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Universidade Federal Fluminense

Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Tese de Doutorado

Cesar Ramos Barreto

A Mulher-Sujeito:
subjetividade, trabalho e consumo no mundo contemporâneo

Orientador
José Sávio Leopoldi
Niterói – 2006

Sumário

Introdução 1
Capítulo 1 – Sistema de Consumo 10
Capítulo 2 – Linguagem 22
Capítulo 3 – Lingüística, Antropologia e Sociologia 35
Capítulo 4 – Troca, Comunicação e Consumo 50
Capítulo 5 – Crítica da Pesquisa de McCracken 65
Capítulo 6 – Hoc est Corpus Meum 77
Capítulo 7 – Sacrifício: trabalho e consumo 92
Capítulo 8 – Sujeito e Estrutura 108
Capítulo 9 – O Sujeito e o Mundo Objetivo 123
Capítulo 10 – Conclusão 148
Bibliografia 166
Anexo A 176
Anexo B 198
Introdução

A idéia de associar a subjetividade e o sistema de consumo de objetos não é


nova. Uma vez superada, no apagar das luzes do século XX, a redução do consumo a
mera função econômica e utilitária, a inteligência ocidental buscou outros ângulos que
melhor permitissem contemplar os indivíduos e seus objetos de consumo. Subjetividade
tem sido um desses pontos de vista. Mas, algumas vezes a tentativa vinculou os objetos
mais à posição e à identidade sociais do que à subjetivação propriamente. Outras vezes,
o sujeito e o objeto que consome tiveram a sua relação negada ou, pelo menos,
restringida, como o fez Jean Baudrillard, no seu tratamento simbólico dos objetos.
Tentou-se também, como fez o antropólogo inglês Daniel Miller, significar o ato de
compra como função do sacrifício, mas, o processo de subjetivação através de objetos
de consumo restou, neste caso, como um elemento acessório e secundário.
Sujeito e Objeto sempre estiveram ligados e mutuamente dependentes;
constituem elementos essenciais para que possamos compreender o sentido das coisas
do mundo. Mas, fora da linguagem e da filosofia cartesiana, a aproximação do sujeito
constituído e o objeto tangível não se revela facilmente. É necessário rever algumas
afirmações próprias das comunidades fashion como “as roupas falam” e outras que
impliquem a transferência para o objeto daquilo que é exclusiva função do sujeito: a
fala.
A oralidade está vinculada a uma dupla função: as das coisas corporais e das
coisas não-corporais; pertence pois ao universo do corpo e ao universo da linguagem. E

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a boca, simultaneamente, porta de saída dos sons inteligíveis da fala, quando
arranhamos diligentemente as cordas vocais, e porta de entrada do alimento consumido,
é o lugar único por onde entra e por onde sai o sujeito. São ambos, comer e falar
movimentos sem retorno, onde as contrapartidas – descomer ou engolir as palavras –
não são oposições, mas disfunções ou negações funcionais. Não há oposição entre
comer e regurgitar, consumir ou “desconsumir”; há negação. Também não há oposição
entre falar e calar; há, outra vez, negação: a negação do próprio sujeito. A oposição, o
par que constitui o mesmo eixo, está entre comer e falar. O objeto que entra pela boca
constitui; a palavra que sai pela boca revela o sujeito. Começa com o consumo do leite
materno, ato em que o ainda não-sujeito não reconhece o objeto, mas que logo o
inserirá, e o fará pela boca, pela mesma boca que come. Todo consumo é inserção,
absorção do objeto; começa com o comer, mas todos os outros consumos são extensões
de comer e implicam a projeção do ser humano para além animal mamífero que
constitui a sua natureza.
Na análise do universo simbólico de Lewis Carroll, Deleuze (2003. pp. 25-50)
enxerga, em toda a extensão da obra do ficcionista inglês, ‘comer’ ou ‘falar’ como o
“modelo da operação dos corpos”, de onde resultam duas séries heterogêneas da
oralidade: a das coisa consumíveis e a dos sentido exprimíveis. O modelo representa
uma espécie de alternativa: “comer ou ser comido”, como se o sujeito que recusasse a
inserção do objeto fosse por este devorado. Situação em que o objeto impediria a
emergência do sujeito: o sujeito devorado pelo objeto.

A palavra consumo tem como raiz, no nosso e em diversos outros idiomas


ocidentais, a palavra latina “sum” da qual deriva-se consumo, consumir, consumar e
também suma, sumário, sum(p)tuário. sum(p)tuoso, designando, segundo Heckler et al.
(1994, p. 182), significados relacionados a soma, adição. Além disso, “sum” também
significa sou, existo, encontrado no tropo de Descartes. Entretanto, “sum” também está
na raiz do verbo “sumere”, sumir, de onde deriva-se sumiço, sumidouro, etc. Ou seja, ao
mesmo tempo que a raiz nos conduz a noções aritmeticamente positivas e agregadas,
gramaticalmente afirmativas e constitutivas, também nos conduz a noções associadas a
desaparecimento, retirada, desconstituição, exigüidade, extinção e morte. É,
provavelmente, para esses dois diferentes significados que Roy Porter (1994) quer nos
chamar a atenção, quando lembra que, no século XVIII, apontado por diversos
historiadores como o da “explosão burguesa do consumo” na Europa, também

2
“explodiu” a ‘consumption’, palavra usada para designar a tuberculose na Inglaterra,
com o sentido de devoradora de vidas.
Ser devorado pelo objeto significa a perda de si, a permanência do sujeito imerso
nos confins da inconsciência. A versão psicanalista da patologia do sujeito manifesta-se
naquele que é incapaz de falar de si-mesmo, ou antes, de falar o si-mesmo, tal como
Narciso que, diante da própria imagem refletida, se cala. Uma espécie de afazia
sociológica manifesta-se no “consumista”, o não-sujeito que, devorado pelos objetos
que compra, torna-se incapaz de realizar o si-mesmo. Antes de chegar aos divãs, até
mesmo antes de os divãs chegarem, o não-sujeito consumista fora identificado pela
acurácia do romancista e condenado pela ética protestante. A teoria econômica
protestante construiu-se exatamente como virtude da produção – e não do consumo –
para moderar a ação de consumir através daquilo que o sujeito pode produzir. Durante
mais de duzentos anos, a economia protestante conseguiu varrer o consumo para
debaixo do tapete virtuoso da produção, fosse através da submissão do consumo a uma
pretensa racionalidade econômica, fosse através do consumo emulativo e conspícuo de
Thornstein Veblen, ou ainda através do consumo para “satisfazer as necessidades
humanas” do marketing norte-americano.
O romancista que bem capturou a tragédia consumista foi Gustave Flaubert,
contando-nos o triste fim da jovem senhora Ema, em Madame Bovary. Da frustração do
casamento com o incompetente Carlos, uma busca desenfreada pelo objeto perdido a
conduz ao adultério – igualmente frustrado –, ao consumismo e enfim à perdição. Ema
Bovary é o arquétipo da danação consumista encarnada na mulher moderna,
convenientemente mantida pela ética protestante no lado obscuro do sistema de trocas
econômicas, como sabotador da virtude masculina da produção.
Trajetória comparável à de Ema teve a escritora Lolita Pille que, na personagem
Hell, erra pelas ruas escuras da Paris do século XXI, em busca do objeto perdido. Está
vestida e calçada de coisas cujas marcas servem apenas para designar o dinheiro que
tem para comprá-las. Dinheiro é significante sem significado; apenas expressão do
vazio e do desespero. Na página 103, vê no espelho seu reflexo “se desagregar
lentamente, como um quadro sobre o qual jogaram ácido”. Hell é mais um não-sujeito,
auto-designada “putinha e consumista”, como quem entende que ambos os adjetivos
devem estar perfeitamente associados para significar o ser socialmente repulsivo que
mal consegue delinear a sua imagem. Não precisa se endividar até a insolvência como
Ema, mas é igualmente um sujeito devorado pelos objetos. A diferença entre Ema

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Bovary e Pille/Hell está na saída que encontram para o nada que apenas existe pela
frente. Enquanto a primeira ingere convictamente o último objeto, o veneno roubado da
prateleira do farmacêutico, amigo de seu marido, a segunda toma a caneta e fala através
de seu livro.
O universo da experiência corpórea não existe fora da linguagem. Deleuze
argumenta que a dualidade comer-falar opõe, de um lado, um elemento corpóreo,
relacionado às coisas consumíveis, e, de outro, um elemento da linguagem, relacionado
aos sentidos exprimíveis. O universo da linguagem não se realiza sem o consumo do
corpo, ou no corpo, mas a experiência do corpo não existe se não se constituir em
proposição. O consumo é portanto fato, estado de coisas, acontecimento pertencente à
ordem do corpo; produz efeitos. Mas os fatos-acontecimentos não existem fora de
proposições que os exprimem e significam. O consumo acontece no mundo dos fatos,
mas subsiste no mundo da linguagem.
A experiência indizível de Ema a conduz à morte, enquanto Pille/Hell sobrevive
porque fala.
*
Daí a podermos derivar que o consumo de objetos seja capaz de criar as
condições ideais para a linguagem vai uma distância muito grande. A inserção corpórea
não se traduz necessariamente em linguagem, através de significação precisa atribuída
aos próprios objetos de consumo. Ou seja, a compra e o consumo de bens de marcas
famosas e, seguramente, associadas a certos significados não oferece uma garantia para
o investigador do sujeito de que o objeto consumido codificará uma mensagem. No caso
de Hell, o consumo de bolsas Gucci e carros Porshe simplesmente não diz nada. Hell, o
não-sujeito, não se diz através dos objetos; ele insere objetos que de alguma forma vão
procurar relações com significantes, mas não encontra nada. O sujeito pode devolver
significados ou não. No caso de Hell, a inserção é uma tentativa desesperada de busca
de significação, mas esta não emerge na exibição do objeto; somente aflora, na verdade,
nas palavras de seu livro. Alguém poderia ver Hell com sua bolsa e dizer: “ali está uma
moça de bom-gosto, que sabe apreciar a qualidade”. Mas outra pessoa poderia dizer: “lá
vai uma mulher fútil, que não sabe o que fazer com tanto dinheiro”. Aliás, Hell nem
mesmo compra a sua bolsa Gucci, embora tivesse dinheiro da sua própria conta bancária
para isso; ela a rouba de sua mãe, como que tentando sugar-lhe secreções simbólicas.
Foi por considerar que a significação está nas coisas compradas e usadas que
Grant McCracken não obteve resultados significativos – que discutiremos adiante – na

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sua pesquisa sobre o uso de roupas. Foi por entender que as significações dispersas,
construídas no sujeito, porém a partir do sistema de objetos a ele extrínseco, que
Baudrillard afirmou que o sistema operava no sujeito um “léxico errático”.
Não devemos confundir o sujeito com sua personalidade. Recordemos o que é
‘persona’: máscara usada no teatro grego para esconder a verdadeira face do ator, ou
seja, é exatamente o que o sujeito não é. Pragmática e herdeira do behaviorismo, a
pesquisa mercadológica, ou mesmo sociológica, com raízes estadunidenses, está
empenhada em decifrar o que o sujeito quer mostrar e não o que é. Contudo,
consumidor – ou consumido – é o sujeito. Qualquer imagem social expressa por ele é
resultante de uma operação complexa interior, na tentativa de arranjar dois elementos
externos a ele mesmo: inconsciente e mundo objetivo.
A pesquisa do sujeito nos atos de compra, consumo e uso dos bens não serve
para a dedução de um discurso conciso. Tampouco, deve-se esperar que o sujeito se
constitua através de bens; é na relação com os objetos que o sujeito se pronuncia.
Conquanto se possa, na linguagem corrente, substituir a palavra ‘coisa’ e a palavra
‘bem’ por ‘objeto’, esta pertence ao universo da linguagem; as outras, não. Uma coisa
adquirida no mercado de bens não opera significações no sujeito como coisa em si, mas,
transplantada para o universo da linguagem, será operada como objeto. O que devemos
procurar em uma pesquisa do sujeito em situações de consumo é a possibilidade de uma
efetiva continuidade operativa de objetos e inferir categorias que dizem respeito ao
sujeito.
*
Esta tese é conseqüência da reflexão sobre o sistema de consumo na conduta
humana. Habitualmente reduzido a um fato econômico e social, desconfiávamos de que
consumir coisas podia estar a esconder algo sobre a própria condição antropológica.
Comprar e consumir não podem ser ações reduzidas a uma perspectiva econômica, uma
vez que nem sempre – talvez, raramente – se trate de uma ação social propriamente
econômica, uma vez que esta é tecnicamente sempre presumida como intencional e
racional. As ações relacionadas ao consumo também não podem ser reduzidas a
movimentos de ordem sociológica vinculados a status e estilos de vida, uma vez que
nem todas denotam ligações, voluntárias ou involuntárias, com tais marcações sociais.
Muito embora as ações de consumo também estejam ligadas à diversidade cultural, o
mesmo se pode dizer quanto à tentativa de reduzi-la ao aspecto simbólico-cultural.

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Recentemente, Colin Campbell tentou uma redução mais essencialista, expressa
no prazer. Obviamente, como toda experiência humana vai se esgotar no corpo, o prazer
constitui um fator privilegiado de investigação da conduta. O problema é a amplitude do
conceito de ‘prazer’. Campbell (2001) define-o exatamente como o resultado
(agradável) de uma experiência, contrapondo-o, com muita diligência, à definição de
‘necessidade’. Esta implica um estado do ser, que se contrapõe a ‘satisfação’, enquanto
‘prazer’ constitui um outro eixo, opondo-se a ‘desejo’. Mas, afastando-se da noção
freudiana de prazer, Campbell deixa um campo muito largo para uma experiência
prazerosa. Uma dona-de-casa abordada por Miller (2002) em ato de compra de itens de
provisão para o lar está, segundo o pesquisador, submetendo-se a um sacrifício.
Todavia, não se pode excluir daquela ação uma experiência prazerosa, explicada pelo
fato de a mulher em questão estar zelando pelos entes queridos. Aqui, encontramos um
problema diferente daqueles acima apontados como fundamento para as ações de
consumo: todo ato pode ser motivado pela busca de prazer, independentemente de
qualquer outra motivação.
Seguindo nossa busca por uma categoria antropológica para o consumo,
pensamos em uma há muito esquecida: a do sujeito. Ela esteve presente nos escritos de
Lévi-Strauss dos anos 1950,1 mas depois ficou ausente do texto antropológico,
parecendo ter sido cedida definitivamente à Psicanálise. Recentemente, ‘sujeito’
ressurgiu como categoria sócio-antropológica, graças aos últimos escritos de Michel
Foucault e de Alain Touraine.2 Mas não se procurou aqui resgatar um conceito apenas
por julgá-lo pertinente e digno do texto antropológico. Pensamos mesmo que o sujeito,
enquanto condição e atributo únicos da espécie humana, seja caminho necessário para a
sua elucidação.
Excluímos de nosso trabalho qualquer tentativa de classificar pessoas em
posições ou hábitos sócio-econômicos. Admitimos que o sujeito empírico encontra
oportunidades diferentes, dependendo do meio social onde vive, mas, enquanto
especificidade humana, a sua emergência independe deste ou daquele meio sócio-
cultural. Optamos por um atributo de gênero, procurando evidência na sexualidade e na
maternidade do sujeito-mulher. A escolha se explica por alguns motivos. Em primeiro
lugar, fazer compras, inicialmente, com o sentido de suprir a casa dos itens não

1
Veja-se, por exemplo, Lévi-Strauss (2003); na Introdução à obra de Marcel Mauss, Sociologia e
Antropologia.
2
Sobretudo, na última fase da obra de Foucault: História da Sexualidade (Foucault, 2002); A
Hermenêutica do Sujeito (Foucault, 2004) e nos recentes trabalhos de Alain Touraine (2002).

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produzidos pela própria família tradicional, é uma das funções delegadas à mulher,
reservando-se para o homem a função mais “nobre” da produção. A pecha de
“consumista”, muitas vezes atribuída de modo geral – e irresponsável – às mulheres se
deve a esse papel. Ainda nos dias atuais consiste em um item de medida da virtude
feminina a capacidade de economizar o dinheiro conquistado pelo trabalho do homem.
Vemos isso implicitamente no trabalho desenvolvido por Daniel Miller na Londres do
alvorecer do século XXI. Em segundo lugar, dispúnhamos do trabalho do próprio
Miller, desenvolvido com mulheres, como contraponto para comparações e conclusões.
Em terceiro lugar, a condição da mulher foi seguramente a que mais se transformou no
mundo inteiro, nos últimos dois mil anos. Muito embora não estejamos empenhados em
uma perspectiva histórica, a transformação da condição feminina constitui uma
referência singular, uma vez que a sua trajetória colocou-a diante do trabalho e da
responsabilidade social e política, sem ter abandonado o lar. Conforme veremos nesta
tese, essa condição foi de importância capital para nossas conclusões.
Mas o fator decisivo de nossa escolha foi ter visualizado em ‘mulher-sujeito’ um
bom achado antropológico. Na segunda metade do século XX, as feministas se
rebelaram contra a “mulher-objeto”; viram-na como ser de categoria inferior, mas não
lhe emprestaram uma verdadeira e autêntica condição, exceção feita a Camille Paglia,
que se empenhou no discurso da vocação da mulher não como digna de se comparar e
de substituir a sua contraparte nas funções e nos papéis masculinos. Pagglia (1992)
sustentou a busca da autêntica e verdadeira condição do feminino. Mesmo no texto
antropológico, a mulher foi objeto, “bom para comer”. Ainda que Lévi-Strauss se tenha
desculpado pela “troca de mulheres”, argumentando que homens também são trocados,
não chegou a desenvolver uma feminilidade “boa para pensar”.
“Comer e ser comido”! Ou somos coisas, ou somos sujeitos. A condição do
sujeito não pode ser avaliada como boa ou ruim; ela é exatamente isto: uma condição.
Ser homem ou ser mulher não é bom nem ruim; é uma condição que obedece à lógica
da espécie; e a mitologia dos povos está repleta de suas evidências. O sujeito emerso do
interior das relações familiares, nos primeiros momentos da vida, é uma categoria
apropriada pela Psicanálise, mas não se esgota nesse ponto. A sexualidade permanece
em operação; produzir, dar e receber, comprar e consumir objetos subsistirão como
funções sexuais.
*

7
Muito embora este trabalho se desfeche com a análise de uma pesquisa empírica,
preferimos entende-lo como produto de uma reflexão lógica aplicada a mais uma dentre
as possibilidades que unem o sujeito e o objeto. A proposta aqui apresentada é resultado
de uma experiência conceitual. Não procuramos derivar idéias e sentidos para uma
realidade empírica a partir de uma pesquisa de campo, como tem acontecido na prática
acadêmica em nossa disciplina. Antes, optamos por buscar segurança conceitual, por
reconhecer que a idéia de um sujeito do consumo tem um apelo especulativo. Foi
necessário recorrer a fundamentos lingüísticos e avançar pelos aspectos sagrados do
consumo para tentar estabelecer uma relação entre o sujeito, a compra e o uso coisas
adquiridas nos mercados. A pesquisa empírica aqui descrita deve ser entendida como
um teste de consistência da correlação conceitual anunciada nesta introdução, entre
‘sujeito’ e ‘consumo’, a nosso ver, bem-sucedida. Neste caso, acreditamos que a escolha
do sujeito-mulher muito favoreceu o resultado da experiência. O teste foi realizado
através de extenso questionário, aplicado exclusivamente a mulheres que reuniam
simultaneamente as condições de serem casadas (ou ex-casadas), mães, e profissionais,
por motivos devidamente esclarecidos no Capítulo 5. Em seguida, foram realizadas
entrevistas em profundidade junto às respondentes que se dispuseram para este fim e
que apresentaram no questionário situações de maior interesse para os propósitos da
pesquisa.
O texto está organizado em dez capítulos, além desta introdução. No primeiro,
procedemos a uma revisão da literatura de conteúdo econômico, sociológico,
antropológico e, em alguns casos, histórico sobre consumo e o uso dos objetos. O
Capítulo 1 é também o espaço onde expomos a delimitação de nosso objeto de interesse
nesta tese – no interior do que chamamos Sistema de Consumo – e apresentamos um
esboço teórico das Dimensões do Consumo. Os Capítulos 2, 3 e 4 constituem-se do
resultado de nossa investigação sobre as possibilidades da teoria lingüística
contemporânea emprestar um modelo de análise ao sistema de consumo. O segundo
capítulo consiste de um estudo básico sobre a matéria; o terceiro busca dar conta das
relações entre a Lingüística e a Antropologia e o quarto capítulo visa à reflexão mais
aproximada das possibilidades da teoria lingüística como suporte teórico robusto para a
inferência de significação no consumo e no uso de objetos. No Capítulo 5, revemos o
estudo de McCracken (2003) e sua tímida tentativa de uso do paradigma lingüístico em
uma pesquisa sobre o vestuário. Na conclusão desse quinto capítulo, ampliamos o nosso
próprio esboço teórico sobre o sistema de consumo. A tentativa de Daniel Miller (2002)

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de aproximar o sistema de consumo do sagrado, que resultou na sua tese sobre a compra
de bens como ato de sacrifício, foi analisada nos Capítulos 6 e 7, onde tivemos a
oportunidade de invadir o terreno do consumo sacrifical e sagrado. De uma forma ou de
outra, a noção de ‘sujeito’ permeia toda esta tese, mas nos Capítulos 8 e 9, construímos
um estudo específico, visando à construção de uma base sólida para uma teste empírico
sobre as possibilidades de um ‘sujeito do consumo’; no oitavo, abordamos o domínio
estrutural do conceito de ‘sujeito’ – já antes visitado nos capítulos sobre a Lingüística –
e, no nono, expomos o resultado da investigação sobre o sujeito empírico, mais afeito à
pesquisa etno-sociológica. Todo o esforço teórico e analítico operado nesses nove
capítulos foi então conduzido para a elaboração das bases e da metodologia do teste
empírico, descritas e analisadas no Capítulo 10, onde também apresentamos nossas
conclusões. A investigação objetivou testar a possibilidade de inferência do sujeito
empírico a partir de atitudes e ações de compra e consumo de bens. O argumento que
fundamentou tal proposição foi o de que todo sujeito, enquanto tal, sujeita-se a alguém
ou a alguma coisa. No nosso caso, procuramos inferir, através de índices de zelo e
dedicação, uma espécie de grau de sujeição – e não de submissão – da mulher à
condição do feminino, tendo como contrapontos fatores como filhos, marido, trabalho e
casa, através da compra de certos itens cuidadosamente eleitos para tal fim. Podemos
antecipar que o resultado do teste nos surpreendeu, não apenas por evidenciar a
consistência do método, mas principalmente por revelar, de modo inequívoco, uma
conclusão que não esperávamos.
*
Este autor quer ainda usar este espaço introdutório para manifestar os seus
cumprimentos e os seus agradecimentos ao Professor José Sávio Leopoldi, do programa
de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, pela presteza
e pela coragem de assumir a orientação de um trabalho de tese já em andamento.
Assinalamos ainda que tal assunção foi de extrema importância para trazer objetividade
à pesquisa e para devolver a necessária segurança ao seu autor no desenvolvimento
deste trabalho.
Somos gratos ainda às Professoras Laura Graziela Gomes e Lívia Martins
Pinheiro Neves, cujas pesquisas e aulas sobre o consumo consistiram nas fontes onde se
originou nosso interesses pela temática.

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Capítulo 1
Sistema de Consumo

Racionalidade, emulação, desejo ou sacrifício?


No início, foram os economistas clássicos, mas, em plena era de ascensão
protestante e burguesa, não havia lugar para um esforço concentrado no estudo das
motivações e das causas do consumo. Combinava melhor com ética protestante e com a
crescente disponibilidade de objetos industrializados deslocar o enfoque da moderna
economia inglesa para algo que se apresentasse como mais conspícuo e virtuoso. Os
economistas surgiram no cenário como gente preocupada com a distribuição do
emprego, da riqueza material e da produção industrial. E assim, a virtude
exclusivamente atribuída à criatura humana de transformar e produzir objetos toma mais
uma vez o lugar do ato espontâneo e natural de consumir.
Não foi diferente quando a ciência econômica alcançou a sua maturidade na era
vitoriana, ocasião em que a “teoria econômica do consumidor” invocou a racionalidade
humana para explicar como e por que as pessoas compravam objetos nos pretensos
livres mercados londrinos.
Tratava-se efetivamente de um esforço para elucidar o fenômeno econômico ou
de celebrar, mais uma vez, a vitória da espécie sobre a natureza?

O presente capítulo dedica-se inicialmente à revisão das teorias originais, que


dominaram o fenômeno do consumo ao longo das séculos XIX e XX.; revê, em seguida,
recentes abordagens que de uma forma ou de outra foram construídas a partir daquilo
que os economistas clássicos e neoclássicos enxergaram no fato de comprarmos e de
consumirmos coisas. Encontraremos aqui a evidência já suficientemente reconhecida de

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que comprar e consumir objetos, além de inevitavelmente constituir um fato econômico,
são também fatos sociais carregados de significação simbólica. Se a virtude de produzir
celebra a vitória da espécie humana, o consumo não o reduz a um mero coletor das
dádivas da natureza; consumidores compram, usam e presenteiam objetos operando-os
como significantes, cujos significados são construídos na esfera social, por obra
exclusiva da capacidade humana de simbolizar. Mas, pretendemos também sugerir que
o fator simbólico não está restrito à manipulação do objeto como indicador de posição e
de diferenciação sociais. Antes de constituírem elementos simbólicos de status, os
objetos podem estar ligados à própria condição do sujeito.
*
Hoje em dia, não há teoria econômica que dê suporte a todos atos individuais de
comprar e de consumir. Mas, reconheçamos: a teoria econômica do consumidor ainda é
capaz de dar suporte a decisões macroeconômicas que envolvam o consumo agregado.
Reconheçamos outro mérito: a teoria, que parece reduzir a escolha do consumidor a
uma racionalidade absurda, foi a primeira tentativa de abordagem de um fato que parece
comportar múltiplas faces e motivações. A teoria do consumidor, desenvolvida pelos
economistas marginalistas da escola neoclássica, parece ser bastante para resolver
problemas econômicos e, ao reduzir a questão do consumo à racionalidade econômica,
demonstrou, na verdade, o quanto o tema pode ser múltiplo e fugidio. Reconheçamos,
por fim, que nas recentes abordagens de ordem sociológica, histórica e antropológica
sobre o consumo - que procuram os elementos simbólicos e sociais inerentes ao
fenômeno - a racionalidade econômica vem constituindo um fundamento básico que,
exatamente por não poder ser suficientemente explicativo, fornece as referências e os
contrapontos para novos enfoques.
Não é verdade, outrossim, que a racionalidade matemática aplicada ao estudo do
consumo tenha impedido que os economistas visualizassem “coisas humanas” as
motivações para consumir. Alfred Marshall (1982) era um grande matemático, mas
afirmava que as ações econômicas estariam melhor descritas quando usada a linguagem
gramatical e não a matemática. Além disso, sugeriu que a economia está fundada na
psicologia, estimulando o psicólogo norte-americano Herbert Simon a procurar tais
fundamentos. Vilfredo Pareto (1984) também afirmou que a origem da conduta
econômica teria que ser buscada na psicologia humana e Keynes (1982) formulou uma
“lei psicológica fundamental” para tentar compreender a conduta do homem econômico.
É bem verdade que a noção de Marshall e de Pareto sobre ‘psicologia’, em uma época

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em que a Sociologia ainda era um domínio em construção, envolvia uma massa
indistinta de fatores psicológicos, sociológicos e culturais e que a noção de “lei
psicológica fundamental” pouco tem a vem com a teoria geral da Psicologia. Mas
devemos entender que a intenção dos teóricos da economia era, e ainda é, fornecer bases
confiáveis para o gerenciamento macroeconômico da oferta e da demanda e não
explicar porque consumidores compram, consomem e exibem objetos.
Nos últimos 25 anos, o interesse pela temática do consumo cresceu entre
pesquisadores fora dos habituais campos vinculados às Ciências Econômicas e
Gerenciais, passando a estar mais presente em estudos vinculados à História, à
Sociologia e à Antropologia. A maioria destes estudos tem retomado a já clássica obra
do norte-americano Thorstein Veblen (1980), publicada originalmente em 1899, A
Teoria da Classe Ociosa, que discutiu o tema sem precisar centrar-se no ideário
matemático daquela que seus contemporâneos, os economistas neoclássicos ingleses,
chamavam de Teoria do Consumidor. Veblen, ele próprio um economista, não recusa
integralmente o ideário economicista dominante no seu tempo, mas agrega à sua
abordagem conteúdos teóricos sociológicos, etnológicos e filosóficos. A partir de
Veblen, a alternativa para uma abordagem do consumo que escapasse do racionalismo
dos marginalistas neoclássicos passou a estar vinculada ao conteúdo sociológico de
posição e movimentação de status e estilos de vida, derivado da tese do autor sobre a
tendência emulativa nos sistemas de consumo das classes sociais. Na década de 50 do
vigésimo século, ignorada pelos economistas mais puristas, a tese de Veblen encontrou
lugar nas emergentes teorias do marketing norte-americano, mas estas acabaram por
revelar sua preferência pelos fundamentos – aliás, como quase tudo que se produziu
durante quase todo o século nas ciências humanas e sociais nos Estados Unidos –
behavioristas. Em 1978, a tentativa do psicólogo Herbert Simon, da escola econômica
comportamentalista de Pittsburg, acabou dando certo: recebeu um Prêmio Nobel em
Ciência Econômica por demonstrar os limites da racionalidade econômica, inclusive,
nas ações de compra e consumo de bens3. Enquanto isso, o campo da Antropologia
Social consolidava a teoria da dádiva e as teorias antropológicas da economia, mas a
ênfase na troca, na dádiva e no processo de formação de valor obstaculizou a
visualização de um sentido para o consumo em si.

3
Simon (1980).

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Embora o ato de consumir esteja presente em muitos dos nossos trabalhos
etnográficos, faz pouco mais de 20 anos que começamos a dar importância a ele.
Talvez, encantados e ao mesmo tempo obliterados pela lógica das trocas simbólicas,
esquecemos durante muito tempo que o destino dos objetos trocados é consumo.
Depois de Veblen, tivemos que esperar oitenta anos para que abordagens
sociológicas sobre o tema aparecessem novamente no cenário. A obra de um
economista e de uma antropóloga The Wold of Goods (Douglas e Isherwood, 2004),
originariamente publicada em 1979, reeditada em 1996 – dada a atualidade do tema e a
expectativa não atendida de uma teoria sociológica suficientemente esclarecedora –,
inicia-se exatamente pela crítica ao pensamento econômico sobre o consumo, para
tentar uma abordagem sociológica. Segue-se uma revisão histórica do consumo,
empreendida também pelos também ingleses McKendrick, Brewer and Plumb (1982),
The Birth of a Consumer Society, no qual revelam o que seria a verdadeira “grande
transformação” ocorrida no século XVIII: em lugar da Revolução Industrial, a
concomitante Revolução do Consumo, durante dezenas de anos negligenciada e
esquecida pela ênfase dada à primeira e, provavelmente, a sua causadora. Em outra
abordagem histórica, Williams (1982) centra as origens do consumo moderno a França
do século XIX. Logo a seguir, Mukerji (1983) retroage as origens da explosão moderna
do consumo à Inglaterra dos séculos XV e XVI.
Parafraseando o clássico de Max Weber, The Romantic Ethic and the Spirit of
Modern Consumerism, de Colin Campbell, em 1987, empreende uma abordagem
histórica, porém retomando a sociológica dos fatos, tocando às vezes a Psicanálise e a
Antropologia. A obra do também inglês Campbell inova por fazer ausente o temor
puritano no trato das questões motivadas pelo desejo e pelo prazer. Além de conseguir
escapar da tentação de explicar o uso de objetos como símbolo de status e refutando
mesmo a teoria da emulação de Veblen, livra-se da tendência moral protestante
implícita no racionalismo da teoria neoclássica do consumidor. Campbell (2001[1987])
retoma as proposições de McKendrick et al., reconhecendo que a moda, o amor
romântico e a leitura de romances (sobretudo pelas mulheres) são, no século XVIII,
fatores significativos de mudanças comportamentais relacionados com o consumo, mas
não suficientemente fortes para explicar a “nova propensão ao consumo”. Campbell
também refuta o que chamou de teoria instintivista – baseada no consumo para
satisfação de “necessidades humanas”, bastante aplicadas nos métodos gerenciais – e de
teoria manipulacionista – originária das crenças de manipulação do consumidor através

13
de marketing e propaganda, dando, por fim, forma e conteúdo à teoria do consumo
fundada no desejo e no prazer a que aludimos na Introdução.
Todavia, as teses de Veblen sobre o consumo conspícuo, como meio da
emergente burguesia emular os costumes da aristocracia, ainda encontram eco nas
recentes produções acadêmicas. É possível mesmo que tal motivação para o consumo
ainda consiga dar conta de muitas das atuais ações e decisões de consumo. Mas, imitar o
comportamento de uma classe social percebida como superior encontra certos
obstáculos. Eles foram demonstrados por Bourdieu (1979) e se referem aos códigos
simbólicos operados pelas classes, que tornam os significados inacessíveis aos
indesejados. Um sujeito percebido como pertencente a uma certa classe ou categoria
social pode tentar, através do consumo de bens, simular uma pertença a outra, mas terá
dificuldades ou mesmo não conseguirá operar adequadamente o código; usará os
objetos em ocasiões e lugares inadequados, tenderá a cometer exageros ou não
encontrará, em seu meio, outros sujeitos capazes de decodificar a mensagem que supõe
emitir.
A imitação pode não resultar em efetividade emulativa, mas, a depreender-se de
alguns filmes comerciais contemporâneos – que ainda insistem em exibir símbolos
considerados dignos de serem imitados – resulta alguma eficácia consumista. Quer nos
parecer, entretanto, que a objeção de Campbell à emulação como fundamento do
consumo moderno esteja vinculada a outra idéia. Campbell nos parece estar falando um
novo tipo de conduta em relação ao consumo, fundada em uma nova postura social. Sua
tese de um novo comportamento hedonístico, autônomo e auto-ilusivo, parece estar
vinculada, na verdade, a um novo tipo de sujeito; um sujeito que não deseja mais imitar,
mas que procuraria encontrar em si mesmo as referências para a sua demanda. A busca
do prazer como experiência do sujeito no próprio sujeito, a que Campbell alude como
característica da modernidade tardia, pode significar a evidência de uma nova
subjetividade.4

Enquanto os ingleses redescobrem as funções sociais e recapitulam a história do


consumo no Ocidente, Pierre Bourdieu (1979) demonstra, em La Distinction, o quanto
os objetos podem servir como elementos simbólicos de separação e de hierarquização
social. A obra não recebe no título nenhuma menção ao consumo, mas é um dos seus

4
Mais adiante, ao investigarmos as proposições de Michel Foucault e de Alain Touraine, entenderemos
essa aproximação.

14
melhores tratados. Lida com o consumo dos bens culturais mais legítimos, como fatores
de concorrência pela posse e pelas práticas raras, onde a particularidade tem sua lógica
na oferta dos bens, mas também nas relações que afastam e, ao mesmo tempo,
aproximam consumidores, através de escolhas aparentemente imensuráveis, como as
preferências musicais ou culinárias, esportivas ou políticas, de literatura ou penteado de
cabelo. Bourdieu sustenta a existência de uma “reintegração bárbara” de consumos
estéticos no universo de consumos ordinários, que atende o fato de que o consumo de
bens supõe sempre hierarquias, tanto entre os bens quanto entre os consumidores; um
trabalho de apropriação, ou mais precisamente, um espaço social de transformação,
onde os consumidores contribuem para produzir o produto que consomem, através de
um trabalho de decodificação simbólica.
As idéias de uso dos bens como código simbólico ou como sistema de
informações permeiam tanto a pesquisa de Bourdieu quanto a de Douglas e Isherwood.
Certamente as noções de comunicação e informação, além da proposta de Sahlins
(1976) do consumo do vestuário como elemento totêmico, influenciaram McCraken
(2003), quando tentou depreender uma espécie de “fala” dos objetos, em uma pesquisa
sobre o uso de roupas. O fator ‘comunicação’ é recorrente nas novas teorias do
consumidor; parece constituir um bom substituto para as teses econômicas centradas na
utilidade, uma vez que consegue demonstrar que muitos dos atos de compra que não
podem ser explicados por simples utilidade funcional encontram uma outra lógica. A
comunicação social associada ao uso de objetos é o fundamento subjacente a
abordagens do uso de objetos como símbolos de status e hierarquização social, de estilo
de vida, de identidade social, de personalidade e de sensualidade. Além de possuir
propriedades que inequivocamente fornecem valor explicativo superior à simples
funcionalidade da demanda economicamente racional – trazendo elucidação a ações e
decisões de compra e consumo aparentemente irracionais -, insere o fenômeno do
consumo na categoria lógica dos fatos sociais. ‘Comunicação’ é um atributo que se liga
ainda à teoria da dádiva e aos processos de constituição do sujeito.

