no jogo do mundo.
Notem que ainda está valendo a pena brandir o termo democracia na política
contemporânea, mas há um detalhe: a democracia morreu. Ela tentou ser radical
e universal – e sofreu um Revirão. É ela mesmo que elege o bandido e o coloca
no poder. Trata-se, sim, de inventar a política do Quarto Império. Quando? Por
quem? Não sei.
• Aristides Alonso – O livro 5, do Método, de Edgard Morin é enri-
quecedor de raciocínios para as questões do Quarto Império. Ele escreve
apontando o rumo às metamáquinas, à super-humanidade, à desmortalidade, e
termina discorrendo sobre o Homem Genérico, que seria o polímata a que você
está se referindo. Em outro livro, O Paradigma Perdido: a Natureza Humana
(1973), Morin faz a proposição da religação dos saberes, que encarece a transa
das formações em oposição à segmentação, à especialização.

166
É algo que está acontecendo à revelia. A tecnologia está promovendo
isso na marra. Interessante que tenha conseguido ter uma visão anti-século
XX, ainda que cheia de cacoetes por ele ser da época. Tem sujeito, objeto, mas
indicou o percurso com bastante força.
• AA – Nesse movimento de reconexão entre as coisas, incorporou a
entropia, Prigogine, Maturana...
Entre nós, é o que chamamos de Teoria das Formações.
• AA – O espírito polímata não é encarecido no Brasil hoje. McLuhan,
por exemplo, não poderia dar aula numa faculdade de comunicação por sua
formação não ter “aderência” à disciplina.
Não se consegue situá-lo. A burocracia é estúpida, como Max Weber
já demonstrou. Ela é pura perversão.
• Nelma Medeiros – Como a Plataforma Lattes saiu do ar, perderam-se
por enquanto os currículos de alunos e professores. Seria uma boa oportuni-
dade para repensar todas essas especializações...
Currículo Lattes é o fetichismo acadêmico. Não dá conta da minha
formação, por exemplo: em design, graduação em psicologia, mestrado em
comunicação, doutorado em teoria literária. E mais, docência em geometria,
conhecimento de música, de artes plásticas, poesia...
• Patrícia Netto Coelho – Seu modo foi de ler a polimatia a partir da
Teoria das Formações, a qual seria a expressão maior da polimatia. E há o que
você, em 1995, traz como Razão Analógica. A polimatia só é possível mediante
o reconhecimento de que a razão das transas é analógica.
Na estrutura paranoica das formações teóricas do século XX, temos o
ato de Lacan abolir a questão da analogia e introduzir um conceito de substitu-
tividade significante para a metáfora. É quase uma regra aritmética, impossível
de ser obedecida. Vai contra as analogias por estas remeterem a esse espírito de
polimatia. Vai a favor de um rigor pseudo-matemático de uma relação propor-
cional para fundar a metáfora paterna. É, como sempre digo, algo compatível
com seu momento. Lacan é perfeitamente contemporâneo de Lacan, só que,
agora, basta!
• PNC – Um aspecto do cacoete francês do sujeito é o Discurso do
Método, de Descartes.

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MD Magno

Feyerabend, aliás, devia morrer de rir do “método” de Morin. Ele é


mais radical.
• PNC – O estruturalismo era a promessa do grande método do século
XX. Salvaria as ciências humanas.
A época é de rigor pseudo-matemático das formulações. Isto, mesmo
em Lévi-Strauss com seu cruzamento cultura / natureza para inventar a bobagem
de a interdição do incesto fundar a cultura. Lévi-Strauss é outro perfeitamente
contemporâneo de Lévi-Strauss, consentâneo com seu momento. Não é preciso
jogar pedra nele, mas, de nossa perspectiva, é uma tolice. Como falar precisa-
mente em incesto numa tendência tecnológica que pode, daqui para o futuro,
abolir com precisão toda reprodução sexual? Cadê o incesto aí? A teoria da
interdição do incesto só interessa a linhagens. Com os casamentos futuros, elas
serão como? A pergunta bruta é: quem estará comendo a “mãe”? É preciso nos
livrar de conceitos necessários a tal momento, mas que são anteriores a vários
descobrimentos e produções tecnológicas, por exemplo. Tomem as formulações
de Lacan: “o sujeito é aquilo que um significante representa para outro signi-
ficante” ou “o significante é aquilo que representa o sujeito para outro signifi-
cante”. O que é “representa”? Freud veio com representação e representante da
representação por não ter um gravador ou um telefone celular à disposição. Aí
temos uma representação que tem um representante seu gravado aí dentro dela.
Ou seja, é gravação. E há gravação também no cérebro. Naquele momento,
não havia como encontrar um análogo. Hoje, basta olhar para a tela que está
diante de nós para ver a representação. Felizmente, Lacan não tinha celular.
Se tivesse, ficaria telefonando à meia-noite para algum analisando ir falar com
ele no restaurante em que estava tomando champanhe rosé. E a pessoa ia...
• AA – É intrigante Freud não ter se interessado pelo cinema, com o
qual conviveu mais de trinta anos: Eisenstein, Chaplin...
Suponho que fosse uma concorrência. Por que ele não queria saber de
música, de Nietzsche, do cinema? Eram grandes concorrentes e atrapalhavam
seu pensamento, como ele dizia a propósito da leitura de Nietzsche.
• AA – Friedrich Kittler, de quem falamos aqui um pouco ano passado,
aponta essa ausência na obra de Freud. Kittler destaca justamente a importân-
cia do gramofone. Thomas Edison teria dito na primeira gravação feita que,

168
MD Magno

a partir de então, falaríamos com os mortos. É interessante esse aspecto da


permanência para além da modalidade de alguém estar ali presente.
A expressividade de alguém nada tem a ver com sua existência. Desde
que a tecnologia começou, se ela se deu, ela fica. Vejam o esforço de Freud
em seus textos para nos fazer entender o que sejam uma representação e o
representante da representação. Ele não tem uma analogia que preste. É um
grande esforço para entendermos... o telefone celular disponível hoje. Chega
a ser engraçado.
• AA – Ele se apoiava em conceitos filosóficos, gramaticais ou lin-
guísticos. Eram as analogias que tinha.
Ele é brilhante por conseguir transmitir mesmo sem a analogia
adequada.
• AA – O fato de não haver gravação de falas de Buda, de Jesus, de
Maomé, etc., faz proliferar mitologias estapafúrdias.
Entretanto, lembre-se de que Roland Barthes demonstrou que a tec-
nologia reproduz mitologias. Estamos numa situação de necessidade, se não
de obrigação, de reinventar tudo. A todo momento, temos na televisão um
maluquete, um capetão, colocando as instituições em pânico. E estas brigando
denodadamente a favor da democracia. O que fazer? Vejam que é imensa a difi-
culdade de nosso momento. Não há Revirão na maleta de trabalho dessa gente.

20
Faço algumas considerações sobre nossa situação de mundo com base na
Teoria das Formações. É preciso acrescentar o esclarecimento sobre o contem-
porâneo que, cada vez mais, fica difícil de compreender e manejar. O século

169
MD Magno

XIX, como sabem, foi da histeria – portanto, Freud e outras consequências. O


século XX foi da paranoia – portanto, Lacan. Já saímos dessas duas situações,
estamos num século que é Progressivo, e difícil de ser manejado, além de
tentarmos construir o que chamei de Quarto Império. Essas épocas fizeram
aparecer muitas reflexões no planeta. Tomo a seguir duas pessoas pensantes
do século XX, em alto questionamento dos acontecimentos daquela paranoia
em que tivemos duas chamadas Guerras Mundiais, com suas consequências
políticas e outras...
Uma dessas pessoas é Hannah Arendt, dotada de um pensamento
brilhante resultante, embora crítico, do pensamento de Heidegger, de quem
foi aluna e namorada. Ao ter que pensar a situação do Terceiro Reich, as con-
sequências da Shoah, etc., diferentemente dos demais, ela introduziu a ideia
(não da força, da potência, ou mesmo maldade, de uma ideologia, e sim) da
fragilidade da espécie, da fragilidade humana. Ou seja, fazendo mais barato:
as IdioFormações – as pessoas deste planeta – são débeis físicas e mentais. A
aquisição de força e pensamento exige um trabalho gigantesco permanente,
não feito pela extensíssima maioria. Diante do julgamento de Adolf Eichmann,
aquele trucidador de judeus, ela demonstra que ele não era o monstro ideológico
que as pessoas pensavam, e sim apenas um bundão sem a menor condição de
não ser manejado por qualquer situação. É, aliás, parecido com o que vivemos
hoje por aqui. Então, em contraponto à ideia kantiana de mal radical, ela propõe
a banalidade do mal. O mal é tão banal quanto o bem, uma bobagem que fre-
quentemente acontece sem a menor reflexão. Pensar isso é importante para nós
por termos, sobretudo a partir da histeria do século XIX e da paranoia do século
XX, o mau hábito de supor que somos uma espécie maravilhosa, inteligente e
brilhante. O que temos são produções de primeira qualidade criadas e orientadas
em sua existência por mentes mais fortes e por atitudes mais pensantes, mas a
maioria não é assim. Costumo dizer que isso aqui é o Planeta dos Macacos. É
longa a tarefa de tentativa de desenvolvimento desta espécie.
A outra pessoa a que me refiro é da mesma época e amigo de Hannah:
Walter Benjamin – suas questões com a memória, a memória da gente. Ele
insistia em que o passado é contemporâneo do presente. Não esquecer de que
um pouco antes deles aconteceu Freud, que mostrou que o Inconsciente não

170
MD Magno

computa temporalidade alguma. Passado e presente não se sucedem, se super-


põem, são simultâneos enquanto formadores ou formações que fazem parte da
grande formação sintomática. Os sintomas não se constituem no presente, se
constituem sem temporalidade. O que se pode fazer é atacar de frente e deles
arrancar outras possibilidades – este é o caminho da psicanálise. Benjamin
pensava isso sem psicanálise. Ou seja, o necessário entendimento da situação
enquanto sintomática incluindo toda temporalidade, ou não temporalidade.
Precisamos, portanto, rever várias ideias, frequentemente ideologicamente
sustentadas, que atrapalham o pensamento, sobretudo a concepção da possi-
bilidade de análise: fragilidade humana radical, debilidade física e mental, e
formação atemporal da sintomática.
Os parâmetros ou se esgarçaram ou perderam força e sentido, vivemos
um tempo em que a referência está cada vez mais fraca. Não será nada fácil
se não organizarmos um teorema qualquer e uma postura de enfrentamento e
sobrevivência dessa situação. As pessoas estão ficando desorientadas e frequen-
temente surtadas com atitudes as mais estapafúrdias, mesmo de governantes,
de grupos políticos, religiosos, etc. O Talibã conseguir retomar Cabul é algo
sério. Um grupo que se apega firme e desesperadamente a uma concepção reli-
giosa como concepção de poder e governo é uma das formações retrogressivas
de nosso tempo. Por outro lado, há até pessoas lúcidas contestando posições
de pessoas não lúcidas com atitudes e frases perceptivelmente sem a menor
força, sem a menor possibilidade de vigorar. Na CPI que atualmente acontece
no Congresso Nacional, ao discutir a situação da Covid, uma moça dizia “fato
é fato, não é opinião” – frase de século XX, que nada mais diz. Portanto, não
fará frente a poder desconstituinte algum. Por sua vez, um membro do STF,
pessoa lúcida, calma, reflexiva, ao contestar certas ideias de direito à opinião,
dizia que “o saber científico não é liberdade de expressão”. Eis outra frase que
tampouco nada quer dizer hoje, pois o saber científico está em questão – os
parâmetros estão suspensos. Podem ser usados como referente, mas não como
certeza de sustentação. Então, quando alguém aparentemente lúcido responde à
loucura do outro, responde com algo que não mais tem validade de sustentação.
Com isso, mostro a vocês a necessidade de uma recomposição geral
e radical da situação de mundo, política, social, cultural, de conhecimento...

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MD Magno

Tomemos outra bandeira levantada com veemência – na Europa, Estados Uni-


dos e também no Brasil – contra situações horríveis da contemporaneidade: a
Democracia contra a loucura política que está se instalando. O que é democra-
cia, meu Deus?! Do ponto de vista das formações que a compõem? Para sua
sustentabilidade, ela é uma exigência de situação mediana. Sem essa situação
mediana, não há democracia. Ela só se sustenta quando a medianidade é o
apanágio da maioria (e aqui entre nós, que ninguém nos ouça, é o regime da
mediocridade). As situações extremas estão numa eventual ideologia forte que
ou põe a ordem em regime excessivo – caso, por exemplo, da eleição de um
tirano paranoico, que não deixa de acontecer – ou na desordem emergente com
a eleição de um psicopata por voto popular. Se sair da medianidade e for para
qualquer extremo, ela se perde e o que seria o sustentáculo da democracia – o
voto da maioria – vai apontar para a tirania ou para a psicopatia. Estamos diante
dessas duas opções. Depois da queda do muro de Berlim, entramos na era do
fracasso dos paradigmas. Repetindo, uma democracia – que é supostamente
o governo do povo pelo povo e para o povo, ou seja, a opinião da maioria
(demo-cracia: o poder [kratos] do povo) – só se sustenta mediante situação
sociopolítica mediana.
O pensamento de John Dewey – o filósofo pragmatista da democracia
nos Estados Unidos e mestre de meu mestre, Anísio Teixeira – apresenta a
educação como sustentáculo para a democracia. Ou seja, é preciso formar uma
maioria dentro de uma medianidade de referência de pensamento e de compo-
sições ideológicas para que, na hora do voto da maioria, a coisa continue em
estatuto de democracia. A qualquer movimento, para lá ou para cá, acabou a
democracia. Ela mesma se suicida – a democracia sem a medianidade é suicida.
Dewey então preconizava uma educação para a democracia amplamente distri-
buída. Só assim, dentro desse ideologema, é possível sustentar o que as pessoas
supõem ser a democracia. Nos dois casos extremos – de aplicação fortemente
desenhada ou de desordem de referencial – não há democracia viável: ou vai
para o lado da paranoia ou para o da psicopatia, ou para a ditadura ou para a
desgovernança autocrática.
Ao lermos Platão e outros filósofos que conviveram e produziram
ao redor do pensamento de Sócrates, ficamos horrorizados com o que lhe

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MD Magno

aconteceu: foi condenado tendo que beber cicuta por conta própria. Ele pare-
cia tirar aquilo de letra para dar uma gozação nos poderosos. Sócrates foi
assassinado – este é o termo correto – pela democracia. O tempo da morte de
Sócrates é o da instalação da democracia na Grécia. Por que ele foi condenado?
Porque estava politicamente errado. Primeiro, foi excluído pelos tiranos, mas
não assassinado. Segundo, quando volta a democracia, a situação fica mais
violenta. Ou seja, é condenado à morte pelos democratas. Conforme dito em
seu laudo de condenação, estava subvertendo a juventude pela tirania da razão.
No caso dos tiranos, não havia lugar para a contestação supostamente racional,
e tampouco no caso dos democratas. Isto porque democracia não é o regime
da razão, e sim o regime da opinião, da doxa. Opinião de quem? Da suposta
maioria quantitativa. Entendem o fracasso da democracia em nosso momento?
Não há condição mediana para sustentá-la. Dado que os parâmetros explodiram
e as referências são fracionárias e fracionadas, não adianta brandir seu nome
para a luta contemporânea. Será perda de tempo.
Outra pessoa que sofreu pelo mesmo problema de Sócrates foi meu
mestre Anísio Teixeira. Foi assassinado, no caso por uma ditadura e não pela
democracia, por insistir em tomar a democracia reconhecida como uma necessi-
dade da razão e bater de frente com o regime quando o país inteiro se lixava para
a democracia. Não esquecer que a maioria estava achando muito interessante
aquela suposta revolução de milicos. Ele não percebeu que não era a hora de
bater de frente. Várias vezes, quando jovem, eu o encontrei na editora em que
trabalhava. Ele me pedia para ler o texto de artigo seu a ser publicado no jornal
de São Paulo. Eu lhe dizia: “Professor, por favor, tira essa palavra, essa frase,
isso vai dar em violência”. Às vezes, tirava, às vezes não. A história, exatamente
como uma análise, como a psicanálise freudiana, está sob o regime do só-depois,
Nachträligkeit. O só-depois é que faz a leitura do acontecimento. Por isso, os
historiadores estão sempre perdidos no durante. No só-depois tentam explicar o
que não entenderam. Mas será que, apesar do só-depois, mesmo numa análise,
é possível alguma pré-visão? Algum faro de percepção de para onde a coisa
está se encaminhando? Frequentemente numa análise suspeitamos de onde vai
dar. Alguma previsão é possível no regime do encadeamento da sintomática. Se
fizermos uma leitura sintomal, e não ideológica, de preferência de nossa própria