McCracken (2003), em 1998, depois de comparar o que seriam estruturas


diferentes do consumo tradicional ou curatorial e consumo moderno, coloca o consumo
no contexto de um sistema de comunicações operado por “códigos-objetos” e,
aparentemente apoiado na teses sobre as transformações estruturais de Sahlins, propõe
que os objetos consumidos são “pontes para o significado deslocado”, ou seja, meios

15
para indivíduos e sociedades operarem as discrepâncias entre o “real” e o ”ideal”.
McCracken parece concordar com Goffman (1992), no sentido de que o sujeito constitui
uma espécie de imagem social ideal, “deslocando” o significado de quem somos para o
que gostaríamos de ser, através do uso de objetos. Além disso, a tese de McCracken,
leva-o inevitavelmente a colocar outra vez a teoria da emulação de Veblen no cenário
das causas possíveis para o fenômeno do consumo na era moderna.

Também em 1998, Daniel Miller (2002), enfim, propõe uma questão


antropológica nas relações de consumo, vinculando o ato de compra ao ato de sacrifício.
Para construir sua teoria, Miller apóia-se em um estudo etnográfico, entrevistando
donas-de-casa num subúrbio londrino. Para dar consistência ao modelo, Miller
restringiu os atos e compra aos itens de suprimento domiciliar, realizados por mães e
esposas dedicadas ao lar, filhos e maridos. A compra de itens de supermercado e
mercearia seriam atos de amor e sacrifício operados pela sacerdotisa do lar. Em que
pesem as restrições, o trabalho tem muitos méritos, além de colocar a questão num
campo direto de interesse antropológico. Miller desenvolve uma idéia estruturalista (nos
moldes ingleses, é bem verdade) e, ao mesmo tempo, discute a sujeição da mulher, ao
argumentar que as compras operadas pela mulher no mundo contemporâneo constitui
uma representação de sacrifício em favor dos filhos, como uma espécie de nova versão
da compulsão feminina à devoção, antes direcionada ao marido – ao homem, de modo
geral. Os argumentos de Miller, no que tange a uma nova subjetividade feminina,
obviamente encontrarão oposições, principalmente no feminismo. Naomi Wolf (1992)
talvez dissesse que o estudo de Miller pertence ainda à “mística feminina”, que
simboliza a mulher dedicada ao lar e aos seus. Segundo Wolf, a mística feminina fora
superada pelo “mito da beleza”, consubstanciado por novos padrões de controle social
sobre a mulher, através de uma espécie de ditadura da beleza.5

Mas, antes da produção inglesa dos anos 80 e dos mais recentes estudos de
McCracken e Miller, Jean Baudrillard publica, em 1968, O Sistema dos Objetos
(Baudrillard, 1993) e, em 1970, A Sociedade de Consumo. (Baudrillard, 2003). No
primeiro livro, o autor parecer ver os objetos de consumo como partes de um sistema

5
Exatamente com o título de A Ditadura da Beleza, o psiquiatra brasileiro Augusto Cury (2005) produziu
recentemente um romance de auto-ajuda, dirigido às mulheres afligidas pelo padrão ocidental e moderno
de beleza.

16
que dispõe de uma estrutura própria, cuja existência independe das necessidades
humanas. O objeto é “funcional”, mas não no sentido utilitarista, como “aquilo que se
adapta a um fim, mas aquilo que se adapta a uma ordem ou a um sistema” (p. 70), o que
retira os objetos da ordem funcional da racionalidade quanto aos fins, ou seja, nega ao
sujeito a faculdade de operar racionalmente os objetos de consumo.
A noção de sistema que costuma preponderar entre os autores que viveram o
período áureo do estruturalismo é diferente da noção de sistema aberto da Teoria dos
Sistemas de Bertallanffy. O próprio Lévi-Strauss, nas Mitológicas, procura as relações
entre os mitos, até constituam um “sistema fechado”. Tal sistema não quer dizer
exatamente um sistema impermeável, mas aquele cujas partes interiores são auto-
explicativas, dispensando a intervenção de outros sistemas. Se o sistema dos objetos é
um sistema fechado, conforme observou Zulmira Tavares, na crítica da obra de
Baudrillard, na edição brasileira de o Sistema dos Objetos, quer dizer que os objetos
deixaram a sua função de serviço aos humanos - na utilidade que cada um possuía -
passando a fazer parte de um todo simbólico (exatamente o sistema dos objetos) de
onde obtém o seu valor; eles “não mais têm valor próprio mas uma função universal de
signos” (Baudrillard, 1993, p. 70). A expressão máxima desse objeto constituído no
interior de um sistema é o robô, cuja ameaça os próprios humanos freqüentemente
ritualizam nas obras de ficção científica.
Mais adiante, Baudrillard, inspirado na mais famosa frase de Lenin sobre a
religião – como sendo um “refúgio para as criaturas desamparadas” – sugere que o
sistema (de objetos) “se acha em vias de se tornar a mitologia cotidiana que absorve a
angústia do tempo e da morte” (p. 104), ou seja, o sistema de mitos que substituirá o
poder regulador das religiões e ideologias e que constitui uma fuga para a negação do
real. Os objetos não são a garantia de sobrevivência da espécie humana, mas uma
reciclagem da experiência do nascimento e da morte, um meio de transcender o real,
assim como operam (ou operaram) as religiões e as ideologias. Invocando o jogo fort-
da, aludido por Freud, afirma que “o objeto é aquilo pelo qual estamos enlutados - e é
nesse sentido que representa nossa própria morte mas superada (simbolicamente) pelo
fato de o possuirmos” (pp. 104-5).
Baudrillard (1993, p. 170) parece não admitir que o consumo em si é uma
função que precede a produção; a exploração da força de trabalho precede a produção e
o consumo, sendo o sistema de crédito o propulsor de um ciclo consensual, “esta
colusão, que faz com que a própria sujeição seja vivida como liberdade”, onde o

17
consumo realimenta a exploração da força de trabalho. Recentemente, Leopoldi (2004)
apontou as contradições entre o discurso moderno da liberdade de escolha e a tirania
imposta ao sujeito pelo sistema de produção, consumo e comunicação, onde o indivíduo
consumidor se transforma em sujeito consumido, devorado pelo sistema de objetos. O
discurso moderno da liberdade individual (freqüentemente indicada pela própria
possibilidade e até mesmo o direito à escolha) talvez não passe de uma falácia, uma
enganação perversa, criada para estabelecer uma separação entre a modernidade e as
sociedades tradicionais.6
Quando usa o paradigma lingüístico aplicado ao sistema de objetos, Baudrillard
reconhece que o sistema de objetos possui propriedades de linguagem, mas o sistema de
necessidade humanas (ao qual, na visão utilitarista, os objetos deveriam servir) é que é
menos coerente e menos estruturado, submergindo no mundo dos objetos e sendo
dirigido por ele. Essa condição, segundo o autor, impede uma sintaxe. Quer nos parecer
que Baudrillard admite o sistema dos objetos estruturado como um sistema de
significantes. Todavia, o ato de fala através dos objetos exigiria uma propriedade que o
sistema de objetos parece não comportar: a correlação lingüística do significado,
permitindo a sintaxe. Se o autor não reconhece uma linguagem devido à desestruturação
do sistema de necessidades, quer dizer que o sistema de necessidades deveria prover a
sintaxe, ou seja, que este sistema deveria corresponder ao processo metonímico de
construção de frases. O uso e o consumo dos objetos não constituem uma linguagem
devido ao uso errático dos objetos, face à incoerência do sistema de necessidades. Para
Baudrillard, o sistema de produção de objetos é mais estruturado do que as tais
necessidades humanas, que deveriam estabelecer uma correspondência lingüística com
o sistema de produção. O filósofo e sociólogo francês reconhece que o uso de cores,
formas e estilos de produtos (no sistema de objetos) podem querer significar alguma
coisa, mas não haveria uma correlação sempre significativa dos objetos com o sistema
de necessidades. Ou seja, o uso e o consumo dos objetos não constituem uma fala
coerente, uma vez que, sendo as necessidades desestruturadas, não permitem ao sujeito
um uso sintático consistente. Além disso, os objetos e suas marcas (no sistema de
objetos/significantes) vão sendo substituídas (pelos produtores), num léxico errático,
numa repetição incansável, no que seria uma “linguagem” pobre: pesada de
significações mas sem permitir o sentido.

6
Discutiremos no Capítulo 9, a questão da escolha do sujeito.

18
Baudrillard, citando Martineau (p. 198), admite que um consumidor possa
escolher um automóvel para expressar uma “personalidade”, mas a relação que se
poderia ver entre o objeto e o seu consumidor é uma relação entre uma espécie de
catálogo de objetos e uma gama de personalidades estereotipadas.
De qualquer forma, o sistema de objetos é qualquer coisa que se impõe e sujeita
o indivíduo, com propriedades que, como aponta o autor, chega a rivalizar com a
religião e a ideologia. “Os objetos são categorias de objetos que induzem de forma
muito tirânica categorias de pessoas”, mantendo o controle social. Por outras palavras,
Baudrillard parece admitir que o sistema (capitalista) sujeita o indivíduo através de
objetos, reproduzindo uma hierarquia sócio-econômica através de signos nos quais se
constituem os objetos, aproximando-se, nesse caso, de Bourdieu (1979). Todavia, o
consumo e o uso dos objetos, que parecem constituir, na pesquisa de Bourdieu, um
conjunto coerente de significados de estilos de vida e posições sociais, pode, para
Baudrillard, quando muito, operar no sujeito uma significação estereotipada comandada
pelo próprio sistema de objetos (as linhas, modelos e séries de produtos), sem que o
sujeito experimente a liberdade de escolha. Qualquer imagem social representada no
sujeito não passa de uma reprodução da hierarquia dos objetos, longe de constituir um
meio de comunicação coerente emitida pelo próprio sujeito, que, nesse caso, não pode
ser equiparado ao “sujeito da linguagem” de Lacan. A sujeição através do consumo de
objetos a que nos remete Baudrillard é, ao mesmo tempo psíquica e sociológica, mas,
enquanto psíquica ela apenas implica a substituição de significantes, análoga ao ir e vir
da mãe no jogo fort-da; enquanto sociológica, ela apenas implica a reprodução de uma
hierarquia (portanto, ainda estrutural) do sistema de objetos. Em ambos os casos,
Baudrillard nega ao sujeito a capacidade de interagir com o sistema de objetos e de
fazer escolhas de acordo com a sua vontade; trata-se de um sujeito sujeitado, cuja
sujeição não pode ser operada adequada e equilibradamente pela linguagem.

A Hipótese do Sujeito do Consumo


Obviamente, estamos diante de um imenso sistema. A teoria econômica supõe
que tudo que é produzido é comprado pelo mercado e, em última análise, tudo que é
comprado é consumido. Tudo pode fazer parte tanto de um sistema de produção quanto
de um sistema de consumo. Baudrillard prefere ver como um sistema de produção. Mas,
se eles são intercambiáveis, tal como os elementos de um sistema de significantes, tanto
faz toma-los por um ou por outro. Podemos também a partir desse pensamento entender

19
a sugestão de Bourdieu: o comprador/consumidor re-elabora, ou reproduz, o objeto,
quando joga o jogo simbólico das posições sociais.
Assim também podemos entender a teoria da dádiva, que nos fala de um sistema
de dar, receber e retribuir. É tudo, mais uma vez, uma questão de ponto de vista, uma
vez que tudo que é dado foi produzido – material e/ou simbolicamente – e certamente
será consumido (ingerido ou usado) pelo donatário que, por sua vez, produzirá e
retribuirá. O objeto produzido e dado conduz mana, substrato psíquico daquele que dá e
que será devorado pelo consumidor. Comer e ser comido...
Pode-se, entretanto, operar um corte no sistema e explorar separadamente uma
de suas partes. No nosso caso, assim como o de Miller, optamos por isolar a parte do
processo contínuo relativa à aquisição, re-elaboração simbólica e dação do objeto.
Além de contínuo, o sistema tem dimensões. As dimensões do sistema de
produção-consumo em qualquer sociedade humana nos parecem ser as mesmas.
Consome-se o que é: i, útil, obviamente; ii, o que pode proporcionar um operador
sociológico (status social, estilo de vida etc) e, iii, o que media a condição humana do
próprio sujeito. Embora aqui numerados, não há ordenação seqüencial nestes itens; esta
não é, necessariamente, uma ordem de prioridades de consumo. As duas primeiras
dimensões nos parecem estar suficientemente cobertas pela pesquisa existente. O que se
nos parece ainda um desafio é compreender se, como e porque o consumo faz parte de
um processo de demarcação da nossa espécie.
O sujeito do consumo utilitário é o homo-oeconomicus, pretensamente racional,
capaz de equilibrar sua renda e seus gastos em coisas úteis. O Sujeito do consumo social
é o operador dos símbolos sociais e culturais que o separam do outro. O sujeito, na
terceira dimensão acima, é antropológico; concebe o Criador – o seu produtor –,
devora-o e é por ele devorado; sacrifica e é sacrificado. Macho e fêmea o Criador o fez,
mas macho e fêmea são classificações aplicáveis a qualquer ser vivo, o sujeito
masculino e o sujeito feminino são constituições humanas. Não somos diferentes das
outras espécies porque consumimos o útil nem por que somos capazes de organizar
hierarquicamente as nossas sociedades. Isso, de uma forma ou de outra, as outras
espécies também a fazem; a condição do ser humano é demarcada através da
consciência e da re-elaboração de si, aí incluída a sexualidade.
Se podemos então construir uma hipótese para dar sentido à nossa pesquisa, ela
consiste na suposição de que a terceira dimensão do consumo efetivamente existe. A
hipótese, por sua vez, se desdobra nos pressupostos de que ‘sujeito’ é um construto

20
teórico capaz de permitir a visualização dessa terceira dimensão e que tanto essa
dimensão quanto o seu sujeito podem ser identificados empiricamente. Nossa idéia
pertence à mesma natureza das motivações que alimentaram as pesquisas sobre o uso
simbólico dos objetos para diagnosticar as hierarquizações e as delimitações sociais.
Aqui, trataremos os objetos como meios para hierarquizações e delimitações de gênero.
A diferença principal entre as duas propostas é que, nesta, não poderemos excluir a
relação dos humanos com o universo sagrado.

21
Capítulo 2
Linguagem

Aos limites aplicativos da racionalidade econômica, a alternativa de apresentar


os processos de consumo como função de comunicação afigura-se, inicialmente,
tentadora. Afinal, a pergunta “para que servem os objetos?” pode confortavelmente
ensejar a resposta: “para que se manifeste significação”. Acreditamos que pensando em
uma resposta desse tipo, McCracken (2003) empreendeu sua pesquisa sobre o uso de
objetos de vestuário. Mas, ao verificar os recursos lingüísticos de que se serviu
McCracken não nos admiramos porque sua tentativa de inferir significados através de
roupas não lhe ofereceu resultados consistentes. Vimos então que era necessário ir mais
fundo nos atributos da linguagem para que se pudesse toma-la, ou não, por referência
teórica para qualquer investigação sobre consumo e uso de objetos. O objetivo deste e
dos dois capítulos seguintes é dar conta de nossa investigação lingüística, que, por sua
vez, irão desembocar na crítica ao estudo de McCracken, apresentada no capítulo 5.

Linguagem, língua, fala


Conceitos relacionados a ‘língua’, ‘fala’ e ‘linguagem’ não parecem ter seus
significados e funções totalmente postos fora de discussão. Requerem cautela, no
momento em que precisamos assumir uma posição restrita e exigente ou quando
necessitamos de um alicerce que dê sustentação a um construto complexo. Assim é que,
por exemplo, Sapir (1980: cap. 1) pode nos induzir a equívocos, quando no primeiro
capítulo de um livro intitulado A Linguagem, mas com sub-título introdução ao estudo
da fala, propõe uma definição de ‘linguagem’ como que colocada entre os significados

22
de ‘língua’ e de ‘fala’. Ainda mais, atrela a definição de ‘linguagem’ à função
comunicativa, própria da espécie humana. Se a definição de Sapir permanecesse restrita
a ‘língua’, poderíamos aceitar com mais facilidade, embora não de todo, que a função -
comunicação – pudesse servir de elemento de sua definição de ‘língua’. Há,
literalmente, uma confusão na definição de Sapir que nos impede de distinguir
‘linguagem’, ‘língua’ e ‘fala’. Em parte, o equívoco pode ser derivado do fato de o
idioma inglês não possuir dois vocábulos para ‘língua’ e ‘linguagem’, como ocorre no
nosso e em outras línguas latinas. Na língua inglesa, ‘language’ tanto atende à tradução
de ‘língua’ como de ‘linguagem’. Em parte, o equívoco pode estar em tentar-se derivar
uma definição a partir de uma provável função. 7
A diferença de significação não passou despercebida para outros autores de
língua inglesa, como, por exemplo, Chomsky, Lyons e Wilden. Consciente da
ambigüidade, Lyons (1987, pp. 15-21), recorre a línguas latinas para propor que
‘língua’ seja entendido em um sentido saussureano e sociológico, ou seja, um sistema
lingüístico compartilhado por um povo.8 O termo ‘linguagem’ estará por sua vez
vinculado a uma faculdade humana. Um indivíduo da espécie humana, portanto, possui
uma língua (inglês, francês, chinês), mas é dotado de linguagem, independentemente de
sua cultura.
Para Saussure (1975. pp. 15-18), “ela (a língua) não se confunde com a
linguagem, é somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É ao
mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem”. Ainda para Saussure,
língua é um “princípio de classificação”, linguagem é uma faculdade dada pela
Natureza, sendo todavia, multiforme e heteróclita, ao mesmo tempo física, fisiológica e
psíquica; pertencente ao domínio individual e ao social. Por sua vez, Chomsky (2000 e
1998) nos oferece argumentos satisfatórios para admitirmos que a faculdade humana da
linguagem é uma resultante da evolução biológica da espécie e que as línguas (faladas e
escritas) estão entre as possibilidades decorrentes dessa faculdade. Para Lyons, a língua,
no sentido de idioma, ou seja, algo que se manifesta através da palavra escrita ou falada,
não é a única expressão da linguagem. Os gestos e demais imagens visuais podem muito
bem servir como veículo da faculdade da linguagem, em lugar das imagens acústicas e

7
Adotamos o uso de aspas simples para notações de termos, vocábulos e lexemas.
8
A aproximação, nesse caso, da noção de ‘língua’ com a noção de ‘idioma’ não é de todo satisfatória, na
medida em que – tanto para Saussure quanto para Lyons – a noção do primeiro termo é mais sociológica e
se refere à sua posse por uma comunidade lingüística, diferencia-se, em certa medida, da noção do
segundo, que independe de posse comunitária. Nesse sentido, atualmente, o latim, por exemplo, seria um
idioma, mas não uma língua.

23
visuais. Lyons (1987, p. 27) chega mesmo a apresentar argumentos de ordem zoo e
antropológica de que os gestos teriam surgido entre os humanos como meio preferencial
de manifestação da linguagem antes da fala.
Sendo nossa intenção assinalar os significados que os termos ‘língua’ e
‘linguagem’ ocuparão no nosso estudo, podemos assim compreender, por enquanto, que
uma língua possa ser assimilada a um código ou, talvez melhor, que possa ser o melhor
código disponível para os seres humanos, enquanto a linguagem é um atributo humano
que, em princípio, não se confunde e nem tem obrigatoriamente que se projetar através
de uma língua.
Conquanto a língua, do ponto de vista semiológico, constitua um código e, por
isso mesmo, possa ser funcionalmente associada à comunicação, não temos nenhum
motivo para aceitar - depreendendo-se das teorias lingüísticas, a nosso juízo, mais
diligentes - que a linguagem esteja vinculada, a priori, à comunicação. Discutiremos a
“função” da linguagem mais adiante. Basta-nos, aqui, apontar o nosso entendimento, ao
nos referirmos a ‘linguagem’, de que estaremos longe de sinalizar ou remeter a
propriedades comunicativas. É preciso assinalar que Chomsky (1980: cap. 2), na sua
definição de ‘língua’, não a vincula funcionalmente à comunicação, preferindo associa-
la a uma estrutura de seqüências gramaticais. O notável no tratamento dado por
Chomsky a ‘língua’ é que uma seqüência gramatical não precisa fazer sentido – como
na sua famosa frase (1) Colorless green ideas sleep furiously – mas estar de acordo com
regras gramaticais aceitáveis por um falante da língua.9
Chomky, portanto, não deriva uma definição de ‘língua’ a partir de sua função,
mas como um sistema – ou conjunto, como ele refere – de frases que possam ser
construídas a partir de um conjunto finito de elementos básicos (fonemas, letras). Uma
frase proferida em uma determinada língua não tem que, necessariamente, comunicar,
como a frase sem-sentido acima. Entretanto, obviamente, não teremos nenhum
obstáculo para admitir que uma língua presta-se perfeitamente à comunicação.
Neste estudo, portanto, admitiremos a concepção estruturalista de Chomsky de
‘língua’, ou seja, um sistema de frases tornadas possíveis por uma gramática autônoma

9
Uma evidência de que a frase de Chomsky seja gramaticalmente correta, embora não faça sentido, pode
ser demonstrada pela substituição simétrica e metafórica dos termos. Por exemplo, se escrevêssemos a
sentença:
(3) Black pale women smile nervously
teríamos mantido a mesma estrutura da frase anterior e, através da substituição dirigida das palavras,
passaríamos a conferir sentido à frase, dadas as correlações metonímicas entre os novos termos (e onde
‘pale’ obviamente assumiria um sentido figurado).

24
e não como uma função de ‘comunicação’, reconhecendo-a porém como um poderoso
meio de comunicação. Mais adiante, avançaremos pelas propriedades gerativas da
língua, segundo o movimento lingüístico que tem o próprio Chomsky como principal
expoente.
A definição de Sapir (1980) deixou-nos ainda uma segunda questão: a relação
entre ‘fala’ e ‘língua’. Saussure (1975, p. 26-27) nos informa que o estudo da linguagem
comporta duas partes: a língua (la langue) – essencial, social e independente do
indivíduo – e a fala (la parole) – secundária, individual. São ambas mutuamente
dependentes porém “duas coisas absolutamente distintas” (Saussure, 1975. p. 27). Para
Lyons (1987. p. 18), a fala pressupõe a língua, ou seja, não se pode falar sem usar uma
língua. Mas a língua é um sistema lógico independente da fala, ou seja, é possível
aplicar uma língua sem falar. Lyons, criativamente, sugere a expressão ‘sistema
lingüístico’ para designar ‘língua’, no sentido saussureano de ‘langue’ e
‘comportamento lingüístico’ para designar ‘fala’, no sentido de ‘parole’, tomando o
cuidado de alertar para que não se confunda o comportamento em questão com a
abordagem behaviorista da lingüística. Conclui, concordando com Saussure, que um
sistema lingüístico é um fenômeno social e abstrato, podendo, sob certas circunstâncias,
ser atualizado pelo comportamento lingüístico dos indivíduos.
A proposta de Lyons sobre a independência da língua em relação à fala é
explicada pelo fato de que se pode fazer uso de uma língua sem o recurso da oralidade,
através, por exemplo, dos gestos e da escrita. Embora reconhecendo a forma falada da
língua como mais básica do que a escrita, Lyons argumenta que não há motivos para
que se considere que a língua falada tenha precedência lógica sobre a escrita. Em
primeiro lugar, porque a língua tem uma propriedade a que chamou de “transferência de
meio”, ou seja, para qualquer indivíduo alfabetizado que possua uma língua escrita é
possível converte-la em língua falada e vice-versa Em seguida, o lingüista inglês
argumenta que a língua falada e a língua escrita podem mesmo ser, senão absoluta, pelo
menos, parcialmente isomórficas. Lyons admite a possibilidade lógica da existência de
um sistema lingüístico composto de língua escrita e de língua de gestos, portanto sem
fala, procurando demonstrar que, se há uma precedência histórica, de fato, da fala em
relação à escrita, não significa que exista uma precedência lógica na mesma ordem.
Admitiremos aqui que a controvérsia em relação à precedência da fala sobre a
escrita tem origem no sistema ocidental de escrita fonética, no qual a língua escrita
procura, através de símbolos convencionais, representar os sons da fala. A provável

25
precedência da segunda em relação à primeira poderia ficar diluída se lembrássemos
que, no chinês, por exemplo, a escrita não procura reproduzir sons da fala, mas as
noções simbólicas – uma escrita de imagens mentais – dos objetos representados. A
escrita e a fala chinesas, mesmo após a simplificação operada na escrita pelo Estado
comunista, não parecem possuir isomorfismo, com o que concorda Lyons (1987: 26), e
sinaliza para a possibilidade de que tal escrita possa ser uma manifestação direta da
faculdade da linguagem, sem ter, necessariamente passado pela sua forma oral. Um
outro argumento em favor da independência da língua escrita e da falada pode ser
constituído a partir do caso japonês. Quando os japoneses, durante a consolidação do
Estado Yamato, no século VI, decidiram criar uma língua escrita, copiaram-na
diretamente do chinês (kanji). A língua japonesa, inicialmente, não possuía um meio
escrito; quando deliberadamente criaram uma língua escrita, esta, na verdade, era o
chinês, passando os indivíduos japoneses “letrados” a correlacionar a língua japonesa
falada com os ideogramas chineses. Mais tarde, os japoneses conseguiram adaptar os
traços constitutivos dos ideogramas chineses a um sistema fonético (japonês) de 48
sílabas (os kana) e criaram não uma mas duas escritas fonéticas (Yamashiro, 1986. p.
69).

Lingüística Estrutural
A teoria dos signos proposta por Saussure (1975), no bojo de um curso de
lingüística, pode sugerir, aparentemente, que a linguagem possa ser reduzida ou, pelo
menos, possa ser tratada como um código. Se um signo designa uma entidade de duas
faces, ou seja, designa uma relação entre uma imagem acústica e um conceito, para
Saussure, uma unidade lingüística opera a mesma relação, conhecida como a relação
entre um significante (imagem acústica) e um significado (conceito). Todavia, como
lembra Lemaire (1986, pp. 49-51), vista dessa maneira, a linguagem não passaria de
uma nomenclatura. O signo, enquanto relação entre significante e significado fornece a
significação, mas, ao mesmo tempo, na lingüística de Saussure, ele possui um valor. O
que diferencia a língua do código ou de um mero sistema de classificações de palavras é
o valor do signo lingüístico, o que conduzirá Lacan (1998, p. 415) a colocar a
linguagem em um patamar acima do simplesmente natural e além de um simples
código. Para se saber o valor de signo lingüístico é necessário saber duas coisas: a) o
que pode ser trocado por ele e, b) as suas relações com outros signos. Assim, para se

26
saber o valor de uma palavra é necessário saber por qual idéia ela pode ser trocada e
como ela se relaciona com as demais palavras de uma frase.
Na lingüística de Saussure, há um caráter de arbitrariedade na ligação entre o
significante e o significado - proposição que não é unânime dentre todos os lingüistas.
Tal proposição nos coloca diante de uma das questões mais complexas nos estudos
sobre a linguagem. De um lado, argumenta-se que o fundamento da linguagem está no
espírito humano e, de outro, que ela é socialmente estabelecida. O caráter inerente da
linguagem ao espírito humano está fundado de alguma forma numa certa autonomia
fonética, na qual, através da fala, ela constituiria a própria língua. Lyons (1987, pp. 30-
31) discute a possibilidade de uma espécie de ligação interna entre significante e
significado nas palavras onomatopéicas da língua inglesa - wolf, por exemplo parece
querer imitar uivo do lobo, evidenciando uma possível indissolução entre fonemas, o
significante, e seu significado. Evidentemente, o argumento não permite ser estendido
para um sem-número de outras palavras em um mesmo idioma e nem para o mesmo
tipo de relação interna em palavras equivalentes em outros idiomas.
A proposição de Saussure, por sua forte conotação sociológica, tem sido do
agrado dos cientistas sociais, na medida em que permite explicar o sentido das palavras
a partir de um contexto social.
A nosso ver as coisas não podem se restringir a uma ou outra visão, de modo
excludente. A língua, diferentemente da linguagem, não é exclusivamente um fenômeno
humano a priori, e nem exclusivamente decorrente de um aprendizado social. Se, no
interior de uma determinada língua, um significado parece sociologicamente “colado” a
um significante, é preciso perguntar de que maneira ambos foram parar na mente do
sujeito falante.
Para Lacan (1998, p. 414-6), significantes e significados organizam-se em duas
redes separadas que não se superpõem. A primeira rede é a do significante, “uma
estrutura sincrônica do material da linguagem”; a segunda, a do significado, “reage
historicamente à primeira” e determina o seu caminho. Podemos inferir das proposições
de Lacan que os elementos da linguagem inscrevem-se primeiramente na mente do
sujeito como uma estrutura (sem significado) e adquirem um emprego exato e
independente uns dos outros exatamente porque são diferentes entre si. Essa estrutura
não é, por si, suficiente para que o sujeito aplique a faculdade da linguagem. A segunda
rede então organiza os elementos em ordem diacrônica, consumando a significação e o
sentido das palavras e das frases. Por isso, os lingüistas estruturalistas costumam

27
classificar ‘língua’ como pertencente à ordem da metáfora, da similaridade e da
sincronia, e ‘fala’ como pertencente à ordem da metonímia, da contigüidade e da
diacronia.
Pode-se deduzir que, se a ordem dos significantes remete a uma noção de
materialidade, a ordem dos significados não é exatamente uma outra matéria que
organiza a primeira; ela é, em si, essa capacidade organizativa.
Um sujeito qualquer que tenha operado a primeira, mas não a segunda fase, não
será capaz, ou o fará com muita dificuldade, de construir um discurso. Jakobson (2003,
pp. 34-62)) trata desse distúrbio como afasia da contigüidade; o sujeito é capaz de
selecionar as palavras mas não consegue concatenar uma relação diacrônica entre elas,
uma combinação, resultando uma fala telegráfica, onde os elementos se substituem e
não podem ser postos em uma ordem hieráquica, não havendo propriamente discurso ou
sintaxe. Mas Jakobson admite também o distúrbio da seleção e da substituição,
relacionado com a afasia da similaridade. Neste caso, a fala do sujeito encontrará
dificuldades estruturais, tornando-se repetitiva e sem fim; perdendo o sentido, não por
falta de relação entre as palavras, mas por falta de concisão, por falta de estrutura.
O fenômeno lingüístico portanto requer a inserção primeira de um sistema de
significantes que, por isso mesmo, acabará por adquirir prioridade no processo, posto
que a ordem metonímica somente poderá organizar os elementos de uma estrutura de
significantes já existente. Pode-se perguntar “por que essa ordem tem que ser assim?”.
Afinal, encontramos sujeitos capazes de um discurso mal-estruturado – os afásicos de
similaridade. A resposta poderá ser encontrada no desenvolvimento da criança, no qual
se nos torna difícil admitir que um bebê possa assimilar primeiramente frases antes de
assimilar os elementos da frase. Mesmo admitindo-se a hipótese de que a ordem da
contigüidade e do discurso se relacione com uma faculdade a priori, constitui um
empecilho lógico reconhecer a sua aplicação sobre o nada.
Uma vez que ambas as faculdades são de alguma forma despertadas, de fora
para dentro, ou seja, do mundo social para o indivíduo humano, o que se deve indagar
primeiramente é “como é possível a inserção primária da rede de significantes?”.

Linguagem e Matemática
Encontramos apoio explicativo a essa indagação nas obras de Lévi-Strauss,
Lacan e Chomsky. Inicialmente, tomaremos as proposições do lingüista norte-
americano. Deduz-se do conceito de gramática gerativa, do qual Chomsky é um dos –

28
talvez o principal – precursores, que a linguagem é uma propriedade inata – ou, no dizer
dos estruturalistas franceses, constituída no espírito – no ser humano. Alicerçado em
suas experiências, Chomsky (1977, por exemplo) discute a hipótese de que o
aprendizado das regras de uma língua (falada) não requer instrução especial. Leis
gramaticais, com o que parecem concordar Lacan e Lévi-Strauss, estariam prontas para
receber os elementos significantes e a faculdade sintagmática da linguagem;
proposições que ainda vêm sendo mantidas – além de ampliadas, através de inferências
sobre a constituição e o funcionamento da mente – pelo lingüista atualmente (Chomsky,
2000).
A forma mais aproximada de que dispomos para representar essa capacidade
lingüística é fornecida pela matemática. É possível que a linguagem, enquanto construto
natural e independente de qualquer contexto social, se aproxime de – ou constitua
mesmo – uma ordem matemática. Como sabemos, as relações matemáticas existem
independentemente de qualquer vontade social ou mesmo humana. Nenhum ser humano
pode abrir mão da ordem matemática existente no espírito.
A noção de gramática gerativa pode ser então representada como se fosse uma
expressão algébrica, pronta para receber qualquer valor, mas independente quanto às
suas relações interiores. Na função

y = x² + x

um valor será dado a y uma vez que x assuma qualquer número natural. Dado que x é
igual a 1, por exemplo, y será igual a 2. Para todo x igual a 2, y será igual a 6. Dado um
conjunto de números naturais para x {1, 2, 3,...}, teremos gerado um outro conjunto de
números naturais {2, 6, 12,...}, derivado de regras independentes da interferência de
qualquer sociedade ou de seus sujeitos.
Comentando o uso da matemática nas ciências do homem, em artigo de 1951,
Lévi-Strauss (1989a, p. 71-83) já admitia que a lingüística chegara a um tal ponto de seu
desenvolvimento que permitiria ser comparada à matemática, enquanto estrutura
essencial, pertencente ao domínio do pensamento inconsciente. No posfácio ao famoso
Seminário sobre “A Carta Roubada”, Jacques Lacan (1998, pp. 11-66) demonstra – a
partir dos sinais (+) e (-), indicativos de presença e ausência, positivo e negativo, tão
aplicados e pouco explicados por Lévi-Strauss – como uma série de eventos aleatórios e
sem nenhum significado pode gerar arranjos lógicos completamente independentes de

29
qualquer interpretação cultural ou mesmo psicológica. Esta seria a linguagem do
inconsciente, o “reino” independente do significante.
A gramática gerativa pertence ao âmbito da linguagem e diz respeito a essa
estrutura de regras independentes, capaz de gerar quaisquer línguas, mesmo aquelas que
não constituem exatamente línguas naturais, ou idiomas falados. Assim entendida,
‘linguagem’ não é algo subjacente apenas a ‘língua’ mas a toda e qualquer língua
gerada a partir dessa estrutura essencial, aí incluídas a linguagem formal da lógica, a
linguagem de máquina dos analistas de sistemas e programadores de computador, os
códigos e, talvez, a linguagem dos objetos consumidos.
Não avançaremos neste ponto, por ora. Importante, aqui, é sublinhar que as
propriedades da linguagem, no contexto da gramática gerativa, ultrapassam os próprios
objetos tradicionais da lingüística, enquanto domínio de estudo das línguas naturais.
Essa noção de ‘linguagem’ está na base das línguas naturais mas está também na base
de qualquer outra forma de manifestação do espírito, incluindo a mitológica, segundo
Lévi-Strauss, e a subjetividade, segundo Lacan.
Lyons (1987, p. 125) argumenta que a gramática gerativa constitui os conjuntos
de sintagmas das linguagens formais. Na verdade, as linguagens formais é que devem
fornecer os modelos para aplicação às línguas naturais. Em si, a gramática gerativa é
uma proposição que antecede - lógica, não historicamente - o próprio domínio
tradicional da lingüística.

Discussão
Essa breve e incompleta revisão do domínio e da amplitude da lingüística é
entretanto capaz de nos fornecer algum recurso reflexivo com vistas a um projeto que
pretende compreender o sistema de consumo a partir da linguagem – não exatamente,
como veremos, do consumo enquanto linguagem. Devemos resumir aqui algumas
conclusões permitidas pela lingüística contemporânea.
Não encontramos no atual estágio teórico da lingüística motivos para se acreditar
que a linguagem seja um atributo desenvolvido exclusivamente para exercer a função da
comunicação social. Segundo Chomsky (1977; 1980 [1957]), a linguagem parece se
regida por regras próprias e é independe de estímulos externos, como pretendiam os
lingüistas behavioristas. Troubetzkoy e Jakobson, na década de 30 do século XX, já
apontavam para a autonomia estrutural do sistema fonológico em relação à psicologia
do sujeito (Lévi-Strauss, 1989, pp. 47-50 e 1983, pp. 191-201; Jakobson, 1970, pp. 11-

30
64). Investigações recentes no campo da arqueologia da mente, como a empreendida por
Mithen (1998), parecem corroborar a hipótese de que a linguagem constitui mesmo uma
“inteligência” à parte, que só tardiamente, na evolução da espécie, integrou-se às demais
(na classificação de Mithen, as inteligências são: a naturalista, a técnica e a social). A
faculdade da linguagem portanto parece constituir, no espírito humano, um sub-sistema
que interage com o sub-sistema social, nem o determinando nem sendo por este
determinado.
‘Linguagem’ não é um atributo humano destinado especificamente à geração de
línguas, no sentido de idiomas, ou melhor, como classifica Chomsky (1980), línguas
naturais. ‘Linguagem’, é qualquer coisa que tanto pode gerar um sistema
sociologicamente atualizável – uma língua natural – quanto um sistema independente do
meio – uma língua não-natural Uma gramática gerativa gera línguas. Em princípio, uma
língua é um código porque constituída de elementos regidos por regras interiores – uma
gramática – ao próprio código-sistema. Há, portanto, que se atentar para a distinção
entre ‘língua natural’ e ‘língua ‘não-natural’. Uma diferença é que as línguas não-
naturais, por seu formalismo lógico, estão mais próximas da “gramática gerativa” – ou
seja, do sistema matemático essencial, inato e independente de significados – do que as
línguas naturais. Por sua vez, as línguas naturais possuem propriedades morfológicas,
flexivas e sintáticas fora do alcance das línguas não-naturais.
Um sistema lingüístico não-natural não se organiza e não se atualiza através de
seu uso, da mesma forma que uma “linguagem” (o termo correto seria ‘lingua’) de
programação de computadores não se atualiza a partir dos usos aplicativos que dela se
faz. Os pesquisadores da inteligência artificial bem conhecem essa limitação.
‘Língua natural’ porém ainda é um conceito que aceita a afirmação de Saussure,
como sendo uma realidade abstrata e social, que pode ser atualizada a partir do seu uso,
ou seja, da fala. Esta é uma outra diferença entre as línguas naturais e as não-naturais: a
primeira pode ser atualizada pelo seu uso, a segunda não.

Se ‘língua’, natural ou não-natural, é uma das conseqüências possíveis de uma


estrutura essencial, de uma gramática gerativa, não podemos entender a sua existência
apenas através da, ou destinada a, comunicação social. A língua é uma manifestação do
espírito humano que, talvez muito recentemente tenha servido para a comunicação,
indubitavelmente, sua aplicação mais visível.

31
As proposições lingüísticas de Lacan (Lacan, 1998; Lemaire, 1986; Fink, 1998)
permanecem fiéis a Saussure quanto à precedência do sistema de significantes e à noção
de valor. As demonstrações do psicanalista foram mais tarde analisadas e reconstruídas
por Fink (1998) e parecem ser convincentes em relação a dois aspectos: primeiro; a
possibilidade real de existência do sistema de significantes (uma evidência relevante,
num mundo aparentemente dominado por uma realidade constituída pelo universo dos
significados) e, segundo; a capacidade do sistema de significantes gerar uma lógica
própria, independente de um sistema de significados, não se tratando de elementos
soltos, desconexos e não-organizados que, embora não impliquem uma organização
sintagmática, constituem, enfim, um sistema.
Lemaire (1986, p. 76) classifica ‘língua’ no universo da metáfora e ‘fala’ no
universo da metonímia. Depreende-se da fonética de Jakobson (2003; 1970), da
habilidade sintagmática de Chomsky (1980) e da rede de significados de Lacan (1998,
p. 415) que ‘fala’ constitui um outro sistema diferente de ‘língua’, de maneira que,
explicar a fala, enquanto discurso, e como uso que se faz da língua, não é falso mas será
uma redução conceptual. A fala consiste em uma outra faculdade, que reage à estrutura
da língua, determina seus caminhos e constrói sentidos. Mas, assim como a língua é
uma das possibilidades da linguagem, a fala é uma das possibilidades da língua, e que,
aí sim, poderá fazer da língua um instrumento de comunicação. Lyons (1987), como
vimos, além de argumentar que a língua tem existência independente da fala, nota
também que fala – oralidade – é uma manifestação diferente da escrita, bem podendo
existir, em um sistema social hipotético, uma escrita sem a existência de fala, assim
como constatamos, em certas sociedades reais, a existência da fala sem que haja escrita.
A escrita, em nossa civilização, por exemplo, não é a expressão da fala através de
caracteres gráficos; é uma outra forma de reação à língua. ‘Fala’ e ‘escrita’ são até
conversíveis entre si, mas não de maneira integral e completa. Ambas são,
independentemente, possibilidades da língua.
Mithen (1998) sustenta que rudimentos de inteligência lingüística possam ser
depreendidos do homo habilis, há 1,5 milhão de anos, e que neaderthalensis datados de
cem mil anos atrás já teriam essa faculdade bem desenvolvida – que foi evidenciada
por um aparato biofísico para seu uso: um osso hióideo bem desenvolvido. Entretanto,
somente nos últimos trinta mil anos é que as inteligências lingüistica e social
apresentam sinais de efetiva integração, a qual, aliás, está relacionada com o surgimento
dos pensamentos simbólico, antropomórfico e totêmico (Mithen, 1998, pp. 264-290).

32
Podemos especular que, um dia, uma proto-oralidade existiu, mas não foi passível de
ser atualizada pelo seu uso social - ou permaneceu rudimentarmente atualizada - em
face da não-integração entre as inteligências lingüísticas e social, até que surgisse o
pensamento simbólico.
É muito provável que a língua sirva, antes (filo e ontogenicamente), como meio
de inserção, no humano, do mundo externo, possibilitando tomar consciência de si (o
que sempre ocorre de fora para dentro), tornando-o, enfim, um sujeito. O uso da fala
antes do pensamento simbólico não constitui exatamente ‘fala’, seria algo assim como o
balbucio do bebê, entendendo-se desta forma a precedência lógica da língua em relação
à oralidade sonora propriamente.
Contudo, insistiremos que nem a fala nem a escrita constituirão faculdades a
serviço exclusivo da comunicação. Não há, senão acessoriamente, função de
comunicação a outrem no uso da fala nas terapias psicanalíticas, nas orações religiosas,
num simples cantarolar ou quando falamos um palavrão diante de um infortúnio. Não
há função de comunicação quando organizamos nossos pensamentos em forma de um
discurso. A fala poderá ser tomada, antes, como um meio de expressão do sujeito, como
recurso de acesso ao inconsciente.
*
A admissão do sistema de consumo no interior do universo lingüístico exigirá
um exercício árido e talvez pouco compensatório. O sistema pouco corresponderia às
exigências das línguas naturais, face à sua difícil flexibilidade sintática e às
possibilidades restritas de inferência de sua capacidade de atualização. Barthes (1967,
pp. 217-218), admite sintaxe, ainda que complexa, nos elementos do sistema da moda,
mas o faz mediante um rigoroso exercício e face um conjunto tal de restrições que a sua
generalização para todo o sistema de consumo talvez não oferecesse resposta.
O sistema de consumo talvez estivesse mais confortável no interior do universo
das línguas não-naturais, face à proximidade destas com a gramática gerativa, uma vez
que a operação com objetos admite propriedades de reação à estrutura de significantes,
tal como a fala, a escrita e os gestos. Todavia, Barthes, referindo-se ao vestuário,
conclui que o signo pode compreender vários fragmentos de significantes e vários
fragmentos de significados, impedindo que se encontre a correspondência entre eles. O
sistema de consumo poderia ser admitido como um sistema lógico o suficiente para ser
considerado ‘língua’, mas de grande limitação para permitir a inferência em situações
práticas.

33
Resta saber se o sistema de consumo, tal como a fala, possui propriedades de
acesso ao inconsciente e não apenas servir de recurso à comunicação. Mas, para isso, é
necessária a investigação do sujeito, empreendida em diversos capítulos desta tese.
Antes, uma vez que a Etnografia e a Lingüística já possuem uma experiência comum,
devemos aprendê-la e com ela refletir.

34
Capítulo 3
Lingüística, Antropologia e Sociologia

Lingüística e Antropologia
Ao discursar para uma platéia constituída de lingüistas e antropólogos, Lévi-
Strauss (1989ª, pp. 85-99) ressaltou que, ali, os primeiros estavam em busca de contato
com o material empírico geralmente acumulado pelos segundos, tal o nível de abstração
lógica a que sua ciência os levou. Ao mesmo tempo e no mesmo lugar, os antropólogos
estavam a espera de que os lingüistas os provessem de um modelo que fosse capaz de
organizar seu vasto e confuso conhecimento, derivado da experiência empírica. E
concluiu o antropólogo francês que nem bem uns nem outros profissionais e
pesquisadores estavam em condições de satisfatoriamente atenderem-se mutuamente
nas suas expectativas.
Ao adotar, ele próprio, o modelo lingüístico nas suas análises de materiais
etnográficos, Lévi-Strauss sugere ponderações, cautelas e ajustes. Não existe como, sem
o risco de conclusões grosseiras e falíveis, aplicar de maneira direta os elementos típicos
da análise lingüística aos fatos sociais. Não encontraremos relações diretas e
inquestionáveis entre os fatos sociais - casamentos, rituais, organização social, arte e
uso de objetos - e categorias lingüísticas como fonemas, morfemas, sintaxe ou flexão.
Como pôde então o antropólogo (e com que entusiasmo!) adotar o referencial
lingüístico? Antes de tudo, a lingüística ofereceu a Lévi-Strauss um princípio de
pensamento, o qual serviu para dar consistência lógica e científica à antropologia
estrutural. Desvendar a organização do inconsciente (estruturado como uma linguagem)
é o que sempre perseguiu o antropólogo.

35
Exceto pelo princípio de pensamento tomado por empréstimo, Lévi-Strauss
(1989a: caps I a IV e 1982), em estudos sobre a estrutura do parentesco, não transpôs as
categorias de linguagem para a análise etnográfica sem operar ajustes e adaptações, em
relação às quais, aliás, não demonstrava grandes preocupações metodológicas, confiante
que sempre esteve no fundamento essencialista da Lingüística moderna. Ao final do seu
discurso para lingüistas e antropólogos, Lévi-Strauss (1989a, p. 99) eleva as descobertas
da Lingüística à categoria de conhecimentos pertencentes a toda a ciência humana. No
seu Le Totémisme Aujourd’hui, Lévi-Strauss (1965) demonstra maior rigor
metodológico, ao adotar as categorias de metáfora e metonímia na análise do totemismo
e dos rituais.
O antropólogo francês também cedeu espaço ao uso funcionalista da língua ao
recorrer à teoria da comunicação, ainda que a uma teoria muito particular de
comunicação (Lévi-Strauss, 1989a, p. 103), ao elaborar a sua proposta para as estruturas
elementares do parentesco (Lévi-Strauss, 1989a e 1982). Operou, nessa ocasião,
adaptações que suscitaram reações indignadas e até raivosas, ao colocar as mulheres na
condição de “mensagens” no interior de um sistema de comunicações.
Contudo, acreditamos, as mais importantes lições da experiência lingüística de
Lévi-Strauss que podemos aprender estão relacionadas aos seguintes tópicos:
a) a análise lingüística “não incide diretamente sobre as palavras, mas somente
sobre as palavras previamente dissociadas em fonemas. Não existem relações
necessárias no nível do vocabulário” (Lévi-Strauss, 1989a, p. 52, grifo do
autor). A mesma regra vale para a sociologia (no caso, etnologia). Ou seja,
qualquer tentativa do antropólogo em aplicar o método lingüístico deve
recair sobre os elementos básicos da estrutura e não sobre o construto social
resultante, vale dizer, sobre o sistema de significantes e não, prioritária ou
unicamente, sobre o sistema de significados;
b) o uso da fala não implica “consciência das leis sintáticas e morfológicas da
língua” (Lévi-Strauss, 1989a, p. 72). Se isso for verdadeiro para os sistemas
sociais, a conduta social não implica consciência das regras do pensamento
(inconsciente) que as projeta;
c) as condutas sociais “não se situam no mesmo plano que as categorias
inconscientes do pensamento (...) As atitudes sociais provêm da observação
empírica. Elas não pertencem ao mesmo nível que as estruturas lingüísticas,
mas a um nível diferente, mais superficial" (Lévi-Strauss, 1989a, p. 90).

36
Quer dizer, a conduta social pode ser admitida como uma projeção das regras
do pensamento inconsciente, mas em outro nível, de modo que não se pode
pleitear uma correspondência única nem direta entre uma e outra, tal que,
para uma certa regra do pensamento inconsciente (admitindo-se que as regras
da gramática e as regras do pensamento inconsciente são do mesmo tipo)
corresponda uma e apenas uma conduta social. Tal como na equação que
adotamos acima para expor o fundamento da gramática gerativa, a regra
matemática é única, mas os resultados discretos das variáveis são infinitos;
d) “O objeto de análise estrutural comparada não é a língua inglesa ou francesa,
mas um certo número de estruturas que o lingüista pode atingir a partir
desses objetos empíricos, como, por exemplo, a estrutura fonológica do
francês ou sua estrutura gramatical, ou léxica, ou ainda a estrutura do
discurso (...) A estas estruturas não comparo a sociedade francesa, nem
mesmo a estrutura da sociedade francesa, como o pensava ainda Gurvitch
(imaginando que uma sociedade, enquanto tal, possui uma estrutura).
Comparo, isto sim, um certo número de estruturas (...): no sistema de
parentesco, na ideologia política, na mitologia, no ritual, na arte, no “código”
de cortesia e – por que não? – na cozinha. Procuro a existência de
propriedades comuns nestas estruturas (...). (Aqui se trata) de saber se as
propriedades formais apresentam homologias entre si, contradições ou
relações dialéticas expressas sob forma de transformações, e reconhecer
quais são as homologias e quais as contradições” (Lévi-Strauss, 1989a, p.
106). Aqui, o autor explicitamente recusa o modelo de análise estruturalista
típico da antropologia social inglesa, que precede o seu método e tende a
recair sobre uma “estrutura social”, enquanto algo quase concreto e tangível
quanto uma estrutura de engenharia civil. De fato, Lévi-Strauss está-se
referindo a uma estrutura essencial e invisível, que, talvez por isso mesmo,
só fique evidente através da própria comparação dialética;

As observações do mestre do estruturalismo sugerem extrema cautela na


assimilação do paradigma lingüístico às observações empíricas etnográficas. Além
disso, é preciso ter em conta aquilo a que o método estrutural pode conduzir o
pesquisador. Fiel até o fim ao estruturalismo parisiense, Lévi-Strauss não exatamente
ignorou “a consciência do sujeito falante”, mas tendeu a saltar por cima dela, buscando

37
as conexões que poderiam conduzi-lo das representações sociais ideais ao pensamento
inconsciente puro. Na segunda metade do século XX, a evidência de que a própria
matemática já fornecia formulações adequadas para a inferência da estrutura essencial,
aliás apontada pelo próprio Lévi-Strauss (1989a: cap III) e assumida por Lacan (1998,
p. 46-66), o ressurgimento do interesse por um foco mais sociológico, presente nas
contribuições de Pierre Bourdieu e Clifford Geertz e um renovado interesse pelo sujeito
consciente, ainda que através de tratamentos dispersos, foram motivos para o
enfraquecimento dos modelos lingüísticos na sociologia e na antropologia, em que pese
o avanço, no mesmo período, da lingüística na direção do conhecimento da mente,
através da teoria gerativa (veja-se, por exemplo, Chomsky, 2000 e 1998; Ruwet, 2001;
Lyons, 1987; Ronat, 1977; Dosse, 1993; Macksey e Donato, 1986).
Antes de sugerirmos mais considerações e conclusões sobre o tema e antes
também de adentrarmos a nossa própria proposta de investigação etnológica, tentemos
detalhar um pouco mais o método estruturalista.

O Estruturalismo e seu Método


“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”. A frase de Lacan, dita no
auge do período estruturalista do psicanalista, parece ser a chave para uma tentativa de
apreensão integral da obra de Lévi-Strauss. Segundo Dosse (1993, p. 142), esta noção
de inconsciente, Lacan a aprendeu com o próprio Lévi-Strauss. Ao longo dos anos 50,
os esforços do antropólogo quanto à aplicação da lingüística sincrônica ao estudo do
parentesco e da organização das sociedades humanas, e que, progressivamente, vai-se
concentrando no mito, torna possível a conclusão de que a antropologia estrutural
constitui-se de um sistema metodológico que deverá levar ao conhecimento não de
como o ser humano pensa mas como e porque é possível a ele pensar.
O conceito de inconsciente (se é que já podemos considerá-lo um conceito)
talvez seja a maior contribuição às ciências humanas do último século. Devemo-lo a
Freud. Mas a absorção de uma idéia completa do conceito, a partir dos textos em que
Freud mais o elabora (Freud, 1987, XIV, p. 185-233 e IV, cap VII), não é fundamental
para os propósitos deste texto. Com freqüência, vimos os próprios psicanalistas
freudianos recorrerem a Lacan e a Lévi-Strauss para extrair uma noção de inconsciente.
Faremos isso também aqui: o inconsciente é um sistema vazio e intemporal, cuja
estrutura contem as leis que dão sentido à vida social e cultural; o inconsciente não é um
receptáculo de experiências, não é um consciente esquecido ou oculto; é o fornecedor

38
do código para dar sentido aos fatos e não para interpretar os fatos (Garcia-Roza, 2002:
cap. VIII; Lévi-Strauss, 1989a: caps. X e XI).
O caminho, que se transformou em um método, e que levou Lévi-Strauss a
aplicar a teoria lingüística aos fatos etnológicos, foi aberto pelo lingüista e fonólogo
russo Roman Jakobson, durante o período de exílio do antropólogo nos EUA
(Dosse,1993, p. 42-5). Garcia-Roza assinala que foi Jakobson quem aproximou os
processos básicos, identificados por Freud, de funcionamento do inconsciente -
condensação e deslocamento - com a lingüística, ao identificar os distúrbios da afasia.
Para Jakobson (2003), os distúrbios metafórico e metonímico correspondem,
respectivamente, à condensação e ao deslocamento freudianos.
Lacan, ainda segundo Garcia-Roza (p. 183), segue Jakobson e, ao associar os
mesmos pares freudiano e saussureano, deduz a famosa frase com que iniciamos este
tópico. Vemos, assim, que o elo de ligação entre a noção de inconsciente de Freud e a
lingüística de Saussure, que simultaneamente construiu as bases da antropologia
estrutural de Lévi-Strauss e a psicanálise estrutural de Lacan, chama-se Roman
Jakobson.
É de se notar porém que, antes desses fatos, Frazer (1982), ao teorizar sobre os
princípios de magia, usou as expressões magia homeopática (magia por semelhança ou
similaridade), associada à metáfora, e magia contagiosa (magia por contato), associada à
metonímia. Uma vez que Freud era conhecedor da obra de Frazer,10 podemos especular
que essas noções de como o inconsciente se organiza e, em conseqüência, de como o
pensamento humano é organizado podem ter origem na antropologia de Frazer, daí
migrado para a psicanálise (via Freud), daí para a lingüística (via Saussure e Jakobson),
retornando à antropologia (via Lévi-Strauss) e à psicanálise (via Lacan).
O encontro de Lévi-Strauss com Jakobson (a cuja memória Lévi-Strauss [1983]
dedica todo o volume de Le Regard Éloigné) foi decisivo para a inserção da lingüística
no projeto antropológico estrutural. A partir dessa aproximação, Lévi-Strauss pôde
colocar o elemento básico do sistema mítico – o mitema – em uma categoria homóloga
ao fonema. Além disso, essa aproximação com Jakobson – o “homem-orquestra” –
provavelmente foi o que colocou o antropólogo em contato com a obra de outro
fonólogo russo: Nicolai Troubetzkoy, o qual aponta que a fonologia não se limita a
declarar que os fonemas são partes de um sistema. A fonologia é capaz de evidenciar a

10
Veja-se, por exemplo, Totem e Tabu (Freud, 1987, XIII, pp. 20-191).

39
sua própria estrutura por, como notamos acima, ser autônoma em relação ao sujeito e à
sua psicologia. Essa afirmação certamente levou Lévi-Strauss a construir a possibilidade
de evidenciar a estrutura do parentesco e, em seguida, do mito. Além disso – dado que a
partir de Saussure sabemos que a articulação fonêmica da linguagem oral é um atributo
de recursos biológicos de oralidade (expiração, articulação bucal, vibração da laringe e
ressonância nasal) (Saussure, 1975: 42-61), ligados a sistemas de significação
localizados no cérebro – a articulação entre mitemas bem poderia obedecer a um
sistema lógico, ligado ao cérebro, onde os mitos seriam qualquer coisa muito além e
mais inteligente do que sonhava a filosofia dos evolucionistas sociais e culturais.
Faltava um fundamento para operar esses relações. Temos razões para crer que
Lévi-Strauss foi buscá-lo não no Cours de Linguistique Générale (CLG), obra formal de
Saussure, com status de ciência, mas também naquele que Calvet (1977) chamou de “o
segundo Saussure”, o qual suspeitava que, sob a linguagem, haveria uma outra
linguagem, um código; uma espécie de estrutura latente, cujas noções estavam contidas
em manuscritos de Saussure somente tornados públicos em 1964 (ver Calvet, 1977, e
Dosse, 1993, p.72).
As regras da sincronia são encontráveis no CLG, mas o princípio que pode
revelar a existência de uma estrutura formal e latente que dá sentido à linguagem, ao
parentesco e ao mito proveio das relações entre linguagem e inconsciência,
primeiramente operadas por Jakobson, mas já encontradas na face “mística” de
Saussure, cujas anotações relacionavam textos védicos e latinos, em busca de mesmas
significações.11

Metáfora e Metonímia
Metáfora e Metonímia transformaram-se em elementos essenciais na análise
estrutural, cujas associações com conceitos psicanalíticos e antropológicos aparecem na
literatura através de inúmeras substituições, nem sempre claras. Durante esta pesquisa,
esperamos encontrar um quadro conciso, contendo equivalências terminológicas
associadas àquelas figuras da Lingüística. Encontramo-lo em Lemaire (1986, p. 76),
mas bastante incompleto. O quadro que elaboramos a seguir não esgotará todas as
equivalências mas muito nos ajudou na correlação entre os termos.

11
Lévi-Strauss (1983) dedica o pequeno capítulo X de Le Regard Éloigné à análise de um fragmento
desses manuscritos de Saussure.

40
Metáfora Metonímia __________
Condensação Deslocamento (Freud, Jakobson, Lacan)
Metáfora Sinédoque (Sperber, Clément)
Similaridade Contigüidade (Frazer, Lévi-Strauss)
Homeopático Contagioso (Frazer)
Semelhança Contato (Frazer, Lévi-Strauss)
Sincronia Diacronia (Saussure, Lévi-Strauss)
Paradigma Sintagma (Saussure, Chomsky)
Sistema Sintagma (Barthes)
Seleção Combinação (Saussure)
Relações in absentia Relações in praesentia (Saussure)
Harmonia Melodia (Lévi-Strauss)
Estrutura Acontecimentos (história) (Jakobson, Lévi-Strauss)
Leitura vertical Leitura horizontal (Lévi-Strauss, Lacan ,
Garcia-Roza)
Oposições Contrastes (Lemaire)
Código Frase (Leach)
Língua Fala (Lemaire, Lyons)
Substituição Combinação (Fink)
Substituição Relação (Lévi-Strauss)

Metáfora e metonímia são processos de compreensão e elaboração de sistemas


de significações inteiramente diferentes entre si.
Os processos de significação pela via dos itens pertencentes à coluna metonímia
possibilitam entendimento pela relação de contigüidade e/ou combinação entre as
partes, em uma frase. É, em geral, o processo através do qual elaboramos e entendemos
nossos textos. O leitor destas linhas, por exemplo, é capaz de lhes atribuir significado
utilizando um processo de deslocamento horizontal na leitura de seus elementos
significantes (no caso, palavras escritas) e estabelecendo relações de contigüidade entre
cada um dos elementos. O processo metonímico permite operar substituições de

41
elementos, guardando significações, desde que o sentido seja preservado no interior da
seqüência dos elementos. Por exemplo: “Ele bebeu três copos de cerveja”. Obviamente,
como ninguém bebe um copo, a seqüência de elementos combinados permite o
entendimento de ‘copo’ como um conteúdo e não como continente. Fora desse
contexto/frase, ou outro similar, o significante/palavra ‘copo’ adquiriria outro
significado.
A assimilação melódica da música é operada pelo mesmo processo. O sentido
melódico de uma canção é possibilitado por uma sucessão de tons combinados.
Se substituirmos a palavra ‘copo’ por ‘caneca’ na frase acima, ela manteria o
mesmo sentido, assim como não mudaríamos uma canção se a executarmos com um
violino ou com um violoncelo.
Se, entretanto, tomarmos os significantes ‘copo’ e ‘caneca’ isoladamente não
construiremos uma frase ou um discurso significativo. O mesmo aconteceria com
‘violino’ e ‘violoncelo’. Mas existe uma relação que pode ser estabelecida entre esses
elementos. Copo e caneca nos remetem a uma noção de objetos continentes de líquidos
e violino e violoncelo a uma noção de instrumentos musicais. Ou, em outras palavras,
os primeiros pertencem a um sistema de recipientes de líquidos e os segundos a um
sistema de instrumentos musicais. Nesses dois casos podemos operar significações por
um processo de substituição metafórica.
Os processos de significação e entendimento pela via dos itens pertencentes à
coluna metáfora acima operam por substituição dos elementos em um sistema, ao
mesmo tempo que cada um dos elementos remete ao um significado no sistema total. Os
elementos não estão em relação entre si como em uma frase de elementos seqüenciais
com exemplificado acima, portanto seu significado não pode ser apreendido por uma
relação entre si mas por uma relação entre cada um e uma totalidade a que pertencem, o
que implica a idéia de valor do signo em Saussure, conforme alerta Lemaire (1986).
Assim, se elaborarmos uma lista de departamentos funcionais de uma empresa ou
escrevermos as partituras para diversos instrumentos de uma orquestra, veremos que
cada elemento (cada departamento, cada instrumento, enquanto siginificante) somente
pode ser possível através da relação de cada um para com o sistema integral (a empresa,
a orquestra) a que pertencem. Cada departamento guarda entre si uma relação de
similaridade enquanto entidade funcional, da mesma maneira que na orquestra todos são
instrumentos musicais. O papel de cada elemento não é compreendido através da
relação de um com outro elemento mas na relação de todos com o todo. Quando todos

42
os departamentos operam, a empresa funciona; quando todos os instrumentos tocam a
orquestra gera música.
Em um processo de significação metafórico, não compreendemos o
departamento de contabilidade relacionando-o com o departamento de entregas, nem
compreendemos o trombone quando o relacionamos com o violino, na medida em que
contabilidade/ entregas e trombone/violino são elementos similares (porque pertencem à
mesma ordem de coisas). No mesmo instante em que departamentos funcionam, assim
como no mesmo instante em que instrumentos tocam, o que cada elemento opera não
produz sentido em si. Sentido só é percebido nas funções da empresa e da orquestra
integrais. Assim, cada parte desaparece como coisa provida de significado em si
mesma. Somente podemos atribuir significado a cada parte através de um perspectiva
relacional com um todo.
Assim, se substituirmos o violino pelo violoncelo estaremos substituindo coisas
da mesma ordem. E se decidirmos que o instrumento que deve tocar, simultaneamente
com outros instrumentos, é o violoncelo e não o violino, não é porque o som do
primeiro seja, em si, mais agradável que o do segundo, mas em decorrência da
agradabilidade sonora resultante do conjunto (o violoncelo e os demais) tocando ao
mesmo tempo. Em suma, a substituição não é realizada em benefício do som deste ou
daquele instrumento, mas da harmonia. Em outro momento, provavelmente a música
será mais harmônica quando tocar o violino, e não o violoncelo, em combinação vertical
com outros instrumentos.

Por outro lado, é inegável que cada departamento da empresa possui sua própria
característica, sua própria especificidade, assim como cada instrumento musical. As
substituições integrais que podem ser operadas entre elementos somente podem sê-lo
enquanto cada um pertence à mesma ordem e em relação com a harmonia do todo. Isso
não quer dizer que a qualquer momento um departamento de contabilidade possa ser um
departamento de entregas e um violoncelo um violino.
Arthur Koestler (1979), fundador da teoria holística, designa por ‘holon’ –
grego: ‘todo’ – cada totalidade cujos elementos interiores lhes são pertencentes e, no seu
conjunto, existem em função da existência do todo. Um todo não é uma soma e portanto
não é formado de partes (parcelas) independentes e autônomas. Cordas, braço, caixa
acústica, trastes, carretilhas e arco, em relação a um violino, são coisas independentes,

43
mas adquirem sentido no contexto de um violino. O mesmo pode ser dito quanto ao
violino, o violoncelo, o trombone, em relação a uma orquestra.
As relações entre holons são verticalmente intermináveis, tanto para cima (ou
para fora), porque o universo é infinito, quanto para baixo (ou para dentro), porque o
átomo é infinitamente divisível. Entretanto, Koestler admite que, em si, cada parte (que
por sua vez é um holon que contem partes menores) de um holon (que por sua vez é
uma parte de um holon continente maior) tem uma especificidade exclusiva. Koestler
representa o holon pelo deus romano Jano, o deus que em si possui duas faces; uma
voltada para o todo a que pertence, outra voltada para as sua própria completude
(Koestler, 1979, p. 301).12
Em uma outra dimensão, podemos arriscar dizer que uma face de Jano está em
permanente relação com outros holons e a eles é ajustável e adaptável, enquanto a outra
face mantém permanentemente a sua especificidade. Além disso, cada totalidade possui
uma qualidade de ajuste metonímico em relação a outras totalidades, assim como possui
uma qualidade de fixidez metafórica em relação a uma totalidade maior.
Enquanto a significação metonímica somente pode ser dada no interior de uma
seqüência manifestada em uma frase, como a gramatical e a musical (in praesentia), a
significação metafórica somente pode ser dada em relação a uma representação abstrata
(in absentia), capaz de utilizar qualquer significante. Ou seja, no processo metonímico,
o sistema de significados organiza o sistema de significantes de modo a dar sentido a
uma frase. No processo metafórico, o significante já existe alhures e é capaz de buscar
qualquer outro significante para substituir. O significante não é dado pelo significado,
nem vice-versa.
Metonimicamente, teríamos dificuldades para entender o significado de “o
departamento de entregas operou a contabilização” ou “o violinista tocou seu
violoncelo” porque a cadeia lógica de contigüidade estaria perturbada, como na frase
sem sentido de Chomsky. Mas podemos admitir, por exemplo, que um violino possa
vibrar sua corda de baixa freqüência e imitar um violoncelo, ao mesmo em que temos
certeza de que, em certos casos, um departamento de entregas opera contabilizações. E
cada elemento pode, ocasionalmente, desempenhar o papel do outro, pelo menos por
algum tempo, sem ferir a harmonia. Logo, concluímos que os elementos metafóricos de
um sistema não são significações retidas neste ou naquele significante específico, mas

12
Koestler refere-se a uma face voltada pata cima e outra para baixo. Mas, na maior parte das
representações gráficas do deus, as faces estão voltadas para frente e para trás.