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MD Magno

sintomática, poderemos acompanhá-la e ter certa noção de onde ela vai dar. É
claro que isso pode ser subvertido pelo evento, pois o acontecimento sempre
desestabiliza a ordem sintomática – o que também pode ser útil no percurso de
uma análise. É o que pode subverter a pressão sintomática sobre uma pessoa.
Não é pelo ato analítico, é pelo acontecimento. O analista deve estar atento a
esse acontecimento que pode sobrevir na análise de qualquer um – felizmente.
É o que, em nosso teorema, é chamado de HiperDeterminação. Por que dei
esse nome que parece uma determinação extremamente mais forte? Porque é
determinada pelo acontecimento. O acontecimento determina o desregramento
do encadeamento sintomático. É um acontecimento HiperDeterminante.
O que trouxe é uma possível abertura para entender nossa situação
contemporânea. Alguém tem alguma sugestão de como sair dessa? Acho que
demorará a aparecer aquele que tenha as condições históricas, etc., de sugerir
uma saída. Talvez seja um ato coletivo. O que faço é a suposição de ter alguma
ideia de como se sustentar dentro disso: afastamento, distanciamento, reflexão,
análise e espera – pelo que não irá acontecer durante nossa vida: nenhum de
nós verá.
• Nelma Medeiros – Na contramão desse esclarecimento que situa no
nível lógico e sintomático que a democracia não é o regime da razão, e sim
da opinião da suposta maioria quantitativamente como medianidade, o século
XX insistiu numa razão discursiva que fosse a base da democracia, ou numa
razão que pudesse fazer certo regime de equidade.
Veja só que maluquice: justamente a época que assim preconizava pro-
duzia grandes formações paranoicas no regime da reflexão. Como seria possível,
com aquelas formações paranoicas do século XX, preconizar a democracia?
Nem falo em Marx ou em comunismo, pois aquilo morreu por lá mesmo.
Tomemos o próprio Lacan com a tentativa estruturalista inteiramente parana
no sentido de forçar a barra de um conhecimento radical, pontual e definitivo.
Algumas décadas atrás me assustei com isso ao ler pela primeira vez seu semi-
nário sobre As Psicoses. Como lhes conto sempre, até à metade as considerações
são importantes, mas, de repente, para ser coerente com a função estrutural,
parte para a foraclusão do Nome do Pai como determinante único e eficaz de
uma psicose. Não é verdade. Isso é século XX, com tudo perfeitamente correto

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MD Magno

dentro daquela mentalidade. Não cabe criticar a existência do pensamento de


Lacan, mas há que entender que estava dentro do mesmo circuito – o qual se
desmoralizou completamente com o passar do tempo. Por isso, não pude mais
sustentar a foraclusão suposta do suposto Nome do Pai – o que, aliás, é: cris-
tianismo e catolicismo. Tive que pensar e fazer a sugestão do HiperRecalque
funcionando sei-lá-como. É preciso verificar na existência de cada um, é aberto.
Pode-se cair numa psicose por HiperRecalque nas mais diversas situações e
configurações de formações. Ao determinar esse ponto, Lacan é consentâneo
com o século XX, com a paranoia do século XX e com a vontade de ciência
definitiva – que nem a ciência tem mais.
• NM – Você mencionou uma das características do século XX, as
duas Grandes Guerras. É como se o cenário pós-guerra tivesse, por analogia,
transposto o cenário da Primeira Guerra para o campo do pensamento e das
transas. É uma situação de confronto, combate e mesmo de eliminação do
outro. Se não for eliminação, o outro é sempre a mirada (a favor ou contra)
dos posicionamentos e do estabelecimento da verdade. É o cenário da guerra
transposto para as situações sociais, políticas e econômicas de então.
Basta ver que uma situação de extrema paranoia chamada Adolf Hitler e
Alemanha é combatida por outra paranoia. No final, com a entrada dos Estados
Unidos, fingiu-se que quem ganhou foi a democracia. Temos que sobreviver
às piores piadas...
• Patrícia Netto Coelho – Terminar sua fala dizendo sobre esperar
pelo que não virá, pelo menos não em nosso tempo, é compatível com as três
situações que você apontou quanto a Hannah Arendt e Walter Benjamin: fra-
gilidades física e mental e renitência atemporal das sintomáticas. Lembrei-me
de uma afirmação de Lao Tse trabalhada por François Jullien em um de seus
livros: Nada a fazer e tudo por fazer. É um dito não demissionário.
É nossa situação atual.
• PNC – Quanto a ser possível alguma pré-visão, lembro-me de que,
em 2007, você fala em TARDEMAIS e Antes Ainda. Acho que se trata de pré-
-visão não em sentido determinístico, mas de considerar o acontecimento. É a
ideia de que as coisas flutuam, derivam, não permanecerão necessariamente
as mesmas, mas há condições iniciais que darão algum tipo de Norte.

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A não ser que sobrevenha um evento que desmanche todo o pro-


cesso, sintomaticamente é possível certa sensibilidade de ver para onde está
caminhando.
• PNC – A própria ideia de Creodo Antrópico...
Como o acontecimento é raro, se acompanhamos a sintomática, temos
bastante chance de previsão, de Antes Ainda. Outro dia, num artigo de jornal,
disseram que eu teria de certo modo visto o acontecimento atual – porque,
sintomaticamente, estava na cara. Não é trabalho de historiador ou de vidente,
basta observar a pessoa funcionando com sua sintomática para saber que, sem
intervenção adequada, dará com a cara na parede ali adiante. Um evento pode
subverter tudo isso, mas evento acontece quando quer. Então, não devo aban-
donar a tarefa de previsão apesar da possibilidade de algum acontecimento. Isto
para nos situarmos mais ou menos diante da força bruta da ordem sintomática.
• Aristides Alonso – Tenho a percepção de que, ao fundar o Colégio
Freudiano do Rio de Janeiro, em 1975, você estava no meio de duas grandes
paranoias do momento: a ditadura militar impondo o modelo fascista que
domina o Brasil há tempo, e a parana de esquerda com modelo basicamente
estalinista de construção de política de Estado. E, além disso, você estava
brigando com a paranoia estruturalista de Lacan. É importante resgatar as
explosões daquele momento, pela absoluta falta que havia de possibilidade
de conversa...
Um pouco antes disso, como todos, eu procurava uma saída. Aí, topei
com o estruturalismo, Lévi-Strauss e a patota, inclusive Lacan, na qual embar-
quei e achei que fosse uma boa saída. Entretanto, as coisas foram se movi-
mentando, fui parar em Paris, dando aula no Departamento de Psicanálise de
Vincennes, então dirigido por Lacan, fazendo análise com ele, frequentando
sua Escola, e vendo o quê?: Aquilo desabando. Tive que aguentar firme, calar a
boca, voltar para cá, onde as pessoas não faziam a menor ideia do que acontecia
na origem da coisa, partir dali, começar dali e continuar tentando pensar. Isso
deu no que deu. Entretanto, por mais que camuflasse minhas questões com o
comunismo (eu era radicalmente contra) e com a ditadura (eu era radicalmente
contra), com o estruturalismo tinha que dar outro jeito. O que fazer, uma vez
que estava metido nele até o pescoço? Se acompanharem o que fui produzindo a

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partir dali, e mesmo um pouco antes, verão que eu já estava em questionamento.


Tomem um artigo meu, resultante de trabalhinho de doutorado, O Hífen na
Barra (1972) – anterior a eu enfrentar o velho Lacan em Paris. Como sabem, a
barra é a sustentação de todo seu pensamento, então, deem uma olhada naquele
texto para entender o hífen: o entendimento está camuflado sob aparência de
lógica estrita. Depois, há outro texto intitulado Gerúndio (1973), que nada tem
a ver com estrutura.
• AA – É seu rascunho de tudo que virá.
Eu estava entre duas posições opostas e difíceis.
• AA – Em 1982, três anos antes do Congresso da Banana, ainda antes
de ter pensado sobre o Maneiro, como terceiro estilo, um estilo nosso, você
tematizava Clássico / Barroco. Lacan tinha optado pelo Barroco para tratar
da sexualidade feminina e você já implicava com aquela situação binária e
falava sobre Oswald de Andrade em termos de Heterofagia. Era, aliás, uma
saída possível para a paranoia do binarismo do momento: fascismo da ditadura
instalada, de um lado, e ditadura do proletariado, de outro. Falo isso, pois
há gente hoje na universidade pesquisando o acontecimento do Congresso da
Banana para avaliar suas repercussões na história da psicanálise no Brasil.
O Congresso da Banana foi uma explosão e uma chamada anticolonia-
lista, até Chacrinha participou. Antes, já havia trazido Joãosinho Trinta para
falar para nós.
• AA – Sobre Hannah Arendt, ela, ao falar sobre o julgamento de
Eichmann, foi objeto de sanha e perseguição do próprio movimento judaico. De
certo modo, desmanchava certa narrativa oficial que se montava sobre a shoah.
Na época, o pessoal não tinha condição de deglutir seu texto, de per-
ceber que ela estava precisamente colocando o dedo no sintoma.
• PNC – Hans Jonas, seu amigo, chegou a romper com ela.
Para você ver.
• AA – Acontece com você, em 1975, algo semelhante. Você não era
visto nem como de esquerda nem como de direita.
Certa direita dizia que eu era da esquerda, e a esquerda que eu era
de direita. Um amigo meu, depois da Abertura, pesquisando nos arquivos do

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MD Magno

Dops, leu que eu era tido como “intelectual de direita, porém inofensivo”. É
de morrer de rir.
• Potiguara M Silveira Jr – Lembro que antes do Congresso da Banana,
ao propor que o cartaz fosse uma banana, houve grande reação interna, dentro
da instituição que era a sua.
Houve gritaria, começaram a me agredir.
• PMSJr – Um francês, daqueles que vinham dar palestra aqui, ficava
perguntando: Pourquoi la banane?
A resposta é justamente dar uma banana.
• PMSJr – Acho mesmo possível dizer que o Congresso da Banana é
uma expressão do Antes Ainda. Talvez agora, no Só-Depois, possamos entender
que essa banana possa ser útil no entendimento não apenas da psicanálise no
Brasil, mas da psicanálise do Brasil.
Com o passar do tempo, logo depois, boa parte do chamado Colégio
Freudiano se desesperou por ver que, lá dentro, o lacanismo estava acabando
– e passaram a fundar escolas lacanianas: fósseis.
• PMSJr – Roberto DaMatta, um dos palestrantes, fez uma boa fala
sobre o valor da banana na cultura brasileira. Você comentou que ele tinha
entendido muito melhor o porquê da banana do que gente da instituição.
Ele explicou razoavelmente bem.
• AA – Supomos que o gesto de dar uma banana seja cultural, mas é
de primatas como expressão de desprezo.
A música que era o núcleo da mensagem do espetáculo de José Celso,
no Rei da Vela, era: “Yes, nós temos banana! Banana para dar e vender!”
• AA – A Tropicália usou e abusou do símbolo da banana. Era algo
bem presente na cultura brasileira que o pessoal estava recusando.
É ignorância e macaquice deles em relação a coisas de fora.
• AA – Na comemoração dos vinte anos do Colégio Freudiano, a
imagem da banana foi utilizada de novo, mas então ela já estava descascada.
Parafraseando Carmen Miranda, você colocou: Banana is our business too.
Vejam que, do ponto de vista de nossa cultura, está tudo certo.

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De vez em quando, ouço algumas perguntas, ou ouço falar do que compa-
rece em nosso meio, que me deixam a impressão de que há metafísica nos
atrapalhando. Pensamento não é filosofia. Esta é um cacoete ocidental, sem
obrigatoriedade de ser acolhida. Há várias modalidades de pensamento que
não são filosofia: matemática, psicanálise, poesia... Hoje, então, aproveito
para lembrar alguns dispositivos de nossa teoria e peço que compareçam com

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comentários, considerações e questões, pois os vícios metafísicos frequente-


mente se imiscuem em nossos raciocínios.
Quero conversar melhor sobre coisas como Teoria das Formações.
Ela está esboçada lá atrás, em O Pato Lógico (1979), e ultimamente a tomei
como a base principal da reflexão sobre metapsicologia. Ela vem para abolir
sujeito e objeto, para mostrar que são nada mais nada menos do que supersti-
ções, como dizia Nietzsche. Digo até um pouco mais, o conceito de sujeito é
quase uma alucinação. As pessoas percebem que há movimentos de transa de
formações dentro de suas mentes, e ficam com a impressão de que há alguém
lá fazendo barulho. O sujeito é o macaco no sótão, a imaginação de que um
macaquinho dentro da cabeça lá está fazendo bagunça, mas isso não existe,
é uma bobagem da filosofia. Decorre daí a tentativa de entendimento de que
formações são essas que estão se transando dentro da mente e dentro dela
com outras formações – daí a teoria do aglomerado. É impressionante como
só em certas considerações de patologia as pessoas se dão conta de que uma
pessoa é um aglomerado de formações, que ela tem muitas personalidades.
Quando, uma ou outra vez, algumas personalidades tomam o poder e entram
em conflito, a patologia vem dizer que a pessoa está com problemas de múl-
tipla personalidade – mas é o que todos têm. Podemos ter algum personagem
focal que aplicamos mais frequentemente na vida, mas, se observarmos nossa
funcionalidade no mundo, há vários personagens. Os teatros são diversos e o
personagem muda quando muda de palco. Quem mais prestou atenção a isso,
felizmente alguém de nossa língua e o maior poeta de todos, foi Fernando Pes-
soa. Ele prestou atenção, viu que não havia macaquinho no sótão e começou a
observar quem falava com quem dentro de sua cabeça. Foram mais de cento e
trinta personagens, uns mais, outros menos comparecentes. Talvez a psicanálise
possa servir não para transformar todos esses personagens num só, e sim para
entender que dá para compreender essa multiplicidade e fazê-la funcionar de
maneiras cada vez mais adequadas dentro do chamado mundo. Mundo não é
um conceito de totalidade como certos filósofos contemporâneos insistem em
supor. Há mesmo quem diga que o mundo não existe por concebê-lo como a
totalidade dos acontecimentos dos elementos que compõem isso que se chama
de mundo. Mas quem sabe o que é mundo é o poeta. Mundo não é senão o

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LUGAR onde tudo acontece – está em Mallarmé: o LUGAR. Nada acontece


senão o LUGAR – onde tudo acontece.
Na consideração das formações e suas transas, destacamos o aconte-
cimento de uma formação ser determinado polo que tem uma focalização e
uma zona franjal que não sabemos acompanhar até algum fim (que não tem).
O que se pode fazer de melhor é construir alguma ficção de qualquer ordem,
de qualquer nível, que tente dar conta de nossa situação nesse lugar chamado
mundo, ou nesse mundo chamado LUGAR. Daí eu ter sugerido a ideia de
FIXÃO: constrói-se uma ficção – poética, matemática, religiosa, científica,
física, biológica... – que possa momentaneamente fixar uma relação de enten-
dimento com as coisas que acontecem no mundo.
• P – A consciência é que cria a superstição do sujeito, a ficção...?
Há ingredientes em todas as formações que não são conscientes. Dos
quais frequentemente as pessoas sequer se dão conta de estar pondo em exercí-
cio. O que pode ser consciência senão o reconhecimento, por transa, da transa
entre formações?
• Nelma Medeiros – É um efeito da transa. Mediante transa, produ-
z-se o efeito de que está ocorrendo transa, que poderia ser consciência, que
é regional.
E a consciência, nesse sentido, não é muito diferente da ideia de conhe-
cimento. Por que dizemos que vamos tomar consciência de tal fato assim-assim?
Porque é a mão que desenha a mão que a desenha (Escher). A consciência se
passa aí no mesmo lugar do conhecimento. É por isso que o sujeito atrapalha.
Queriam que o macaquinho ficasse pensando o que encontra no mundo. Como
dar conta do macaquinho? O macaquinho morreu – o de Lacan, pelo menos,
é só um intervalo.
• P – A impressão de o macaquinho estar no sótão é que criaria a
ilusão do sujeito?
Não é ilusão, é maluquice mesmo. É uma invenção como outra ficção
qualquer. É inventar que lá dentro, sub-jectum, por debaixo, tem alguém –
quando, ao contrário, alguém está na superfície, do lado de fora. É uma histo-
rinha que colou principalmente a partir do século XVII com a histeria daquele
rapaz chamado René Descartes. Precisavam de um substituto intelectivo para