44
um sistema de impressões (“imagens acústicas”) aos quais os significados se ligam,
provavelmente, de maneira arbitrária. Um significante impregna no inconsciente uma
“imagem acústica”, ou seja, sons, cheiros, que não têm a tangibilidade das palavras e
das coisas e nem, em si, significa coisa alguma. Um som, um fonema, evocará algum
significado; um cheiro, uma lembrança ou algumas lembranças; uma paisagem, umas ou
outras idéias etc. É indiferente ao sistema de significantes a função e o significado;
quem ou o que contabiliza, quem ou o que “violoncela”.

Só assim é possível entender porque, na mitologia havaiana, o deus Lono pode


ser alternativamente uma batata-doce ou um corsário inglês (ver Sahlins, 2001 e 1990),
ou porque um kwakiutl pode se casar com o seu pé esquerdo (ver Boas, 1966). Tanto a
batata-doce quanto o corsário são tomados paradigmaticamente, talvez aleatoriamente,
para representar um sistema de significados encerrados em Lono. A frase “Quesalid
casou-se com o seu pé esquerdo e distribuiu muitas mantas” pode ser pronunciada mas
não faz sentido nenhum, nem mesmo para um kwakiutl, se lida metonimicamente, e é
claro que ele assim não vai proceder. Lida metaforicamente, significa que “Quesalid
afirmou a sua posição na hierarquia Kwakiutl”.
Assim é também com os mitos da nossa própria civilização. Como entender que
homem e mulher conheceram sua nudez, depois de comerem da árvore do
conhecimento, se já andavam nus? A análise metafórica leva-nos a concluir que o outro
e sua nudez, assim como a vergonha da sua própria nudez, só podem ser percebidos pela
relação sujeito-objeto, logo o fruto do conhecimento é a própria subjetividade. Os mitos,
e mesmo alguns fatos, parecem desprovidos de sentido para a mente seqüencial
ocidental porque deixamos, desde a antiguidade clássica, com algumas exceções, de
tentar enxergar significados através de um leitura vertical, metafórica e, enfim,
estrutural.
É, principalmente, sobre esse processo de substituição metafórica, aplicado a
relatos e frases, que não devem ser lidos apenas metonimicamente, que Lévi-Strauss
desenvolveu o seu método.

Totem e Estrutura
Na primeira metade do século XX, o totemismo se afigurou como um fato
antropológico total na análise cosmológica de certos grupos sociais. Ainda que não
fosse apresentado como fenômeno universal, o totemismo mostrava-se, sobretudo em

45
algumas sociedades norte-ameríndias e australianas, como uma coalescência tal de
fatores humanos que chamava à atenção pela sua complexidade, ao mesmo tempo que
estimulava a sua investigação.
O fenômeno totêmico, na literatura em geral, designava a vinculação de um
determinado grupo social (tribo, clã) - mas aparecia também como um vínculo
individual - a uma determinada classe de seres (animais ou vegetais) ou objetos, à qual
estão associadas regras e interdições relacionadas a casamento, alimento, guerras e
outras trocas. Rivers, em 1914 (in Lévi-Strauss, 1986, pp. 19-20) identificou a
simultaneidade de três elementos no totemismo: o social (que separa e organiza o
sistema em grupos totêmicos), o psicológico (o parentesco e a ancestralidade do grupo
em relação ao totem) e o ritual (ou religioso, pela reverência e respeito e pelas
interdições em relação ao totem). Essa configuração de Rivers, que parece levar o
totemismo a uma categoria de fato total, é que vai consistir numa matéria básica para a
revisão, a crítica e, enfim, a contestação de Lévi-Strauss do totemismo, enquanto fato
social total.
Publicado em 1962, Le Totémisme Aujourd’hui é uma produção literária em
plena efervecência do estruturalismo parisiense e encontra um Lévi-Strauss bastante
amadurecido, tanto em relação à sua postura crítica face à etno-sociologia de Durkheim
e Mauss quanto às suas próprias idéias estruturalistas. Não é pois sem motivo que, logo
no início do primeiro capítulo, Lévi-Strauss (1965, p. 22) assinala que o método que
adotará naquele caso é o mesmo que em outros. Isto é, o método para definir “le champ
sémantique”, no qual se situam os fenômenos geralmente chamados de totemismo, é o
próprio método lingüístico-estrutural assumido pelo mestre na fase decisiva de sua obra.
Resumidamente, o método consiste em arranjar os elementos em pares opostos e
permutáveis, de modo a ver o fenômeno como uma combinação possível (dentre
outras), e revelá-lo como uma parte do sistema total e dele representante.
O projeto de Lévi-Strauss nesse ensaio é, curiosamente, descaracterizar a
suposta natureza sociológica total do totemismo, no estilo maussiano, e reapresentá-lo
como elemento metafórico pertencente a um sistema total. Contudo, não se trata
simplesmente de mostrar que o fenômeno (totêmico) não é total, mas apenas uma parte
(sistêmica) de um todo. Trata-se de reconstruí-lo sob outra perspectiva totalizante. O
totemismo não é um fenômeno generalizável em sociedades ameríndias ou australianas
mas uma das muitas possibilidades que o “espírito humano” pode encontrar para operar
diferenciações lógicas. O “todo”, no caso, é algo que possibilita a significação, existente

46
na estrutura do inconsciente, que se projeta, dentre outros objetos (no mito, por
exemplo), no totemismo.
Ainda no primeiro capítulo, Lévi-Strauss demonstra que, em sociedades
localizadas em pontos opostos do planeta, como os ojibwa e os tikopia, o totemismo e o
plano religioso não são fenômenos da mesma ordem, demonstrando que o primeiro (em
ambos os grupos referidos) “exprime-se por relações metafóricas”, enquanto a relação
religiosa pertence (em ambos os grupos referidos) à ordem metonímica (p. 41). Lévi-
Strauss opera essa análise através da possibilidade de substituição (metafórica) entre os
elementos (animais) totêmicos, notando que todos têm a mesma posição em relação a
um todo, ou seja, a uma mesma significação (são da mesma ordem). Enquanto as
relações entre as partes do sistema religioso (em ambos os casos) somente adquirem
sentido nas relações (metonímicas) entre si.
No segundo capítulo, Lévi-Strauss apoia-se no minucioso estudo etnográfico de
Elkin sobre os Aranda, os Kariera e os Dieri (para depois reduzi-lo a frangalhos, sem
contudo conseguir negar seu valor), argumentando que tamanha pluralidade encontrada
de totemismos (individual, sexual, de sonhos, de metade, de seção, etc) não pode ser
reduzida à mesma categoria. Lévi-Strauss vê uma função sincrônica no totemismo
matrilinear e uma função diacrônica no totemismo patrilinear, quando Elkin enxergara o
contrário. E encerra argumentando que não se tratam de duas sociologias, mas de duas
formas que revelam relações de complementaridade; “duas maneiras diferentes (...) de
manifestar atributos paralelos da natureza e da sociedade" (p. 74).
É curioso que, nos casos Ojibwa e Tikopia, as expressões metafórica e
metonímica respectivas ao totemismo e à função religiosa, servem de base para o
argumento de que os fenômenos pertencem a ordens diferentes. No caso australiano,
sincronia e diacronia associados a duas formas diferentes de totemismo, não retira de
nenhum dos dois o atributo totêmico.
No terceiro capítulo, Lévi-Strauss volta a contestar deduções de Malinowski, já
exploradas em outras obras, e se aproxima de Radcliffe-Brown, mas somente quando
Radcliffe-Brown se distancia de Malinowski. Totens não são bons para comer, são bons
para pensar. Além disso, volta a atacar o psicologismo do etnólogo polonês,
argumentando que se a ansiedade está relacionada com o totemismo (assim como com a
magia) é como conseqüência e não como causa.
No quarto capítulo, Lévi-Strauss apresenta suas primeiras conclusões sobre o
totemismo: operar correlações e oposições no interior de uma totalidade organizada que,

47
de resto, poderiam ser operadas por outros meios (p. 114). O que Lévi-Strauss quer
dizer com “por outros meios” é que o totemismo não é em si o único meio que
possibilita a organização social. O elemento essencial é a estrutura, em que parece estar
organizado o “espírito humano” – em pares de elementos opostos (significante e
significado; todo e parte; bem e mal; presença e ausência; (1) e (0); (+) e (-), etc) – e
pode ser representada no mundo social nas mais diversas combinações/oposições.
Ainda neste capítulo, Lévi-Strauss dedica um amplo espaço às conclusões de
Radcliffe-Brown sobre o totemismo australiano (às quais Leach (1977) atribui a
capacidade de terem influenciado o antropólogo belgo-francês). Aqui, Lévi-Strauss
reconhece ainda a contribuição do associacionismo, “que teve o grande mérito de
esboçar os contornos desta lógica elementar (...), e só lhe faltou reconhecer que se
tratava de uma lógica original, expressão direta da estrutura do espírito, e não de um
produto passivo da ação do meio sobre uma consciência amorfa” (p. 116).
Neste ponto, não nos ficou claro a que associacionismo Lévi-Strauss se refere; se
àquele próprio dos empiristas ingleses (Hume, principalmente), que, segundo Gellner
(1992), foi seguido por Frazer – exclusivamente, no que tange aos “primitivos” – cujas
elaborações filosóficas e psicológicas pretendiam que os humanos somente eram
capazes de “associações soltas”. Ou ao associacionismo durkheimiano, devido à
referência a “uma consciência amorfa”. Ou ainda ao associacionismo próprio do
culturalismo estadunidense, que consegue enxergar correlações, mas não estrutura.
De qualquer forma, Lévi-Strauss revela aí sua propensão universalista kantiana,
anterior à lingüista, que nós já havíamos apontado quando discutimos o status científico
da Antropologia (Barreto, 2005). De alguma forma, tanto para Kant e quanto Lévi-
Strauss, é mente humana que coloca ordem no mundo. “A forma não é exterior, mas
sim interior”, cita Lévi-Strauss (1965, p. 116), no texto que ora discutimos.

Lévi-Strauss encerra seu ensaio traçando um percurso intelectual que volta de


Radcliffe-Brown a Russeau, passando por Bergson e Durkheim, desculpando-se pelo
aparente paradoxo de que a resposta para o Totemismo Hoje seja encontrada no
passado. Recorda o princípio da dualidade de Bergson, acentua o processo de
identificação por contrários referido por Durkheim e conclui, com Russeau, que, na
passagem do estado de natureza para o estado de cultura, a aquisição da linguagem
passou primeiro pela afetividade para depois chegar à racionalidade (intelectualidade).
A primeira linguagem certamente foi poética, simbólica e, somente depois, racional.

48
Na conclusão, Lévi-Strauss implicita uma preocupação posta mais claramente
em outras obras. O fim das sociedades sem escrita pode significar o fim de uma fonte
única de pesquisa científica sobre a passagem do estado de natureza para o estado de
cultura. Lévi-Strauss considera que a racionalidade das manifestações sociais das
sociedades modernas oblitera as inferências do processo. Esta posição está
provavelmente apoiada nas proposições de Saussure (1975, pp. 42-3) a propósito da
intemporalidade da fonologia e das propriedades naturais da oralidade, sobre as quais a
racionalidade da escrita superpõe um véu enganador.
*
Uma proposta totêmica para a investigação do consumo e do uso dos objetos,
como a sugerida por Sahlins (1976), que certamente inspirou a tentativa de McCracken
(2003) poderá constituir um recurso acessório de pesquisa, sobretudo se assumirmos
que o princípio do totemismo deriva das relações com as quais Lévi-Strauss encerra o
seu ensaio. Neste caso, produziria um melhor efeito tomar-se apenas o princípio, posto
que a assunção integral do próprio método implicaria os riscos da mesma natureza que
aqueles que vimos associados ao uso da lingüística. O totemismo tem a mesma raiz das
outras representações simbólicas; raízes de linguagem, portanto. As possibilidades de
vinculações totêmicas entre o sujeito e o objeto se afiguram então do mesmo modo que
a linguagem, isto é, oferecem um modelo abstrato possível, mas não um método do qual
se possa apropriar ponto-a-ponto.
Foi provavelmente seguindo a sugestão de Sahlins (1976) que McCraken tentou
a aproximação do significado de vestuário pela linguagem. Este talvez tenha sido um
dos motivos de seus problemas. Veremos isso no Capítulo 5.

49
Capítulo 4
Troca, Comunicação e Consumo

No capítulo anterior procuramos aprender algumas regras e, sobretudo, os


cuidados que devemos dedicar na aplicação do sofisticado metido lingüístico às coisas
humanas socialmente observáveis. Vimos também como o rigor lingüístico foi
fundamental para que Lévi-Strauss delimitasse as possibilidades do totemismo como
fenômeno relevante da vida humana. No presente capítulo, continuidade à exploração
do formalismo lingüístico.

Dádiva e Comunicação
A introdução a uma teoria do consumo de objetos no interior de uma disciplina
como a Antropologia apresenta facilidades, mas também severos obstáculos. De um
lado, dispomos do clássico referencial estabelecido por Mauss (2003) sobre as
obrigações de dar, receber e retribuir; o ensaio tornou-se referência obrigatória por
todos os pesquisadores e teóricos interessados em encontrar algum fundamento que
permitisse ultrapassar o utilitarismo econômico nas relações de troca. De outro lado,
temos o incentivo e concomitantemente os alertas de Lévi-Strauss. Na introdução crítica
que elaborou, em 1950, à obra de Mauss, Lévi-Strauss (2003) enxerga ali na dádiva
mais do que um simples sistema social de trocas, mas um prenúncio de sua teoria
essencialista, onde o fundamento das trocas entre humanos está previamente organizada
no inconsciente. A troca “é uma síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento
simbólico que, na troca como em qualquer outra forma de comunicação, supera a
contradição que lhe é inerente de perceber as coisas como os elementos do diálogo,

50
simultaneamente relacionadas a si e a outrem, e destinadas por natureza a passarem de
um a outro” (Lévi-Strauss, 2003 [1959], pp. 40-41).
Na introdução crítica cima referida, o antropólogo começa a alinhavar sua teoria
da comunicação, que aparecerá de forma mais elaborada poucos anos mais tarde [1952]
(Lévi-Strauss,1989a, pp.103 e 336-337). Evidenciando uma noção de comunicação
muito mais ampliada do que Sapir (1980), que entendia a linguagem como o tipo mais
explícito de comportamento comunicativo (Jakobson, 1970, p. 21), Lévi-Strauss propõe
a teoria como meio para se interpretar a sociedade, no seu conjunto, no seu todo. A
tentativa implica uma teoria da comunicação em três níveis explicitáveis em três tipos
de regras: i. as regras do parentesco e do matrimônio; ii. as regras econômicas de trocas
e, iii. as regras lingüísticas, onde a linguagem, no sentido mais antropológico e essencial
que vimos acima, intervém nos três níveis.
À parte a celeuma suscitada pela afirmação do antropólogo de que as regras de
parentesco e casamento “servem para assegurar a comunicação de mulheres entre
grupos”, que não comentaremos aqui, a teoria requer, como enfatiza o autor, a
colaboração entre a economia e a etnologia. A intervenção da linguagem nos três níveis
impõe implicações profundas à teoria. Ou seja, assim como os sistemas lingüísticos – as
línguas – os sistemas de trocas econômicas também estariam sujeitos às regras
inconscientes da linguagem.
Nos nossos propósitos, relativos ao consumo de objetos, encontramos na teoria
da comunicação de Lévi-Strauss, um fundamento para dar suporte às nossas
observações empíricas. Mas a questão não tão simples. Em nossa experiência, descrita
no Capítulo 10 e nos Anexos A e B, tomamos os tipos de regras do modelo de Lévi-
Strauss, mas tivemos que operar restrições, contidas em um subsistema “fechado”,
expresso pelas relações, motivações e atitudes de compra de uma mulher
contemporânea. Tentamos atender às regras de parentesco e matrimônio na conduta da
mulher relativa aos filhos e ao marido; as regras econômicas da troca tiveram que ser
atendida através da concentração no segmento ‘compra’ do sistema de trocas (ou
sistema de consumo) e as regras lingüísticas, no trato operado pela mulher dos
produtemas (termos que esclareceremos nos capítulo seguintes) contidos nos objetos de
compra.

Linguagem e Consumo

51
A inserção do significante institui a primeira parte do processo de constituição
do sujeito, daí porque o inconsciente estar estruturado como uma linguagem – note-se
que o inconsciente não é uma linguagem – instituindo a ordem simbólica. Esta,
necessariamente, instaura uma exigência de mediação nas relações do humano com a
natureza e com os outros humanos (Lemaire, 1986: 48). A mediação impede que a
inserção do mundo externo - a Natureza, o meio social, a cultura, a própria língua - seja
assimilada tal como ela é ou poderia ser. No caso da Natureza e de todos os aspectos da
Criação, aí incluída a própria natureza humana, a assimilação daquilo que os constitui
enquanto coisa real ficará permanentemente “contaminada” (logo a seguir, veremos que
estará “perdida”) pela ordem do simbólico. No caso das instituições humanas - como a
cultura, a sociedade, a língua - também haverá “contaminação”, só que com um
agravante; estas instituições, quando da sua absorção pelo sistema simbólico já vêm
“contaminadas” pelos arranjos simbólicos pré-existentes a cada indivíduo da espécie.13

A ingestão de um item alimentar, em princípio, atendendo à mais básica das


necessidades humanas, implicará admitir que o ato de nutrição transcende a necessidade
e conseqüente a satisfação, passando também a constituir uma experiência, suplantando
o ato natural da própria nutrição. Pode-se argumentar que a necessidade e seu processo
natural de satisfação continua existindo. Isso é certo. Mas essa “natureza” ficará vedada
para o humano. A relação ente “naturezas” – no caso, humana e alimentar – continuará
lá mas não poderá ser assimilada de si para si, em um processo imediato. Não
precisaríamos recorrer a Freud (que nos daria uma convincente explicação) para
entender que qualquer procura humana por alimento está sujeita a regras e estratégias (e
novamente a etnografia nos carregaria de exemplos) e que essas regras e estratégias não
podem ser possíveis na relação natural x natural.
Note-se – e isso é relevante na questão que aqui colocamos – que não estamos,
ainda, a tentar expor o consumo de alimentos ou de qualquer objeto através de um
sistema de significados. Demandar objetos em função dos seus status e estilos
sinalizados, pertence sem dúvida ao reino dos significados. Mas ainda estamos num
momento anterior do processo. Suplantar o estado de natureza através de um sistema de
significados requer admitir que, antes, uma ordem simbólica se estabeleça entre um

13
É possível que esse seja o motivo por encontramos menos problemas de objetivação nas ciências da
natureza do que nas humanas e sociais.

52
indivíduo da espécie humana e a Natureza. Isso implica a admissão de um ponto de
ruptura na relação natural x natural.
A maioria dos cientistas sociais demonstra admitir que os humanos operam a
mediação simbólica a qual vimos nos referindo. Todavia, talvez em decorrência de
lidarem principalmente com indivíduos adultos - cujo sistema simbólico já está
constituído e consolidado - tendem a assumir que a organização simbólica emprestada
ao objeto pertence à ordem dos significados. Isto não é falso. Todavia, acarreta admitir
que a mediação é uma operação entre natureza e cultura, eliminando-se o significante ou
ignorando-se o seu “papel”. Em primeiro lugar, não estamos admitimos a presença do
significante porque os lingüistas e J. Lacan o fazem. Mesmo que não exista uma tal
coisa chamada ‘significante’, as evidentes diferenças de assimilação e de capacidade de
intervenção na ordem natural e social entre nós e os outros animais é capaz de nos
convencer de que não podemos assimilar nada sem que seja através de uma mediação.
Evidentemente não vivemos no estado de natureza; “contaminamos” a natureza e a
sociedade com nossas significações. A explicação de Lacan (1998: 415) seria bastante
plausível, mesmo que não exista ‘significante’.
Em segundo lugar, não advogamos a precedência do significante sobre o
significado simplesmente porque Saussure, Lacan e a maioria dos lingüistas o faz. Aqui,
tanto podemos recorrer à experiência etnológica como à psicanalística: não existe
nenhum motivo para julgarmos que existe uma relação direta e correspondente entre a
ordem simbólica e a ação efetiva do sujeito ou de um sistema social, de tal forma que
sua observação empírica, pelo analista ou pelo etnólogo, possa conduzi-los a inferências
exatas. A psicanálise, de certa forma, resolve o problema atribuindo ao próprio sujeito a
função de encontrar, ou de pelo menos tocar, o sistema de significantes. No caso da
experiência etnológica, os problemas metodológicos são mais severos. À parte a
dificuldade de ordem quantitativa para lidarmos com um “sujeito” coletivo, e de não
lidarmos com um “paciente” interessado na sua cura, dispomos de raros, e cada vez
mais raros, momentos de manifestação “fásica” coletiva, através dos rituais. Além disso,
Lévi-Strauss (2003) alerta para o risco que espreita todos os etnólogos, quando submete
a subjetividade do outro às aferições da sua própria subjetividade. E já é tempo de
entendermos que “densas descrições“, onde somos levados a elaborar um discurso sobre
o discurso, não dissolverão o que talvez seja o mais apertado e obscuro nó da nossa
disciplina.

53
Sejam quais forem as nossas dificuldades metodológicas, fazer de conta que o
significante - ou o que quer que desempenhe o seu “papel” - não existe, não vai nos
ajudar. Retomando nosso segundo ponto acima, de fato, não é possível admitir que um
bebê, ao receber o leite materno, consome-o imbuído de todo um sistema de
significados (“amor”, “carinho”, “saúde”) que é possível verificar no adulto
contemporâneo. Trata-se de um mamífero que não pode simplesmente matar a fome,
sem experimentar representações, ainda que fragmentadas, do seu próprio organismo.
Mas, diremos, também não pode ser um sujeito constituído de um sistema integral de
significações, capaz de relacionar significante e significado, que é o que esperamos de
todo indivíduo adulto clínica e socialmente sadio.
Não precisaremos avançar aqui sobre derivações específicas na língua dos
psicanalistas (objeto a, objeto A, outro, Outro). Também não discutiremos ainda a
função da palavra (fala) no processo de constituição do sujeito. Importa agora
reconhecer que a linguagem, ou algo como a linguagem, opera a inserção de um
indivíduo humano no mundo, inicialmente através do significante, distanciando-o do
real ou, neste caso, do natural. Mais importante ainda é notar que tal inserção, operada
no “âmbito da linguagem”, se implica a “invenção” do sujeito, implica também, e
simultaneamente, a “invenção” do objeto. O objeto então é constituído no âmbito da
linguagem. O alimento trazido pela mãe ao bebê, ingressando na ordem do simbólico,
deixará de ser somente uma coisa natural e, como lembra Elia (2004), passará a
constituir um passado “mítico” para o sujeito. Nunca mais o ser, sob condições normais
de vida, poderá retornar aos temps perdu, à relação imediata natural x natural. A relação
sujeito x objeto é mediada pelo significante, operando uma espécie de ultrapassagem do
que era simples necessidade em busca de satisfação, em relação à coisa natural, para se
tornar uma experiência (Elia, 2004). Daí porque o objeto é um objeto de desejo e não de
satisfação de necessidades. Campbell (2001), ao discorrer sobre a diferença entre
‘necessidade’ e ‘satisfação’, de um lado, e ‘prazer’ e ‘desejo’, de outro, esclarece que a
primeira implica mudança de estados no ser, enquanto a segunda está relacionada com a
experiência humana, sendo ‘prazer’ uma qualidade da experiência.
Para nossos desígnios, importa mais ainda aqui, notar que, no âmbito da
linguagem, a coisa transformada em objeto, inicialmente através da nutrição do bebê
pela (geralmente) mãe, implica um consumo. A relação do sujeito com a mãe, na
alternância do ir e vir para trazer o objeto de prazer, assinalada inicialmente por Freud,
assumiu enormes proporções na teoria e na prática psicanalíticas. Embora ambos, mãe e

54
leite, alcancem, no âmbito da linguagem, a condição de objetos, a relação com o
primeiro se tornará o principal fundamento da psicanálise. Entretanto, ambos são objeto
de consumo. A diferença é que o consumo da mãe será interditado e os demais objetos
desejados e consumidos, não. Vemos que o consumo dos objetos aparece como algo que
restou (uma compensação?) de um interdito; o tabu do incesto.
Todavia, essa “permissão” não se fará sem regras. Cedo, o bebê perceberá que o
acesso ao objeto não é contínuo e incondicional. Como “quem não chora, não mama”,
aprenderá a fazer a sua primeira troca. Em seguida, constatará a ineficácia da troca do
choro pelo objeto e aprenderá meios mais “civilizados” de troca. Logo, estará
aprendendo a “se comportar”, a obedecer, a dialogar, a trabalhar.

Consumo e Incesto
A síntese do pensamento simbólico que compele o sujeito à troca, a que se refere
Lévi-Strauss (2003) também está fundada no desejo pelo consumo do objeto.

Sua própria mãe,


Sua própria irmã,
Seus próprios porcos,
Seus próprios inhames que você juntou,
Você não pode comer.
A mãe dos outros,
A irmã dos outros,
Os porcos dos outros,
Os inhames dos outros que eles juntaram,
Você pode comer.

O aforismo arapesh acima foi colhido por Mead (2000: 100), que o associou ao
egoísmo e ao incesto. Lévi-Strauss (1982: 65) reproduz o dito como citação que ilustra a
parte de as Estruturas Elementares do Parentesco que trata das regras da troca. A
menção ao consumo (ingestão), por parte de Mead, é muito breve e praticamente
inexiste em Lévi-Strauss, indo ambos quase que diretamente ao incesto e às regras de
troca do parentesco. No entanto, não nos pode passar despercebido como uma regra de
troca também é uma regra de consumo.

55
Não posso comer minha mãe, minha irmã, meus porcos e meus inhames mas
posso comer as(os) dos outros. Mas isso é feito sob regras. Isso não é apenas uma regra
de troca mas também uma regra de consumo, e não significa que a interdição a uns
(objetos) implique a liberdade total em relação aos outros.
A exuberante descrição do kula (Malinowski, 1976), no qual o máximo de
significação simbólica possível tem sido extraída pela literatura sócio-etnológica do fato
de o trombriandês, após sucessivas trocas de pulseiras e colares, acabar o circuito com o
mesmo colar ou a mesma pulseira com os quais começou, nos induz a pensar que todo
objeto existe para ser trocado e nunca consumido. Produzimos para trocar e trocamos
para ... trocar. Mas acontece que, no processo de trocas, algo é consumido e,
obviamente, nos impele para novas trocas. Aparentemente, centrar o fundamento das
relações humanas na troca não é muito diferente de centra-las no consumo.
A recente produção literária no campo da sociologia e da história do consumo
tem percebido isso, sem se dar conta, talvez, de que está a oferecer uma interessante
alternativa a uma das mais bem alicerçadas teorias da antropologia social. Em lugar das
conhecidas teses econômicas e gerenciais que reclamam a precedência da produção em
relação ao consumo, pesquisadores como Campbell (2001) nos mostram que a relação
operada vai na direção contrária, isto é, não produzimos e, como mera conseqüência,
consumimos. Na verdade, este comanda aquele. Nossa sugestão, além de incorporar
propostas como as de Campbell (2001), pretende que as regras de troca e as regras de
consumo constituem um mesmo fundamento - ambas abordáveis pelas regras da
linguagem - estando as segundas em uma dimensão esquecida da antropologia social. A
ênfase e o entusiasmo com as relações de troca têm sido, na verdade, um obstáculo,
conforme colocamos no início deste tópico, a uma alternativa de alcançar o espírito
humano através do consumo.
Visto dessa maneira, o consumo não pode, assim como a troca, ser encarado
simplesmente como um espaço de liberdade concedido como forma de compensação
pela proibição do incesto. As restrições estruturais que Lévi-Strauss (1982: 371-380) vê
impondo-se à liberdade individual estão implicadas nas restrições sociais; elas tanto se
abatem sobre as regras de troca quanto as de consumo. Baudrillard (1993) critica essa
pretensa aspiração de que a escolha - na verdade, sempre restrita e limitada - entre
objetos de consumo implique liberdade individual. Tal como faria Bataille (1967),
quando insiste no significado de ‘sujeito’ como ‘sujeitado’, Leopoldi (2004) argumenta
que o discurso moderno de liberdade individual, geralmente sintetizada na liberdade de

56
escolhas entre alternativas, é anulado pela submissão do sujeito, através do que lhe é
imposto ao consumo.
O único momento de liberdade individual experimentado por um humano é o do
seu nascimento.14 Mas isso só dura um instante. Rapidamente, a fome e o frio o
ensinarão a “se comportar”. Na verdade, uma necessidade move o indivíduo para o
consumo, ainda no estado natural. Essa necessidade pertence à ordem da natureza mas
não será atendida no interior dessa mesma ordem. Esta constituirá, no sujeito, uma
dimensão esquecida, um mito, le temps perdu, ao ser arrastado para o universo da
linguagem, do simbólico. A demanda do sujeito - que implica objeto - ocorrerá no
universo do desejo.

Tornemos à citação de Lévi-Strauss (2003): a troca “é uma síntese


imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico que, na troca como em qualquer
outra forma de comunicação, supera a contradição que lhe é inerente de perceber as
coisas como os elementos do diálogo, simultaneamente relacionadas a si e a outrem, e
destinadas por natureza a passarem de um a outro”. Podemos agora relê-la.
Na relação natureza x natureza, obviamente, não existe diálogo. Este autor é
testemunha de dois sujeitos xavantes “conversando” docemente com uma paca abatida.
Uma criança não pode arrancar o leite - e, depois, o achocolatado com açúcar, o
videogame, o skate, o telefone celular - da mãe, sem diálogo. Um caçador não pode
arrancar um animal da (Mãe)Natureza sem diálogo.
A “contradição (...) de perceber as coisas como elementos do diálogo” quer dizer
que “as coisas” pertencem originalmente à Natureza, ou, ao estado de natureza e que,
forçosamente, ao passarem à linguagem, ao pensamento simbólico, necessitam ser,
contraditoriamente, trocadas. Troca-se, quer dizer, media-se, aquilo que, antes, na
relação natural x natural, era imediato. Ter que mediar o que era imediato é uma
contradição.
A “síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico” significa que,
na condição de sujeito, a troca é imediata, mas somente na organização simbólica do
pensamento do sujeito, uma vez que, inevitavelmente, troca implica mediação. Ao sugar
as secreções da mãe, o indivíduo, ainda um mamífero faminto, literalmente come a mãe,
porque vive uma relação natural x natural imediata, onde ele, o bebê, a mãe e as

14
Outro momento de liberdade talvez seja o da morte. A sociedade, que tanto subjugou o sujeito, nesse
momento, chora.

57
secreções não têm significação alguma, nem significante nem significado, muito menos
uma relação simbólica. A síntese operada no pensamento simbólico (do sujeito) torna-se
imediata ali e somente ali, uma vez que a relação natural x natural será mítica.
Quanto às coisas estarem destinadas a passar de um a outro é uma condição
somente possível ao pensamento simbólico, uma vez que na relação natureza x natureza
as coisas não “passam”, elas são uma só coisa.
O que está faltando nessa elaboração é o momento do consumo. Pode-se
argumentar que mesmo o consumo, por ingestão do alimento, por exemplo, implica
fezes derramadas sobre a terra que, fertilizada, devolverá o alimento, prolongando
indefinidamente um processo de troca. Pode-se argumentar que as fezes da oleira
ciumenta (Lévi-Strauss, 1985) se converterá em argila que, modelada em potes
estabelecerá forma, e portanto ordem, na informidade caótica da água - assim como o
útero confere forma ao sêmen amorfo, ao se consumar o ato sexual - perpetuando a
troca.
Vê-se que o consumo nem avilta nem substitui a lógica das trocas. Mas constitui
um momento decisivo no processo; não é um rompimento no ciclo, mas demarca um
ponto de inflexão. O consumo provoca a troca e vice-versa. Se a troca é operada na
síntese do pensamento simbólico, o significante que abriga ‘troca’ também abriga
‘consumo’. Não vai fazer muito sentido dizer que consumimos para trocar ou trocamos
para consumir.

Comunicação x Consumo
Pode-se perguntar então: “por que uma teoria simbólica do consumo se já
dispomos de uma boa teoria da troca?” Isto é o que pretendemos responder com este
trabalho.
Tomemos a polêmica teoria de Lévi-Strauss (1982) da “circulação de
mulheres”.15 Sperber (1992: 104-5), em uma crítica da teoria da comunicação do
antropólogo, argumenta: “ (...) assimilar circulação e comunicação não se justifica de
maneira nenhuma”. Palavras que circulam entre dois interlocutores produzem
comunicação. Ao final da troca, ambos partilham (ou, pelo menos, estão cientes) de
toda a informação que circulou. Sperber discute que o mesmo não acontece quando dois

15
Em plena ascensão do feminismo, em meados do século XX, a proposição não passaria sem reações
inflamadas. Jakobson (1970: 22), em um ensaio no qual defende a teoria da comunicação do antropólogo
francês, ameniza as coisas: “(...) troca de mulheres (ou, talvez, numa formulação mais generalizadora,
troca de companheiros)”.