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a ideia de alma, então lá colocaram o sujeito. Ao invés de ser efeito, parece ser
certa substância que está em algum lugar produzindo coisas. Isso não existe.
• Patrícia Netto Coelho – Você falou sobre ingredientes nessa transa
que resultam na alucinação do sujeito. Ainda há aí as formações primárias,
etológicas...
Todas elas estão em jogo. O defeito de esquecer o Primário não está
muito em Freud, mas depois dele fica mais forte. Esquece-se de que lá há um
etológico que, por mais que tenha sido subvertido pelo Secundário, é um dos
motivos de diferenças fundamentais entre as pessoas. Elas têm composições
etológicas diversas, que estão funcionando – e pior, funcionando inconsciente-
mente. Muitas não são difíceis de serem encontradas na vivência de cada um,
são repetições de demandas do Primário.
• PNC – Na suposição de interioridade fechada em que se apoia a ideia
de sujeito, a base pode estar numa série de formações primárias necessárias
para estabelecer fechamentos, territorialidades, fronteiras. Então, passa-se
do que funciona adequadamente de um nível para outro: uma transposição
maluca, é o caso de dizer.
É o macaquinho no sótão. As pessoas acham que quem está pensando é
o macaquinho. O Primário tem grande força à medida que, em sua razão animal,
funciona etologicamente. Chamemos de neo-etológico por haver subversão pelo
Secundário, mas é uma enorme quantidade de certezas que o Primário tem e o
Secundário não consegue ter.
• PNC – Daí a necessidade de uma Tópica adequada a esse modo de
a psicanálise pensar e abordar o mundo, o LUGAR, as transas. A Tópica do
Recalque (1992) tem melhores condições de situar melhor essas transas sem
incorrer nesse erro de situação.
A filosofia não produziu uma tópica. Produziu uns ambientes de pen-
samento chamados: metafísica, ontologia... Coisas que, segundo me parece, se
tornaram tolices a partir do nascimento da psicanálise – Freud dixit.
• PNC – Não haveria algo próximo de uma tópica em Espinosa?
Digamos que sim. Qual seria?
• PNC – Para ele, é importante situar o que é da ordem da eternidade
como distinto da ordem da duração. Faz diferença situar formações e transas

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MD Magno

nesses dois regimes. Ele também distingue entre composições finita e infinita,
entre jogos ativo e reativo.
Veja que é bem mais inteligente do que em Descartes. Nietzsche, por
sua vez, tem certa relação de transa com o animal. Nele há uma boa indicação
de que o Primário lá está funcionando.
• P – A filosofia privilegiaria a articulação linguageira?
A articulação linguageira frequentemente complica e estraga. Por isso,
a filosofia é o que é. Dá-se mais importância à sintaxe e à semântica do que a
todo o resto. Vira aquela baboseira de quinhentas páginas que poderia ser dita
em trinta.
• P – Mas tem sua importância.
Tem a importância dela. Assim como outras modalidades têm as suas.
É preciso entender que é a linguagem que se apoia sobre o articulatório, e não
o contrário. Estamos vindo do império paranoico das ciências da linguagem
do século XX. Por que o homem seria um ser falante? Ele só faz isso? Passa a
vida batendo boca? Não almoça, janta, dorme, faz xixi, cocô, trepa...? E quando
fala, geralmente nem na língua consegue articular coisa com coisa. Tenta-
mos escutar, e a articulação se foi. A pletora de possibilidades de articulação,
inclusive essa coisa nova da espécie em relação às outras e mesmo de parecer
que fala, é gigantesca. As pessoas só sonham com falas e escritos? Sonham
com teatros completos, às vezes sem uma única palavra. Estão articulando de
algum modo, e essas configurações não necessariamente – como Lacan queria
supor – são emergências de falas. Jean-François Lyotard tem um excelente livro
sobre isso que já indiquei várias vezes: Discours, Figure (1971). Só é chato
por ser muito grande. Francês não consegue falar tudo em trinta páginas, tem
que ser em três mil.
• P – É que tenho mania de pensar numa hegemonia da linguagem.
É gostosura sua.
• Aristides Alonso – Sobre esse ponto da metafísica atrapalhando os
raciocínios, cabe notar que nossa linguagem, mesmo a usual, é contaminada
historicamente por ela. Para relativizar isso é preciso uma vigilância perma-
nente do verbo ser, do conceito de todo, de universal...

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E nada disso existe, nunca compareceu. Até hoje procuro o tal universal.
Filósofos recentes começaram a falar mal da metafísica, mas fizeram talvez
pior: colocaram a ontologia em seu lugar. Como não têm distinção entre Haver
e Ser, essa ontologia fica suja.
• AA – Por isso, você já deu a dica ao dizer que “as formações são
ad-jetas”. São adjetivas, o que possibilita escapar de pensar como substantivo,
em que está inserida a ideia de essência...
...do macaco. As formações estão umas ao lado de outras, e só per-
cebemos a transa. A preocupação que trago hoje sobre o vício de metafísica,
pedindo que comentem, é por perceber que nossos conceitos de vez em quando
estão metafisicados. Isso não funciona para nós.
• AA – Outra questão minha diz respeito aos estudos sobre a inteli-
gência artificial, em que o pessoal tenta entender o que seja consciência. Você,
na seção “Parangolagem” de seu Falatório Revirão 2000 / 2001, recupera
ideias de Daniel Dennett e outros, e propõe uma abordagem da consciência do
ponto de vista da Teoria das Formações. Você coloca a ideia de um Parangolé
Catóptrico lá inserido como possibilidade de reviramento de qualquer arranjo.
Aí já estamos no regime da consciência de ter consciência. O animal
tem consciência sem Revirão. Ele está no regime das transas das marcações
nele inscritas, que são poucas. Nada mais com personalidade do que um animal.
Um cachorro tem personalidade, não duvida, erra pouco...
• AA – Nesse sentido, acho que seria bastante produtiva a aproximação
da Teoria das Formações com a inteligência artificial.
O pessoal da ontologia tem implicância com a tecnologia e com a
inteligência artificial. É claro que a IA é ainda pobre. Ela não substitui nossas
condições, tem bastante caminho a percorrer. É como está no título do livro
de Markus Gabriel: Eu não sou meu cérebro (2018). É claro que não sou. Se
fosse, poderia jogar o resto fora e ficar só com ele. Não é disso que se trata. Se
a metafísica está meio desmoralizada, fora de moda, e a ontologia quer tomar
seu lugar, de que ontologia se trata? Falam da mistura – que está em todos, e
que facilmente se compra de Heidegger – entre Haver e Ser. Heidegger, aliás,
é mais inteligente, separa os níveis, sabe que há um nível de puro Haver. Nossa
língua facilita, pois tem articulações que outras não têm. Daí Fernando Pessoa

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MD Magno

poder dizer: “O mistério supremo do Universo / O único mistério, tudo e em


tudo / É haver um mistério do universo. / É haver o universo, qualquer cousa.
/ É haver haver”. Nossa língua tem articulações que outras não têm, e ajudam
a pensar melhor. Pessoa deixa claro que haver não é ser.
• P – Você, n’O Pato Lógico (1979) fala em Incitação, Excitação e
Recitação como formulação inicial da Teoria das Formações. Fiquei em dúvida
sobre a Recitação.
Lá eu falava sobre a sexualidade e, quanto a ela, sabemos muito bem
como é a recitação. Tem a transa e tem as transas.
• P – Em termos da consciência, está certo dizer que acontece a transa
e a anotação da transa? A IdioFormação seria uma espécie de consciência
do Haver?
É uma consciência de si. Não sei que tipo de consciência que as estrelas
têm, mas não têm consciência de que têm consciência. Suponho que uma Idio-
Formação – da mais estúpida à mais sofisticada – seja o Haver se repetindo para
se saber. É uma tentativa. O Haver se repete porque se repete.
• P – Dizer assim não implica em teleologia, em alguma finalidade?
Não é finalidade, e sim pura repetição. Se a coisa se repete, acaba se
repetindo. Faria o quê?
• PNC – Recitação também é repetição.
Sim. Se tomarmos Stephen Wolfram, entenderemos que, de tanto algo
se repetir, de repente se acrescenta, se ressignifica, toma compreensão. Não é
preciso papai-do-céu ou teleologia alguma aí. Não é por uma questão teleoló-
gica que se repete, e sim porque se repete é que dá a impressão de teleologia. É
mera impressão, um efeito de pensar que o universo foi feito para nos colocar
aqui – o que é narcisismo vagabundo, pois o universo foi feito (nem para se
universalizar, mas) para se universar, para fazer verso.
• P – Em Arte e Psicanálise (1995), ao falar das formações, você dis-
tinguia formações observantes das formações observadas.
É bobagem. Já troquei tudo isso pelas mãos do Escher, que citei há
pouco. Foi a ideia que tive naquele momento, mas ao falar em formação obser-
vante, lá vem o sujeito de volta.

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MD Magno

• P – Entendo que não há divisão, mas você falou em Acervo e Aspecto.


Não é também uma divisão? Uma mão seria o Acervo e a outra, o Aspecto.
Temos um Acervo de formações que vai transar com um Aspecto
qualquer. Chamo de Aspecto por não saber o que lá está. Uma coisa se mexe
e a outra se mexe, é assim, é aquela transa. Há pouco, alguém requisitava a
hegemonia da linguagem enquanto língua. Tomemos a cabeça de Escher para
pensar que ele concebeu uma gravura, uma transa, sobre a qual fiz o esforço
de dizer que é a mão que desenha a mão que a desenha. Ele não pensou isso,
não partiu de minha frase: ele fez lá. Minha frase é que partiu dele. Tomem
também Cézanne e vejam que ele sequer sabe dizer isso, via apenas cor. Sua
explicação é ruim – ele é Cézanne, não é Lacan. Notem também que o Acervo
é total, e não apenas dos estados mentais da pessoa.
• P – Minha pergunta é quanto à Teoria do Aglomerado. Noto que há
algum tempo você vem colocando de outra forma o conceito de Fantasia. Diz
você que o destacamento da fantasia é um componente importante do processo
da análise de uma pessoa, para que tenha maior regência sobre a fantasia.
Destacar no sentido de fazer um concerto do aglomerado?
Não é um concerto, e sim uma afetação. Ao falar em fantasia, é no
sentido freudiano de fantasia sexual. Ou seja, qual algoritmo faz a pessoa gozar
com mais precisão? Ele pode ter vários comparecimentos, entrar em vários
teatros, mas há que procurar pelo algoritmozinho que, em certo momento da
história da pessoa, foi articulado e inserido na carne. Então, uma vez que o
representante do Sexo do Haver é o seu sexo, digamos assim, uma transa dessa
formação com as outras formações da pessoa, sempre influirá de algum modo.
• P – Você disse que a fantasia, destacada ou não, não deixa de ter
esse papel, algum tipo de dominância nas transas da pessoa.
É um tipo de permanência ali. Ela começa a ficar presente nas articu-
lações porque lá está grudada no tesão, inclusive no Primário. Ela fica frequen-
tando, sempre se imiscui nas coisas. É uma presença.
• P – Você também fala sobre uma regência da fantasia como conse-
quência possível do processo de análise.
Como a fantasia é uma formação que, na transa com as outras for-
mações, passa a ser uma frequência que se imiscui no comportamento dessas

188
MD Magno

formações, ela acaba como que desenhando o que podemos chamar de Estilo,
mas em última instância. Por exemplo, quantas pessoas são Fernando Pessoa?
Qual é a fantasia que atravessa essas Pessoas? Há que buscar na obra dele, lê-la
toda, para ver se descobrimos a fantasia que permanece atravessando todas
as manifestações. Se não, não haveria Pessoa. Não haveria o aglomerado da
pessoa falando aquilo tudo se não houvesse o que os ingleses chamam de fio
vermelho perpassando ali. Que tesão é esse que leva a pessoa a fazer aquilo?
• P – Há relação entre as formações e a Pulsão?
Há transa, e não relação. A Pulsão não para: quando finge estar parada,
está fornicando com alguma formação. Transa implica algo transitar daqui
para lá, implica haver trânsito. E qual é o motor das transas? A Pulsão. Numa
Morfose Estacionária, por exemplo, o que acontece é não estar transando,
paralisou. Se colocarmos aquelas formações paralíticas, ou paralisadas, para
transar, sairemos da neura, da configuração permanente.
• P – Com a complexificação das tecnologias, o atual excesso de infor-
mação facilitaria mexer na Morfose Estacionária?
Não existe excesso de informação. O que temos é excesso de informação
disponível, e qualquer pessoa, dependendo de seu Acervo e de sua competência
de transa, limita a recepção. Em geral, ao falar com as pessoas, vemos que são
surdas. Para que houvesse excesso de informação, seria preciso recepção total.
Não há. Corre informação por aí, mas quem são os receptores? Alguns são
tão estúpidos que sequer lhes chega a informação do século passado. Tornar
disponível implica mais transa e, por conseguinte, menos Estacionamento.
• P – O excesso, então, sempre esteve disponível por aí?
Alguém da pré-história passeando pela floresta está diante de muita
informação, é demais, ele não dá conta daquilo. Estão hoje confundindo haver
disponibilidade de informação com as pessoas estarem sendo atacadas por isso.
Não estão. Elas, sem análise, são e continuarão cegas, surdas e mudas.
• P – Elas recalcam?
Não é que haja uma informação que é recalcada. A coisa é de tal maneira
Estacionária que não é recebida. Não tem como receber, não tem por onde entrar,
está trancada. As pessoas trancam porque nasceram trancadas. Nasce aquele
animal primário, no qual custa muito fazer com que algo se movimente. A

189
MD Magno

suposição da Pedagogia é: como tomar aquele bicho e abrir sua cabeça? Ele
tem disponibilidade por, supostamente, ser alguém da espécie e, portanto, poder
revirar, mas está cru demais. Ou melhor, não está. Está cru secundariamente,
mas, no Primário, é um bicho cheio de informações – defensivas, inclusive.
Aquele bebezinho pode parecer um anjo, mas é um monstro, quase um animal.
• P – No entanto, as crianças aprendem mais rápido.
Porque estão fresquinhas. Na ordem do Secundário, não têm recalque
– só têm os recalques primários –, a biologia está mais disponível. Ao ficarem
velhas, ficam mais escleróticas, aí é diferente. Vejam uma coisa tristonha. Dois
anos depois de voltar de Paris, soube que as pessoas até choravam ao ver Lacan
em seu seminário, ele que sempre tivera aquele brilho todo, ficar parado diante
do quadro negro sem nada conseguir fazer ou dizer. Ele estava gagá.
• Potiguara M Silveira Jr – Você falou da ideia de Mundo como dife-
rente da totalidade dos acontecimentos, como o LUGAR onde tudo acontece. Em
A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousia (2007, p. 58), diz você: “...o mundo
é uma secreção da Pessoa, enquanto Real, em transa com outras Formações do
Haver, pessoais ou não. Nessa transa vai-se secretando mundo (...) a verdade
última de cada Pessoa é secreta porque real e, portanto, intransmissível. É um
segredo inconfessável, não por ser proibido ou feio, mas porque é impossível.
No entanto, é transmissível por minhas secreções de mundo: transmito minha
havência por minha existência secretando mundo”. É importante aí pensar a
transmissão – sobre a qual sempre falamos no âmbito de nossa Formação em
Psicanálise – como transmissão de havência.
Transmissão de havência é o cerne da questão, mas no que isso fun-
ciona, se movimenta, vai configurando mundo, vai configurando esse lugar
para a pessoa. É como diz o Zen: Não existe caminho, quem faz o caminho é
o pé – quando a pessoa anda, tem um caminho. Trata-se, pois, da transmissão
da havência enquanto pode secretar mundo para a pessoa.
• PMSJr – É possível articular essa transmissão em termos de Análise
Propedêutica e Análise Efetiva?
Não cabe misturar aí. A Análise Propedêutica é a pessoa fazer análise
suficiente para sacar isso e ultrapassar. Depois, para o resto da vida, continua-
-se no exercício dessa sacação. A havência lá está, não se escapa dela. Pode-se

190
MD Magno

fazer de conta de não estar olhando para ela, pode-se congelá-la, estupidificá-la,
pendurá-la num cabide, cobri-la de tanta porcaria a ponto de deixá-la sufocada.
Ela continua havendo, mas na estupidez. Você acha que o estúpido não há?
• PMSJr – Ele há e se transmite.
Só o que não há é o não-Haver, e mesmo assim falamos dele.
• PNC – Do ponto de vista da psicanálise, o que interessa transmitir?
Esta é A pergunta.
• P – Lembro-me de que Lacan diz que o que se transmite é um estilo.
Por isso as pessoas se tornam lacanianas. Não estou aqui transmitindo
estilo algum. Por favor, não me “copeiem”. Cada um que ache o seu estilo. A
pergunta de Patrícia é fundamental.
• P – A psicanálise não transmite a psicanálise?
É o que diz Lacan. Se você faz análise a bom termo, digamos assim
mesmo que não se saiba o que seja isso, trata-se de tornar-se analista. Isso é a
transmissão da psicanálise, mas a pergunta é sobre o que interessa à psicanálise
transmitir. Até Hegel sabia dizer isso.
• P – Seria o Haver?
E, em última instância, o que é o Haver?
• P – Puro tesão?
Não. Tesão é a pulsão.
• P – A indiferenciação?
Não, isso é puro exercício. Repito, até Hegel sabia da última instância.
A frase dele é: Em última instância, nem mais nem menos do que Nada – é o
que está em Mestre Eckhart: Nada! Para além da Indiferenciação, ainda tem:
Nada. É claro que o Nada ainda é indiferente, mas a indiferenciação, se está
indiferenciando, logo é algo.

191
MD Magno

22
Tenho dois assuntos para conversar. O primeiro é sobre a independência do
Inconsciente em relação a qualquer teoria que tente situá-lo. Talvez as
pessoas tenham a má impressão de que ele seja ocidental. O Inconsciente não
é ocidental, e tampouco é oriental. Nem mesmo é etnológico, pré-histórico,
mitológico ou religioso. O Inconsciente se manifesta enquanto tal, em plena
congruência com o Haver, mas não confundir sua existência com teoremas
ou construções culturais que tentam abordá-lo ou, pelo menos, exprimi-lo.
O Inconsciente está presente em qualquer IdioFormação neste ou em outro
planeta, em qualquer galáxia ou universo que houver. Ele é uma consequência
de haver Revirão em funcionamento, onde quer que esse Revirão compareça.
Ao fazer a brincadeira de trocar a frase L’Inconscient est structuré comme
un langage, de Lacan, por L’Inconscient est structuré comme on l’engage,
quis mostrar que o Inconsciente vai comparecer, funcionar, exprimir-se e ser
abordado em alguma compreensão de acordo com o lugar, as condições e as
articulações que estiverem em exercício em dado momento. Por isso, digo
que ele é estruturado quando está engajado com as formações. Aí, comparece
como tal, dependendo de reviramento, mas com seus conteúdos e articulações
específicas.
A experiência de Freud com a psicanálise e o protocolo que utilizou são
de determinado tipo. A experiência e o protocolo de Lacan são outros. Ambos
dependentes do engajamento que o Inconsciente teve naqueles momentos.
Costumo dizer que Freud é século XIX e Lacan século XX. Então, por que
a Teoria das Formações? Mostrarei as correlações que se fazem necessárias
neste momento de emergência do Inconsciente para haver a articulação da
teoria como Teoria das Formações numa situação diferente tanto da situação
lacaniana, quanto da freudiana. Isto, embora continue sendo a mesma questão da
psicanálise: Como lidar com o Inconsciente? Será que a psicanálise é mesmo e
somente uma talking cure? É conversando que a gente SE (a si mesmo) entende,

192
MD Magno

mas quais outros ingredientes além da fala e da linguagem falada participam


dessa conversa no entendimento do Inconsciente?
Nos casos anteriores, ocidentais, de tentativa de abordar o Inconsciente,
sobretudo de Freud e de Lacan, vigorou uma forte tendência eclesiástica, que
tem feito grandes estragos na psicanálise. A tendência eclesiástica é prejudicial
ao entendimento do Inconsciente por fazer forçações no sentido da canonização
dos teoremas concebidos. No caso de Freud, ainda durante sua vida, várias
ramificações, pequenas diferenças, surgiram, mas todas dentro da mesmíssima
situação. Mesmíssima situação quer dizer o que chamamos de um paradigma.
Não há mudança de paradigma de Freud até Lacan, apenas divergências de
métodos, de modificações na abordagem. Em Lacan, sim, há forte mudança
de paradigma na concepção, ainda ocidental, da psicanálise. Insisto em que a
psicanálise não é ocidental e que o Inconsciente não é ocidental por este sem-
pre ter comparecido e sempre ter tido alguma abordagem explicativa, mesmo
sem ter esse nome. As formações religiosas, mitológicas e algumas formações
históricas de concepção dos acontecimentos são todas pojadas de considerações
que não podiam não se referir ao Inconsciente. Portanto, ele sempre foi consi-
derado, sua nomeação é que é recente. E as formações teóricas que utilizamos
são regionais, são formações consentâneas com o pensamento ocidental. Então,
por que a NovaMente? Porque sua postura é de acolhimento absoluto. É um
paradigma novo e diferente dos dois anteriores.
Chegamos, então, ao segundo assunto de hoje: a questão do Para-
digma, que é um conjunto de ideias mediante as quais aqueles que sustentam o
paradigma observam e explicam o que encontram em sua experiência. A expe-
riência muda, as ideias que podem abordar essa mudança começam a constituir
um conjunto de observações e explicações de acordo com o que encontram em
sua experiência. Insisto agora num fenômeno que tenho observado que pode
ser prejudicial ao desenvolvimento de nossa formação teórica. Na Formação
dos operadores da NovaMente, temos que considerar e prover as condições de
reconhecimento e de assunção das grandes mudanças que constituem a formação
de um novo paradigma. Não é possível haver entendimento ou desenvolvimento
do processo quando, diante de uma situação assumida por certo paradigma,
considerarmos as consequências teóricas dessa formação com a cabeça do

193
MD Magno

paradigma anterior. Não há a menor possibilidade de um paradigma colar sobre


outro. Eles partem de experiências, de momentos, de situações mentais dife-
rentes e se constituem em sua especificidade. Então, se é apresentado um modo
de pensar e repetimos as frases desse modo de pensar com o entendimento do
modo anterior, nada estaremos fazendo, estaremos confundindo.
A mudança de paradigma não é uma idiossincrasia da NovaMente, e
sim o acontecimento contemporâneo e consentâneo com o século XXI enquanto
entrada no Quarto Império. O que se pode verificar nas produções teóricas de
nosso momento como tenho indicado a vocês com boa bibliografia que observa e
considera o mundo segundo um paradigma da mesma ordem do da NovaMente.
É o paradigma de hoje. Então, nos perderemos se não houver uma mudança de
postura na mente quanto à concepção paradigmática de um momento teórico.
E há certas perguntas e questões sobre o que é dito aqui no SóPapos que me
parecem referidas a um paradigma antigo. Em nossa Formação, nas leituras
feitas, repito, é preciso, antes de mais nada, considerar essa mudança de postura
mental, sem a qual não se entenderá o que acontece não apenas na psicaná-
lise, mas igualmente na experiência nova que está no mundo e que exige uma
construção paradigmática também nova e independente das anteriores. Isto,
embora continuemos no campo da psicanálise, ou seja, no campo do tratamento
correspondente ao funcionamento do Inconsciente. O paradigma é que muda.
Apontarei três coisas fundamentais na concepção desse paradigma
novo da psicanálise. Primeira, a Teoria das Formações: não há desenho pré-
vio. É o que acontece com as teorias em todas as áreas, desde a física até a
antropologia, a literatura, etc. Não há consideração de design prévio. Este é
consequência de uma experiência pessoal. É necessário que o que encontrarmos
nas pessoas seja recebido com acolhimento para entender as formações que lá
estão. O desenho é consequência da recepção e da intervenção na trama das
formações. Como já disse, uma IdioFormação é um aglomerado. A segunda
coisa é a oportunidade de acontecer um Revirão, que é algo que acontece
dadas as transas das formações. E, portanto, nas transas consideradas numa
análise há possibilidade de suscitar um reviramento. A terceira coisa é que a
Postura da NovaMente – tanto em análise quanto na produção de teoria
– é descritiva, e não prescritiva. Há oposição entre descrição e prescrição.

194
MD Magno

Freud e Lacan, apesar de suas moções abstrativas – sobretudo de Lacan –, são


inteiramente prescritivos. Isto faz parte dos dois paradigmas que, ainda que
não sejam o mesmo, são prescritivos como foi o pensamento teórico em vários
campos de ciência e arredores até o final do século XX: supõe-se ter concebido
determinada formação, que passa a ser prescritiva, e a pessoa tem que funcionar
de acordo com essa formação.
A crítica violenta que Deleuze e Guattari fizeram à ideia de Édipo foi
ele ser prescritivo e paranoide. Lacan, por sua vez, com a cabeça que estava em
vigor, tentou discernir estruturas que comandam o entendimento. Já a postura da
NovaMente é, repito, descritiva. Caso a caso, tenta-se acolher, entender as for-
mações ali em jogo. Por isso, disse que a psicanálise não é ocidental. Recebam
um indiano em análise e vejam se encontram essas prescrições em sua cabeça.
Não encontrarão. Freud não estava errado, pois, com a experiência de análise
que tinha em sua época, a toda hora encontrava o Édipo que frequentava mesmo
a cabeça das pessoas. Hoje, temos perspectiva suficiente para saber que não se
trata daquilo. Temos que considerar as formações que nos chegam para poder
acolhê-las e tratá-las. Tratar é dialetizá-las no sentido de sua expansão e com-
preensão. Freud funcionou perfeitamente de acordo com seu paradigma segundo
a histeria do século XIX. Lacan funcionou segundo a paranoia do século XX.
Não é mais o caso, no mundo contemporâneo já não estamos com essas duas
formações hegemônicas. Elas ruíram, estamos em outro tipo de formação em
vigor no século XXI, a qual talvez dure todo o Quarto Império – e é Progres-
sivo: não adianta colocar regras prescritas numa formação Progressiva, há que
entender como aquela formação está funcionando. Portanto, ao tratar do mundo
contemporâneo não é possível articular e manejar as formações paradigmáticas
da Nova Psicanálise mediante a aplicação de formações teóricas pregressas.
Ou torcemos a cabeça, ou nada entenderemos desse mundo ou da psicanálise.
Há que dar uma guinada na mente. Abordar o que está sendo tratado com a
concepção paradigmática do passado é nada entender.
Para encerrar, como curiosidade, quero mostrar como uma mente que
concebe o endereçamento do mundo com determinada posição, ainda que poe-
ticamente, é capaz de definir o Inconsciente e seu funcionamento da maneira
mais precisa. É o caso de Fernando Pessoa – que é uma espécie de modelo

195
MD Magno

para nós – num texto pouco conhecido, O Caminho da Serpente. Título engra-
çado, em relação ao qual cabe lembrar de Paul Valéry que inverteu o verbo
penser. Para ele, pensar é serpente [serpent: penser]. O caminho da serpente
de Fernando Pessoa é um desenho do Inconsciente – portanto, do que pode ser
pensamento – bastante consentâneo com a NovaMente. Vejam alguns trechos:

...sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão


o entendimento de tudo.

...a Razão limpa, a Serpente coleante através de mais que os


mundos?

[Esta é a razão limpa: o Inconsciente funcionando nos mundos]

Ela liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os cami-


nhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ela
segue um caminho que passa por todos e não é nenhum.

[Ele está descrevendo nosso trabalho. Este é o pedaço mais impor-


tante do texto]

A Serpente está acima das ordens e dos sistemas, e, ainda que


ascenda como o sentido deles, dispensa as linhas e os caminhos.

• Potiguara M Silveira Jr – A observação sobre os paradigmas e a


Formação dos operadores só reforça o que você tem trazido desde o início
da produção do teorema da NovaMente lá nos anos 1970. Ressalto, então,
que a manutenção do paradigma anterior, argumentativo e prescritivo, além
de impedir o entendimento do teorema implica estragar as possibilidades do
ferramental clínico dele decorrente. O mais difícil é essa mudança de mente.
Ao abordar um texto, é preciso ter noção da ordem a que ele pertence.
Caso contrário, não saberemos ler. Não há como ler Freud com a cabeça de
Lacan. Há que ler com o paradigma que ele está habitando. É claro que muita
coisa vai sobrar e ser aproveitada no outro paradigma com uma versão um pouco
mudada. A formação paradigmática compõe o entendimento. É preciso, então,
situar o autor para fazer sua leitura: a época, as referências... Cada filósofo, por
exemplo, precisa ser situado quanto a sua formação paradigmática, pois pode
não ser a mesma de outro. Às vezes, é, pertence ao mesmo campo. Como disse,

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MD Magno

depois de Freud até Lacan todos pertenciam ao mesmo paradigma, embora não
à mesma construção de pensamento dentro do paradigma. Todo o entorno de
Lacan, principalmente na França, estava no mesmíssimo paradigma. E é esse o
paradigma que morreu, mesmo que alguns ainda insistam em utilizá-lo fora de
época. Houve uma mudança no mundo, e outro paradigma já está sendo criado
por vários autores da maior importância como tenho assinalado. Assim, é preciso
mudar e ficar claro que somos descritivos (e não prescritivos) e acolhedores
(e não definidores) das formações. Observem que Lacan, mesmo fazendo as
abstrações que fez, até tentando matemas, etc., continua no paradigma de seu
momento, que é prescritivo. Há muita diferença entre dizer que a psicose é
foraclusão do Nome do Pai (o que é prescritivo) e que ela é consequência de
um HiperRecalque. Qual? Não sei. Só vendo.
• Aristides Alonso – Trazer a questão do paradigma como você fez
permite distinguir outros acontecimentos mediante essa lente. Eu diria que
hoje acontece um corte paradigmático que parece ser mesmo um hiperpara-
digma que nos afeta planetariamente. No Ocidente, fomos assujeitados a uma
poderosa ordem paradigmática vinda da filosofia greco-romana e da vertente
religiosa judaico-cristã, que, de modo geral, caracterizam o Terceiro Império.
Entretanto, com o advento da cibernética – que o próprio Heidegger, em 1948,
reconhece como indicador do fim da filosofia e da metafísica – e do paradigma
computacional, instala-se outra ordem de entendimento de mundo à revelia de
quem quer que seja. Todos, então, têm que se virar nesse novo mundo – mesmo
que insistam em modelos anteriores que não mais funcionam.
A emergência da cibernética é consentânea com as emergências que
estão vindo agora. É uma das ideias que estão constituindo um novo paradigma.
A questão, para mim, é a Formação de nossos operadores. Se não trocarem a
mente, será apenas mais uma bagunça.
• AA – Norbert Wiener, em Cibernética e Sociedade: O uso humano de
seres humanos (1950-1954), diz que estamos transformando nosso ambiente
de tal maneira que teremos, inclusive corporalmente, que nos transformar
para poder viver nele.
Ele viu isso bem no começo. É parte de projetos que estavam avançados
em relação a seu tempo cultural. Eram contemporâneos de paradigmas como

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MD Magno

o de Lacan, mas estavam furando o processo mesmo sem saber aonde aquilo
chegaria. Acontece que chegou. Estamos lá.
• AA – O modelo de Stephen Wolfram – com os hipergrafos e a con-
cepção de que as coisas vão se constituindo mediante links e transas com
outras – é convergente com não haver uma estrutura prévia de configuração.
Esta se dá a posteriori.
Não há design prévio, ou seja, não há o design inteligente. O design
não é inteligente, e sim ocasional. Ele acontece e, às vezes, é burro. O pensa-
mento oriental, tipo zen, já diz isso há tempo. Como mencionei de outra vez, a
frase deles é: “Quem faz o caminho é o pé”. E o Ocidente está descobrindo um
paradigma cujo caminho é feito com o pé, não é dado, não está no mapa. Vai-se
andando e o caminho vai abrindo com os pés. O paradigma é convergente com
as ideias que brotam por ser forçado pela experiência, por seu momento. Não
se está tirando da cartola, e sim vendo o que acontece.
• Patrícia Netto Coelho – Você já disse que a força da psicanálise é
descritiva. E sobretudo os dois primeiros dos quatro dispositivos montados
para a Formação na NovaMente – Oficina Clínica, Polo de Formação, Polo
de Estudos e Análise pessoal – são (ou devem ser) ambientes para o exercício
da descrição. Tanto no sentido da clínica (na Oficina), quanto no roça-roça do
estado da análise de cada um (nos Polos de Formação).
Justo para isso é que os dispositivos foram criados.
• PNC – Talvez o que foi pensado na Grécia antiga pelos estoicos seja
útil para nosso entendimento de descrição: algum procedimento que possa
conduzir às coisas mediante suas marcas.
Eles já tinham percebido isso, mas foram opinião vencida. Existiu
Platão...
• PNC – ...com o primado da definição.
• AA – Está no cerne do paradigma da NovaMente o fato de ter ocor-
rido uma mudança na ideia de Ser, que é filosófica e constituída como algo
até estático, paralisado.
A ideia de Ser, em contraposição à de Haver, não precisa desaparecer.
Ser é uma formação. No que transa, ela varia. Aí, deixa de ser – e passa a ser,
com suas coagulações momentâneas.