58
indivíduos trocam entre si um cavalo por uma vaca. “Os animais circulam, mas não
foram comunicados e os seus donos podem não ter nada em comum no final da troca”
(Sperber, 1992: 105). Somos levados a crer que o que Sperber objeta é que a exigência
para que haja comunicação precisa ser atendida pela posse dos elementos que
circularam, por todos os indivíduos que participam do processo.
Tentemos ver o fenômeno de outra maneira. A nosso ver, o que ocorre é que a
proposição, simultaneamente, reduz a mulher (ou o homem, isso não altera esta nossa
sugestão) a duas categorias: a de ‘objeto’ e a de ‘mensagem’, e não apenas à segunda
categoria, como se tem enfatizado. Enquanto mensagem, o “companheiro” é algo que se
situa entre um significante e um significado. Uma mensagem é um ato sêmico (de
‘sema’, o mesmo que ‘signo’), onde a significação requer um significante mas depende
do significado (Prieto, 1973). E, neste caso, a circulação do indivíduo conduz um
significado que, admissivelmente, pode passar a pertencer a todos os envolvidos na
troca. Enquanto objeto, ‘mulher’ (ou ‘homem’) são inquestionavelmente consumidos,
posto que, consumado um casamento - uma troca - em geral, o “companheiro” não volta
a “circular” como uma pulseira trobriandesa, sendo absorvido no interior de uma
família, tribo ou grupo totêmico.16
Sperber obviamente não está a confundir ‘objeto’ com ‘mensagem’. O que ele
insiste é que uma mensagem produzida pela “circulação de mulheres”, mais do que
codificada, é “manifestada” e, sendo assim, nada tem de “lingüístico”.
Sperber, que não estava empenhado em uma teoria do consumo, talvez tivesse
sido mais claro na sua crítica se atentado para o fato de que a troca produz comunicação
mas também produz consumo. Ambas a categorias estão envolvidas no mesmo
processo, mas recebem destinos diferentes. Podemos admitir que a coisa trocada não se
resume exclusivamente a um objeto ou a uma mensagem, mas, necessariamente a
ambos. O consumo, aliás, permeia todo o texto de As Estruturas Elementares do
Parentesco (Lévi-Strauss, 1982). Todavia, acreditamos que, devido à influência do
incesto enquanto interdito, exercida no seu pensamento, o consumo, analogamente, é
tratado quase sempre como proibição. O antropólogo sempre destaca a proibição de
“comer do próprio cesto”. Mas é obvio que aquilo que me é interditado comer alguém
comerá. Quando o objeto trocado é, no texto de Lévi-Strauss, enfim, consumido, é
sempre tratado com algo compartilhado (ver, por exemplo, o capítulo V, O Princípio da

16
Pode-se, entretanto, admitir-se casos onde haveria efetiva “circulação” de indivíduos, como entre os
kwakiutl (Boas, 1966).

59
Reciprocidade). Esse tratamento, ‘compartilhamento’, é decorrência da relevância da
categoria ‘comunicação’, concedida pelo autor ao sistema de trocas.
Independentemente de se poder discutir semanticamente, o que não é, aqui,
nosso propósito, o significado de ‘compartilhar’ - o qual pode muito bem significar
‘concordar’ com uma mesma idéia contida em uma informação, mas pode também
implicar apenas ‘possuir’ - sem contudo ‘concordar’, - uma mesma informação -
diríamos que a categoria ‘consumir’ pode ser dicotomizada de ‘comunicação’,
‘mensagem’ e de ‘comparitlhamento’. ‘Dicotomizar’ não quer dizer desfazer uma
relação, mas apenas isolar, enquanto categoria, para que se preste mais adequadamente
à observação e à análise.
Tal é a nossa proposta em relação ao consumo no interior de um sistema de
trocas.
Vimos que, se a mensagem requer o significado, o consumo requer o objeto. De
fato, poderíamos dizer que, enquanto a mensagem circula, o objeto é consumido.
Voltando ao nosso bebê-mamífero, vemos que o consumo (do alimento) inicialmente
ocorre no âmbito da relação natureza x natureza (a qual se converterá em mito, na
ordem simbólica do sujeito). Por não ter ingressado ainda no domínio da linguagem, o
consumo do leite materno não constitui ainda nem um significante nem um significado.
Uma vez inserido na ordem do significante, o consumo do objeto primeiro acontecerá,
no sujeito, necessariamente, enquanto significante, portanto, sem que seja o sujeito
capaz de ainda elaborar um discurso sobre o objeto. Somente após o ingresso completo
na ordem simbólica (significante e significado), o sujeito poderá trocar elaborando
mensagens e, igualmente, trocar enquanto consome e elabora mensagens.
Lévi-Strauss tratou da troca enquanto operação do sistema simbólico, deixando
de lado, como categoria principal, o consumo, indo preferencialmente à comunicação.
Uma vez que ‘consumo’ pertence à relação sujeito x objeto e ‘comunicação’ pertence à
relação sujeito x sujeito, torna-se necessário - sem esquecer que, no adulto,
provavelmente, o consumo e a comunicação, coincidem, enquanto fatos sociais -
separar, para efeito de investigação, a primeira da segunda relação. O antropólogo
também, interessado que estava na infra-estrutura do inconsciente, capaz de receber o
significante, operou nas suas análises um salto sobre o sujeito. Essa manobra evitou que
tivesse que lidar com diversidade entre sujeitos.
No nosso caso, muito embora o interesse não seja psicanalítico, uma vez que o
consumo do sujeito se liga ao objeto e precede o discurso, apresenta-se uma

60
impossibilidade de lidar com o segundo sem tratar também do primeiro. Além disso, se
nos propomos dicotomizar ‘consumo’ e ‘mensagem’ significa que temos que ser
capazes de tratar do primeiro sem que, necessariamente, tenhamos que associá-lo a
significados.
Consumo sem significado. Seria possível isto?
Ora, se, analisando lógica mas não necessariamente socio-logicamente, o
caçador distribui o produto da caça sem consumi-lo, ele comunica sem consumir.
Aquele que recebe o produto da caça consome, sem que, necessariamente, nessa ação,
comunique qualquer coisa que seja. Quando Narciso consome a sua própria imagem no
espelho, ele se cala, quer dizer, não comunica. Essa ação é patológica mas concede
lastro lógico à nossa dicotomia. Voltemos ao bebê. Ele consome um objeto, um
significante, sem, para ele, estar relacionado a um significado. Ele consome mas não
recebe mensagem. Claro, ele em breve vai aprender que o leite conduz uma mensagem.
Mas note-se, o leite, durante algum tempo é objeto de troca (o bebê trocou-o pelo choro)
e consumo e tudo que ele pode “entender” é que operou substituições metafóricas entre
significantes, ‘fome’ por ‘choro’, ‘choro’ por ‘leite’ etc. Isso não é um discurso.
Alguém poderia objetar: trata-se apenas de um bebê. Como é operado o consumo do
adulto?
Stricto sensu, a relação entre sujeitos está ligada à comunicação. É o consumo
(e, mais tarde veremos, o trabalho), isto é, a relação sujeito x objeto, que opera a
substituição metafórica. Note-se que Mauss (2003) vincula as obrigações de dar, receber
e retribuir, enquanto Lévi-Strauss (2003, 1982), centra nesse ciclo a comunicação inter-
subjetiva. É como se consumir não fosse uma obrigação. Mais ainda, fosse um tabu. O
consumo é um interdito porque a sua propensão não pode ter como ponto de partida a
comunicação inter-subjetiva. Reduzida ao trabalho e ao consumo do “próprio cesto”, a
humanidade perderia o elo entre os seus sujeitos. Este é um raciocínio favorável à
ênfase na comunicação. O único problema desse discurso (ou, talvez, o único problema
do discurso) é que, um dia - exceto, mesmo assim durante algum tempo, as relíquias, as
múmias e o fósseis que encontramos nos campos - os objetos serão consumidos.
Tornemos à circulação dos objetos. Entre os melanésios, ao circular, os objetos
acumulam mana antes de ser consumidos. Mana portanto é uma síntese que opera a
inter-subjetividade, sem o que o consumo é interditado. Entre os kwakiutl, um menino
recebe, por imposição da ordem do parentesco, alguns objetos (geralmente, mantas de
algodão), através dos quais será iniciado no sistema de trocas. Entre os povos de língua

61
portuguesa, ao recebermos um presente, não podemos consumi-lo sem antes confessar a
nossa obrigação de retribuir: “obrigado”. Vê-se que a circulação dos objetos, através do
costume, vai sendo como que impregnada pela ordem do significado e do discurso.
A obrigação de retribuir não é uma propensão natural e nem mesmo metafórica.
É aprendida e apreendida na ordem metonímica do significado. A propensão natural a
consumir não enseja obrigação, posto que está fora da ordem da linguagem. Trazida
para ordem da linguagem, a propensão a consumir, mandará a ordem natural para os
domínios infra-estruturais do mito e, primeiramente, passará à substituição metafórica
do significante, e não a um discurso. Uma vez que a ordem do discurso é inter-subjetiva
e está retida no domínio social e cultural, ela tem que ser aprendida, mandando o
consumo para a ordem do tabu. Quando, pequenos, recebemos um presente de
estranhos, mamãe ou papai logo se ocupam de exigir: “como é que se fala?”.
“Obrigado”.
O consumo do adulto, portanto, deve passar por um aprendizado para que se
insira na ordem do significado. Todavia, isso não implica que não possamos separar as
etapas do processo na análise do consumo do adulto. O consumo do adulto na ordem
natural somente será verificado se, por algum motivo, o indivíduo estiver reduzido à
condição infra-subjetiva, isto é, às condições inumanas, como geralmente nos referimos
a situações em que o sujeito perde esta condição por exposição extremada à
impossibilidade de consumir. A fome extrema é um estado que nos indigna exatamente
porque subtrai a subjetividade - o que implica retorno à animalidade – e não,
necessariamente, ou ainda, porque subtrai a identidade social ou a cidadania. O sujeito,
retirado da ordem da linguagem, perde, antes, a condição humana. E, sem esta, não há
condição social
O consumo do adulto na ordem do significado é sociológico e econômico,
portanto aprendido. E tal aprendizado, como vimos, é operado através da comunicação
inter-subjetiva. A subtração da identidade social ocorre portanto quando o sujeito
consome fora da ordem metonímica do significado, por impedimento, obstrução ou
falha no nível do discurso.
Vê-se que os distúrbios da afasia, a que se refere Jakobson (2003), também
podem ser aplicados a patologias ou a disfunções do consumo.
O consumo do adulto, portanto, deve ser considerado como uma reação do
sistema de significados ao sistema de significantes, ligado à socialização. Sua

62
normalidade porém é motivada por duas propensões anteriores: a propensão ao
consumo natural e a propensão ao consumo sem significado.
Mais tarde, analisaremos o consumo a partir da perspectiva patológica,
esperando que ela se nos revele a normalidade. Todavia, podemos antecipar que a
dicotomia aqui proposta permite-nos enxergar que, tanto na linguagem, como no
consumo não existe ligação imediata entre o mundo social e o espírito humano.
Também o consumo é mediado pelo significante. Esta conclusão nos parece remeter ao
fato de que o consumo não pertence apenas à ordem metonímica e sociológica do
discurso, mas, antes, à própria condição humana. Consumir é, antes de tudo atributo do
vivente, em seguida, sob certas condições, atributo do ser humano e, por fim, do ser
humano social.
É evidente que não existe , normal e adulto, um ser humano não-social. Mas a
dicotomia nos oferece a oportunidade de enxergar em que ponto o consumo se liga à
condição humana, antes da socialização. Expõe também o ponto do sistema em que
devemos nos concentrar para investigar uma prática tão verificada no mundo moderno,
que é a do consumo voltado para si mesmo. Trata-se da violação de um tabu? É um
consumo sem significado? Será meramente uma patologia? Ou, menos drasticamente, é
uma prática que se liga mais à subjetividade (à tentativa de (re)elabora-la, ajusta-la,
centraliza-la) e menos à comunicação e à socialização?
Hall (2003), ao tentar um tratamento da identidade social pós-moderna, acaba
tratando mais do sujeito do que da própria identidade. A subjetividade, na modernidade
tardia e na pós-modernidade é “fragmentada”. Aparentemente, Hall quer nos dizer que
não há tratamento possível da identidade, nem no plano analítico nem no do próprio
sujeito, sem que se passe pela subjetividade. A dicotomia que tentamos acima nos
evidencia que, se a relação do sujeito está, antes, para com o objeto, e não para com o
outro, os sistemas de consumo podem se nos parecer mais permeáveis a uma
investigação através do sujeito fragmentado do que da comunicação.

63
64
Capítulo 5
Crítica da Pesquisa de McCracken

Pátina: antiguidade ou simplesmente sujeira?


Foi provavelmente a partir da idéia, tão comum no mundo da moda, de que as
roupas falam, assim como os adornos e outros adereços aplicados sobre o corpo, que
McCracken (2003: 83-98) resolveu tentar entender o que elas falam. Antes porém, o
autor, numa proposta que reabilita as antigas proposições de Veblen (1980), as quais
associam o consumo aos símbolos de status, desenvolveu uma teoria na qual a pátina,
isto é, as concreções que, com o tempo acumulam-se sobre os metais, as pedras, a
madeira, o couro e a tinta, à qual também aplicou figuras de linguagem (McCracken,
2003: 53-67. Mas há, a nosso ver, alguns problemas nessa empreita e os comentaremos
a seguir.
Primeiramente, veremos o caso aplicado na teoria da pátina. McCracken
argumenta que a relação por ele percebida entre a pátina e o status foge à regra
lingüística da arbitrariedade entre o significante e o significado e que, neste caso, tal
relação parece ser “natural”, como se fosse impossível o significante pátina vincular-se
a outro significado que não fosse status.
As possibilidades de uma língua essencial foram estudadas por Jakobson (2003:
98-117), onde a proposta saussureana de arbitrariedade do signo não consegue ser, de
modo inequívoco ou definitivo. Arbitrariedade em lingüística, esclarece Lyons (1987:
30), geralmente “diz respeito à relação entre forma e significado, entre sinal e
mensagem”. Exceções à regra da arbitrariedade talvez sejam encontradas, como vimos
no primeiro tópico deste texto, nas palavras onomatopaicas. Em quase todas a palavras

65
de quase todos os idiomas, dada uma forma, é impossível prever o significado e vice-
versa. (Lyons, 1987: 31). Entendendo-se uma forma de palavra como um significante,
temos que, dado um significante, é impossível prever o seu significado e vice-versa.
Mas Jakobson (2003: 109) encontrará apenas um atenuante no “princípio fundamental
do arbitrário”, de Saussure, no qual, em cada língua, poderá haver aquilo que
“radicalmente” e aquilo que é “relativamente” arbitrário. Mas a relação é sempre
arbitrária.
Afirmar que pátina e status, respectivamente, significante e significado estão
ligados por uma relação “natural” que foge à arbitrariedade, efetivamente implicaria
uma negação da aplicação da regra lingüística aos objetos. Mas acreditamos que a
alegação de McCracken não se sustenta.
Suponhamos que não existam elementos tais como significante e significado e
que não possamos contar com a experiência etnológica de nossa disciplina. Como
poderíamos entender o sistema de classificações de um povo? Intuitivamente
perceberíamos que o povo elabora classificações de objetos, sujeitos, ações, fenômenos,
idéias, tabus, fatos através de um sem-número de princípios associativos, organizados
em categorias, que também são regidas por um sem-número de princípios e regras de
relações. Notaríamos, em seguida, que todos os princípios, em última análise, remetem
à Natureza. Mas as incontáveis relações verificadas não nos autorizariam a afirmar que
as associações que denominam e classificam as coisas obedeçam a uma ordem imediata.
O “princípio fundamental do arbitrário” decorre exatamente de que os humanos
não podem capturar a realidade sem mediação, pelo menos, a partir de um certo ponto,
logo no início da sua existência, como a progenitura humana que vimos acima. Não
podemos provar isso nos moldes e da forma como as ciências exatas prescrevem. Mas
isso não constitui nenhum problema grave. Já tivemos a oportunidade de demonstrar
que as ciências exatas “provam”, mas diante de restrições tão severas, que não
conseguem abarcam todo o fenômeno que pretendem “provar” (Barreto, 1999).
Mas é possível encontrar, no vasto arquivo da etnologia, evidências provindas de
povos os mais distantes de que o princípio da arbitrariedade é, primeira e efetivamente,
um princípio e, em segundo lugar, implica mediação em qualquer sistema de
classificação. Lévi-Strauss (1989b) irá mesmo argumentar que a prática estruturalista de
estudar e correlacionar as relações internas de um fenômeno, na qual o princípio da
arbitrariedade constitui um método, é científico.

66
McCracken (2003: 59) argumenta que “(...) a pátina, enquanto um ‘significante’,
representa o status, enquanto um ‘significado’, por causa da conexão ‘natural’ entre
ambos. É justamente porque a pátina é uma espécie de signo não-arbitrário (...)”.
Deduzimos que o autor quer dizer que a relação entre ‘pátina’ e ‘nível do status’ é
imediata, ou seja, que não é possível estabelecer nenhuma outra relação entre os
elementos, como se x² + x fosse sempre igual a, por exemplo, 6.
O argumento de McCracken deriva do seu pensamento de que a pátina é um
efeito causado nos objetos antigos, passados de geração a geração, cuja história indica o
status do posuidor. A relação de significação assumida pelo autor é, aparentemente, a de
um índice. Para nós, no máximo, o signo ‘pátina’ poderia ser tomado como sinal, mas o
mais adequado para o caso, conforme veremos, seria mesmo um símbolo.
Analisemos o fato. Em primeiro lugar, as relações entre significante e
significado não são relações ponto a ponto, como se a cada um correspondesse outro.
São ambos sistemas. Toda análise sistêmica requer que fixemos um dos seus elementos
e, daí, procuremos as suas relações (não exatamente conexões). Por exemplo, se
dissermos que ‘pátina’ é um significante poderemos encontrar e associar a ele um
significado ‘status’. Mas esta não é única possível. Além disso, se dissermos que
‘concreções de superfície’ é um significante, então ‘pátina’ poderá ser dito como um
dos seus significados. Barthes (1982: 136) argumenta que as relações entre significante
e significado, aplicadas ao mito, constituem uma “cadeia semiológica”. Vemos, no
nosso exemplo acima, que as relações aqui também podem ser vistas como em cadeia.
Nada impede que um sujeito, diante de ‘pátina’, associe este significante a ‘coisa
antiga’, ‘marcas do tempo’, sem necessariamente associa-lo a ‘status’. Poderíamos
procurar outros exemplos na literatura etnológica. Mas, por acaso, este autor é
testemunha de uma outra associação feita por um sujeito em relação à pátina. Diante de
‘concreções de superfície’, o sujeito associou-o ao significado ‘sujeira’.17 E mais,
operando, obviamente sem consciência, um deslocamento na cadeia semiológica,
“denominou” ‘sujeira’ um significante e atribuiu-lhe o significado de ‘desleixo’, nada
havendo para ele que indicasse ‘pátina’, ‘história’, ‘herança’, ‘antiguidade’, ‘status’,
‘sofisticação’ etc.

17
Literalmente, o sujeito afirmou que o objeto “estava todo cascorento de sujeira”, onde, no caso, só a
“sujeira” era uma “antiguidade”. O mais interessante é que o proprietário do objeto - uma pasta de couro
que fora de seu avô - efetivamente a tomava como uma antiguidade, passada de geração a geração e
indicativa de seu status.

67
O sujeito em questão era um office-boy de uma pequena empresa e não um
antiquário. Certamente, no seu sistema de significações não constava ‘pátina’, nem
como significante nem como significado.
Um significado, quando sai “em busca” de um certo significante pode não
encontrá-lo e vice-versa e, daí então, significante e significado “colam-se” em outras
relações. Por isso, a arbitrariedade. O significante é inscrito na vida social. Geralmente,
segue-se um significado. Mas nosso boy nunca encontrou uma oportunidade de
inscrever no seu sistema de pensamento simbólico o significante “pátina”. Logo, as
concreções de carbono de cobre acumuladas na superfície do objeto, para ele, nunca
poderiam significar ‘antiguidade’, muito menos ‘status’.
Espanta-nos ver alguém com experiência etnológica aceitar como “natural” a
relação entre significante e significado. Além disso, McCracken ainda invoca como
analogia, o argumento de Veblen (1980), que afirmava que o custo de um objeto é o
indicador (nesse caso, assumido também como um índice) da posição de seu possuidor.
O custo dispensa atribuição simbólica; é resultante de uma operação contábil, expressa
em números discretos.
Admitimos que Veblen não podia ter lido Saussurre e, como não é dado a fazer
referências bibliográficas, não menciona Marx (1983). Mas McCracken deve tê-los lido.
Segue-se que, em primeiro lugar, ele não poderia ter colocado custo e pátina em pé de
igualdade, enquanto índices. O primeiro pode sê-lo, o segundo, nunca. A história do boy
acima não é única: pátina é símbolo e não índice. Em segundo lugar, se custo é apenas
índice, preço não o é. Preço é custo mais “fetiche” de mercadoria (Marx, 1983: ),
portanto um símbolo. E é preço, e não custo, que o sujeito paga pelo objeto.
E, pior, sua (boa) teoria da pátina não precisa desses argumentos.
Vejamos agora a questão do vestuário.

Roupas Falam?
McCracken (2003: 89-90) organizou “um projeto de pesquisa que examinaria
como o vestuário é ‘decodificado’ ou interpelado pelo observador”, mas confessa a sua
decepção “acerca da sabedoria de uma profunda comparação linguagem-vestuário”.
Resumidamente, McCracken projetou “slides que retratavam uma variedade de
instâncias do vestuário contemporâneo norte-americano”, convidando informantes a
“interpretar” mensagens que porventura as roupas transmitissem. Os resultados, embora

68
McCraken alerte que foram inferidos de um teste-piloto, foram inconsistentes ou óbvios
demais.
A premissa assumida por McCracken parece ser a de que o vestuário poderia
constituir uma língua (não-natural) e, em conseqüência, os itens (calças, paletós, blusas,
gravatas), associados a certos estilos ou formas, ou talvez cores (o autor não dá maiores
detalhes) pudessem constituir um código, passível de ser decodificado (McCracken
utiliza “interpretado”). O uso dos objetos pelas pessoas projetadas nas imagens,
constituiria a aplicação do código, de tal modo que pudesse ser assimilado como uma
“fala”, que, por sua vez pudesse ser “interpretado” por outras pessoas instadas a
responder sobre o seu significado.
Na apuração dos resultados de uma “primeira categoria” de testes, McCracken
(p. 92) descreve que “os informantes que não pareciam começar sua atividade
interpretativa (...) através de uma cadeia sintagmática a fim de determinar como cada
seleção paradigmática modificava o significado de outras seleções da própria cadeia (...)
Pareciam, ao contrário, ler as roupas antes como um conjunto”. Numa “segunda
categoria”, em que, deduzimos, as vestimentas utilizadas não estavam “combinando”, a
“interpretação” fracassou.

Há uma enorme quantidade de imprecisões, lacunas e equívocos metodológicos


na descrição do autor, que nos dificultam a abordagem. Procuraremos. elaborar
comentários em tópicos para depois tentar uma síntese.

I. o princípio da seleção não opera mudanças de “significado” da frase,


como parece crer McCracken (p. 90). A seleção responde pela
organização gramatical da frase, onde a substituição de elementos tanto
pode quanto não, dar sentido à frase. No famoso exemplo de Chomsky
(1980: 17): (1) Colorless green ideas sleep furiously é uma frase
gramatical embora sem sentido, enquanto (2) Furiously sleep ideas green
Colorless nem faz sentido nem é corretamente gramatical. Vimos, no
exemplo que derivamos, no Capítulo 2, que uma substituição de
elementos na frase 1 pode lhe dar sentido, mas substituições da mesma
ordem não seriam capazes de faze-lo na frase 2;
II. O princípio da combinação, aí sim, responde pelo significado da frase e,
obviamente, dependendo das substituições operadas, o significado muda,

69
posto que os elementos passam a ter outras combinações. Mas veja-se
que não há combinação possível que dê sentido nem significado à frase
2, operadas quaisquer substituições, obviamente, da mesma categoria
léxica e sintática. Os livros de gramática estão cheios de exemplos desses
processos. Agora, importa aqui ressaltar que, embora a falta de detalhes
no relato de McCracken, queremos crer que os procedimentos efetuados
na “segunda categoria” de testes implicavam substituições de itens de
vestuário, de forma a pretensamente gerar novas combinações, tais como
um paletó que denotasse ser novo e caro, acompanhado de calças velhas
e rotas. Ora, é preciso saber se as substituições geraram novas
combinações ou simplesmente “frases” não-gramaticais e sem sentido,
como a frase 2;
III. a perplexidade de McCracken quanto à conduta dos informantes, que não
procediam a uma análise linear e sim do conjunto, demonstra ignorar um
dos mais importante ensinamentos de Saussure: a noção de valor. Em
uma língua, o valor do elemento gramatical é efetivamente dado em
referência à relação com um conjunto, diríamos, com um sistema. Quem
opera análises lineares (e também conjunturais) nas frases são os
gramáticos profissionais. As pessoas comuns somente o fazem quando
precisam passar na prova de idiomas. E bem sabemos como sofremos por
isso!;
IV. McCracken não menciona as conclusões de Richardson e Kroeber (1940)
sobre o estilo do vestuário feminino, nas quais o fenômeno não se mostra
acessível à observação empírica, mas pode ser capturado através de
relações estruturais, tendo-se como referências a matemática e a
lingüística;
V. McCracken usa freqüentemente e, às vezes, indistintamente “interpretar”
e “decodificar”. Não são a mesma coisa. Se o código for uma cadeia de
significantes que não tem compromisso com o sentido, então ele não
pode ser interpretado. Que bases teríamos para isso? Mas o mesmo
código pode ser decodificado, em relação a outro código homólogo. O
que McCracken esperava de seus informantes? Ao que parece, uma
interpretação. Se esperava interpretação, primeiro, não podia exigir-lhe
análise gramatical e, segundo, deveria achar normal que surgissem

70
interpretações do tipo: “pelo que ele está vestindo, ele parece um
empresário, mas deve estar falindo ...”. A interpretação é uma
representação subjetiva. Sperber (1992: 29), assinala que a interpretação
é uma categoria heteróclita, que necessariamente se desvia da natureza
gramatical;
VI. ainda segundo Sperber (1992: 29), uma definição da interpretação como
representante fiel à significação do objeto representado apenas tem
sentido em certos casos particulares. Macintosh (2004), diferentemente
de McCracken, obteve consistência na análise de significações do
vestuário entre adolescentes, em um segmento restrito e definido de
consumidores. Exemplos citados pelo próprio MacCracken (2003: 84-91)
dão conta de resultados bem-sucedidos na inferência das significações do
vestuário. É possível que tais estudos, como o de Macintosh, tenham sido
conduzidos em ambientes sociais restritos e definidos, favorecendo a
interpretação;
VII. uma língua não é simplesmente um código. É um código com
possibilidades morfológicas, flexionais e sintáticas que nenhum código
comum, uma língua não-natural, possui (Lyons, 101-127). Acreditamos
que - e Lévi-Strauss já nos havia alertado - a transposição ponto-a-ponto
de uma estrutura lingüística para um outro sistema pode não oferecer
resultados consistentes. No vestuário, o que corresponde a um fonema?
Uma camisa poderá ser considerada um morfema? Um terno uma frase?
Uma bermuda é uma forma flexionada de calça? Não nos parece que
essas relações possam nos oferecer segurança para adotar um modelo
lingüístico ponto-a-ponto;
VIII. McCracken alerta, mas parece não guardar suficiente cautela, para as
diferenças entre linguagem (‘langue’) e fala (‘parole’) na linguística
estrutural. A língua corresponde a uma estrutura inscrita no inconsciente,
no processo de subjetivação. Da fala, diz-se usualmente que ela
corresponde ao uso da língua pelo sujeito. Como a língua é reconhecida
como fato sócio-cultural, presume-se que a fala de algum modo funciona
como meio de comunicação cultural. Mas como vimos, no Capítulo 2,
não há motivos para se admitir que a linguagem possa ser explicada pela
sua função de fala. Mesmo a língua parece ter uma função autônoma, não

71
existindo somente para que se fale através dela. Além disso, se o uso dos
objetos constitui um recurso de uso de ‘língua’ ainda no capítulo 2(nos
termos em que vimos no item II) será uma língua não-natural, sujeita às
limitações ali notadas;
IX. roupas não falam, pelo simples fato de não serem humanas. Humanos
falam. Roupas podem constituir um código, do qual se pode extrair
alguma significação. Assim como os lingüistas (exceto Sapir que, se
tivesse tido a oportunidade, teria revisto alguns de seus princípios) não
aceitam explicar a linguagem ou mesmo a língua a partir da função de
fala, podemos admitir que a fala não existe apenas para exercer a língua e
nem mesmo para comunicar. Lembrando nossos exemplos, a fala não
parece estar ligada à comunicação quando falamos no divã do
psicanalista ou quando cantarolamos no banheiro;
X. não podemos afirmar que o uso dos objetos sirva, necessariamente, à
comunicação. Conforme vimos acima, não excluindo a comunicação do
processo de trocas, o consumo dos objetos está relacionado à constituição
do sujeito, não ensejando, como fato lógico, a fala. Revendo o ponto, a
troca de objetos pode desembocar em duas manifestações: primeira, o
consumo de objetos e; segunda, a comunicação. Posso, portanto,
consumir sem comunicar. Quer dizer, enquanto pertenço à categoria
‘consumidores’, posso usar objetos para comunicar alguma mensagem
(status, estilo de vida etc), mas não obrigatoriamente. Posso usar objetos
apenas para ajustar, regular ou mesmo fixar significantes, no meu
processo de subjetivação;

Acreditamos que todos esses fatores reunidos possam oferecer uma explicação
aceitável para o fato de a pesquisa de McCracken não ter dado certo. O problema não
nos parece estar em “o vestuário, uma das mais expressivas categorias de produto, não é
proveitosamente comparável com a linguagem” (p. 83). O que se precisa é: i. mais rigor
quanto à regras da lingüística; ii. reconhecer os limites e as possibilidades da lingüistica
aplicada a fatos etnológicos sociais e, em particular, ao consumo e ao uso dos objetos e;
iii, definir-se, na análise dos dados, pela utilização das categorias lingüísticas ou das
categorias da interpretação.

72
Discussão
Consideramos, assim como Campbell (2001), que o consumo é uma prática
inner-orientada. Seu tratamento, portanto, favorece mais à busca pela via do sujeito do
que da cultura, sem cair, obviamente, no individualismo utilitário. Em lugar de ver no
consumidor simplesmente como “rei” ou um sujeito obediente aos ditames sociais,
devemos vê-lo como numa peleja entre o seIf e o outro, tendo como armas, dentre
outras, os objetos.
Pessoas quando consomem estão a procura de algo, que não é apenas resolver
um problema funcional ou atender a uma “necessidade”. Tampouco, é simplesmente
fazer uma comunicação social usando um código certinho, que todo mundo vai entender
e ele então vai ser decifrado e identificado. Assim como o sujeito falante faz uso de
fonemas, pode talvez fazer uso do que chamaremos de produtemas. Um produtema é
uma unidade simbólica em busca de correspondência com a cadeia de significantes.
Eles estão, nem sempre visíveis e inteligíveis, nas coisas, assim como as categorias
lingüísticas estão, nem sempre visíveis e inteligíveis, nas línguas, nas estruturas de
parentesco, no totem e nos mitos. Um bem torna-se um produto consumível quando
reúne as qualidade de objeto. Um produto é, portanto, uma coisa consumível que traz no
seu bojo (a), utilidade e funcionalidade, para atender à demanda utilitária; (b), um ou
mais elementos simbólicos que possam se relacionar com um código de comunicação e,
supomos, (c), um ou mais elementos simbólicos, provavelmente da mesma natureza
lingüística daquele do item anterior, para ajustar a subjetividade. O consumidor não
precisa exatamente de produtos. Precisa resolver problemas funcionais, sociais e
subjetivos.
O elemento simbólico, a unidade de ajuste, dos itens (b) e (c) é o que chamamos
de produtema. Não queremos dizer com isso que uma operação de consumo possa
ajustar exatamente, no universo da comunicação, o produtema e o código; nem, no
inconsciente, o produtema e o sujeito, uma vez que até mesmo o ajuste – operado em
uma língua natural – entre o fonema e a estrutura da língua é uma adaptação. O que nos
faz admitir que uma coisa tornada objeto – adquirida em um mercado ou não – contenha
propriedades linguais – comunicativas e subjetivas – é o pressuposto da gramática
gerativa de existência da estrutura essencial que comporta a matemática, a linguagem e
outros códigos formais, que vimos no Capítulo 2. Se perdermos o paradigma da
Lingüística, perderemos o sentido de toda essa discussão. De resto, se nem mesmo a
relação entre um objeto funcional e sua aplicação utilitária são sempre e bem

73
correlacionadas por um consumidor, não devemos alimentar esperanças de que os
elementos simbólicos o sejam.

Nossa apreciação final quanto às possibilidades da Lingüística em relação aos


fenômenos do consumo é a de que a teoria lingüística apresenta propriedades favoráveis
à abordagem. Tal apreciação, contudo, é irrestrita com relação ao sistema de
pensamento lingüístico, o princípio da Lingüística. Quanto ao método analítico,
julgamos que a revisão acima evidencia as suas dificuldades, muito embora tenhamos
conhecimento de outras experiências favoráveis. Para chegar a uma teoria da
comunicação do consumo, uma teoria lingüística do consumo poderá tomar como
elementos análogos – e não exatamente homólogos e intercambiáveis – ‘Consumo’ (C)
e ‘Língua’ (L), ambos ligados a processos de interiorização de significações, e, de outro
lado – igualmente análogos entre si – ‘Objeto’ (O) e ‘Fala’ (F), enquanto representações
operativas do pensamento simbólico.
Desta maneira, poderíamos formular
C : L :: O : F
como relação consistente para a investigação das propriedades e dos processos de
‘consumo’, como análogos às propriedades e aos processos de aquisição de ‘língua’ e,
da mesma forma, as propriedades e os processos de ‘objeto’ com os de ‘fala’. O método
exigiria ainda que separássemos mais precisamente o que é consumo do uso geral que se
faz dos objetos, assim como se deve separar a língua e da fala. Trata-se de uma
formulação mais técnica e formal do que “os objetos falam”. Neste caso, ‘consumo’
compreende a categoria abrangente, no interior da qual o sujeito opera o ‘objeto’, ou
seja, compra, dá e usa propriamente.
No primeiro capítulo desta obra, tivemos o cuidado de delimitar as partes do
sistema de consumo: comprar, dar, usar; cujo mediador é a re-elaboração simbólica a
que se refere Bourdieu (1979), este sim, homólogo ao sistema de produção
(considerados os argumentos ali apresentados). Tais elementos nem sempre apareceram
delimitados na literatura sobre o tema; acreditamos nunca terem mesmo sido
apresentados como sistêmicos. Mas, entende-los dessa forma, cria facilidades de
abordagem, não apenas para forçar uma proximidade com a teoria lingüística, mas
porque efetivamente, comprar, dar e usar objetos se configuram mediante intenções e
ideações diferentes no sujeito, embora possam ocorrer no mesmo momento. Já
sabíamos, desde o advento da teoria da dádiva, da função simbólica da dação, enquanto

74
a investigação de McCracken esteve focada no uso de objetos. Mas não são apenas dar e
usar objetos as únicas funções capazes de operar significações. Pudemos confirmar em
nosso teste de campo que a compra em si também é um operador simbólico no sistema
de consumo.
‘Consumir’ nos parece estar estruturalmente relacionado a ‘internação’,
comparável à organização do sistema de significantes, vinculada à organização do
sujeito, à ordem da metáfora. ‘Operar (comprar, dar, usar) objetos’ nos parece
comparável à elaboração metonímica da frase. Quando a comunicação do sujeito
funciona, é como se executasse uma frase gramaticalmente correta e com sentido. Às
vezes, é uma execução simples demais, de uma obviedade tal que talvez tenha sido o
que levou McCracken a desprezar sua manifestação. Às vezes, parece não fazer sentido;
é como dizer “Colorless green ideas sleep furiously”. Realmente não faz sentido, mas
nada nos autoriza a negar a sua exatidão estrutural. Aqui, McCracken pode ter
desprezado a significação devido à sua aparente inconsistência. Mas, reconheçamos, se
uma frase estruturalmente correta e sem sentido metonímico, no universo de uma língua
natural, precisou de um gênio da lingüística para identificá-la e elaborá-la, o que
podemos fazer no campo da comunicação dos objetos?
No caso do discurso do sujeito, o processo é mais complexo ainda, uma vez que
não é propriamente um discurso. A frase de Chomsky acima pode não fazer sentido
comunicativo, contudo pode ter valor para o sujeito. Mas deixemos essa apreciação para
depois que invadirmos um pouco mais o domínio do sujeito. Queremos apenas
evidenciar aqui as dificuldades a que alude Lévi-Strauss (1989a: 85-99), que referimos
no Capítulo 3, e que parecem querer dizer “adote o princípio da teoria lingüística, mas
cuidado com o seu método”.
Teríamos, todavia, mais uma restrição metodológica a notar. Ignorando a
estrutura, a interpretação somente tem como operar no terreno da metonímia. Neste
caso, o máximo que pode ser dito é que uma frase – elaborada com o uso de fonemas ou
produtemas – faz ou não faz sentido. A interpretação permite uma absorção de
significação, no sujeito, considerada unicamente o código que flutua no meio social,
com o qual o sujeito procura identificação e, daí, a classificação de coisas e pessoas,
como acentua Everardo Rocha, na apresentação da edição brasileira da obra de Douglas
e Isherwood (2004). Neste caso, nada podemos dizer quanto à operação dos objetos na
relação do sujeito de si para consigo mesmo. A interpretação tem propriedades para
poder atender a alguns casos de comunicação, mas uma vez que nem toda operação de

75
objetos visa à comunicação (também confirmamos isso em nossa pesquisa), pelo menos
uma parte do sistema de consumo ficará oculta da visão interpretativista. Além disso,
perde-se a oportunidade de se visualizar a possibilidade de operação simbólica, no
sujeito, entre o inconsciente – e, portanto o mito, o totem – e o mundo objetivo.
Teríamos muita dificuldade, portanto, para percorrer a trilha interpretativista, na busca
de um operador totêmico no sistema de consumo. Para uma proposta como a de
McCracken, que parece ter sido inspirada na idéia totêmica de Sahlins (1976) com
relação ao vestuário, a compatibilidade com o método geertziano se torna uma via sem
saída.