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MD Magno

• AA – Mas a regulagem disso, mesmo linguística, produz algo como


o substantivo: “A cadeira”, “a mesa”, “a alma”... E o paradigma da Nova-
Mente, com a ideia de transa e de formações ad-jetivas, traz outra dimensão,
diferente daquela a que a cultura nos habituou como entendimento. Carlos
Rovelli, em Helgoland, cuja leitura você indicou, fala do aspecto relacional
na física quântica. Se não houver relação, nem se percebe o fato.
O termo correto é Transa. “Relação” é fechado demais.
• P – Qual seria, então, o caminho para mudar a cabeça?
Se começar a andar, sair de onde está, a cabeça muda...
• P – Os pensadores têm noção do paradigma em que estão?
O paradigma vai se constituindo à medida que, a partir da experiên-
cia de hoje, os pensadores começam a organizar suas reflexões. Pouco tempo
depois, o paradigma estará claro.
• PMSJr – Quanto ao que você indicou sobre “quem faz o caminho é
o pé”, me ocorre que Walter Benjamin trouxe a noção de Rastro (“aparição
de algo longínquo, por mais próximo que esteja aquilo que a evoca”), que
tem bastante grau de abstração. Entretanto, acho que ela é utilizada mais no
sentido de, a partir dela, reconhecer significações prescritivas demais: urba-
nidade, burguesia...
Uma coisa, é o detetive procurar rastros que alguém fez. Outra, é cami-
nhar e produzir rastros. A mentalidade do paradigma anterior é de detetive, e
não de caminhante.
• Nelma Medeiros – Acrescente-se, quanto a isso, Carlo Ginzburg,
historiador italiano (que, aliás, recebeu o Prêmio Aby Warburg em 1992). Ele
falou em Paradigma Indiciário para pensar o conhecimento – mas também no
sentido do detetive.
• P – O paradigma anterior é devedor da ideia de causalidade. A busca
de uma causa impregnou o pensamento de Freud, mesmo dentro da amplitude
de ele afirmar que a causa era sexual. E você já disse que o paradigma da
NovaMente não é subjetivista ou objetivista, e sim relativista.
O paradigma da época de Freud era assim. Em nossa época, em fun-
ção da experiência nova que todos veem vigorar no mundo, algumas pessoas
estão conseguindo dizer mais ou menos o que ela é. Fazer isto é produzir um

199
MD Magno

paradigma novo. É simples: a percepção e a concepção da experiência contem-


porânea criam um novo paradigma em várias cabeças. Ele não pode ser muito
diferente de uma para outra porque a experiência é a mesma. No momento,
isso é descritivo.
• P – Ao dizer que o paradigma é descritivo, não partimos de algum
lugar?
Partimos do que nos foi apresentado. Ao descrever algo, há algo aqui
que descreve algo de lá – e algo de lá que escreve aqui. Já lhes trouxe as mãos
de Escher como entendimento de como pensa o paradigma de hoje. As mãos
de Escher estão absolutamente de acordo com o paradigma de hoje: a mão que
desenha a mão que a desenha. E isso é descritivo.
• P – Você diz que não há design prévio, mas pensei no design do Pri-
mário da IdioFormação que é bastante coercitivo.
Há regiões estagnadas, cuja Progressividade é lenta demais. A anatomia
humana tem mudado pouco em milênios. A constituição do Primário é resis-
tente, no sentido do conatus, de Espinosa. A espécie tem uma velocidade de
transformação em nível Secundário bem mais alta do que em nível Primário.
A ponto de nosso Primário não estar mais servindo. Não é possível ir à lua sem
roupa, ou seja, o Secundário nos levou para lá, mas o Primário não foi.
• NM – Transpondo o que você traz sobre o paradigma para um pro-
cesso de análise, de consideração da IdioFormação como aglomerado, o que
ainda vigora é estarmos lidando com as transas em função do paradigma pré-
-existente. A pessoa já entra nas transas com um paradigma a partir do qual as
transas serão lidas. E na análise é dito a ela que aquele paradigma foi efeito
de um processo que é preciso revirar para ser entendido. Ou seja, é de lá para
cá, e não o contrário. A cabeça vira quando a pessoa passa a considerar-se
como efeito. Ela não é paradigma, é efeito do processo.
O que ocorre é que a extremíssima maioria da humanidade não fará
esse movimento de mudar. Por isso, há que esperar por outras gerações. Como
as crianças hoje já nascem dentro de uma situação experiencial nova, não
deverão ficar com os vícios pregressos. Pegarão vícios novos. O que ocorre é
reificação: a pessoa tomar as formações que a constituíram e pensar que ela é
aquilo mesmo, o espontâneo, o natural. Ela não é coisa alguma, nada.

200
MD Magno

• NM – E essa mudança é fundamental para a Formação do operador


da NovaMente.
É sobre o que estou hoje clamando e reclamando. Em nosso trabalho,
o exercício de sair do paradigma anterior é constante. Ele não presta mais, não
presta para lidar com o que nos é apresentado. Em sua maioria, as pessoas não
se dão conta da fossilização dos processos. Basta ver o lacanismo atual: é fóssil,
não dá conta do mundo contemporâneo. A experiência não mais permite que
aquilo seja eficaz.
• P – Freud, ao falar em “Wo Es war, soll Ich werden”, não estava
fazendo uma prescrição?
Era algo que estava certo em seu momento. Mas o momento passou.
• P – Sobre o paradigma da descrição, retomo a importância das Lis-
tas a que você já aludiu em outros SóPapos tratando de Umberto Eco e de
Aby Warburg. Há também uma crítica à ideia de método, por ela supor um
caminho prévio.
Método é alguém seguir um caminho que ali já está. Trata-se, então, não
de método, mas de ódos, ‘caminho’, de fazer o caminho. Basta andar e olhar –
e não projetar no mundo o que está na cabeça. Há que ficar perplexo olhando
que tem mundo. Por isso, disse que a psicanálise é o pensamento perplexo. O
que é diferente de já olhar para o analisando procurando os indícios do que
está em minha cabeça. Agindo assim, não se olha sem nada estar entendendo.
É a Douta Ignorância de que fala Nicolau de Cusa.
• P – ‘Prescrever’ tem vários sentidos no dicionário: recomendar, deter-
minar, aconselhar, fixar uma data, receitar. Tem também o sentido de caducar,
cair em desuso...
O paradigma anterior ‘prescreveu’.
• P – Penso na garotada de hoje hipnotizada diante de computador,
jogos, etc. Parecem não ter interesse no mundo tal qual se apresenta. Isso seria
indício de algo que está se esfacelando ou de algo que está se anunciando?
Qual era a alienação da sua geração?
• P – Havia uma preocupação com liberação sexual, com pílula
anticoncepcional...

201
MD Magno

Sua geração era tão alienada quanto a atual, só que com outra figuração.
Não há diferença, são gerações produzidas em plena alienação a alguma for-
mação. Aliás, a atual é menos ruim porque se alienam a algo que mexe muito.
Antes, a alienação era uma coisa parada, estacionada demais. O que acontece
hoje é, sim, indício da lesma lerda, com a mudança das moscas. Você supõe
que todas as crianças estejam fazendo isso que você disse? Não há algumas
fazendo algo que preste? Nas gerações anteriores, algumas estavam fazendo
coisas excelentes, tornando-se um grande pianista, um futuro matemático, sem
se deixar alienar. Segundo Marx, antigamente a religião era o ópio do povo.
Agora, é o computador, o celular.
• P – Talvez eu estivesse fascinada com a habilidade que têm com a
tecnologia.
Criança tem habilidade para um monte de coisas. Até para se alie-
nar radicalmente. A diferença é que, pelo menos, o computador tem mais
mobilidade.
• AA – Nas redes sociais mitifica-se o fato de termos jogado bola de
gude, soltado pipa... Teríamos sido felizes sem saber, mas as opções do que
fazer não eram grandes.
Enquanto meus amigos jogavam bola de gude, eu ficava sentado horas
ao piano tentando aprender aquele troço. Cada um tem a alienação que merece.
• P – Em minha época só havia dois gêneros, masculino e feminino.
Hoje, temos muitos.
Espero que a lista aumente. Aliás, podemos riscar as enumerações e
colocar apenas: x. Qual é o sexo de alguém? X – uma incógnita. Que cada um
faça o trabalho algébrico de descobri-lo. O problema está em querer situá-lo
na conta de comportamentos pessoais que são singulares.
• P – Poderíamos dizer que a alienação consiste em manter recalcado
o Revirão?
A pessoa é alienada sempre que acreditar que ela é alguém. Como
digo, a humanidade é moradora do planeta dos macacos. Alguns poucos fazem
esforço para sair da macaquice. É preciso paciência com o resto.

202
MD Magno

23
Aproveitando a oportunidade do preparo para nosso próximo Mutirão de
Estudos, sobre a Teoria das Formações, a ser realizado sábado que vem e
seguinte, trago algumas questões. Primeiro, quanto à eficácia e à correção dos
Quatro Dispositivos da Formação dos operadores da NovaMente (2005), os
quais devem ser mais cuidadosamente considerados. No momento, os dois
dispositivos mais importantes para consideração e precisão são: o Mutirão,
uma atividade do Polo de Estudos, e a Oficina Clínica.
Qual é a função do Mutirão? Não se trata de congresso em que pessoas
passam a brilhar um pouco ao apresentarem pequenos textos, o mais frequen-
temente inodoros. Lacan costumava chamar de nadas pomposos ao se referir
às apresentações nos chamados congressos da Escola Freudiana de Paris. A
função do Mutirão é tomar uma ideia importante ou um conceito da teoria para
aprofundá-la, desenvolvê-la e articulá-la com outras formações. Talvez seja
preferível rever seu formato para que o assunto seja abordado e operado pelos
participantes com maior domínio da teoria, enquanto os demais, mormente os
mais novatos, possam estudar o tema com antecedência para apresentar (não
trabalhos escritos, mas) questões, dificuldades e dificuldades de entendimento
a serem postas aos apresentadores de modo a maior certificação conceitual.
Aproveito também para fazer um comentário sobre as Oficinas Clíni-
cas, que, a meu ver, perderam um pouco de sua função primordial. A Oficina
Clínica é um dispositivo da Formação dos Analistas, e não local de tratamento
intelectual de questões clínicas, o que pode ser feito em outros dispositivos.
Isto significa que se trata de encontro entre operadores em exercício, daqueles
que, supostamente com referência à Formação, estejam praticando a análise
com seus analisandos. Repetindo, são aqueles que têm analisandos sob seu tra-
tamento. É importante que isto fique claro por ser este o dispositivo específico
que, nesta instituição, permite o reconhecimento de que se é aceitável como
analista. Reconhecimento em processo, e não definitivo. Não temos dispositivos

203
MD Magno

prescritivos como há em outras instituições, na famosa IPA ou nos dispositivos


dos ditos lacanianos, por exemplo. O reconhecimento do Analista, aquele que
está em exercício com seu consultório, é tarefa permanente. Invocar, por exem-
plo, o conceito de Clínica Geral (1986) para poder falar de qualquer assunto e
haver participação de quem não exerce a análise como clínica é um erro, pois,
na Oficina Clínica aplicamos o dispositivo psicanalítico a qualquer forma-
ção, mas não temos retorno quando a aplicação é feita no sentido de Clínica
Geral. Portanto, só pertence à Oficina Clínica quando é possível haver retorno
do processo e acompanhamento tanto do progresso do analisando quanto do
exercício do analista uns pelos outros. O perigo dessa reclamação de Clínica
Geral, que está mal-entendida, é ela ser uma porta aberta para a pura e simples
picaretagem. Repetindo, a Oficina Clínica é apenas o exercício de acompa-
nhamento – uns pelos outros – dos que estão em exercício de análise com seus
analisandos. Então, conversas teóricas e considerações ainda que supostamente
clínicas sobre questões gerais devem ser feitas em outros dispositivos, e não
na Oficina Clínica, que é o único lugar do reconhecimento na instituição. O
dispositivo de Lacan me parece fake, quase com características de concurso
acadêmico. No momento que trouxe a ideia de passe, causou grande ebulição
e fez com que o chamado Quarto Grupo, mais ou menos comandado por Piera
Aulagnier, se desprendesse da Escola. Nosso trabalho aqui de reconhecimento é
permanente, constante e referido ao que supostos analistas possam trazer sobre
os acontecimentos em sua operação analítica com seus analisandos. Quem não
exerce essa função não pertence à Oficina Clínica.
Converso agora um pouco sobre a noção de Incongruência. O conceito
é geométrico, adscrito principalmente à geometria euclidiana, com sua limi-
tação: há congruência quando há sobreposição perfeita de forma e tamanho.
Se temos dois triângulos iguais, idênticos, um sobre o outro, há sobreposição
perfeita – é o que é chamado de congruência. É claro que o conceito toma
novas conotações no sentido dessa possibilidade e quantidade de sobreposição
perfeita entre duas formações. Do mesmo modo, temos que nos dar conta de
que o Secundário, assim como o Artifício Industrial, não é congruente
com o Primário ou com o Artifício Espontâneo. Aliás, haver congruência
dentro do Haver e entre as formações que garantiriam o conhecimento e o

204
MD Magno

reconhecimento dessas formações é um desejo dos pensamentos pregressos.