76
Capítulo 6
Hoc Est Corpus Meum

Dedicam-se o presente e o próximo capítulos à investigação e à crítica da


proposta ao antropólogo inglês Daniel Miller (2000), a qual tratou de inserir o sistema
de consumo na lógica do sacrifício.
Quando nos defrontamos com a proposta de Miller, experimentamos um
sentimento confuso de curiosidade e contradição, ampliado mais ainda pela evocação do
pesquisador à obra de Georges Bataille (1967), La Part Maudite. Sabíamos que o
controverso filósofo bretão havia ali invadido um domínio inquietante sobre a dimensão
divina do sujeito e sua extinção “sem lucro” no ritual do sacrifício asteca, que
culminava com o canibalismo. Como teria Miller relacionado a função sagrada do ato
masculino do sacrifício asteca com o ato feminino de realizar compras de itens de
provimento em uma de Londres, no final do século XX?
Logo vimos que o pesquisador inglês teve que se afastar da proposta de Bataille
através de uma crítica inconclusa e evasiva. O pensador bretão dera-lhe apenas uma boa
idéia. A teoria de Miller não cabe no caso asteca; seus parâmetros foram extraídos do
rito do sacrifício hebreu, baseado na conhecida obra de Hubert e Mauss (1981), Ensaio
sobre a Natureza e a Função do Sacrifício. Mesmo assim, a função sagrada do
sacrifício hebreu é também exclusivamente masculina; admitir os atos de compra das
donas-de-casa inglesas como função sagrada se nos pareceu um tanto forçoso. Todavia,
isso não pareceu invalidar a proposta de Miller – devido à sua propriedade de evidenciar
um traço sociológico efetivo de subjetividade – e decidimos avançar em uma pesquisa
que trouxesse lhe melhor embasamento teórico no campo do sacrifício. Nosso estudo

77
dos casos de sacrifício hebreu, tupinambá, asteca e cristão acabou por revelar aspectos
instigantes da vinculação do sagrado com os atos de consumo. Acabou também por nos
ajudar a definir nosso objeto de investigação de campo.
No presente capítulo, apresentaremos a tese de Miller e, em seguida, o relato
sobre os casos acima mencionados. No capítulo seguinte completaremos nossa análise e
tentaremos elaborar um extrato crítico que nos auxilie na investigação sobre o sujeito.
Uma perspectiva comparada na análise irá mostrar outros processos e nuanças da
simbologia do sacrifício, notadamente quanto às relações entre sujeitos e entre sujeitos e
objetos que os sacrifícios parecem significar.

Atos de Amor
O ato de sacrifício identificado por Miller, está localizado na parte do sistema de
consumo que compreende a troca de bens por dinheiro: a compra. A obra oferece dois
interessantes contrapontos ao estudo de Campbell (2001); o primeiro: em lugar da
motivação do desejo e da busca do prazer hedonístico no consumo, Miller oferece
sacrifício, abnegação e entrega do sujeito. Não são, necessariamente, propensões para
condutas irreconciliáveis, mas, aplicadas ao sistema contemporâneo de consumo,
tamanha disparidade conceptual se nos parece uma evidência do quanto está aberto o
campo para propostas sobre o tema, fora das contribuições econômicas e gerencialistas.
O outro contraponto diz respeito à categoria de enfoque lingüístico: a perspectiva de
Miller é sincrônica, metafórica, estrutural; abordagem de Campbell é sociológica e
histórica; diacrônica e metonímica.
Miller parece mesmo ver homologia entre o ato de sacrificar hóstias, ao fogo do
Tabernáculo, e o ato de comprar itens de subsistência nas lojas de uma rua da Londres
dos nossos dias. Sua tese se expressa na proposição, no mínimo inquietante, de estarmos
nós, modernos e racionais, a reproduzir as mesmas significações dos antigos hebreus,
quando compramos um inocente cacho de bananas na barraca de uma feira.
Diferentemente de outras teses, apoiadas sobretudo na tradição Judaico-Cristã, que
colocam o trabalho como o equivalente estrutural do sacrifício, Miller o transfere para
as compras, representada pela ação, tão nossa conhecida nos dias de hoje, de adquirir
bens despendendo o dinheiro obtido, de uma forma ou de outra, através do trabalho. A
justificativa de Miller para centrar na compra e não no trabalho o ato de sacrifício é a
sua natureza devota; na visão do antropólogo, sacrifício e compra são “atos de amor”.

78
Em seu trabalho etnográfico numa rua comercial da zona norte de Londres,
encontrou poucas consumidoras para os quais comprar poderia ser equivalente a um ato
de lazer ou fonte de prazer. Para Miller, suas consumidoras demonstraram estar
cumprindo uma obrigação devota em relação aos seus parentes, principalmente seus
filhos. Não é difícil entender a origem das associações elaboradas pelo autor: ele
concentra sua pesquisa em compras de gêneros alimentícios, sobretudo, operadas por
mulheres donas-de-casa. Evidentemente, este tipo de compra é realizado em intenção da
família e diz respeito a uma atividade que normalmente antecede à cozinha, a que Miller
dá uma pouco de atenção, sem, contudo, constituir o foco de seu interesse, estando
ambas, compra e cozinha, vinculadas à devoção à família. Constitui exceção a compra
feita pela dona-de-casa em seu próprio benefício ou prazer. Miller teria encontrado
apenas um caso emblemático que poderia levá-lo, tal como Campbell, à visão da
compra como prazer. Trata-se do caso da “erótica” Mary; uma mãe solteira cujos atos
de compra têm, aparentemente, diferente significado daquele atribuído aos atos das
"sacerdotisas" que, em geral, o pesquisador abordava no comércio de sua rua londrina.

Mitologia Hebréia18
O trabalho enquanto castigo é um exercício associativo geralmente extraído do
Gênesis, a partir da expulsão do Paraíso. A expulsão é vista pelos cristãos como uma
decorrência imediata do pecado e, pelos psicanalistas, como a extinção da vida intra-
uterina, o que, em última análise, são significações que não diferem estruturalmente
entre si. Mas, do modo como o mito chega até nós, pode estar associado ao momento
em que a criatura humana alcança a consciência de si e ao ponto de partida do sujeito.
Uma análise comparada ao mito de Prometeu, por exemplo, revelará, sob esse princípio,

18
Adotaremos neste trabalho a designação do povo da Bíblia como hebreu. Todavia, alguns
esclarecimentos sobre os diversos nomes do povo devem ser feitos. Supõe-se que os hebreus originam-se
dentre os povos semitas (filhos de Sem), nômades da região dos rios Tigre e Eufrates, tendo um dos seus
principais líderes, Abraão, migrado para Canaã. A partir da descendência de Jacó (chamado Israel), neto
de Abraão, o povo do Livro passa a ser chamado de israelita. Após a fuga dos israelitas do Egito e da
conquista da Terra Prometida, dez das doze tribos de Israel (descendentes dos doze filhos de Jacó)
ocuparam as terras de Canaã, ao sul da Síria, ao longo do rio Jordão. Esse território passou a ser chamado
de Israel. A maior das tribos, Judá, e a tribo de Benjamin ocuparam um território quase tão vasto, ao sul
de Israel e a leste da Filistéia (hoje, Faixa de Gaza). Esse território passou a ser chamado Judá. Ao tempo
dos três primeiros e principais reis dos hebreus (Saul, Davi e Salomão), Israel e Judá já pareciam ser
reinos separados, mas, com alguns períodos de exceção, os três reis governaram os dois reinos. O
primeiro desses reis era benjamita, os outros dois judeus, isto é, da tribo de Judá. Após a morte de
Salomão, a divisão dos reinos passou a ser clara, tendo cada reino o seu governante. Em 722 AC, os
assírios tomaram Israel, dispersando seu povo. Historicamente, Israel e os então chamados israelitas
desapareceram. Daí em diante, o povo da Bíblia passou a ser chamado de judeu. Judá caiu nas mãos dos
babilônios em 586 AC. Ignoramos e destino dos benjamitas.

79
uma estrutura homóloga. Nas palavras do texto bíblico, a expulsão se dá em decorrência
da violação de uma proibição: o comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do
mal, o que torna os homens "um de nós", quer dizer, deuses. Tornar-se "um de nós"
implica a aquisição de consciência, ou como Lévi-Strauss às vezes se expressou,
embora não objetivamente invocando o Gênesis, o momento da evolução bio-simbólica
em que os humanos adquiriram a capacidade significar. Conhecimento do bem e do mal
implica consciência: consciência de si, da divindade e subjetividade. A evidência de que
a consciência de si e a subjetividade somente são possibilitadas pelo conhecimento é o
relato bíblico da percepção, tanto do Homem quanto da Mulher, de que estavam nus, o
que acontece somente após comerem do fruto da árvore do conhecimento. Neste ponto,
descobrem o sexo e operam o primeiro uso simbólico de uma coisa: a folha da parreira
que lhes serve de “roupa”, inventando assim o objeto e, simultaneamente, o sujeito.
No mito grego, Prometeu, “por amor aos homens”, rouba uma fagulha de fogo
do Olimpo e dá aos humanos, pelo que é castigado por Zeus. A significação do mito,
dentre outras, está associada à consciência de si, adquirida através do fogo divino,
tornando-se “um de nós”. Doravante, os humanos passarão os alimentos do estado do
cru para o cosido, do estado de natureza para o estado de cultura (Lévi-Strauss, 1991 e
1976), da inocência para a consciência, realizando então a própria.
No mito bíblico, a conseqüência da violação foi a expulsão do Paraíso e a
condenação ao trabalho; do produto do trabalho, vieram, posteriormente, as ofertas à
divindade. No mito grego, a violação também enseja castigo – tendo Zeus mandado
acorrentar Prometeu – e trabalho, uma vez que sua libertação constituiu um dos doze
trabalhos de Hércules (meio-homem, meio-deus).

O Deus dos hebreus está muito longe de ser único. É o deus de um povo, ou
melhor, de uma linhagem. O povo hebreu não era monoteísta; era henoteísta, quer dizer,
adorava uma só divindade, mas admitia a existência de outras. O próprio El, nos livros
da Torá, coloca-se em oposição raivosa ao que teria sido o seu principal rival: Baal, que,
na mitologia babilônica, é seu próprio filho. El exorta os hebreus a adorar somente a ele,
sob o argumento de que foi ele que os livrou da escravidão no Egito. Reiteradamente, El
ameaça os hebreus de voltar a dispersá-los, de lhes retirar a Terra Prometida e de
devolver-lhes à escravidão, caso não adorem somente a ele. No tempo dos Reis, El
repreende todos aqueles hebreus que se inclinam para Astarte (ou Astaroth), deusa dos

80
sidônios, para Moloc (equiparado ao egípcio Amon), deus dos amonitas e para Camos,
deus dos moabitas (3 Reis 11).19
A páscoa dos hebreus pode ser compreendida como o equivalente da comunhão
cristã; mas representa mais especificamente a reiteração da aliança entre um povo e seu
deus. O deus de Abraão, o deus de Isaac e o deus de Jacó parecem ter sido deuses
familiares, simbolicamente sintetizados mais tarde no deus da linhagem e, mais tarde
ainda, no deus de um povo. El não é nem um deus único, nem um deus universal. Seu
culto, notadamente quanto à queima da hóstia e o derramamento do sangue da vítima,
assemelha-se ao culto às divindades familiares dos gregos pré-arcaicos. A diferença era
que os deuses gregos pré-panteão ainda eram os próprios ancestrais, enquanto o deus
dos hebreus tornou-se deus de um povo inteiro. Era uma entidade externa – um inimigo,
um estrangeiro – sem representação corpórea, assumido por uma descendência. Era,
20
possivelmente, uma divindade cuja concepção estava a caminho de um Deus único,
que somente emergiu com certa clareza entre os cristãos – a Trindade una – e, de forma
mais acentuada, enfática e definitiva, com os muçulmanos. Mas El não era um Deus
único. Era externo, não estava dentro, sua relação com o povo era a de supremo x
submisso; separava os homens de si. Não tinha forma; era somente sangue.
El, o deus dos hebreus, é uma entidade separada do povo. Proíbe o povo de dar-
lhe representação corpórea. Em nenhum momento convida o povo para que se tornem
um só. Em lugar disso, obriga-os a adorá-lo. No sacrifício hebreu não há holocausto
humano nem canibalismo. A interdição do sacrifício humano entre os hebreus está
demarcada no Gênesis (22), quando El impede Abraão de imolar seu filho, ato tido
como de pura piedade divina, mas que pode ser entendida como a interdição da união
entre o Pai e o Filho, que o cristianismo recuperou. El, ao impedir a reunião do Pai e do
Filho, reproduz a sua rejeição a Baal, seu filho.

19
Escolher um nome para designar o deus dos hebreus não é tarefa simples. Ao que tudo indica, a
concepção do deus daquele povo era decorrente da união de algumas concepções divinas das tradições
politeístas mesopotâmica e cananéia, sendo a significação de Deus a combinação das significações
associadas a Marduk e Tiamat, mesopotâmios, e a El e Baal, cananeus, sendo este último um deus
veementemente rejeitado por El, no texto do Tanach. O Tanach, a Bíblia dos judeus, designa Deus, na
maior parte do texto, por Yahveh (Javé), cujo significado é Senhor, tanto como substantivo próprio quanto
comum. Nas traduções ocidentais, cristãs e judaicas, o nome usado é, em geral, Senhor. Todavia, Deus,
el (El), designação a que, por diversos motivos, aqui preferimos, principalmente
devido aos registros de que era El (e não Javé) que exigia o sacrifício de sangue e corpo (veja-se
Armstrong, 2002, e, principalmente, Miles, 1997, caps. 1, 2 e 3).
20
Armstrong (2002, cap. 2) sustenta que Javé, a concepção divina que se sucedeu El, já entre os judeus,
se aproxima bem de um Deus único. Javé exige dos judeus mais fraternidade e respeito ao próximo do
sangue, embora o sacrifício de sangue somente tenha desaparecido na era cristã.

81
Sacrifício Hebreu
O sacrifício hebreu é representado por uma hóstia constituída de animais e
vegetais obrigatoriamente retiradas do rebanho do sacrificante; é nitidamente ato de
devoção. No sacrifício hebreu, o sangue da vítima, a parte divina, é expressamente
proibida ao consumo dos humanos. El concede que apenas partes do corpo da vítima – o
pó – sejam consumidas pelos humanos. O sangue pertence exclusivamente a Deus. Atos
de sacrifício eram celebrados consistia numa série de obrigações em intenção da
remissão de pecados, da cura, da unidade social ou simplesmente de propiciação.
Implicava oferecer o melhor do rebanho e da colheita, de cujo benefício (para a
reprodução, para o consumo não-sacrifical) o sacrificante abria mão. O sangue da vítima
não era oferecido ao consumo dos homens. Algumas gotas do sangue eram aspergidas
na altar do Senhor; o resto era derramado no chão, à semelhança dos atos de libação dos
gregos, ou queimada.
O objeto – nunca o sujeito – sacrificado era criatura, produto do trabalho, dos
homens – era expressamente proibido o sacrifício de animais selvagens ou livres – e se
consubstanciava no fogo. O holocausto (òlã) implicava a queima integral da vítima,
transformando-a em duas substâncias: a fumaça e as cinzas. A fumaça levava o "aroma
agradável ao Senhor" (Levítico, diversas vezes citado), enquanto as cinzas também
requeriam cuidados rituais especiais (Levítico 6, 8-13). A queima, bem como a
manutenção do fogo constantemente aceso, era função dos homens, assim como nas
casas gregas do período pré-arcaico (Coulanges, s/d). Em alguns casos, partes
específicas da vítima eram destinadas ao consumo dos levitas – os sacerdotes – que as
comiam, juntamente com sua família, obedecendo a regras também explícitas. A vítima
nunca era integralmente consumida pelos homens.

Antropofagia Tupinambá 21
Devemos nossas possibilidades de inferência do caso tupinambá,
principalmente, aos escritos do armeiro alemão Hans Staden, do catequista jesuíta José
de Anchieta, do cosmógrafo católico André Thevet e do pastor protestante Jean de Léry.

21
Uma vez que nosso interesse, neste estudo, é estabelecer um contraponto entre os sacrifícios hebreu e
outros ritos que envolvem canibalismo, julgamos suficientes as revisões dos casos tupinambá, asteca e
cristão. Excluímos da abordagem outros casos igualmente significativos de ritos canibais, sobretudo os
extraídos da imensa riqueza da etnologia brasileira, como os verificados entre os arawetés, os yanomamis
e os kaxinawás. Veja-se, dentre outras, as obras de Viveiros de Castro (1986) e Villaça (1992).

82
Para este estudo, recorremos aos trabalhos de segunda mão do etno-sociólogo brasileiro
Florestan Fernandes e do pesquisador francês Frank Lestringant.
O canibalismo tupinambá é um ritual que tem lugar no bojo de um sistema de
guerras. Segundo Florestan Fernandes (1963), a guerra dita o ritmo e a organização
social do povo tupinambá. A guerra também permite a operacionalização do mesmo
princípio lógico da dádiva; ou seja, a obrigação de retribuir e/ou de revidar. Fernandes
não tem muitas dificuldades teóricas em justificar o sistema de guerras tupinambá no
interior de um processo infindo de vendetta entre as tribos, à semelhança dos sistemas
sociais mediterrâneos, incluídos os hebreus. Assim, na visão do pesquisador brasileiro,
as guerras tupinambás existem para vingar o irmão morto e restabelecer a ordem e o
equilíbrio sociais.
Ocorre porém que esse processo inclui um fator diferencial bastante significativo
e socialmente diferente das práticas mediterrâneas: o canibalismo ritual. Um inimigo
morto numa batalha implica vingança que, por sua vez, ensejará novas vinganças.
Comer e ser comido ...
Um inimigo capturado será levado para aldeia, morto ritualmente em ocasião
propícia e, em seguida, seu corpo será assado e devorado por todos os membros da
aldeia, exceto o matador ritual. Seu sangue será colhido e com ele as mulheres untarão
os corpos das crianças, para que cresçam fortes e saudáveis.
O ato da vingança, se guardadas as semelhanças sociológicas com a prática
mediterrânea (e também japonesa e chinesa tradicionais), poderia esgotar-se na simples
morte do assassino. Mas não. No caso tupinambá, em primeiro lugar, a depreender-se
das descrições citadas, a vingança não é pontual e dirigida a um homem específico, nem
motivada por um evento específico, nem executada obrigatória e diretamente por
parente próximo de uma vítima específica. Qualquer guerreiro inimigo que já tenha
matado está em condições de ser aprisionado e morto ritualmente. Em segundo lugar, o
corpo do inimigo morto é devorado, prática que os povos mediterrâneos somente
parecem executar simbolicamente. Os gregos sarakatsani, mesmo quando falam em
"beber o sangue" do inimigo, não o fazem de fato, nem banham seus filhos com o
"líquido da vida".
Há, na vingança tupinambá, uma intenção de restituição do equilíbrio e de
preenchimento do espaço vazio deixado pelo irmão tribal morto. Invariavelmente, um
guerreiro aprisionado e levado para aldeia permanecerá lá durante algumas semanas
(talvez, meses), desempenhando funções que deixaram de ser desempenhadas por um

83
irmão morto, incluindo obrigações maritais para com uma viúva que porventura não
tenha ainda se casado novamente. Será alimentado e cuidado pela mulher e, se
eventualmente suas relações sexuais gerarem um filho, a criança será sumariamente
morta ao nascer, pois será um filho do inimigo.
O prisioneiro jamais fugirá e jamais implorará pela sua vida. Isso seria motivo
de extrema desonra. Nas últimas semanas antes da execução, depois de ser bem tratado,
será amarrado a um poste no centro da aldeia, será diariamente insultado pelas mulheres
e crianças e responderá aos insultos à altura. Seus últimos dias serão literalmente
contados, através da retirada diária das contas do colar que lhe foi pendurado no
pescoço, ao ser amarrado no poste. Somente os bravos que já mataram estão sujeitos ao
ritual que, segundo as análises dominantes, é uma ato de louvor ao inimigo. A crença
tupinambá da absorção dos valores e da bravura do inimigo através da devoração de seu
corpo, conduz o católico Thevet a coloca-lo em uma posição honrosa, inspirando o
próprio Montaigne a uma atitude favorável em relação aos então brasileiros, ao mesmo
tempo que evidenciava as atrocidades dos civilizados europeus.
O aspecto místico e religioso do ritual tupinambá recebe menos atenção de
Fernandes, muito embora seus antecessores já muito se tenham referido a eles. Segundo
Lestringant (1997), teria sido o próprio André Thevet o primeiro cronista dos povos do
Novo Mundo a formular, ainda sem muita clareza, associações entre a antropofagia
ritual tupinambá, o mistério da transubstanciação do corpo do Cristo no pão ou na
hóstia cristã (católica) e o sacramento da Eucaristia.
O huguenote Jean de Léry retoma a questão posta por Thevet, inserindo-a na
antiga controvérsia entre católicos e calvinistas em torno da Eucaristia e das palavras do
Cristo: "O que come a minha carne, e bebe o meu sangue, esse fica em mim, e eu nele"
(João 6, 57). Para os calvinistas, estas são palavras que não devem ser tomadas ao pé da
letra, mas assumidas como um tropo metonímico que conduz a coisa significada - o
corpo, o sangue - à coisa significante - o pão, o vinho. Para os cristãos não-reformados,
o Cristo opera efetivamente o milagre da transubstanciação do seu corpo e do seu
sangue no vinho e no pão - no caso dos ortodoxos - ou na pequena bolacha de trigo, que
representa a hóstia católica. Neste caso, o milagre opera uma substituição metafórica de
fato. Léry não resiste mesmo a ironizar a semelhança dos ritos dos católicos - os "come-
Deus" - com os dos "brasileiros", aos quais também veio pessoalmente conhecer.
O pesquisador americano Hans Askenasy (1994, pp. 109-110) nos chama a
atenção para o valor da transubstanciação entre os católicos. As decisões do concílio

84
dirigido pelo Papa Inocêncio III, em 1215, enfatizam que a transubstanciação não é
apenas uma significação simbólica. Ali é afirmado que, quando, do altar, o padre repete
"Este é o meu corpo, este é o meu sangue", o pão (ou a hóstia católica) se transmutam
efetivamente no corpo e no sangue de Cristo. Recentemente, na segunda metade do
século XX, a encíclica de Paulo VI Mysterium Fidei reforça que o mistério do
sacramento da Eucaristia não se reduz meramente a um aspecto simbólico. É mesmo
errado, segundo a encíclica, ignorar o milagre da transubstanciação, reduzindo-o apenas
ao simbólico .
Um outro pesquisador contemporâneo do canibalismo, Martin Monestier (2000,
p. 127) registra que católicos e protestantes teriam chegado às vias canibais de fato.
Quando das guerras religiosas, em 1569, um protestante apelidado coeur de roi, por sua
coragem, teria sido feito em pedaços, vendido e (Monestier cita registros do próprio
Léry) devorado por católicos. Todavia, em que pese a coragem do protestante, este ato
de selvageria não teria a nobreza do canibalismo tupinambá e sim ser resultado do puro
ódio religioso.22
Quanto aos Tupinambás, uma questão chama a atenção de Lestringant (1997, pp.
107-110) e de Monestier (2000, p. 78), que irreverentemente a trata como une bataille
culinaire: os brésiliens, como eram tratados os tupinambás pelos franceses do século
XVI, sempre assavam e cozinhavam as suas vítimas. O reverendo de Léry praticamente
inocenta a "barbárie" antropofágica dos tupis por cozinharem e assarem a carne
humana, nunca devorando-a crua, como, segundo ele, outros povos imperdoavelmente o
fazem.
A antropofagia inclui.
Nas tradições religiosas afro-brasileiras, a incorporação significa inclusão. Em
lugar de definitivamente expulsar os espíritos dos mortos, os ritos os trazem para o
corpo, atribuindo-lhes sempre uma função positiva e necessária, tanto à sociedade
quanto à eles próprios.
A incorporação nos ritos afro-brasileiros é comparável à incorporação do
inimigo tupinambá. O inimigo é morto mas, antes, desempenha papéis; é marido e
provedor. Em seguida, torna-se objeto de chacota das mulheres e das crianças; um bufão
que não teme o seu destino e revida, dizendo que seus pais e maridos, se forem bravos,
encontrarão o mesmo caminho.

22
Igualmente devido ao ódio religioso surgiram, na Antigüidade e na Idade Média, acusações contra os
judeus de canibalismo de cristãos (ver Monestier, 2000, 142-144).

85
Com o sub-título “Pour un retour des brésiliens ao cannibalisme”, Monestier
(2000, p. 242) comenta o projeto de Oswald de Andrade no seu Manisfesto
Antropofágico, nos anos 1930.

Bien sûr, pour Oswald de Andrade, l’anthropophagie est prise dans un sens
métaphorique, et désigne l’incorporation dans le corps social de tout ce qui
est objet d’exclusion. Elle se présente donc sous un caractère positif,
puisqu’elle mène à une sorte de revalorisation de l‘autre.

O Sacrifício Asteca
Muito embora os astecas tivessem construído um panteão dotado de uma
razoável ordem mítica em relação aos seus e aos deuses agregados dos povos vencidos,
o sacrifício humano, a depreender-se dos relatos consultados, não pareciam destinar-se a
uma divindade especifica, assim como também não o era no caso dos tupinambás.
Semelhantemente aos tupinambás, a guerra tem um papel fundamental na
organização social e religiosa dos mexicanos. Bataille (1967) chama a atenção para o
objetivo da guerra: em lugar da conquista, que parece ter movido a maioria das guerras
européias desde sempre, a guerra asteca tinha o consumo como finalidade. O mesmo
pode-se dizer dos tupinambás. A guerra asteca era movida contra povos vizinhos,
geralmente menos capacitados militarmente, e constituía a principal fonte de vítimas
sacrificais. Há, todavia, relatos que dão conta de vítimas espontâneas. As vítimas
passavam por um longo processo de deificação e bons tratos, de maneira que, ao se
dirigirem ao alto da pirâmide, onde teriam seu coração, ainda pulsante, arrancado do
peito pela mão do sacerdote, eram como deuses auto-imolados em benefício da
manutenção de uma ordem cósmica.
O corpo morto do sacrificado era rolado pelos degraus da pirâmide, num
movimento que, segundo alguns relatos, representava o pôr do sol. Depreende-se que o
sacrifício era dirigido ao sol, a todas as divindades e aos próprios humanos. O sol
pararia se não recebesse o sangue humano. O coração da vítima era queimado numa
grelha mas, ao que tudo indica não o era totalmente. Um copo de sangue da vítima era
bebido pelo sacerdote. Aparentemente, há menos relatos sobre o destino do corpo da
vítima do que no caso dos tupinambás. Todavia Harris (1990), preocupado
especificamente com esse pormenor, informa que o destino do corpo era o mesmo dos

86
tupinambás: era cortado e oferecido à população que o devorava. Segundo Harris, a
operação representava uma dádiva do rei ao seu povo.
O sacrifício teria um fundamento mítico que faz referência ao auto-holocausto
de duas dividades: Nanahuatzin e Tecuciztecatl. O mito foi descrito por Bernadino de
Sahagún, franciscano que se tornou o principal etnólogo dos astecas, reproduzido por
Bataille (1967) e, com mais detalhes, por Krickeberg (1991, pp. 28-32). Soustelle
(1991, pp. 106-109) também o reproduz, com algumas variações. Segundo os relatos,
Nanahuatzin e Tecuciztecatl atiraram-se ao fogo e morreram, para renascerem como,
respectivamente, o sol e a lua. Em seguida, Quetzalcoatl, o vento, matou todos os outros
deuses, arrancando-lhes o coração. Os corações dos deuses mortos, então, animaram o
sol e a lua. Dessa forma, o coração dos deuses é o que parece fornecer a marcação e o
ritmo do tempo e a ordem social nele ancorada. Sem os corações dos homens
divinizados, o sol e a lua pararão, o tempo não mais será aprisionado, a ordem
desaparecerá, imperará o caos.
Soustelle (1991) mostra-se surpreso pelo fato de serem os sacerdotes cristãos os
que mais demonstram conhecimento e tolerância em relação aos ritos astecas. Ora, não
há que se ficar surpreso. Embora comprometidos com sua fé, os clérigos certamente
reconheceram nos mitos e nos rituais um sistema de significações bem familiar. De fato,
mitologias e práticas envolvendo o auto-sacrifício das divindades em benefício dos
homens, o consumo ritual do sangue e da carne, certamente, não apenas reavivaram suas
mentes como devem tê-los maravilhado, dada a similitude com o rito cristão.
Um mito descrito por Armstrong (2002, pp. 20-21), de origem no vale Tigre-
Eufrates, onde parecem ter origem os hebreus, relata que, depois que os deuses do caos
foram mortos, Marduk, o sol, matou Tiamat, o mar, o vazio. Sobre o vasto cadáver de
Tiamat, aliás sua mãe, Marduk decidiu criar um novo mundo. Dividindo o corpo de
Tiamat em duas partes, da primeira, formou o arco do céu, da segunda, o mundo dos
homens. Depois, Marduk matou Kingu (um deus idiota, consorte de Tiamat); misturou o
sangue de Kingu ao pó, formando uma matéria modelável e, com ela, fez o primeiro
homem.23
Carne, sangue, fogo, consumo e a própria condição humana parecem ser
estruturalmente comuns a práticas e mitos hebreus, cristãos, astecas e tupinambás. O
corpo humano é pó, mas seu sangue é matéria divina. Os mitos e os sacrifícios não

23
O mito é homólogo à recriação do mundo, no mito bíblico do dilúvio (caos e vazio das águas),
assimilado ao domínio de Tiamat.

87
parecem estar vinculados apenas à ordem social mas à própria possibilidade de
organização da mente. As homologias não param apenas no corpo e no sangue. Um
outro mito asteca, descrito por Krickeberg (1991, 26-27), conta que, num dia bem de
manhã, Nanahuatzin, o deus sol, atirou uma flecha no céu. Do buraco aberto pela flecha
saíram o Homem e a Mulher. Seus corpos somente existiam dos ombros para cima,
vestiam-se apenas com suas próprias peles (andavam nus) e comiam alimentos crus
porque não conheciam o fogo. Em outro mito, Krickeberg conta que um dia os deuses
verificaram que os homens estavam sempre tristes. Os deuses então começaram a
pensar em alguma coisa para fazer os homens ficarem alegres, até que um dia o vento
(Quetzalcoatl) recolheu os caroços de uma fruta comida por algumas deusas; plantou-os
e dali nasceu uma planta chamada metl, da qual os índios fazem o vinho, bebem e se
alegram.

Bataille (1967) encontra no sacrifício asteca uma extrema expressão de,


simultaneamente, humanidade e divindade. Para o filósofo francês, o sacrifício implica
a recusa do outro enquanto objeto, enquanto coisa, e opera a aproximação do
sacrificado enquanto sujeito. "O sacrifício restitui ao mundo sagrado o que o uso servil
degradou, tornou profano" (p. 94).24 O sacrifício (humano) restitui uma intimidade entre
o sacrificante e o sacrificado, produzindo novamente uma relação entre sujeitos, e não
entre sujeito e coisa. Para Bataille, a destruição absoluta é o melhor meio para se negar
a relação utilitária. A religião, segundo Bataille (p. 95) é "esse esforço e essa busca
angustiada: trata-se sempre de arrancar à ordem real, à pobreza das coisas, de restituir à
ordem divina; o animal ou a planta de que o homem se serve (...); são restituídos à
verdade do mundo íntimo". A devolução ao sagrado da coisa objetivada, através da
destruição, do consumo sem lucro, restitui a profunda liberdade interior, restitui o
"sujeito livre", "íntimo", que não mais se subordina, se sujeita, à ordem "real", social.
Entretanto, para que esse sujeito divino possa ser reencontrado, o sujeito-coisa social
deve ser destruído.
Ao analisar o sacrifício asteca, Bataille identifica o sacrificado como o sujeito do
consumo, o sujeito livre de trabalho. “O consumo é o caminho por onde se comunicam
seres separados” (pp. 96-97). O sacrifício humano é o momento onde o sacrificante e o
sacrificado se encontram na sua humano-divindade pura. Donde se deduz que trabalho é

24
Nas citações de A Parte Maldita, de Bataille, adotamos a edição traduzida para o português, Bataille
(1975).

88
a condição do sujeito socialmente sujeitado e consumo é a condição do sujeito
divinamente sujeitado. Este último é a parte maldita: a vítima arrancada à ordem das
coisas, destinada ao consumo sem lucro, tornada íntima, sem utilidade (pp. 97-98).
O canibalismo asteca é portanto uma comunhão entre o sacrificante e
sacrificado. Ato de pura divindade e humanidade (não exatamente, humanismo), no
qual, segundo, Bataille, “o sacrifício é o calor, onde se reencontra a intimidade daqueles
que compõem o sistema das obras comuns. A violência é o seu princípio” (p. 97), é a
busca da subjetividade perdida. O sacrificado, elevado à condição de divindade, é
vítima da violência e devorado pelos homens. O canibalismo asteca reúne o que estava
separado, onde todos se tornam um.
Ora, significado homólogo já conhecemos na comunhão católica. Segundo João
(6 53-60), perguntaram os judeus a Jesus:

Como pode este dar-nos a comer a sua carne? E Jesus lhes disse: Em verdade,
em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do homem, e beberdes
o seu sangue, não tereis vida em vós. O que come a minha carne, e bebe o meu
sangue, tem vida eterna: e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha
carne verdadeiramente é comida: e o meu sangue verdadeiramente é bebida. O
que come da minha carne, e bebe o meu sangue, esse fica em mim, e eu nele
(nosso grifo).

O sacrifício do Cristo - Deus e Homem simultaneamente - portanto é comunhão


dos sujeitos na sua humanidade e na sua divindade, através do consumo do pão e do
vinho, tornadas realmente o corpo e sangue do Cristo no ato da comunhão eucarística,
reunindo, na vida eterna, o que estava separado. Não são, ambos - asteca e cristão -,
simples processos sociais de subjetivação e identidade social. O sacrifício cristão
conduz o ser de volta à sua condição antropológica pura, onde Deus está nele e ele em
Deus.25 Mas, para que a Eucaristia aconteça, o sujeito social - o filho do homem - deve
ser destruído.
Teria sido também este o mesmo sentido que Thevet encontrou entre os
Tupinambás. Embora os relatos não sejam explícitos em relação ao sacrificado
tupinambá ser elevado à condição divina, a relação entre um deus, inimigo e/ou

25
Aí está, ao nosso ver, a possibilidade de a religião cristã ter-se tornado universal, o que não ocorreu
com a religião dos hebreus.

89
estrangeiro é relativamente comum nas gêneses religiosas. Quando Jacó luta contra o
inimigo, e por ele é vencido, o inimigo que emerge diante dele - e lhe dá o nome de
Israel - é El, Deus (ou o Senhor) (Gênesis 32, 22-32)26. O conquistador espanhol Hernan
Cortes é equiparado a Quetzalcoatl entre os astecas; o capitão Cook equiparado a Lono
entre os havaianos. Para os japoneses, a palavra gaijin é a mesma para designar inimigo
e estrangeiro.
O canibalismo tupinambá portanto pode ser homólogo aos canibalismos (no
sentido antropológico e não antropofágico da palavra) cristão e asteca. A questão,
sumamente desconfortável, entre os cristãos é que o consumo do pão e do vinho,
enquanto consumo sem lucro do corpo e do sangue de Deus, enquanto Filho, ficou por
demais exposto quando os europeus conheceram, analisaram e decifraram os
canibalismos brasileiro e mexicano.

*
Três diferenças fundamentais separam o sacrifício hebreu dos demais acima
discutidos, incluindo o cristão. A primeira está na mediação entre o sacrificante e o
beneficiário através do objeto; o sacrifício hebreu é o único em que a vítima não é um
sujeito, mas um objeto. Nos demais, não há mediação; de uma forma ou de outra, nos
sacrifícios cristão, asteca e tupinambá, o sacrificado é o próprio sujeito, ou um sujeito
elevado à categoria divina.
A segunda diferença é a sua associação com o trabalho, uma vez que a vítima é
produto do trabalho do sujeito. Desse trabalho, somente uma parte, ainda que seja a
melhor, será dada em sacrifício, implicando, além de mediação, um sacrifício apenas
parcial do sujeito. Nas demais estruturas sacrificais, a categoria ‘trabalho’ desaparece
juntamente com o sujeito; na estrutura hebréia, subsistem tanto o sujeito quanto o
trabalho. Essa condição acaba por oferecer uma possibilidade de correspondência
simétrica com os elementos sintáticos da linguagem. Uma vez que o sujeito não é
integralmente consumido, permanece como operador do objeto, tanto no trabalho
quanto nas operações de consumo.
Apontaríamos ainda uma terceira diferença; ela diz respeito ao caráter masculino
do ato do sacrifício hebreu. Muito embora, nos outros casos que vimos, o sujeito

26
O versículo 32, aliás, faz referência a uma interdição sacrifical: trata-se da proibição de se comer o
músculo onde Jacó foi ferido na luta com Deus. Acreditamos que a interdição seja em relação ao músculo
(ligado à articulação do quadril) equivalente nos mamíferos sacrificados pelos hebreus.

90
sacrificado seja o indivíduo do gênero masculino, no caso hebreu, toda a liturgia parece
corroborar para preservação do culto ao pater, legitimando uma sociedade masculina.
Um comentário da feminista Judith Plaskow, que extraímos de Eilberg-Schwartz (1995,
p. 31), nos ajudaria a explicar melhor essa condição: “Quando Deus é imaginado
masculino em uma comunidade que compreende o ‘homem’ como tendo sido criado à
imagem de Deus, faz sentido que essa masculinidade funcione como a norma da
humanidade judaica”.
A estrutura do caso hebreu, dentre as que revimos, é, provavelmente, a única que
poderia comportar uma proposta como a de Miller, na qual o ato de sacrifício é mediado
pelo objeto; onde a relação sujeito x objeto parece guardar simetria com a relação
trabalho x sacrifício e, por fim, a que melhor fornece um parâmetro sociológico do culto
ao masculino. Mas, como sabemos, Miller foi buscar nesse modelo as referências para
um sacrifício feminino. Vejamos, no capítulo seguinte, as suas implicações.

91
Capítulo 7
Sacrifício: trabalho e consumo

Ao tempo de Isaías, no século VII a.C., Israel está à beira do colapso; Javé já
não suporta o cheiro da fumaça do sangue, da gordura e da carne que queima no altar
(Armstrong, 2002, p. 55), pois o “aroma agradável ao Senhor” não é mais capaz de
expiar a traição e as iniqüidades do povo. Ao tempo de Jesus, o Cristo, a mensagem é
clara no sentido de que o sacrificado é o próprio Deus, através do Filho. Mas, as
significações do sacrifício nesses pontos da história dos judeus já não seriam tão
convenientes ao estudo de Daniel Miller (2002). De fato, o sacrifício do período levita –
que, juntamente com o sacrifício hindu do período védico, constitui o principal foco da
teoria do sacrifício de Hubert e Mauss (1981) – é estruturalmente mais adequado.
Todavia, é necessário perguntar por que, depois do deslocamento simbólico do
sacrifício, a significação do antigo rito hebreu ainda é conveniente.

Sacrifícios e Sacrifícios
Acessoriamente, na constituição da sua base teórica, o antropólogo inglês
acrescenta algumas citações de procedimentos sacrificais em sociedades africanas e
menciona ritos judeus e hindus contemporâneos que denotam homologia estrutural em
relação aos antigos ritos de sacrifício desses povos. Ignora o rito tupinambá e os
sacrifícios afro-brasileiros. Refere-se ao trabalho de Heush, sobre sacrifícios africano-
ocidentais, citando o aspecto da renovação do “caráter espiritual da divindade” (Miller,
2000, 92), mas não o explora.

92
Nos ritos afro-brasileiros, o sacrifício ao orixá é nitidamente uma relação de
dádiva e contra-dádiva. Mas a divindade africana, assemelhando-se à grega arcaica, não
corresponde à concepção henoteísta dos hebreus, difere completamente da concepção
judaica monoteísta da fase dos grandes profetas e mais ainda da concepção essencialista
e absoluta dos cristãos. O orixá depende da devoção, da entrega sacrifical, de seus filhos
para que ocorra o que Heush, talvez, esteja chamando de “renovação” de seu caráter
espiritual.27
Entretanto, enquanto El não tem corpo, portanto, não pode ser devorado;
enquanto o Deus cristão sacrifica seu próprio corpo, os orixás incorporam nos seus
filhos. Enquanto El mantém permanente distância de seu povo, o filho de Deus integra-
se ao seu povo mandando-o devorar o seu próprio corpo e o orixá integra-se no corpo de
seu filho.
A proposta estruturalista de Miller, embora relutante em relação a essa assunção
(veja-se seus comentários nas primeiras seis páginas do capítulo 2), concorda que
estamos longe de uma teoria geral do sacrifício, mas indica implicitamente a
possibilidade de homologia – que não nos parece haver – de atos de sacrifício, entre o
caso asteca e o caso hebreu, já que se inspira na proposta sacrifical discutida por
Bataille, relativa ao caso asteca, quando sua teoria das compras guarda correspondência
com o caso hebreu.
Esse nos parece ser o principal problema de sua tese.
Pelo que pudemos depreender, os sacrifícios humanos que envolvem
canibalismo acima revistos possuem homologias que denotam pertencer ao mesmo
sistema de significações. Quanto aos demais sacrifícios, os não-humanos, parece-nos
envolver formas muito diversificadas, e tornará a sua inferência estrutural um trabalho
muito longo e cuidadoso. Segue-se que, para estender e aprofundar um estudo sobre
a possível homologia entre o consumo moderno e o sacrifício, é preciso saber que
sacrifício é esse. Acreditamos que a teoria das compras de Miller é uma contribuição de
extremo valor à Antropologia. Se validada, reforçará a idéia de um processo ritual pleno
associada ao consumo e demonstrará o caráter meramente complementar das teorias
relativistas do consumo. Mas é preciso ter cautela.

27
Para se ter um noção do caráter incompleto - se comparado ao deus cristão, por exemplo - da divindade
africana, veja-se Senghor (1985). Para se avaliar a dependência do orixá em relação ao sacrifício
oferecido pelos humanos, veja-se o mito descrito por Vogel, Mello e Barros (1993, pp. 15-16) )

93
Nas linhas que se seguem, empreenderemos uma abordagem comparada entre a
teoria das compras e os casos sacrificais que acabamos de rever. Tomemos como
referência os dois argumentos apresentados por Miller (2000, 87) para justificar sua
abordagem: primeiro, sacrificar e comprar “representam o momento decisivo em que o
trabalho produtivo se transforma em processo de consumo” e ambos expressam o temor
do consumo meramente profano e procuram formas rituais para sacralizá-lo. Segundo,
existência de analogia (cauteloso, Miller prefere o termo analogia, utilizando menos o
termo homologia) estrutural entre os atos de compra e os atos de sacrifício.
Quanto ao primeiro argumento, comentaremos inicialmente a sua segunda parte,
ou seja, o caráter ritual e sagrado do sacrifício e das compras. O caráter ritual do
sacrifício parece estar fora de dúvidas. Todavia, três fatos nos chamam à atenção quanto
às suas propriedades; o primeiro refere-se ao caso tupinambá. O caráter sagrado do
canibalismo tupinambá é, na verdade, resultante da conclusão de análises elaboradas
através de elementos tomados por empréstimo do canibalismo cristão. Fernandes (1963)
e Lestringant (1997), não fazem menção ao caráter sagrado do canibalismo tupinambá
através da invocação de elementos sagrados da própria cosmologia tupi. Não se
menciona que o sacrifício é realizado em intenção de Tupã ou outra divindade. Toda a
relação canibal é entre sujeitos, e sua vinculação ao divino é decorrente de analogia com
o caso cristão e, como deduzimos acima, com o caráter divino do inimigo.
Lestringant (1997, 171-172), referindo-se à submissão cega à ordem do sol e da
lua no rito asteca, diferencia este do canibalismo tupinambá, situando-o numa matança
bulímica e insensata, inserida numa religião estatal, enquanto o caso brasileiro denota a
“nobreza de caráter do tupinambá”, que se mantém relacionada com as leis naturais, ou,
na leitura de Deleuze (2003): comer e ser comido.
O segundo fato é o caso da “subjetividade livre” do asteca. As ilações de Bataille
(1967) sobre a divinização do sacrificado e o significado do sacrifício, isto é, o encontro
da “subjetividade perdida” no consumo sem lucro, também são inquestionavelmente
uma decorrência de analogias gritantes com o canibalismo cristão. Nas outras obras que
consultamos para este estudo, não são feitas referências explícitas à questão do sujeito,
da maneira que Bataille afirma. Todavia, há indícios nestas obras de que Bernadino de
Sahagún, em sua etnologia dos astecas, já teria estabelecido essas relações, dentro dos
limites que a sua condição de franciscano permitia na época. O caráter sagrado do
sacrifício humano asteca aparece de forma inequívoca na literatura; a condição divina
do sacrificado também aparece de forma bastante clara, mesmo em Harris (1990),

94
quando explora o caráter meramente nutritivo do canibalismo daquele povo.28 Não
procedem, no nosso entender, as críticas de Richardson, invocadas por Miller (2000,
101), nas quais Bataille “entendeu mal” as fontes históricas que consultou, relativas ao
caso asteca e ao potlatch. Pelo que pudemos entender, através das poucas palavras de
Miller, Richardson teria comparado sacrifícios estruturalmente diferentes; dessa forma,
jamais chegaria a conclusões consistentes.
O terceiro fato é o caráter sagrado do potlatch kwakiutl. Na etnografia de Boas
(1966, caps. 3 e 4) que consultamos, toda a análise tem um caráter fortemente
sociológico, ocupado principalmente em elucidar os movimentos e o status dos
indivíduos no interior da hierarquia social Kwakiutl. O sistema de trocas de mantas e
cobres entre aquele povo do noroeste das Américas apresenta poucas conotações com o
sagrado. Agora, de fato, quando Boas descreve que, em certas ocasiões, um chefe
Kwakiutl comanda um processo de destruição integral de todos os bens de seu clã,
queimando-os solenemente numa imensa fogueira, trata-se de um ato de consumo
levado, materialmente, às últimas conseqüências. É também um sacrifício sem lucro –
Bataille, nesse sentido, está certo –, posto que uma destruição in extremis é levada a
cabo exclusivamente para desafiar um seu rival a fazer o mesmo. Aparentemente, o
único “ganho” do sacrifício é a elevação, pela destruição total dos seus e dos bens de
seu clã, na hierarquia social. O sacrifício, se é que este rito Kwakiutl se insere nesta
categoria, dadas as suas fracas relações com o sagrado, é de objetos; envolve a troca e a
queima materiais.
Conseqüência notável da etnografia kwakiutl é que ela foi tomada por
sociólogos e antropólogos sociais como fundamento para dar conta de processos de
mobilidade social, como se inserida no significado positivo do consumo que vimos na
introdução desta tese. Este é o caso de Veblen (1980) – que, de longe, faz referência ao
kwakiutl – e de todos que relacionam o consumo com o status social e com elaboração
da identidade. Muita atenção se deu ao rito da troca positiva de cobres por mantas,
esquecendo-se que a queima total dos bens não pode ser inserida na categoria
propriamente “construtiva” do consumo.

28
Harris (1990) esforça-se para reduzir a antropofagia asteca a uma mera questão nutritiva. Há uma
controvérsia sobre se as mortes rituais de humanos entre os astecas eram mesmo seguidas de canibalismo
(ver Askenasy, 46-49). Depreende-se de Harris (1990) que o caráter sagrado do sacrifício humano estaria
restrito à morte sacrificial em si, com a oferta do coração da vítima. Mas, segundo Harris, o destino dos
corpos dos sacrificados era mesmo a panela, porém num ato já destituído do caráter sagrado e sim
visando a suprir as deficiências proteicas do povo.

95
Vejamos, agora, a primeira parte do primeiro argumento de Miller que referimos
acima, no qual o autor faz referência “ao produto do trabalho que se transforma em
consumo”. Aqui, a questão sobre que sacrifício estamos falando é fundamental. Não há
que se falar em consumo do produto do trabalho nos sacrifícios canibais tupinambá,
asteca e cristão, pelo simples fato de que os elementos sacrificados, nestes casos, não
são produtos do trabalho. Estamos falando de homens, elevados à condição divina e
canibalizados e não de animais criados, vegetais cultivados ou bens adquiridos, isto é,
produtos do trabalho. Os canibalismos em questão não se inserem na categoria de coisas
produzidas que são oferecidas como dádiva do devoto a uma divindade específica. Não
há nem mesmo que se falar em dádiva, no sentido mais comum de troca de presentes, e
nem em divindade devotada nesses casos. Não há divindade específica a quem
sacrificar, nem mesmo no caso cristão, posto que o consumo do pão e do vinho não
constituem oferendas a Deus e sim a comunhão com Ele, assim como o são a comunhão
entre sujeitos-divinos, nos casos tupinambá e asteca, da forma como Bataille e nós
entendemos. No limite, a significação se consuma em trazer a divindade dentro de si
através do consumo.
Se o ato de comprar puder ser homólogo a esse tipo de consumo, ele também
deverá significar uma comunhão entre sujeitos. Neste caso, comprar implicaria o
encontro com o sujeito divino que existe em todos nós, obscurecido pelo sujeito
socialmente construído; seria o retorno ao homem nu, ao estado do cru ou, como nas
teologias budista, sufi e new age, o encontro com o si mesmo. Mas não nos parece que a
etnografia de Miller conduza o ato de comprar a essas significações.
Bataille (1967) não deixa dúvidas quando se refere ao sujeito enquanto coisa.
Este é sim o sujeito do trabalho, o sujeito não-livre, sujeitado não pela divindade mas
pela sociedade. O sujeito do trabalho é, para seu empregador, um custo (apesar de todas
as teorias gerencialistas pós-modernas) e, para sua família, um provedor. Este sim talvez
seja aquele que se sacrifica, quando trabalha e quando, completando o processo, compra
em favor de seus entes. Estes sacrifícios são efetivamente em favor de alguém ou
alguma coisa. Um trabalhador mal remunerado é produto de uma economia de
resultados assimétricos. Parte do seu consumo de energia é monetariamente
remunerada, parte não. A parte não remunerada é dádiva sem contrapartida tangível, é
sacrifício.
Enquanto provedor, o sacrificante, ou o complemento simbólico do trabalhador,
isto é, a mulher compradora-sacerdotiza entrevistada por Miller, oferece aos seus as

96
coisas - os produtos - comprados com a contrapartida (salário) não-sacrificada (ou
sacrificada com “lucro”, posto que remunerada) do trabalho. Pobre trabalhador! A parte
de seu esforço no trabalho que não constitui sacrifício em favor do empregador vai ser
sacrificada em favor da família. Miller não avança tanto nessas ilações, mas elas são
fundamentais. Primeiro, porque compatibilizam a antiga noção de trabalho, enquanto
sacrifício, e a proposta inovadora do antropólogo. Segundo, porque oferecem melhores
condições de entender a própria proposta da compra como sacrifício, uma vez que,
assim entendida, a compra figura como um dos elementos de um processo que vai do
trabalho ao consumo propriamente.
O trabalho como sacrifício é uma significação decorrente de uma certa
associação simbólica com o mito da expulsão do Paraíso, alimentada pela Igreja e,
muito mais ainda, reificada pelo marxismo, em que pesem todos os seus argumentos em
contrário. Mas a noção de sacrifício de Miller, quando aplicada à compra, é nitidamente
a noção do sacrifício do Levítico, inclusive, na sua inteligente e, quero crer original,
associação da economia (enquanto poupança) com as sobras do sacrifício. Aí, sua teoria
se nos parece encaixar simetricamente com o sacrifício do caso hebreu.
Nos sacrifícios asteca, tupinambá e cristão não há sobras. O sacrifício do sujeito
é integral. Não há uma parte dada à divindade e uma parte dada aos humanos.29 O
sacrifício, nos três casos, não é propriamente uma oferenda. O que se separa é o sujeito
sujeitado pela divindade do sujeito sujeitado pela sociedade. O "beneficiário", nesses
casos, se se tratasse de oferendas, seria a própria totalidade do ser humano-divino.
No caso hebreu é diferente. São efetivamente ofertas "de aroma agradável ao
Senhor". O Levítico explica reiteradas vezes que partes pertencem a quem. Há
sacrifícios inteiramente queimados. No caso da carne dos animais sacrificados que são
distribuídas entre El e os humanos, há regras para seu consumo ritual, tanto por El
quanto pelos humanos. Ambos os consumos permanecem sagrados.

Essa reflexão nos devolve ao segundo argumento de Miller e, afinal, à principal


causa deste debate, ou seja, às semelhanças estruturais entre o sacrifício e o processo de
compra e consumo. Uma vez que toda oferta hebréia é produto do trabalho, ela pode ser
vista como dação das energias do homem em favor da divindade. A relação,
diferentemente dos canibalismos aqui analisados, é utilitária mesmo. O sacrifício é a

29
Exceto, sob certo ponto de vista, se admitirmos a hipótese nutritiva de Harris (1990) (ver nota 12).

97
representação ritual da renovação da aliança com El que, em troca, garante a liberdade,
a unidade e o progresso material dos hebreus.
Tornemos à sobras. O fundamento da sobra no sacrifício hebreu é, na verdade, o
trabalho. Um detalhe sobre a construção da federação hebréia é fundamental para
entender esse ponto. Na divisão da Terra Prometida (ver Levítico, Números e Josué), os
levitas, os descendentes de Levi, são a única tribo que não recebe um quinhão de terras.
Aos levitas, El destina as obrigações sacerdotais; não pastoreiam e não plantam; não
exercem, enfim, atividade econômica produtiva. Em princípio não teriam o que comer e
é por isso que comem das sobras dos sacrifícios oferecidos pelos hebreus das outras
tribos. As partes destinadas ao consumo dos levitas constitui a paga pelos ofícios, isto é,
pelo trabalho não-econômico do sacerdócio.
Haveria simetria entre esse procedimento e as compras de Miller? Tentemos
uma abordagem, que Miller bem poderia ter empreendido, adotando os elementos do
sacrifício estabelecidos por Hubert e Mauss (1981). Em primeiro lugar, há o sacrificante
ou aquele que manda sacrificar, ou seja, o ofertante do melhor animal do seu rebanho ou
do melhor produto da sua terra; em segundo lugar, há o sacrificador - o sacerdote ou
oficiante; em terceiro lugar, há os instrumentos, aí incluído o local sagrado do ofício;
em quarto lugar, que Hubert e Mauss se esqueceram de enumerar, a vítima. No caso
hebreu, essas posições são facilmente compreendidas. Como sabemos, há sacrifícios
integrais a Deus (El): os holocaustos (òlâ) e há sacrifícios onde partes são destinadas
aos oficiantes-sacerdotes, que devem consumi-los em lugar sagrado ou em sua casa,
com sua família.30
No caso das compras, o sacrificante, na verdade, somente pode ser assimilável
ao trabalhador, ou seja, aquele que dá o melhor produto da sua energia. O sacrificador é
o comprador, ou seja, aquele que destrói a energia acumulada pelo sacrificante, o que,
em si, também implica dispêndio de energia. Tanto no caso de Miller como em certos
outros sacrifícios que não o hebreu, sacrificante e sacrificador podem ser a mesma
pessoa (ver Hubert e Mauss). O lugar do sacrifício-compra é a quitanda ou a mercearia,
inserindo o mercado no processo, tornando-o portanto sagrado. As vítimas são os
tomates, pepinos e alcatras comprados e, necessariamente. sacralizados.
Na teoria de Miller, existe um outro fator intermediário inexistente, ou muito
raro, no sacrifício hebreu: a moeda. Podemos, sem aviltar a estrutura, contornar esse

30
Não os encontramos nos livros do Antigo Testamento consultados, mas Hubert e Mauss (1981, 178)
informam a existência de casos em que o sacrificante "recebia a totalidade da oblação".

98
problema assimilando a moeda à energia acumulada pelo sacrificante e consumada por
ato do sacerdote em favor da divindade. A sacralização da vítima é operada pela
transformação ritual da moeda em tomates, assim como o sacerdote torna sagrada a
vítima animal pela "imposição de suas mãos" (Hubert e Mauss). Dessa forma, se dá a
operação mágica que satisfaz à necessidade de que o consumo seja sacralizado (segunda
parte do primeiro argumento de Miller).
A sobra destinada ao sacerdote é uma paga por um ofício sagrado, pelo ato de
transformação do produto da energia humana em objeto de devoção à divindade. Essa
sacralização, reforçam Hubert e Mauss, é evidenciada pelo fato de seu consumo ocorrer
em lugar sagrado (no caso hebreu, em parte, no próprio Tabernáculo, em parte, em sua
casa). Nas compras de Miller, o elemento simétrico à sobra, que é a paga do sacerdote,
constitui-se das pequenas indulgências auto-concedidas pela compradora-sacerdotiza –
possibilitadas pela poupança obtida – em contrapartida pelo ofício da execução da tarefa
da própria compra, isto é, pela sacralização dos tomates. Uma evidência de seu caráter
sagrado é que a compradora-sacerdotiza vai consumir as sobras num lugar secreto e
reservado.
As sobras destinadas ao sacrificante (aquele que manda sacrificar) serão
provavelmente também sagradas, posto que constituem-se de partes do produto de sua
energia acumulada pelo trabalho, porém tornadas sagradas por ato do sacerdote. Não
encontramos regras precisas sobre o consumo dessas partes no caso hebreu.
Nos holocaustos (òlâ), não há sobras destinadas aos humanos. O objeto é
totalmente consumido pela divindade, isto é, seu sangue é libado ou queimado e o corpo
é transformado em "aroma (fumaça) agradável ao Senhor" e cinzas, posteriormente
tratadas também ritualmente. Este corresponde à entrega total do produto da compra da
sacerdotiza-compradora aos seus entes queridos, do qual não retira nem um docinho
para comer escondida.
O exercício homológico poderia ser estendido, procurando-se encontrar os
elementos simétricos entres os diversos tipos de sacrifícios hebreus (além do òlâ, o
hattât, o shelamin e o minkhâ) e as diversas situações e significações de compra. Mas
não temos dados necessários da etnografia de Miller para avançar nesses detalhes.

A quem Sacrificar?
Voltemos à indagação que motivou toda a reflexão sobre as duas categorias de
sacrifício que estabelecemos acima. A quem sacrificam as compradoras-sacerdotizas de

99
Miller? Sabemos que nos casos canibalísticos não há uma divindade específica a quem
sacrificar; na verdade, os sacrificados são os próprios deuses. No caso hebreu, o
sacrifício consiste em ato de devoção de uma linhagem a El.
Sabemos, através de Coulanges (s/d), Hubert e Mauss (1981) e outros
pesquisadores que, no período pré-arcaico, os gregos tinham deuses familiares, sempre
homens, representados nos antepassados da própria família. A grandeza da linhagem do
pater familias era correspondente à sua própria grandeza; por isso eram cultuados pelos
seus descendentes. Os patres mortos transformavam-se em deuses familiares cultuados
através de atos de sacrifícios bastante semelhantes aos atos de devoção a El, com a
diferença de que não eram deuses, digamos, prontos e incorpóreos como El, guardando
características próximas às dos orixás afro-brasileiros, isto é, dependiam do sacrifício
para renovar o seu caráter espiritual.
Os patres eram, indubitavelmente, deuses masculinos. Como atesta o lingüista
jesuíta Martins Terra (2000), a palavra ‘Júpiter’ deriva da conjunção ‘dius-pater’, onde
‘dius’ é uma palavra direta da língua-mãe do tronco hindu-europeu e quer dizer ‘céu’. O
lingüista considera que sua significação está associada à vastidão e à onipresença do
céu, que permanece sobre todos os seres, onde quer que eles estejam. Deriva-se daí,
‘Zeus’ e, mais tarde, ‘Deus’. A conjunção em ‘Júpiter’ liga definitivamente ‘Deus’ e
‘Pai’. 31
Segundo Eilberg-Schwartz (1995, pp. 231-235), a partir dos mitos da Criação
descritos no Gênesis, pode-se derivar uma significação assexuada para Deus. A
projeção masculina do Deus bíblico pode ter sido resultado do empenho de uma
sociedade masculina, para solucionar simbolicamente a contradição de ser o homem
feito à imagem e semelhança de um Deus assexuado e, ao mesmo tempo, ser também
obrigado a reproduzir. Segundo Eilberg-Schwartz, professor de religião e rabino, os
homens hebreus/judeus ressentiam-se da ausência de uma representação fálica de Deus,
como é comum em outras religiões.32 Talvez ‘El’ tenha conservado a sua significação
masculina em decorrência de uma operação masculina para solucionar miticamente a
contradição. Cultuado num ambiente henoteísta, ‘El’ é exclusivista e ciumento como
um marido; repudia Baal, seu filho, tal como o pater do mito primordial de Freud e
condena e pune Israel por “adultério”.

31
As palavras El, Yahweh e Allah não têm origem no troco hindo-europeu, posto que o aramaico, o
hebraico e o árabe têm outra raiz.
32
Poderia estar também nessa contradição o argumento usado na psicanálise lacaniana de que não existe
significante ‘falo’ (veja Elia, 2004).

100
A concepção sociológica do Deus dos hebreus parece não ser, quanto à
sexualidade, diferente das divindades greco-romanas arcaicas, mas se a masculinidade
da sociedade ocidental é decorrente de um deus masculino, ou se é uma solução
simbólica à submissão a um deus sem falo, ou ainda se Deus é masculino em
decorrência da projeção de uma sociedade masculina dominante, é questão que talvez
nunca esclareçamos. A conseqüência efetiva, até os dias de hoje, é que uma
identificação de gênero colocou o homem mais perto da divindade e a mulher a este
submissa. Os dois gêneros cultuam o pater, mas em todo homem haveria a esperança de
um dia ser cultuado também; expectativa essa negada à mulher.

Discussão
Para Miller (2000), entretanto, houve – ou está em curso – uma substituição da
devoção da mulher ao pai e ao marido para uma devoção aos filhos, nos tempos
modernos mais recentes. O antropólogo certamente percebe a mudança acentuada da
conduta social da mulher ocidental, na direção de um sujeito sociologicamente mais
autônomo, vendo que não se trata do sujeito submisso ao homem que a história nos
conta. Mas, vê também os resultados de sua pesquisa, que denotam uma mulher ainda
dedicada e devota. Conclui então que a devoção é compulsiva e, se não vai ser dirigida a
um, o será a outro.
A evidência de uma mulher devota, depreendida da observação do zelo, do
cuidado e da atenção no ato de compra, pode vir a ser um resultado consistente para
validar uma hipótese de dedução do sujeito através do sistema de consumo. Mas, não
nos fica muito claro se a mulher chega mesmo a operar uma substituição. As
representações simbólicas na operação dos objetos relacionadas à maternidade, não
parecem sofrer, no caso, nenhuma alteração estrutural. Fazer tudo que é possível para
que sua criatura cresça forte e saudável sempre denotaram, em qualquer cultura,
arquétipos femininos inconfundíveis. Pode ser que as relações de devoção para com o
pater estejam alteradas, mas o resultado da pesquisa de Miller não parece sinalizar uma
re-configuração do sujeito-mãe. Essa condição não precisa ser tratada como uma
questão sagrada.
Admitida a mudança do caráter devoto ao pater, talvez estejamos diante de uma
questão entre o sagrado e o profano. Se aceitarmos que a noção simbólica da divindade
se projeta no sujeito, o que pode estar em curso é uma re-significação de ‘Deus’. Uma
teoria que pudesse acatar o jogo entre sujeitos e objetos econômicos – operado no

101
tabuleiro dos mercados modernos – em relação com o sagrado ainda está por ser
construída. Bataille (1967) foi o que mais se aproximou dela. Nós, quando buscávamos
um foco relevante para esta tese, chagamos a contemplá-la como uma teoria canibal do
consumo, mas resolvemos deixar o projeto para outra oportunidade.
Quanto à questão do sacrifício propriamente, a teoria das compras de Miller não
nos parece acrescentar nada ao que já sabemos, no campo das ciências humanas.
Embora invocando um tema ligado às funções sagradas, as obrigações de consumo nas
quais esteve atento o antropólogo não modificam o entendimento existente sobre o
imperativo que faz os humanos ligarem-se ao sagrado.
O trabalho de Miller tem muitos méritos. Permitam-nos enumerar aqueles que
conseguimos enxergar:
i. rejeitada a racionalidade do consumidor da teoria econômica protestante
e tornadas evidentes as implicações sócio-simbólicas ligadas às
operações com objetos, ainda precisamos construir uma teia, resistente o
bastante para capturar questões genuinamente antropológicas. Miller dá
um passo nessa direção. Seu estudo transcende a racionalidade
econômica e supera os tratamentos sociológicos que vinculam o sistema
de consumo à hierarquização e às posições sociais;
ii. de um modo muito particular, Miller insere o consumo no sistema de
trabalho. Embora sejamos da opinião de que o ato de compra somente
pode ser comparado ao ato de sacrifício enquanto dependente e derivado
do trabalho, Miller consegue evitar a perspectiva do consumo como
contrapartida compensatória do trabalho. Sejam prazer ou sofrimento,
trabalho e consumo constituem um mesmo sistema;
iii. nas questões de gênero, principalmente quando tratadas pelas feministas,
a condição da mulher é geralmente abordada através dos aspectos
sociológicos, jurídicos, políticos ou econômicos; centrados na família ou
na sua condição desfavorável no trabalho. Comprar, em geral, fica
reduzido às conotações fúteis da conduta feminina. Miller consegue
trazer o sistema de consumo para o interior de uma discussão genuína de
gênero;
iv. muito embora a exploração de Miller sobre o conceito e a condição de
‘sujeito’ tenha sido muito insipiente, deixa-nos bem sinalizada, no

102
interior do sistema de consumo, a.interação entre o sujeito e o objeto,
reforçando as possibilidades aplicativas da teoria lingüística ao caso;
v. por fim, verdadeira ou não a questão da mulher contemporânea para com
o pater, a correlação estabelecida pelo autor entre comprar e devotar
consegue efetivamente sinalizar uma possível transformação no sujeito-
mulher, que pode estar além dos aspectos sociais visíveis e do discurso
da autonomia feminina.