Não há essa congruência. O Secundário é uma produção, que chamo de Arti-
fício Industrial, que não tem necessariamente congruência com as formações
do Artifício Espontâneo e, portanto, com as formações do Primário. Pensar
que havia foi o engano, cultivado durante milênios talvez, de achar que é pela
congruência que se estabelece uma significação válida. Se ela houvesse, de
uma vez por todas conseguiríamos o conhecimento radical e absoluto sobre
a chamada realidade, que não se consegue. Daí que todo e qualquer conhe-
cimento – porque resultante da Transa de Escher (a mão que desenha a mão
que a desenha) e porque o desenho está em permanente fatura, dependendo da
transa das formações – é sempre efetiva e necessariamente incongruente com
o conhecido. Logo, o conhecido é precário.
O fato de não haver congruência entre o conhecimento e o suposto
conhecido – que só é conhecido enquanto declarado pelo conhecimento – está
bem claro neste nosso momento difícil de certificação dos conhecimentos, e
consequentemente dos comportamentos políticos, sociais, etc. Isto, por causa
do reconhecimento da deliração na ciência, sobretudo por incongruência facil-
mente verificável entre a matemática e as formações dadas. Acontece, portanto,
neste momento, sem que tenhamos resposta adequada, grande desconfiança
em relação à assim chamada a ciência. Por quê? Por causa do recente reco-
nhecimento de sua verve delirante, sobretudo incentivada e acrescentada pela
postura paranoica típica do século XX. A argumentação de que algo é científico
não está valendo para calar as loucuras políticas. Não foi à toa que, na ques-
tão da paranoia, houve a emergência de um pensamento relutante como o do
chamado Paul Feyerabend, cuja postura era declaradamente anarquista (não é
o nosso caso). Sua denúncia contra a paranoia do século XX é importante por
ele declarar que teoria alguma interessante pode ser consistente com todos os
fatos. Como no pensamento zen, que já mencionei aqui, “quem faz o caminho
é o pé”, e não um mapa previamente construído de alguma estrada.
O que são os chamados métodos científicos? Os famosos métodos
indutivo, dedutivo, hipotético-dedutivo, dialético, fenomenológico...? Parece
que foram para o brejo. A NovaMente propõe (não o método, e sim) o cami-
nho transitivo e transativo das operações do conhecimento, que chamamos

205
MD Magno

com toda simplicidade de: Transa. E, dentro dessa transa, o que poderíamos de
maneira cômica chamar de TransPascal, que é: o produto da geometria com a
sensibilidade, more geometrico e sensibilidade. O que aconteceu de esquisito
com culminância no século XX foi resultante da prática, da teoria, do famoso
Galileu Galilei. Ele morre em 1642 junto com o nascimento de Newton, o que
é bastante grave. Disse ele algo fake que atormentou – e ainda atormenta – a
cabeça das pessoas até o final do século XX: “A matemática é o alfabeto com
o qual Deus escreveu o universo”. Sobre o que foi inventado o famoso método
científico. Quem deitou e rolou foi o chamado René Descartes com seu racio-
nalismo extremo e com a crença religiosa na matemática. Acontece que, ao
comparar as possibilidades da abordagem do Haver e suas formações – seus
seres, digamos – mediante os artifícios às vezes complexos, ricos, da matemá-
tica, verificamos que a matemática pode ser delirante justo porque há incon-
gruência entre o Secundário e o Primário, e entre o Secundário e as formações
do Haver. Não há congruência necessária. Então, se progredimos infinitamente
com os Artifícios Secundários, frequentemente escapamos da possibilidade de
abordar a realidade e caímos num delírio matemático que acaba produzindo
consequências oníricas. O Secundário não é necessariamente congruente com o
Primário, e tampouco com o Artifício Espontâneo. O Artifício Industrial é que
é dependente maior do Secundário. Tudo isso está revolvendo o pensamento
contemporâneo.
Dado esse problema todo, temos a importância da Teoria das Forma-
ções. No que ela é contemporânea e consentânea com tudo que acabei de dizer,
propõe o rompimento com a ordem projetiva. É a ação descritiva contra a
ação prescritiva que vigorou até o final do século passado. É rompimento
radical com a ideia delirante de Sujeito, substituído pela pura e simples Transa
de Formações. Portanto, é também um rompimento com as epistemologias
vigentes, substituindo-as por uma Gnoseologia, na qual o conhecimento é
sempre agoraqui, ad hoc, a resultante da cognitividade de Escher: a mão que
desenha a mão que a desenha – transa de formações. E mais, não se trata de
anarquia, como é o caso de Feyerabend, e sim de uma Hierarquia ad hoc: a
cada caso designar a ordem dos valores em função da possível e suposta eficá-
cia da resolução do problema. É a marca do futuro. Esta psicanálise não opera

206
MD Magno

com amenidades e certezas, como diria Guimarães Rosa, mas com formações
flutuantes (para empregar um termo de Freud quanto à sua famosa atenção
flutuante). O psicanalista não caminha sobre lisas estradas de asfalto, ele é um
nefelibato a caminhar sobre nuvens, talqualmente o caminho comum dos que
habitam o Quarto Império, que se vem instalando cada vez mais rapidamente.
Além de toda tecnologia “espiritualizante”, tal como disse sobre o
Quarto Império – o Império d’Oespírito, da explosão informacional –, já esta-
mos à beira de acelerações gigantescas das formações virtuais. Eis algo grave
e difícil de ser controlado. Certamente todos conhecem o jovem empreendedor
Mark Zuckerberg, que promete para não muito longe a criação do que chama de
Metaverso, com seus avatares de nós mesmos. Imaginaram o que vem por aí,
a complicação, a dificuldade de separar o Secundário do Primário, o Artifício
Espontâneo do Artifício Industrial? Mas não podemos esquecer que metaverso
já é o Inconsciente. Ao conseguir inventar o metaverso, só não terá inventado
a rotação tecnológica do Inconsciente com sua radical disparidade mórfica, o
Inconsciente e sua evidente operação permanente em recursividade. Está na
cara que o Inconsciente é recursivo. Com isso, mais uma vez temos em nossa
cultura, e de longa data, o entendimento declarado e exercido em nossa língua
pelo gênio de Fernando Pessoa. O que teóricos da literatura querem chamar
de heterônimos são, desde então, os avatares de Pessoa, como em breve serão
os avatares das pessoas.
Essa verve do Inconsciente é de reconhecimento bem antigo. Acon-
tece que esse Inconsciente com possibilidade de fragmentação permanente, da
qual não nos damos conta e vivemos fazendo suposições de sermos pessoas
íntegras, de caráter, sempre funcionou em disparidade mórfica, que causa extre-
mos problemas para nosso cotidiano. Isto é, há sempre alguma agonística, ou
mesmo conflito, entre formações que se instalam primária e secundariamente
em disparidade. E a forçação de barra para fingir uma paridade tem causado
todo tipo de inferno na vida das pessoas. Já citei aqui uma grave disparidade no
Primário entre sexo autossomático e sexualidade etossomática: frequentemente,
um nada tem a ver com a outra. Maior e mais frequente, e mais confusional, é a
disparidade de formações do Secundário como acabei de falar quanto a certas
delirações no campo da matemática, por exemplo. Vejam, então, a importância

207
MD Magno

de – até segunda ordem, até aparecer algo melhor – cultivar a Teoria das For-
mações. É o que temos, aquilo com que lidamos: transa entre formações e as
consequentes resultantes, que nos habituamos a chamar de conhecimento.
• P – Você disse que a congruência entre Primário e Secundário não
se dá necessariamente. Em algum caso, ela se dá?
Na história da humanidade, as pessoas que lidaram com o conhecimento
fizeram o esforço, e mesmo a crença, de que havia congruência necessária entre
o conhecimento produzido e as formações do Haver. Não há, e nossa época está
batendo de frente com essas questões, o que dá na zorra com que convivemos.
Até isso se assentar, será dramático. “Necessário” aí é termo técnico.
• Potiguara M Silveira Jr – Em 2012, criticando o procedimento de
Lacan, diz você: “Por que quero Freud de volta? Porque aqui, neste pensa-
mento que trago, o Haver é homogêneo. O homem não é separado da natureza.
Tudo como Freud dizia, e não como Lacan dizia”. Quero registrar que, na
ocasião, entendi – e continuei entendendo – erradamente que, para você como
para Freud, haveria congruência entre natureza e linguagem. Por isso, o que
você traz hoje sobre a incongruência entre Secundário e Espontâneo é, para
mim, exemplar quanto a erros de postura de compreensão, quanto a estar atento
para não aplicar um paradigma anterior ao paradigma novo. O deslizar do
entendimento de um para outro paradigma é o que ocorre com mais facilidade.
O que eu disse está correto. Mas é preciso cuidado com o que o termo
homogêneo quer dizer aí.
• Patrícia Netto Coelho – Não há congruência, mas há adequação?
Adequações provisórias sempre.
• PNC – A ideia de adequação é conversa, transa. Então, não há que
colocar peso demais nela?
A ideia de adequação é sinônimo de possibilidade aqui e agora.
• P – A deliração – que é longa na história do conhecimento ocidental,
pelo menos – tem pontos altos, digamos, de loucura até. Um deles está no final
do século XIX, com George Cantor e a teoria dos conjuntos.
Teoria delirante, se não for visivelmente ideológica.
• PNC – Lacan, por sua vez, embarca de várias maneiras nessa deli-
ração. Embarcou com Galileu, com Cantor, com Hegel...

208
MD Magno

Fazia parte do embarque do sujeito e do pensamento estruturalista.


Era o certo de seu momento. O difícil de entender ainda hoje é que aquele
paradigma faliu, como não me canso de dizer. Faliu nas diversas áreas, e não
apenas na psicanálise.
• PNC – Ao falar de uma geometria conjugada à sensibilidade, você
mencionou Pascal. Espinosa também não se incluiria aí?
Sim, mas o mais corrente é falar da geometria com sensibilidade no
caso de Pascal. Embora Espinosa aí esteja bem melhormente situado.
• PNC – Uma terminologia da epistemologia da segunda metade do
século XX, não apenas de Feyrabend, mas também de Thomas Kuhn, já aponta
para a ideia de incomensurabilidade.
Aí começa uma revolta contra a caretice científica, que aparece de várias
maneiras. O caso de Feyerabend é extremo, e valeu por ter feito a denúncia.
• PNC – Quanto ao que você retoma sobre a ideia de metaverso e
lembra que já foi pensada pela psicanálise como radical disparidade mór-
fica em vários níveis, quero mencionar que você, em 1996, situa a clínica no
movimento entre o Neutro e a Maranha. A maranha é a disparidade mórfica
e outra forma de falar de metaverso. Nessa mesma data, você começa a falar
em Transformática, a teoria psicanalítica da comunicação.
O trabalho do Mutirão é, por exemplo, juntar esses cacos.
• PNC – O que você falou sobre o Mutirão é importante por denunciar
que sempre o sujeito se imiscui nos processos. Nunca foi o objetivo do Mutirão
as pessoas produzirem textos individuais, e sim que os polos de estudo apre-
sentassem os resultados conjuntos de suas pesquisas.
Não há que escrever texto algum. É uma oficina de esclarecimento.
Muito do que ouço de pessoas participantes de nossa transa, e com muita boa
vontade de sua parte, diz respeito à dificuldade – normal, digamos – que têm
de abandonar o paradigma velho e enfiar na cabeça um paradigma novo. O
Mutirão é o lugar desse exercício. Repetindo, ouço perguntas que são feitas
segundo o paradigma velho – e, nele, não há respostas possíveis. Não tenho
resposta alguma a dar a um sujeito, pois não conheço esse cara, não sei quem
é. O ponto mais fundamental é aproveitar essas oportunidades de reunião para,
realmente, mudar a mentalidade. Se não for assim, não funcionará. Falar de

209
MD Magno

uma coisa com paradigma de outra é um samba de malucos. A propósito,


menciono o livro de Lee Smoley com nosso Mangabeira Unger, The Singular
Universe and the Reality of Time (2015), que estou esperando chegar para ler.
Um é físico e cosmólogo, outro supostamente filósofo – acho que, felizmente,
não é –, e apresentam a tese de que as ideias estapafúrdias que surgem sobre o
universo são delírios da matemática. É muito mais amarrado do que se pensa.
Não sei se estão certos ou errados, mas trazem uma das posições a serem con-
sideradas. O cosmólogo acha, por exemplo, que a ideia de muitos universos
é delírio matemático, mas não sei se acha que existe só um universo, ou está
falando do Haver. Veremos. O Haver é um só e, dentro dele, podem ser vários
universos sucessivos. O interessante na tese que trazem é, sobretudo, a denún-
cia das suposições de que a deliração matemática tenha correspondência no
Haver. Ou seja, que as delirações do Secundário tenham congruência com as
formações do Espontâneo.
• P – A denúncia sobre as delirações matemáticas não terem congru-
ência com o Haver significa que a eficácia nada tem a ver com a congruência?
Eficácia tem a ver com adequação – sempre provisória. A suspeita,
talvez a certeza, é de que não seja possível a congruência entre o Secundário
e as formações espontâneas. O que há são aproximações cada vez maiores,
adequações cada vez mais funcionais. Se houvesse congruência, tudo já estaria
dito. E já tivemos tempo para dizer.
• Aristides Alonso – Dado o que você traz sobre a incongruência ou
a disparidade em vigor na transa das formações, poderíamos dizer que isso
é uma resultante do fato de existir desde sempre uma Quebra de Simetria
inarredável no Haver? É desejo de simetria e o não encontro com ela. Então,
frequentemente, a deliração que ocorre quanto ao que acontece aí talvez se
tenha tornado hegemônica no pensamento ocidental, pelo menos.
Eis algo que aparece todo dia, e em todas as pessoas, na ideia de amor.
Ficam a vida inteira querendo que alguém seja congruente com elas.
• AA – Querem ser um só.
Já escrevi um soneto intitulado Chega de Amor (1982) e falei em “de
dois não fazer um, mas fazer DOIS”. Isso que acontece é uma resultante evi-
dente e afetivizada do desejo de congruência, que nunca se apresenta. Esta é

210
MD Magno

a grande denúncia que a psicanálise já fez: não procure congruência porque


não há. Exceto no caso de Euclides, justo por ele ter régua e compasso para
desenhar o que quiser.
• P – O aforisma lacaniano “a relação sexual é impossível” é uma
maneira de dizer isso.
É uma maneira de dizer essa incongruência radical. Lacan tentou
esquematizar isso de modo estrutural, pois, para ele, a relação impossível é
entre as fórmulas de homem e de mulher. Portanto, ainda é muito pouco. A
transa é impossível em qualquer caso.
• AA – Quanto à recursividade do Inconsciente, você já havia dese-
nhado o Haver como um sistema recursivo e HiperDeterminado. Recursividade
ou recursão, na teoria dos algoritmos, é uma função que chama a si mesma,
não tem um além dela. O que a recursividade tem são graus. Então, há uma
recursividade de base no Haver que se repercute em todas as recursividades
internas à transa das formações. São transas locais de recursividade.
É preciso não esquecer que toda recursividade é defectiva porque, no
que repete, escorrega. Aí está a ideia de diferença dentro processo da repetição.
• AA – Stephen Wolfram mostra de que maneira certos elementos,
mesmo que recursivos, em sua repetição começam a caotizar e se tornar
complexos.
A recursividade também não é necessariamente congruente, como se
pudesse repetir sem desvio.
• AA – Yuk Hui, cujas ideias foram apresentadas aqui este ano, men-
ciona que talvez estejamos entrando numa era de recursividade.
Sobretudo, com o aumento de possibilidade da cópia, da recursividade
extensíssima dos processos de repetição da cópia de originais, por exemplo.
Qualquer dia, perderemos a noção de original. E se a cópia ficar melhor que
o original?
• AA – Quanto ao trabalho de Zuckerberg, sabemos que ele está no
início do projeto do metaverso, e sem ter ainda tecnologia adequada para colo-
cá-lo em funcionamento. É um uso, de modo amplo, da ideia de ciberespaço,
que é parecida com a ideia freudiana de Inconsciente. O que me parece é que o
metaverso proposto por ele é caretão, meio fechado, para uso de redes sociais...

211
MD Magno

Mas, daí, ninguém segura mais. À medida que o pré-histórico, o tro-


glodita, consegue inventar o início da matemática, a loucura compareceu. Ele
pensava que 1 mais 1 fosse igual a 2. Vejam no que deu.
• P – Entretanto, a questão da deliração da matemática é mais recente,
pois durante muito tempo houve a crença de que ela desenhasse a realidade.
A matemática não desenha a realidade.
• AA – Há uma guerra entre dois paradigmas, um da suposição de
uma ciência que prometeu cem por cento de congruência, e outro do que de
fato é possível como conhecimento aproximado, como adequação provisória.
O aprimoramento das vacinas, hoje, são bom exemplo disso.
A questão biológica é sempre mais deslizante. Já no caso da matemá-
tica, temos desenvolvimentos extremos que são da ordem do estrito Secundário,
sem congruência necessária com as formações espontâneas do Haver. Podem
ter congruência com formações do Inconsciente, mas, daí, aplicar a formações
ditas naturais não vai funcionar.
• P – De algum modo, essa crítica à matemática não vale também para
a computação? A ideia de equivalência computacional, de Stephen Wolfram,
não traz a ideia de que esses processos computacionais são congruentes?
Vejam aí um problemão. E agora, o que fazer com Wolfram?
• AA – Mas há aí um ponto sendo desconsiderado. No pensamento
computacional, mesmo no de Wolfram, há dois princípios que são convergentes,
digamos, com a tese de Turing sobre números computáveis, sobre computabi-
lidade e incomputabilidade. Ou seja, uma parte é computável e poderá, quem
sabe, dar conta de um monte de possibilidades de funcionamentos físicos, diga-
mos. São construções que podem bem apresentar determinada sequência. Já o
princípio da incomputabilidade significa que não temos algoritmo para rodar
o programa. Só poderemos saber se acompanharmos o programa por inteiro.
Mas a pergunta feita é mais radical por ser relativa ao computável.
Devemos confiar tanto assim no computável? É melhor manter a suspeição.
• PNC – Então, tem também que ser computação e sensibilidade.
Sim.

212
MD Magno

• AA – E teremos que ver para onde irá a própria matemática com


o advento da computação quântica. Outra matemática já está sendo exigida
para dar conta dela.
Chama-se: matemática bífida.
• P – Você disse que a NovaMente não tem método no sentido de algo
prévio, pois o caminho se faz ao caminhar. Caminho este transitivo e transativo
das operações do conhecimento. Falou também em geometria e sensibilidade.
Poderíamos, então, dizer que a NovaMente sugere um cruzamento da ciência
com a arte?
São a mesma coisa. Há tempo, já disse que só tem ART, tudo é articu-
lação, ficção. A ciência é a ART de fabricar conhecimento de certo tipo.
• P – Retomo os pontos que você colocou sobre o dispositivo da Oficina
Clínica. O fato de a análise lá ter prioridade...
Não é prioridade, e sim unicidade. Lá só tem isso. De certo modo,
algumas confusões se fizeram e houve desvirtuamento. Se isto acontece, não há
dispositivo para acompanharmos a emergência ou não de analistas. É o único
dispositivo que temos de reconhecimento. Reconhecimento permanente, repito,
pois analista também pira, eventualmente.
• P – Trata-se, então, de lá buscar elementos aplicáveis da Teoria das
Formações capazes de ser reconhecidos como eficazes no acompanhamento
de um analisando?
A Oficina Clínica é uma espécie de acompanhamento recíproco da fun-
cionalidade daqueles que, permanentemente, estão em Formação de Analista,
seja qual for sua idade ou tempo de casa. A Formação não acabou, é infinita
– assim como a análise é infinita. A NovaMente não tem Lacan com fim de
análise. Portanto, o reconhecimento não é por supervisão ou algo do tipo, e
sim por acompanhamento recíproco no sentido da possibilidade de reconhecer
analistas, ou mesmo reconhecer quando não há.
• P – Em 2005, você colocou que “as Oficinas Clínicas [devem ser]
tomadas como rebatimento do plano das análises sobre o plano das defesas
(denegações mais ou menos projetivas), conforme o mesmíssimo modelo do
analítico”. A análise da formação analista é que lá está em questão.

213
MD Magno

O tempo todo e em acompanhamento. E sem passe e sem nomeação –


apenas reconhecimento permanente.
• P – Parece que você está fazendo uma analogia entre o paradigma
prescritivo e a projeção. O paradigma descritivo é o que mais se afasta da
projeção.
Insisto em que só apontei que, para participar do exercício da Oficina
Clínica, cada um tem que estar na refrega permanente com um analisando.
Quem não está com um analisando não pertence a essa atividade. Isto, por estar
sendo intelectual a respeito da análise, e não estar dentro do problema, sofrendo
a questão aqui e agora. Repito: não me venham com referência à Clínica Geral
(1986), pois ela não tem resposta e, portanto, não vale para acompanhamento.
Só vale a longo prazo. Não adianta, por exemplo, eu ter dito há décadas várias
coisas que acontecem hoje, pois só hoje podemos ver. Lá atrás, não teve retorno.
Arrisquei uma intervenção analítica que deu certo – décadas depois. Na Oficina
Clínica, temos que contar com o retorno.
• P – Caso contrário, pode parecer análise selvagem.
Ou picaretagem comportada.

214
MD Magno

E-mails

• 10 janeiro
1) A grande regressão eu já denunciei há tempos. Não me lembro da data da
primeira indicação. Não vou ler esse livro: não se conterá a regressão com essa
velharia. Demo-cracia, já era. Precisamos de genialidades que inventem algo
radicalmente novo. Eu, aposto numa qualquer espécie de ARISTO-CRACIA
DO VALOR (e não do mérito, pois ninguém merece, e não da família). Não
sei se é o que a China está ensaiando.
[Sobre o livro organizado por Heinrich Geiselberger: A Grande Regressão: um
debate internacional sobre os novos populismos. SP: Estação Liberdade, 2019]
2) Chegou pelo correio o livro de FREUD: ALÉM DO PRINCÍPIO DO PRA-
ZER. Edição comemorativa do centenário. Já passei os olhos por quase tudo:
só obviedades. Para mim, este é o texto mais importante de FREUD. Nunca
o li em alemão que não sei, mas sim em português, em espanhol, em inglês
e em francês. Como já disse e repito, comecei a ler a obra dele (se não toda
ou quase toda) a partir dos meus 17 anos. Minha reflexão e articulação com
outros saberes resultou, como se sabe, na escrita d’ALEI = Haver desejo de
não-Haver. O que pesou na reconsideração total da Psicanálise e na invenção
da NovaMente.

• 27 fevereiro
Muito boa aula. Fica evidente que MACHADO (que também sou) racha
tudo nos dois lados existentes. Precursor da NovaMente e de seu conceito de
INDIFERENCIAÇÃO. Tratei muito pouco dele em minha obra. Mas devo
reconhecer sua influência no meu inconsciente: na minha adolescência, li
seguidamente toda a sua obra. Certamente seu ensino tenha nitidamente
ficado. O Villaça renegou, quanto a filhos, a frase lapidar que o explica nesse
caso: “Não tive filhos. Não transmiti a ninguém o legado da minha miséria”.
O que aprendi desde cedo.
[Sobre a aula de Alcides Villaça “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, na
série Quem Somos Nós?, disponível no Youtube]

215
MD Magno

• 05 março
“Se em Frantz [Fanon] a psicanálise é uma interlocutora permeada por ten-
sões e críticas (como é o caso da crítica a, justamente, Octave Mannoni),
em Gonzalez o cenário é outro, pois ela se serve da sua leitura da psica-
nálise para enfrentar o problema do racismo no Brasil e não perdia tempo
com as leituras mais conservadoras da psicanálise de então. E, olha, havia
muitas! Não espanta, assim, sua aproximação com um MD Magno, um dos
pioneiros do lacanismo no Brasil, que se preocupava em realizar uma recepção
antropofágica e local da psicanálise de inspiração francesa. Ele foi quem,
inclusive, lansô a braba sobre a amefricanidade no Brasil em seu seminário
de 1980 – sobre a feminilidade em Lacan, o que não é uma coincidência –,
tendo Gonzalez a levado muito mais longe a partir da eleição da mulher negra
não só como seu assunto, mas como sua perspectiva, o que, novamente, a
diferencia de um relativo universalismo analítico presente em Fanon”.
[Trecho de artigo completo no link: As pedras de Exu: a psicanálise em Frantz
Fanon e Lélia Gonzalez | Revista Rosa 3]

• 06 março
1) Continuo repetindo que não há metafísica. Só há MERDAFÍSICA.
2) Como já disse, o Haver é feito de Música. Isto é, o ICS é feito de Música.
Para eventuais conversas futuras, recomendo:
a) Para quem puder, tecnicamente:
Flo MENEZES:
> Música Maximalista: Ensaios sobre a Música Radical Especulativa. Ed.
UNESP, 2006. 548 p.
> Apoteose de Schoenberg. Ateliê Editorial, 2002. 452 p.
b) Para leitura mais amena:
Alex ROSS. O Resto é Ruído: Escutando o Século XX. Cia das Letras, 2009.
679p.

216
MD Magno

• 07 abril
▪ Possível que, em tempos anteriores, situei o real (enquanto impossível
modal, certamente) nesse lugar. Acho que talvez tenha sido mais tarde que
modifiquei, mas não posso garantir. 
▪ O que está valendo a partir de agora, pelo menos, é:
O NÃO HAVER COMO REAL: IMPOSSÍVEL ABSOLUTO.
O HAVER, A PARTIR DO PONTO BÍFIDO, COMO REALIDADE(S):
IMPOSSÍVEL MODAL.
▪ Entretanto, temos que considerar o Ponto Bífido, onde algumas vezes
escrevi, ou mesmo chamei de real, em relação a dois vetores contrários.
Esse ponto, assim considerado, participa mesmo de uma situação ambígua,
aliás, ela mesma Bífida. Considerada em relação ao Haver como tal, numa
analogia cosmológica, p. ex., ele não pode ser confundido com o Real do
não-Haver. Mas considerado como meta de Indiferenciação, como no caso
do Analista em sua postura, ele comparece mesmo como Real, e agora não
apenas Modal, pois dado o Primário e as formações sintomáticas mesmo do
Secundário, como aliás já mostrei, esse ponto é de atingimento impossível.
Por isso, indiquei sua aproximação assintótica como PROCESSO de Indi-
ferenciação. Parece-me que o que faltou nos textos indicados foi eu chamar
atenção para o encaminhamento do momento.

• 12 abril
Recomendo intensamente a leitura completa do livro recém-publicado de
Carlo ROVELLI, Helgoland (Milão: Adelphi Ed., 2020). O livro é em ita-
liano. Soube que há tradução para o inglês, mas não ainda para outras línguas.
O que nele interessa para nosso estudo é a clara composição de uma verda-
deira TEORIA DAS FORMAÇÕES (como a nossa) que ele chama, diga-
mos assim, TEORIA DAS RELAÇÕES, tal como a nossa TRANSA ENTRE
FORMAÇÕES.
Isto significa que encontro colega na construção de um pensamento com-
patível com nossa noção de QUARTO IMPÉRIO. Posso mesmo supor que
doravante começaremos a encontrar cada vez mais autores, nas mais diversas
áreas de conhecimento, empenhados nesse tipo de nova mentalidade. (Nova,

217
MD Magno

mas nem tanto, pois, como bem o citei, ele também recorre ao pensamento de
NAGARJUNA). Os pensadores do QUARTO IMPÉRIO (o d’Oespírito, isto
é, da INFORMAÇÃO) necessitam, como já disse, para abandono radical do
TERCEIRO, um sério retorno a pensamentos desprezados pelo TERCEIRO
em sua racionalidade PARANOICA. Assim como retorno eu a ECKHART
e NAGARJUNA, assim como às mais radicais sacações de FREUD.
Enfim, assim como falo de NOVA PSICANÁLISE, ou NovaMente, ROVELLI
nos apresenta sua “NOVA FÍSICA”. Sinal dos tempos. Mas a data importa
(na comparação com a nossa) pois o livro, como dito acima é de 2020 em
sua publicação.

• 25 maio
Aquele que pode ir à nascente de um rio não vai a um jarro d’água.
Leonardo da Vinci
Walter Isaacson sobre Leonardo:
“A ciência não era um esforço descolado da arte. Juntas elas serviam à sua
paixão fundamental, que era nada menos do que saber tudo que há para saber
sobre o mundo, inclusive como nos encaixamos nele”.

• 18 junho
Caríssimos: por favor, notem que meus SóPapos não são extensos
desenvolvimentos de seus temas, mas indicações mínimas de seus
desenvolvimentos possíveis. Estamos na era da informação: Internet, etc.
Os acessos estão bem abertos. Qualquer pessoa pode chegar facilmente às
indicações dos saberes que proponho. Não há menor necessidade, para mim,
de repeti-las quando as aponto.

• 21 julho
[Com referência ao texto de Leonard BERNSTEIN sobre MAHLER]:
MAHLER, LACAN E JOYCE
Talvez os três melhores epitáfios não só da paranoia do Século XX como
também do Terceiro Império.

218
MD Magno

Mahler era o músico preferido de Lacan, et pour cause: muito parecidos em


sua dubitação entre o passado e o futuro. Joyce, vimos no que deu enquanto
Seminário.
Os três dilacerados entre o moribundo Terceiro Império e a emergência quase
por vir do que eles não faziam muita ideia sem contudo deixarem de ser de
algum modo precursores. Mais Joyce do que Mahler e Lacan.

• 27 julho
PSICANÁLISE E POLÉTICA. 1981 (aliás, ano da morte de Lacan, há 40
anos este ano de 2021).
[Sobre “Ética / Ethics”, texto de Guilherme Gontijo Flores, in: Revista Ver-
salete, Curitiba, v. 9, jan-jun 2021]

• 30 julho
Eis aí um levantamento de composição de FORMAÇÕES que constituem o
acervo de tantos.
[Sobre o artigo “Como a ‘mente ocidental’ foi moldada pela Igreja Católica
medieval”, por Joe Henrich, publicado em BBC Future, 16 jan 2021]

• 01 agosto
Para sequência dos SóPapos, recomendo os textos abaixo:
PETER BURKE
1. O Polímata: Uma História Cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag
(2020). São Paulo: UNESP, 2020.
2. O Que é História do Conhecimento? (2015). São Paulo: UNESP, 2016.
EDGAR MORIN
1. Introdução ao Pensamento Complexo (1990). Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
2. O Método. 6 volumes. Porto Alegre: Sulina, 2005.
DAVID EPSTEIN
Por que os Generalistas Vencem em um Mundo de Especialistas? (2019).
Rio de Janeiro: Globo, 2020.

219
MD Magno

• 07 agosto
Mais alguns textos que têm a ver com SóPapos de hoje:
1. Mark ROTHKO: Écrits sur l’Art. Paris: Flammarion, 2005.
2. Paul CELAN: A Rosa de Ninguém (1963). S. Paulo: Ed. 34, 2021.
3. Fernando PESSOA: Toda a Obra.

• 08 agosto
SOCIOLOGISMO. NADA A VER COM NovaMente. ENTENDER A FOR-
MAÇÃO SINTOMÁTICA É UMA COISA: LEITURA SINTOMAL. OUTRA
COISA É FAZE R A TEORIA DO SECUNDÁRIO E RECONHECER “OES-
PÍRITO” COMO ESTRITO CAMPO DA INFORMAÇÃO.
[Sobre o artigo “A urgência das espiritualidades não cristãs”, por Boaventura
de Sousa Santos, publicado on-line em Outras Palavras, 05 ago 2021]

• 11 agosto
Quando é que vão encarar o REVIRÃO?
[Sobre dois artigos: (a) What is quantum cognition? Physics theory could
predict human behavior, por Nicoletta Lanese, publicado on-line em 28 jan
2020; e (b) La pensée suivrait les lois de la quantique, estudo encabeçado
por Xiaochu Zhang, publicado na revista Nature, jan 2020]

• 11 agosto
Muitos estudos bem atuais e que podem vir em apoio a posições tomadas por
nosso trabalho teórico:
1) TEORIA DAS FORMAÇÕES:
# Edgar MORIN: O método. Em 6 volumes. Porto Alegre: Sulina, 2005.
Reflexões do autor em sua teoria do Pensamento Complexo. Boas indicações
mais antigas que podem ajudar no entendimento da nossa produção.
# Christian JACOB: Lieux de Savoir.
1) Espaces et Communautés. Paris: Albin Michel, 2007, 1277 p.
2) Les Mains de l’Intellect. Paris: Albin Michel, 2011, 986 p.
Vols. 3 e 4 ainda não publicados. Grande conjunto de textos sobre a multi-
fariedade dos saberes.

220
# Robert. M. Sapolsky: Comporte-se. A Biologia Humana em Nosso Melhor
e Pior. (2018). São Paulo: Cia das Letras, 2021, 815p.
Grande estudo atual sobre formações importantes do Primário.
2) TEORIA DOS AGLOMERADOS E PRECURSORES DO QUARTO
IMPÉRIO:
# Richard ZENITH: Pessoa. A Biography. Liveright Publishing Corporation,
2021, 1055p.
Minuciosa biografia de vida e obra de Fernando Pessoa com seus heterôni-
mos. Pessoa, a meu ver o maior poeta de todos os tempos, enquanto precursor
do Quarto Império e descobridor e apresentador dos componentes de seu
Aglomerado.
# François RABELAIS (Século 16): Pantagruel e Gargantua. Obras com-
pletas de RABELAIS, Vol.1. São Paulo: Ed. 34, 445p.
Excelente VERSÃO BRASILEIRA de Guilherme Gontijo Flores. Também
antigo precursor do 4º. Império e do Aglomerado.
3) OBITUÁRIO DO INTELECTO FRANCÊS DO SEC. XX E DO 3º.
IMPÉRIO
# François DOSSE:
Vol.1 (2018): A Saga dos Intelectuais Franceses 1944-1989. São Paulo: Esta-
ção Liberdade, 2021, 701 p.
Vol. 2: La Saga des Intellectuels Français. L’avenir en miettes (1968-1989).
Paris: Gallimard, 2018.

• 13 agosto
Isto é o que se chama uma VERSÃO BRASILEIRA. Nossa ave, nosso clima
e nosso cu. Parabéns aos tradutores. Chega de colonialismo em nosso cu.
[Sobre O urubu, de Edgar Allan Poe – uma tradução-exu, texto de Guilherme
Gontijo Flores, in: ESCAMANDRO Poesia Tradução Crítica, 11 jul 2016]

• 24 agosto
PERFEITA E PRECISA DEFINIÇÃO.
[A propósito do trecho: “Assim atribui-se a Voltaire – que, outra hora, diz ser
a mesma amiúde ‘o romance do espírito’ – a estrafalária seguinte definição de
MD Magno

‘metafísica’: ‘É um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando


um gato preto... que não está lá’”. (Guimarães Rosa: Aletria e Hermenêutica.
In: [1967] Tutaméia. 4ed. RJ: José Olympio, 1976. p. 7)]

• 27 agosto
Fernando PESSOA:
O mistério supremo do Universo
O único mistério, tudo em tudo
É haver um mistério do universo,
É haver o universo, qualquer cousa,
É HAVER HAVER.

• 28 agosto
SÓ HAVER
Porém, última instância, mistério algum.
É só que não-Haver não há.
O fato bruto.
HAVER: a suprema INDIFERENÇA.
Donde Há-DEUS...

• 01 setembro
FERNANDO BRIQUETE, O PRÍNCIPE DOS AGLOMERADOS
1) Fernando Pessoa: Obra Poética. (Maria Aliete Galhoz). Rio, Aguilar, 1969.
2) Fernando Pessoa: Obras em Prosa. (Cleonice Berardinelli). Rio, Aguilar,
1974.
3) Fernando Pessoa: Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão
Pessoal. São Paulo, A Girafa Ed. 2006.
4) Pensamento Vivo PESSOA. São Paulo, Martin Claret, 2005.
5) Fernando Pessoa: A Língua Portuguesa. (Luísa Medeiros). São Paulo,
Cia. das Letras, 1999.
6) Pessoa Inédito. (Teresa Rita Lopes). Lisboa, Livros Horizonte, 1993.
7) Eduardo Lourenço: Pessoa Revisitado. Rio, Tinta da China, 1973, 2000)

222
MD Magno

8) Jeronimo Pizarro e Patrício Ferrari: 136 Pessoas de Pessoa. Rio, Tinta da


China, 2017.
9) Robert Brechon: Estranho Estrangeiro. Uma Biografia de Fernando Pes-
soa. Quetzal Ed. Lisboa, 1996.
10) Richard Zenith: Pessoa, A Biography. Liveright Ed. 2021.
DEPOIS TEM MUITO MAIS

• 01 setembro
# Nada mais certo do que nada.
# Aspire a magno, não a mago.
# Pertenço a uma geração que ainda está por vir.
# Hoje não tenho personalidade. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena
humanidade só minha.
# O paradoxo não é meu; sou eu.
# Quanto é melhor
quando há bruma.............. (nosso caso de agora)
Esperar por Don Sebastião
QUER VENHA OU NÃO.
Fernando Pessoa

• 01 setembro
# Portugal não é propriamente um país europeu: mais rigorosamente se lhe
poderá chamar um país atlântico – o país atlântico por excelência. Além disso,
Portugal, neste caso, quer dizer O BRASIL TAMBÉM. Como o Império, neste
esquema, é espiritual, não há mister que seja imposto ou construído por uma
só nação.: pode sê-lo por mais que uma, desde que espiritualmente sejam a
mesma, que o são se falarem a mesma língua.
# O Português é a mais rica e mais complexa das línguas românicas.
# O defeito, a fraqueza, do sebastianismo tradicional reside, não nele, senão
na deficiência e na fraqueza de seus intérpretes. Ignorantes, decadentes, ensi-
nados a crer pelo espírito católico, esperava DE FORA o Encoberto, aguarda-
vam inertes a salvação externa. O ENCOBERTO, porém, É UM CONCEITO
nosso; para que venha, é preciso que o façamos aparecer, que o criemos em

223
MD Magno

nós através de nós. É com ânsia quotidiana, com uma vontade de hora a
hora, que em nossa alma o devemos erguer, dali o projetando para o mundo
chamado externo (também outra nossa criação).
O ENCOBERTO é o representante máximo do QUINTO IMPÉRIO; é o
emissário máximo das forças espirituais que hão de criar tal Império. Como
podemos esperar que ele venha se não criamos primeiro as forças que, por
sua vez, hão de criá-lo?
E essas forças são (...) a tensão de todas as potências da alma em torno dessa
ânsia. (...) A soma, a confluência, a síntese por assim dizer carnal dessas ânsias
será A PESSOA DO ENCOBERTO.
Fernando Pessoa

• 07 setembro
Recomendo, como terapia anti-epistemológica, a leitura do artigo de FEYE-
RABEND Que Realidade?, p. 275s. do livro A Conquista da Abundância (S.
Leopoldo, Unisinos, 2005).

• 10 setembro
SINAL DOS TEMPOS
# Temer Ário: de Presidente a Redator.
# Bozo: “O Rato que Ruge”. Capetão Machão cagou-se-todo.

• 21 outubro
O QUADRILÁTERO DA DENEGAÇÃO:
PLATÃO / DESCARTES / KANT / HEGEL
A Polícia, ou seja, O Estado
Vontade do Poder
O Mundo sem Cuzinho

• 01 novembro
Para corroborar o entendimento da Teoria das Formações, recomendo as
seguintes leituras:
# Chiara MARLETTO: The Science of Can and Can’t. Ed. Viking, 2021

224
MD Magno

# Ali BENMAKHLOUF: L’Identité : Une Fable Philosophique. Paris, PUF,


2011.

• 04 novembro
Recomendo a leitura deste livro. Motivo: ótima relação com nossa teoria do
HAVER.
(NOVELLO, Mario. Quantum e cosmos: introdução à metacosmologia).

• 06 novembro
O livro de François DOSSE O Império do Sentido, de 1995, traduzido aqui
pela EDUSC em 2003, trata da tentativa de recomposição de paradigma,
depois da crise dos paradigmas unitários, a partir de 1980. Entre os quais se
encontra a teoria psicanalítica de Lacan em clara crise conjunta com todo o
chamado Estruturalismo. Nesse momento, a empreitada está ainda indefinida,
com diversos arranjos que não passam de possibilidade de gestação de um
paradigma novo, o qual ainda precisa de cerca de duas décadas para começar
a comparecer; aliás juntamente com a franca emergência da NovaMente. Con-
tudo, vale a pena observar, no livro de DOSSE supracitado, o capítulo 15, A
GUINADA DESCRITIVA, p. 191s, que já inicia a contrapartida da vontade
de prescrição do paradigma anterior. Verifiquem se quiserem.

• 10 novembro
EXPLICAÇÃO
“Sabe-se que as coisas e as pessoas são sempre forçadas, determinadas a se
ocultar quando começam. E como poderia ser de outro modo? Elas surgem
num conjunto que ainda não as comportava e, para não serem rejeitadas,
devem mostrar de antemão as características comuns que conservam com
o conjunto. A essência de uma coisa nunca aparece de início, mas no meio,
no curso de seu desenvolvimento, quando suas forças se consolidaram”.
DELEUZE (Imagem Movimento, p.11)

225
MD Magno

• 18 novembro
Definição de Paul Veyne em A Elegia Erótica Romana (1983). São Paulo:
UNESP, 2013. p. 63
MANEIRISMO: “Com essa palavra designamos obras em que o centro de
gravidade é deslocado ou fugidio, em que há dissonâncias e transições arbi-
trárias, em que os pontos de vista são múltiplos, em que o tom vai do sublime
ao vulgar, em que o poeta se apresenta mascarado, ironiza, faz piada, em que
tudo é irregular e assimétrico”.

• 19 novembro
Para algum esclarecimento da MIXÓRDIA que encerrou o Século XX e o
DESVARIO que atola ainda as primeiras décadas do XXI, recomendo a leitura
(embora sacal) do livro de François CUSSET, de 2003/2005, FILOSOFIA
FRANCESA, nuclearmente sobre a confusão chamada FRENCH THEORY.
Porto Alegre: Artmed, 2008.

• 26 novembro
A VERDADE é apenas HAVER-DADE (sufixo de qualificação): ansiedade,
vulgaridade, variedade, liberdade, multiplicidade, maldade, bondade, mora-
lidade, boçalidade, cumplicidade, modernidade, felicidade, realidade, neces-
sidade, loquacidade, fraternidade, racionalidade, mentalidade, mendacidade,
oportunidade, potencialidade, funcionalidade, praticidade, funcionalidade,
tenacidade, tecnicidade, horizontalidade, verticalidade, voracidade, mascu-
linidade, feminilidade, opacidade, qualidade, respeitabilidade, imputabili-
dade, quantidade, licenciosidade, recursividade, personalidade, veracidade,
privacidade, honestidade, subalternidade, mocidade, infantilidade, idade,
proporcionalidade, receptividade, compacidade, cavidade, religiosidade,
penalidade, >>>>>>>> E MAIS QUALQUER DADE QUE VOCÊ QUEIRA
ACRESCENTAR.

• 20 dezembro
CASO RECENTE
O RAPOSO E AS OVAS: O ÂNUS DA PROVA

226
MD Magno

Maravalhas

• 25 agosto
# O ICS não é estruturado como uma linguagem. O ICS é UMA LÍNGUA...
DE COBRA.

# Para ficar logo no geral: a Psicanálise é ARTSCIENCE.

# Cuidado com a “Charlataneria Eruditorum”.


(Burckhardt MENCKE, 1715)

# EPISTEMOPATIA: um síndrome de afirmação totalitária.

# IDEOLOGIA: qualquer ficção que intente apresentar-se como não-ficção:


hipóstase.
Portanto tributária da Neo-Etologia.

# Torto era o caminho que eu trilhava,


era torto, sim,
pois, sim,
era direito.
Paul CELAN

# ...

227
MD Magno

Sobre o Autor

MD Magno (Prof. Dr. Magno Machado Dias):

Nascido em Campos dos Goitacazes, Rio de Janeiro, Brasil, em 1938.

Psicanalista.

Bacharel e Licenciado em Arte. Bacharel e Licenciado em Psicologia.

Psicólogo Clínico.

Mestre em Comunicação; Doutor em Letras; Pós-Doutor em Comunicação pela


Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ, Brasil).

Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Santa Maria (RS, Brasil).

Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Univer-


sidade do Estado do Rio de Janeiro.

Ex-Professor Associado do Departamento de Psicanálise da Universidade de


Paris VIII (Vincennes), quando era dirigido por Jacques Lacan.

Fundador do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro (instituição psicanalítica).


Fundador da UniverCidadeDeDeus (instituição cultural sob a égide da psica-
nálise). Criador e Orientador de NovaMente, Centro de Estudos e Pesquisas,
Clínica e Editora para o desenvolvimento e a divulgação da Nova Psicanálise.

Atualmente, além de sua atividade como Psicanalista, continua o desenvol-


vimento de sua produção teórico-clínica (work in progress) em SóPapos e
Oficinas Clínicas, realizados na sede da UniverCidadeDeDeus ou on-line e
publicados regularmente.

229
MD Magno

Ensino de MD Magno

MD Magno vem desenvolvendo ininterruptamente seu Ensino de psicanálise


desde 1976, ano seguinte à fundação oficial do Colégio Freudiano do Rio
de Janeiro.

1. 1976: Senso Contra Censo: da Obra de Arte


Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978. 216 p.

2. 1976/77: Marchando ao Céu


Seminário sobre Marcel Duchamp. Proferido na Escola de Artes Visuais do
Rio de Janeiro (Parque Laje). Inédito.

3. 1977/78: Rosa Rosae: Leitura das Primeiras Estórias de João Guimarães


Rosa
Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1985. 3ª ed., 220 p.

4. 1978: Ad Sorores Quatuor: Os Quatro Discursos de Lacan


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 276 p.

5. 1979: O Pato Lógico


Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 252 p.

6. 1980: Acesso à Lida de Fi-Menina


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 316 p.

7. 1981: Psicanálise & Polética


Quatro sessões, sobre Las Meninas, de Velázquez, reunidas em Corte Real,
1982, esgotado. Texto integral publicado por Rio de Janeiro: Aoutra Editora,
1986. 498 p.

230
MD Magno

8. 1982: A Música
Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1986. 2ª ed., 329 p.

9. 1983: Ordem e Progresso / Por Dom e Regresso


Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1987. 2ª ed., 264 p.

10. 1984: Escólios


Parcialmente publicado em Revirão: Revista da Prática Freudiana, n° 1. Rio
de Janeiro: Aoutra editora, jul. 1985.

11. 1985: Grande Ser Tão Veredas


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 292 p.

12. 1986: Ha-Ley: Cometa Poema // Pleroma: Tratado dos Anjos


Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise.
Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

13. 1987: “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, Ainda //


Juízo Final
Publicados em: O Sexo dos Anjos: A Sexualidade Humana em Psicanálise.
Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1988. 249 p.

14. 1988: De Mysterio Magno: A Nova Psicanálise


Rio de Janeiro: Aoutra Editora, 1990. 208 p.

15. 1989: Est’Ética da Psicanálise: Introdução


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992. 238 p.

16. 1990: Arte&Fato: A Nova Psicanálise, da Arte Total à Clínica Geral


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 2a. ed. rev., 628 p.

17. 1991: Est’Ética da Psicanálise - Parte II


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 2ª ed., 622 p.

18. 1992: Pedagogia Freudiana


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1993. 172 p.

231
MD Magno

19. 1993: A Natureza do Vínculo


Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994. 274 p.

20. 1994: Velut Luna: A Clínica Geral da Nova Psicanálise


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 310 p.

21. 1995: Arte e Psicanálise: Estética e Clínica Geral


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 264 p.

22. 1996: “Psychopathia Sexualis”


Santa Maria: Editora UFSM, 2000. 453 p.

23. 1997: Comunicação e Cultura na Era Global


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 408 p.

24. 1998: Introdução à Transformática: Por uma Teoria Psicanalítica da


Comunicação
Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2004. 156 p.

25. 1999: A Psicanálise, Novamente: Um Pensamento para o Século II da


Era Freudiana: Conferências Introdutórias à Nova Psicanálise
Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 2ª ed., 224 p.

26. 2000: “Arte da Fuga”


Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora,
2003. 656 p.

27. 2001: Clínica da Razão Prática: Psicanálise, Política, Ética, Direito


Publicado em: Revirão 2000/2001. Rio de Janeiro: NovaMente Editora,
2003. 656 p.

28. 2002: Psicanálise: Arreligião


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2005. 248 p.

29. 2003: Ars Gaudendi: A Arte do Gozo


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2006. 340 p.

232
MD Magno

30. 2004: Economia Fundamental: MetaMorfoses da Pulsão


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2010. 260 p.

31. 2005: Clavis Universalis: Da cura em Psicanálise ou Revisão da Clínica


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2007. 224 p.

32. 2006: AmaZonas: A Psicanálise de A a Z


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2008. 198 p.

33. 2007: A Rebelião dos Anjos: Eleutéria e Exousía


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2009. 210 p.

34. 2008: AdRem: Gnômica ou MetaPsicologia do Conhecimento


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2014. 158 p.

35. 2009: Clownagens


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2012. 210 p.

36. 2010: Sic Transit (a sair)

37. SóPapos 2011


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p.

38. SóPapos 2012


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2021. 242 p.

39. SóPapos 2013


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 218 p.

40. Razão de um Percurso


(Conferências Simplórias 2013, para divulgação da Nova
Psicanálise, realizadas na Universidade Candido Mendes)
Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2015.

41. SóPapos 2014


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2019. 284 p.

233
MD Magno

42. SóPapos 2015


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2016. 176 p.

43. SóPapos 2016


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 188 p.

44. SóPapos 2017 [a sair]

45. SóPapos 2018


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2020. 216 p.

46. SóPapos 2019


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2021. 306 p.

47. SóPapos 2020 [a sair]

48. SóPapos 2021


Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2022. 242 p.

49. Intervenções (em curso)

234
MD Magno

Obra Literária

1. Oferta do Meu Mistério


Livro composto e reproduzido pelo autor (mimeografado). Rio de Janeiro,
1966.

2. Aboque/Abaque: Crestomatia
Rio de Janeiro: Editora Rio, 1974. 200 p.

3. Sebastião do Rio de Janeiro


Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro / Colégio Freudiano do Rio de
Janeiro, 1978. 142 p.

4. CantoProLixo
Aoutra editora / Matias Marcier, 1985. 90 p.

5. Kaluda (O Nando e Eu)


Letras, Revista do Mestrado em Letras da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM/RS), edição especial, jan/jul 1995, p. 254-285. Republicado
em: PUCHEU, Alberto (org.). Poesia (e) Filosofia: por poetas-filósofos em
atuação no Brasil. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998. p. 29-50. Terceira
publicação: Et Cetera: Revista de Literatura e Arte, n. 3, março 2004, p.
170-177. Curitiba: Travessa dos Editores. ISSN 1679-2734.

6. S’Obras (1982-1999)
Coletânea de poemas. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. Editada por
Fábio Campana, com coordenação gráfica e editorial de Jussara Salazar.

7. Literadura
Rio de Janeiro: NovaMente Editora, 2018. 564 p.

235
Este livro foi composto nas fontes Amerigo BT, Apple Symbols, Times New Roman e Wingdings.

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