Conclusão
É possível que na teoria de Miller esteja contida a influência protestante de sua
própria cultura. Como se sabe, para enfraquecer o poder da Igreja Católica, os
reformados tenderam a resgatar e a enfatizar práticas e ensinamentos do Antigo
Testamento. Pode-se especular que a ênfase em uma estrutura de sacrifício homóloga ao
caso hebreu seja decorrência do próprio pensamento protestante. Por outro lado, a
recusa da devoção ao pater, no bojo de uma nova subjetividade feminina, talvez não
implique apenas uma substituição de objetos de devoção. É possível que também tenha
afetado a decisão sobre a própria “vítima” sacrificada. Ou seja, em lugar de elementos
definidos destinados ao sacrifício, a mulher moderna entrega uma imensa variedade de
produtos. O resultado talvez seja essa dispersão de consumo e de objetos de devoção
que sustenta a economia na era protestante moderna. Ou seja, o progresso econômico
talvez deva a sua pujança ao caráter errático do consumo moderno, em decorrência da
falta de referências fixas sobre deuses e vítimas sacrificais.
Há que se ressaltar ainda que, se o “sacrifício” das compras implica uma nova
subjetividade feminina, ele é um processo que necessariamente requer a destruição da
subjetividade anterior. Miller explica o sujeito feminino devoto aos filhos. Isso implica
a destruição do sujeito feminino do pater. Mas, se essa for apenas mais uma troca de
deuses, dos quais a própria sexualidade feminina permanecerá acessória e dependente, a
questão ainda não estará solucionada. Talvez, possamos percorrer uma trilha mais
adequada, perguntando como poderíamos explicar a adoração da mulher quando
manifestada nas compras de suas próprias roupas, dos seus próprios gadgets funcionais,
dos seus perfumes e dos seus batons? A mulher, não a compradora e nem mesmo a
consumidora, mas a consumida pelos seus próprios objetos pode ser a referência para a
compreensão da destruição do sujeito feminino do pater e a indicação da busca de uma
subjetividade nunca antes experimentada na tradição judaico-cristã.

103
Mas será necessário um mergulho mais fundo para explorar as possibilidades da
compra e do consumo como desconstrução, como retorno ao estado do sujeito sujeitado
pela divindade, retorno ao ser antropológico, ao sujeito nu e cru, à estrutura essencial, a
Deus, ao si mesmo, ao estado de natureza. São essas as possibilidades do canibalismo.
Para isso, a compra não pode ser meramente ato de devoção; tem que ser ato de auto-
holocausto, de excesso, de sumiço, de extinção; consumo sem freios, sem retorno, sem
lucro. Miller encontra esse sujeito na erótica Mary, que vive a experiência da morte a
que se refere Hegel. Mas, na pesquisa de Miller, uma Mary é exceção ...
Conforme facilmente se pode notar, a abordagem de Miller oferece uma
cobertura teórica apenas para os atos de consumo propiciatório e de provimento.
Permanecem a descoberto todos os atos de consumo movidos pelo desejo, as compras
supérfluas, o próprio consumo dos símbolos de status e estilos de vida e todos os atos de
consumo nos quais é o sujeito que entrega a si próprio, em que o consumo dos objetos
não opera apenas um meio para aplacar a ira de deuses exclusivistas. Permanece a
descoberto o consumo de objetos que representem o reflexo no qual o sujeito pode
mirar-se, ajustar-se e sintetizar-se. Além disso, as compras de Miller têm uma conotação
muito conspícua e certinha. Elas têm os “bons modos” das mamães e das donas-de-
casa. Não é para esse tipo de consumo que se destina a maior parte da massa formidável
de renda produzida no mundo. Como explicar o “excesso” consumido em alimentos que
fazem muito mais do que alimentar, dos meios de transporte que oferecem mil outras
“utilidades” além de transportar, das roupas que acomodam uma dimensão simbólica
infinitamente maior do que simplesmente a utilidade de abrigar o corpo?
Recentes tratados sobre o consumo têm lidado com o sujeito no seu aspecto
aritmeticamente positivo, como esforço moral para justificar o “consumismo”. Ora, essa
é uma questão de protestantes que, assim como os hebreus, têm a sua divindade como
objeto clivado e distante. Tão distante que às vezes julgam tê-la superado e substituído.
A teoria protestante do consumo somente fará, alternadamente, aumentar a angústia e a
culpa pelo consumismo e pela poluição ou arrogantemente argumentar que o
consumidor está, positivamente, a “construir sua subjetividade” e não tem que ter culpa
disso. Mas há, no mundo pós-moderno, uma infinidade de pessoas que, cansadas da
relação com um deus-objeto distante, procuram-no dentro de si mesmas.
A ética protestante inventou um mecanismo limitador da experiência da morte e,
portanto, da vida: o comedimento nos dispêndios, o consumo determinado e limitado
pela renda, o anti-canibalismo. A ética protestante, no fundo, criou um obstáculo entre o

104
sujeito e o seu divino; este obstáculo chama-se economia, a qual somente permite
visualizar a relação entre sujeito e objeto, tão distantes entre si quanto El e os hebreus.
A hegemonia da ética protestante e a modernidade corresponderam a uma fase
obscura da trajetória humana; corresponderam ao isolamento de si mesma, ao
distanciamento da experiência de si mesma, comandadas pelo impulso pseudo-racional
do controle sobre os objetos. Acabou dominada pelos objetos. Como diz Baudrillard
(1993), o humano moderno assiste os objetos em funcionamento.
*
Objetos consumidos são conteúdos amorfos de partículas incompreensíveis,
produtemas, onde se misturam utilidades, soluções e prazeres, mas também uma
infinidade de outros itens inexprimíveis, nos quais, sem saber como, os consumidores
buscam algo que não sabem o que é. No fundo, é a busca de significantes que talvez
possam dar sentido ao sujeito perdido, decorrente da dispersão de referenciais. O ser
humano, na agonia da modernidade, mostra a mesma predisposição em devorar,
aleatória e erraticamente, tanto produtos quanto deuses novos, vendidos tanto pelas
igrejas quanto pelos marketeiros como portadores de uma solução definitiva.
As populações humanas ainda à margem desse processo errático não parecem
sofrer da “crise da subjetividade”. Permanecerão centradas na experiência
proporcionada pela “virtude da pobreza”, até que a sanha consumista e religiosa da
modernidade agonizante lhes arranque a paz e o sossego.
Nossa cultura antropoêmica, como lembra Catherine Backès-Clément (1998,
236-238), invocando a oposição dos conceitos ‘antropofágico’ e ‘antropoêmico’,
estabelecidos por Lévi-Strauss, tem vomitado e excluído os desviantes.
Mas, são tempos conturbados esses nossos. Destes nossos tempos incertos, de
ambigüidade e confusão simbólica, de um individualismo que sinaliza para as suas
últimas conseqüências (menos político, menos econômico e mais humano); destes
tempos contraditórios de singles desconectados dos entes a quem sacrificar, mas
conectados ao self; nestes tempos de obsolescência de todas as teorias econômicas
calvinistas; de holocaustos espetaculares no dia 11 de setembro; de new agers
ocidentais empenhados em encontrar Deus dentro de si, como budistas ou sufis. Destes
nossos tempos de jovens mulheres confessada e exageradamente putas e consumistas,
que intitulam a si próprias como Hell; cansadas de consumir, confusas, perdidas,
desesperadamente à procura de significados em meio a signos estereotipados e
desgastados; destes tempos de inclusões sociais, ideologicamente confusas, dos

105
miseráveis, dos favelados e dos loucos no processo de consumo, possa efetivamente
emergir no futuro um novo sujeito.
Ainda nos restam três capítulos. Vejamos as chances do sujeito.

106
Capítulo 8
Sujeito e Estrutura

Há duas noções de ‘sujeito’. Elas se originam nas diversas formas e fundamentos


nas quais filósofos e pensadores organizaram o pensamento sobre a condição humana e
de como se apropriaram do termo ‘sujeito’. Não é nosso objetivo, nesta tese, operar uma
depuração e tentar consolidar as noções, as idéias, os significados e os conceitos de
‘sujeito’ em um só enunciado; conviveremos, aqui, pacificamente com a duplicidade,
com a ambigüidade e mesmo com a oposição, mas é preciso esclarecer que os dois
sentidos básicos de ‘sujeito’ têm para nós implicações completamente diferentes porém
muito importantes. A primeira noção de ‘sujeito’ nos remete ao elemento ativo que se
opõe ao objeto: todo sujeito o é, direta ou indiretamente, em face de um objeto,
ocupando, em uma frase gramatical, uma posição mais importante do que o objeto que o
enuncia ou lhe empresta um condição. A segunda noção básica remete a ‘sujeição’: todo
sujeito o é porque está sujeitado a alguém ou a alguma coisa, motivo pelo qual até os
dicionários colocam ‘sujeito’, dentre muitas outras significações, como sinônimo de
‘escravo’.
Nosso interesse mais destacado por ‘sujeito’ e menos concentrado em outros conceitos
como ‘ser’, ‘eu’ ou ‘indivíduo’33 - em um trabalho que se dedica uma busca de razões
do consumo e do uso de objetos - é justificado exatamente por essas noções iniciais. Se
o sujeito está em relação ao objeto, isso nos obriga a entendê-lo, posto que, se objeto
não constitui o sujeito, ele o define e explicita a sua condição; o objeto, na sua relação
com o sujeito, não pensa nem age, mas, sendo aquilo que é pensado pelo sujeito e aquilo
sobre o que o sujeito possui uma função ativa, ele o revela. Por outro lado, se estamos
às voltas com condições sociológicas e antropológicas de consumo, de compra e de uso

33
Admitiremos, aqui, os seguintes significados: ‘indivíduo’ é uma unidade da espécie humana, na qual
habitam os sujeitos, evitando o significado político atribuído por outros autores; ‘eu’ representa a
experiência da individualidade e ‘ser’ representa o resultado da experiência de existir do sujeito.

107
de objetos na modernidade, devemos admitir que esses eventos ocorrem em um
contexto de produção e comunicação massificadas, que constituem uma ordem social e,
portanto, dominante, onde o sujeito é o receptor da ação. É por isso que ambas a noções
de ‘sujeito’ são-nos igualmente importantes e decisivas: aquela que remete ao sujeito
como agente do pensamento e da ação e aquela que o coloca na posição de sujeitado.

Penso Naquilo que Sou


Ao enveredarem pelo conceito de ‘sujeito’, muitos autores contemporâneos
(Elia, 2004; Fink, 1998; Hall, 2003; Touraine, 2002 e mesmo Lacan, em diversas obras)
empreendem a abordagem a partir das obras de Descartes e Locke, embora nenhum
desses dois filósofos tivesse se empenhado propriamente na construção de um conceito
de ‘sujeito’. Descartes (s/d [1637];1991 [1641], 155-224) nos parece mais motivado
pela existência de Deus, em face do que hoje chamamos de sujeito, e Locke (1991
[1690]) mais empenhado em uma concepção do ser humano e em saber como ele pode
saber. O que se constata da investigação dessas obras, surgidas da efervescência do
racionalismo e do cientificismo do século XVII, é uma sólida base filosófica que tanto
atende às necessidades contemporâneas vinculadas ao conceito de ‘sujeito’ quanto aos
conceitos de ‘ser’, de ‘eu’ e de ‘indivíduo’.34
Descartes (s/d, 66-67) infere uma substância pensante, imaterial, que continuaria
a existir “ainda que o corpo não existisse”: aquilo que “sou”. O aforismo Cogito, ergo
sum afirma que o ser o é porque pensa (e pensa porque tem dúvida).35 O aforismo
portanto sugere, antes, que é o ser, e não ainda o sujeito, aquele que é possível porque
pensa. Todavia, se penso, posso mediar todas as coisas com o meu pensamento e, se
medeio todas as coisas com meu pensamento, posso me separar dessas outras coisas.
Essa derivação permite chegar à noção de 'indivíduo', pelo menos do indivíduo humano,
como sendo aquele que se constitui em unidade independente. Aliás, segundo o próprio
Descartes, aquilo que sou é ‘alma’, e se minha alma não pode ser dividida, ainda
segundo Descartes, então sou um indivíduo. Se penso, sou ‘ser’ e ‘indivíduo’ e não me
confundo com tudo o mais. Se estou separado, pelo meu pensamento, de todos os outros
objetos, então posso me colocar de modo inconfundível e único em relação a todos eles;

34
Para uma abordagem comparada das concepções de ‘eu’ e ‘sujeito’, veja-se Garcia-Roza (2002,
principalmente o cap IX) e Fink (1998).
35
A tradução usual, em português, para Cogito, ergo sum é Penso, logo existo e não Penso, logo sou. A
noção de ‘existência’ como decorrência do ‘pensar’ é uma proposição do próprio Descartes, na qual o ser
o é enquanto substância, portanto existente. Existo porque sou uma substância (pensante).

108
esta última dedução leva-nos então à noção cartesiana e, em última análise, científica de
‘sujeito’. Além de ser, porque penso, e de indivíduo, porque pelo pensamento posso me
separar de tudo o mais, sou um sujeito porque estou em oposição a todos os outros
objetos e posso mediar todos os outros objetos através do meu pensamento. Por essa
linha, concluímos que, na filosofia de Descartes, o ser, o indivíduo e o sujeito o são
porque pensam; e pensam os objetos. A filosofia de Descartes nos conduz ao
ser/indivíduo/sujeito extremamente racional e consciente. O ser, pelo seu pensamento,
pode alcançar a toda verdade, afinal, é uma emanação de Deus. Mesmo admitindo que
as impressões sobre as quais recai o pensamento sejam emanadas de fora do ser, e que
as elaborações deste estão sujeitas a erros, Descartes insiste que o ser pode deduzir a
verdade porque, imperfeito e pecador, é capaz de conceber o justo e o correto (razão
pela qual o filósofo conclui que Deus tem que existir). Se erra - porque é imperfeito -
mas pode conceber o correto - porque Deus está no indivíduo da espécie humana e dota-
o dessa capacidade - o ser pode experimentar a dúvida. Esta, impede-o de errar sem
saber que está errando, pecar sem saber que está pecando, daí o seu método. O princípio
da dúvida - mesmo em relação ao cogito - é a garantia da verdade objetiva.
O sujeito que se pode deduzir de Descartes não é um sujeito sujeitado; através
do pensamento, ele se liberta da sujeição ao mundo exterior e à cultura. Descartes não
ignora o jugo do costume, mas acredita que o ser pode - e mesmo deve - se libertar das
suas peias (veja-se a crítica de Gellner, 1992). O que Descartes ignora é a sujeição à
pulsão, o Id e o sistema de significantes, elementos autônomos e independentes do ser,
preferindo, como um bom cristão, atribuir os descaminhos dos humanos à sua
imperfeição, vale dizer, à sua irracionalidade.
Não chegaremos também ao sujeito sujeitado - que somente visualizaremos
melhor nas obras de Freud, Lacan, Foucault e Bataille - através de John Locke, mas o
empirista inglês nos dará algumas pistas. Locke não negará a influência cartesiana ao
concluir que a mente humana é produtora de verdades, mas propõe que “objetos
externos suprem a mente com as idéias das qualidades sensíveis, que são todas
diferentes percepções produzidas em nós” (Locke, 1991, 28). Para Locke, todo
conteúdo de um processo de pensamento é uma “idéia”. As idéias impressionadas pelos
objetos externos, tais como as relacionadas à cor, temperatura, paladar e consistência
são chamadas de “sensações”; as idéias que permitem crer, racionar, querer, conhecer
são supridas pela mente e são chamadas de “reflexões”. As reflexões então exercem
operações sobre as sensações e sobre as próprias reflexões. O resultado desse processo é

109
o “entendimento”. Talvez por ter sabido correlacionar as suas atividades e reflexões
como médico e como filósofo, Locke chega a esboçar algumas idéias que mais tarde
encontrariam semelhança com as de Sigmund Freud. É o caso, por exemplo, das suas
observações sobre a trajetória da criança, no seu processo de absorção das coisas do
mundo, no início da articulação de suas primeiras reflexões. Locke (1991, 28-29) sugere
que não há razão para se supor que a criança, ao nascer, possua abundância de idéias, de
tal modo que já possa articular reflexões. Será necessário um bom tempo de absorção de
idéias externas para que comece a processá-las. Além disso, a noção de Locke de dois
sistemas de “idéias” antecipa, em certo sentido, a proposta de Freud de dois sistemas
neurais. No seu Projeto para uma Psicologia Científica, Freud, em 1895, sugere que os
humanos possuem um sistema neural periférico e permeável à energia do mundo
externo, a que chamou de sistema phi (Ψ), e um outro sistema dotado de memória e
capaz do processamento psíquico geral, a que chamou de sistema psi (Ψ) (Freud, 1987,
ESB v. I, 319). É sabido que psicanalista não concluiu o Projeto e que a ele retornou,
em escritos posteriores de forma ambígua e imprecisa, tendo mesmo abandonado a sua
face neurológica. Mas é sabido também que as idéias estabelecidas no Projeto
acompanharam e marcaram toda a sua contribuição para desvendar o pensamento e a
psique (veja-se Rodrigues, 1985, principalmente o cap. 2).
Tornando a Locke, as “idéias”, mesmo aquelas derivadas das reflexões - ligadas
à crença, ao raciocínio e à vontade - não possuem o inatismo atribuído a Deus por
Descartes. Na concepção do empirista, se o entendimento ocorre por reflexão, o saber é
uma conseqüência operada pela sensibilidade humana, no interior do hoje chamaríamos
de subjetividade passiva. Locke ainda anteciparia Freud em outro ponto, ao localizar na
condição natural da experiência do prazer o receptáculo que motiva as reflexões e as
idéias. Alain Touraine (2002, 21-22) vê nesse processo uma operação sem
transcendência - desligada de Deus - realizada pela razão instrumental, que marcaria a
aceitação da lei natural que caracterizou o pensamento ocidental a cerca das coisas
humanas no início da modernidade, após Descartes. O “direito natural” à felicidade,
invocado pelos empiristas, imprime nos humanos uma espécie de lei natural de conduta.
Freud teria dado continuidade a esse naturalismo instrumental, sintetizado no princípio
do prazer, mas nos ofereceria a contrapartida racional e crítica do Ego e do Superego.
Antes de Freud porém, Kant nos devolveria a transcendência do pensamento,
não exatamente através de Deus instilado na mente, mas de um sujeito transcendental.
Kant abre a Crítica da Razão Prática refutando o empirismo inglês (Locke, Hume),

110
argumentando que o sujeito empírico não pode constituir um pensamento objetivo da
ordem das necessidades do objeto. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes,
Kant argumenta que o princípio da felicidade poderia ser analítico se fosse fácil dar um
conceito determinado de ‘felicidade’. “Mas infelizmente o conceito de felicidade é tão
indeterminado que, se bem que todo homem a deseje alcançar, ele nunca pode dizer ao
certo e de acordo consigo mesmo o que é que propriamente deseja e quer” (Kant, 1984
[1786], 127) Recentemente, Ernest Gellner (1992) explicitou que as associações de
idéias concebidas pelos empiristas somente poderiam proporcionar representações soltas
e sem sentido (irracionais), na medida em que constituiriam apenas reflexões derivadas
de estímulos externos aleatórios. Para Kant, tem que haver uma razão pura a priori para
dar sentido ao mundo objetivo. Segundo Gellner, o empirismo, sobretudo de Hume,
serviu para James Frazer explicar o pensamento dos selvagens (não o ‘pensamento
selvagem’ de Lévi-Strauss), servindo-se das “associações soltas” para explicar o
pensamento “atrasado” dos pré-modernos, enquanto o pensamento europeu derivaria de
associações precisas e racionais.36 Tarnas (1999) nota que o sujeito racional de Kant
implica a retomada do projeto iniciado por Descartes de se devolver ao ser humano o
lugar central perdido pela revolução copernicana (em que pesem os ideais humanísticos
do Renascimento e muito embora tenha Descartes herdado de Copérnico o princípio da
dúvida). Senhor do seu pensamento, o sujeito kantiano é uma possibilidade devida à
razão pura a priori, que lhe confere a capacidade única dentre todas as espécies de
estabelecer a ordem do mundo.
Durkheim (1989), na introdução de As Formas Elementares da Vida Religiosa,
oferece uma das mais conhecidas oposições à mente kantiana, provocando uma ruptura
na tendência racionalista centrada no sujeito, dominante ainda no século XIX. Muito
embora também não se ocupe objetivamente com um conceito de sujeito, Durkheim
deste retira novamente a sua magnânima racionalidade e a transfere para o mundo
social. A proposição de Dukheim não implica necessariamente uma contra-revolução
copernicana, mas reabre um debate (jamais concluído) entre o domínio da mente sobre o
meio e o domínio da sociedade sobre o ser humano. Pode-se atribuir a Durkheim a
origem da noção de um sujeito sujeitado, de um ser derivado do mundo que o cerca,
cujo pensamento não passava de ideações instiladas pelo meio social, mesmo quando
pensa que é senhor do mundo. Todavia, ainda no século XIX, Nietzsche (1996 [1882])

36
Veja-se nossa análise dos sistemas de pensamento (Barreto, 2005).

111
sustentará que o ser humano pode criar a própria vida, através do trabalho e da fé em si
próprio, recusando que o sujeito tenha que ser tão sujeitado pelo meio, sobretudo pela
religião. Mais tarde, Sartre (1997 [1943]) dirá que o homem é único responsável pelo
seu destino.

O Mundo Pensa em Mim


Tentar uma busca da noção de ‘sujeito’ na obra de Freud requer inicialmente que
se abandone a noção cartesiana, a começar pelo entendimento de que o sujeito que se
pode depreender de Freud não é, pelo menos nem sempre, consciente. É exatamente
para chegar ao inconsciente que Freud recorre ao termo ‘Eu’ (‘Ego’, ‘Ich’). Todavia,
não poderemos aqui mergulhar na imensa obra de Freud para deduzir os vários
significados que atribui a ‘Ich’, ao qual Lacan mais tarde entenderá ora como ‘Eu’ ora
com ‘sujeito’. Raramente Freud adotará a palavra ‘sujeito’, enquanto substantivo,
estando porém o termo sugerido em diversos pontos nas suas referências à condição do
‘Ich’ como uma constituição sujeitada (ao mundo exterior). Em Sobre o Narcisismo, de
1914, Freud (1987, XIV, 89-119) dedica o início do texto a elaborar uma resposta a
Jung, face à proposta deste sobre a dessexualização da libido. Mas este não é ponto que
mais nos importa. Em seguida, Freud propõe que o ego (‘Ich’) infantil, ou seja, o ego
originário das pulsões libidinosas experimentadas desde a tenra infância (o narcisismo
primário), está sujeito a repressões na sua busca do prazer, vindas da família, das classes
sociais e da própria cultura. A repressão faz com que o sujeito constitua o que aqui
poderíamos chamar de outro sujeito, a que Freud trata com “ideal do ego”, uma
projeção subjetiva algo comparável ao que, em outra parte, Freud chamará superego. O
ideal do ego não é um substituto do ego original (na verdade, dois sujeitos passarão a
habitar o indivíduo) mas opera uma asfixia no ego originário da pulsão, o que, também
em outra parte, Freud chamará de “recalque”.
Todavia, ao mesmo tempo que o ego imposto de fora (o ideal do ego) passa a ser
objeto da satisfação do sujeito (porque atende às necessidades de aprovação social),
afastando o narcisismo primário, “dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação
desse estado” (Freud, 1987, XIV, 117). Ou seja, a repressão do narcisismo libidinoso
através da instituição de um ego, digamos, social e cultural gera propensões conflitantes
e muitas vezes insolúveis dos dois egos. Em outras palavras, o sujeito sujeitado pela
repressão externa conflita-se com o sujeito da libido, sendo a sua expressão social os
embates entre os imperativos do desejo e a ordem social, que todos nós, com menor ou

112
maior grau de consciência, experimentamos na vida (o conflito entre o princípio do
prazer e o princípio da realidade, de que nos fala o próprio Freud). Nesse processo, na
medida em que a ordem social reprime e cria regras que proporcionam ao sujeito de
alguma forma ajustar-se à sua condição (o casamento, por exemplo), o sujeito procura
os seus próprios meios de ajustamento (a paixão, por exemplo), os quais não
necessariamente coincidem com as regras sociais. Freud, ao encerrar seu breve ensaio,
elabora uma assertiva de muito valor para as disciplinas sociais e culturais: “além do seu
aspecto individual, esse ideal (do ego) tem um aspecto social: constitui também o ideal
comum de uma família, uma classe ou uma nação” (Freud, 1987, XIV, 119).
Afirmações como esta conduzem seguidores de Freud a conclusões como a expressa por
Garcia-Roza (2002, 206), na qual a libido sempre teria sido pensada por Freud “em
situação de cultura”.
Depreende-se de Freud, ao menos da parte de sua obra em que aqui estivemos
mais atentos, não um sujeito mas dois sujeitos. O primeiro é sujeito da pulsão, da libido,
que a boa regra social manda reprimir e/ou submeter. A primeira boa regra é a
interdição do incesto, base de toda ordem, instituindo no caos da promiscuidade o
casamento e a estrutura do parentesco. O sujeito da libido, o sujeito somático, não é
sujeitado pela ordem externa mais pelas pulsões do próprio ser que se entrega e
obedece, pelo menos durante algum tempo, ao princípio do prazer. O segundo sujeito, o
sujeito da cultura, é sujeitado pelo princípio da realidade, pela ordem social externa.
Mas, ao mesmo tempo que a emergência desse sujeito implica a obediência a um novo
princípio, ela trás duas conseqüências: a primeira, como assinala Freud, é dar margem à
recuperação do estado puramente libidinoso; a segunda é trazer ao ser a consciência. A
primeira conseqüência nos diz que o segundo sujeito não substitui o primeiro, mas
impõe-lhe regras (que nem sempre serão obedecidas), a segunda nos dá conta de que a
consciência é algo resultante do confronto entre o sujeito da pulsão e o sujeito social. O
papel dessa consciência é de importância capital porque é ela que passará a mediar as
indecisões do ser entre a obediência às pulsões e às regras; é o que poderíamos
considerar como o equivalente do sujeito racional na visão freudiana. A pulsão do
sujeito da libido passará a instituir a sua inconsciência, mas as regras instiladas, por
outros processos, também o passarão. Se os psicanalistas conhecem bem os processos
inconscientes do sujeito da libido, os antropólogos conhecem bem os processos
inconscientes da ordem social e da cultura; ambos os sujeitos como que submergem,
permanecendo subjacentes a toda a conduta humana. A consciência tratará de promover

113
a mediação entre os sujeitos, como, nos termos freudianos, o ego media as pulsões do id
e a autoridade do superego. A consciência é o que mais se aproxima do sujeito
cartesiano; diremos que é o sujeito racional; é na verdade o sujeito que mais se
assemelha ao sujeito tangível que todos os cientistas das coisas humanas gostariam de
tocar.
Mas não nos enganemos; não estamos seguros de poder deduzir da obra de
Freud um sujeito cartesiano, enquanto portador da verdade ou da possibilidade da
verdade. O que chamamos de sujeito racional, por ser consciente, não tem na verdade
consciência dos outros dois sujeitos com os quais se debate. Aquilo do que tem
consciência é a repressão familiar e social, porque recebe interdições (através da fala,
dirá o próprio Freud), punições, aprovações em situações formalmente rituais ou não. E
as recebe em relação ao desejo, processando dessa forma a oposição entre desejo e regra
social. A remessa do sujeito da libido para as regiões míticas do inconsciente é o que
dará sentido à função médica da psicanálise, conquanto a instilação das regras sociais
também para as regiões míticas é o que dará sentido ao projeto antropológico.37
Tampouco será exclusividade de qualquer disciplina ter como objeto o que chamamos
de sujeito racional. Esse sujeito, que não se consegue “pegar com mão”, ora será
cordato em bem-comportado, em atenção ao sujeito da cultura, ora ver-se-á obrigado a
pedir perdão por ceder aos instintos, ao consumismo, face às ocasionais e incontroladas
obediências ao sujeito da libido. Mas acima de tudo ele se nos apresentará como o
sujeito que se explica, que se justifica, que racionaliza. Ele não é racional. Ele usa a
razão. Como nos lembra Rodrigues (1985), em última análise, todo o formidável
aparelhamento intelectivo do ser humano está a serviço da sua psique. O sujeito racional
não é exatamente o que Lacan, em A Ciência e a Verdade (Lacan, 1998: 867-892), trata
como sujeito da ciência. Mas, conforme exploraremos mais tarde, podemos encontrar
em ambos o substrato do sujeito moderno.

Penso Onde não Sou


Qualquer ser humano que se dedique ao trabalho de procurar entender, afinal, o
que é ‘sujeito’, necessariamente fará um empreendimento racional e apelará, pelo
menos inicialmente, para a sua própria consciência. A reflexão sobre a condição
humana não é uma exclusividade do homem moderno; nem mesmo a convivência de

37
Não devemos pensar que tais regiões constituem lugares físicos e com limites identificáveis. São
instâncias psíquicas sem fronteiras fixas.

114
dois sujeitos em um mesmo indivíduo da nossa espécie é uma constatação somente
possível após o cartesianismo: Lévi-Strauss encontrou “psicanalistas” - ou pelo menos o
seu sistema de pensamento e de cura - entre selvagens. Mas devemos reconhecer que a
matriz do nosso próprio pensamento filosófico e antropológico, do século XVIII ao XX,
ocorreu no bojo de uma peculiar “vontade de saber” ocidental. A revisão que
empreendemos acima constitui, sem dúvida, parte dessa matriz, em cuja estrutura vimos
concebendo as coisas humanas: ali estão a subjetividade, a partir do prazer e do desejo;
a moral social, como provedora da emergência da consciência; a racionalidade, como
um recurso mediador; a discussão interminável sobre a verdade das relações entre o
sujeito, o objeto e os condicionantes sociais. Podemos enxergar também nessa matriz os
fundamentos teóricos da nossa própria disciplina, no século XX: da divindade interior
cartesiana e do sujeito transcendental, a lingüística estrutural e o estruturalismo de Lévi-
Strauss; das “associações soltas”, a lingüística fenomenológica de Wittgenstein, o
culturalismo e o interpretativismo de Clifford Gertz; do fato social, o sociologismo
dukheimiano.
Entretanto, se a verdade do sujeito, como dirá Lacan, foi remetida para os
confins da inconsciência mítica, o discurso daqueles que o investigam é
necessariamente resultado de uma elaboração racional e consciente; mas é
paradoxalmente, aquilo sobre o que não podemos ter certeza. Se a consciência é uma
emergência provocada pela oposição entre o sujeito da libido e o sujeito socialmente
sujeitado, ela somente pode ser uma instância flexível e mutável, oscilante entre duas
verdades. Tal oscilação não ocorre apenas no indivíduo comum, ocorre também no
investigador da manifestação do sujeito; daí as oscilações analíticas em torno do que o
sujeito efetivamente é. Não é só na vida cotidiana que o ponteiro da consciência varia
no espaço de um sujeito para o outro; as idéias sociais e as teorias elaboradas sobre elas
estão sujeitas a mudanças no espaço e no tempo, sem que se possa inferir uma regra
precisa que explique os movimentos.
O sujeito então se nos parece estar submetido a uma sujeição tripla: a primeira,
ao princípio do prazer, despertado pelas sensações agradáveis decorrentes da própria
experiência corpórea; a segunda, ao princípio da realidade, que o submete à linguagem e
o condena a mediar todas as suas experiências através de um código que o distancia da
verdade; a terceira, diremos que implica a sujeição à própria razão, que, no Ocidente, é
inaugurada com o cogito, e que submete o sujeito ao saber (não propriamente à
verdade): essa miragem que torna o sujeito moderno tão auto-confiante. A razão tornou-

115
se um imperativo, não exatamente um mandado que exige obediência ao costume social,
mas a imposição da obrigação de ser racional. Esta é uma exigência feita ao sujeito em
relação a ele mesmo, uma cobrança à consciência racional; um apelo à razão que não
dita especificamente uma prática dominante. Trata-se de uma exigência que não deixa
de pertencer à ordem social, mas trás um elemento diferente, na medida em que permite
o livre arbítrio e não pode garantir a conduta exata do sujeito, o que implica exatamente
em exigir-lhe uma elaboração e uma ação racionais resultantes da mediação entre os
seus desejos e as imposições sociais; é uma determinação de “agir de acordo com a sua
consciência”, que trás implícita, simultaneamente, a cobrança da razão, a exigência de
controle das pulsões e a consciência da ordem social dominante.

Na concepção de Lacan, não há diferenças substanciais em relação aos dois


sujeitos que inicialmente deriva-se de Freud, com a diferença de que o psicanalista
francês passará, desde seu primeiro Seminário (Lacan, 1986) a tratar o conceito
exatamente como ‘sujeito’. O sujeito lacaniano38 é a sua própria divisão, designado por
um S cortado por uma linha diagonal, chamado de ‘sujeito barrado’; é o sujeito que se
fendeu em dois (diríamos que o sujeito é dois sujeitos ou, como dirá Fink [1998: 67] “o
sujeito não é senão essa própria divisão”: o sujeito da libido - o sujeito da enunciação, o
recalcado - e o sujeito do enunciado - o sujeito social, manifesto, o sujeito da
linguagem, aquele que trás à consciência. O processo se desenvolve através do que se
chama “alienação do eu” ou “clivagem do eu”. Nesse caso, o eu alienado ou clivado -
remetido para os confins do inconsciente - é o eu original (o sujeito freudiano da libido).
A linguagem institui a ordem simbólica, fazendo surgir exatamente o sujeito da
linguagem, aquele que doravante passará a mediar a relação entre si e o mundo exterior
através da linguagem, rompendo com a relação imediata natureza-natureza.
Alienado para os domínios do não-ser e eclipsado pelo sujeito da linguagem, o
sujeito passa então a ser referido pela sua falta. Daí, a oposição de Lacan ao sujeito
cartesiano. Para Lacan (1998: 882-883), o Eu portador da verdade é exatamente o
sujeito alienado, inconsciente e faltante (exatamente por isso, se tornará aquele que a
psicanálise procurará trazer à tona) e não o sujeito racional. Lacan (1998: 520) concorda

38
Este parágrafo constitui uma extrema redução sobre a noção de ‘sujeito’ em Lacan. É,
todavia, um extrato obtido de nossa análise do sujeito lacaniano a partir de Fink (1998), Garcia-
Roza (2002), Rossi (1984), Cababie (1984), Lemaire (1986), Mannoni (1975) e Lacan (1986 e
1998), mas atende, aqui, às nossas necessidades.

116
que apenas posso ser eu enquanto sou dotado de pensamento, mas, na perspectiva de
Lacan, ‘pensar’ é um atributo do inconsciente (ver Fink, 1998: 55-70); o sujeito
somente é enquanto está pensando: “’cogito ergo sum’ ubi cogito, ibi sum” (Lacan,
1998: 520). Todavia, se é o sujeito (original) aquele que pensa, seu pensamento é
inconsciente e “em que medida eu realmente penso, isso só diz respeito a mim, e, se o
digo, não interessa a ninguém” (Lacan, 1998: 520). Portanto, a verdade somente
emergirá (será falada) em momentos especiais (nos atos falhos, por exemplo, ou, como
esperam os psicanalistas, em situação de análise), mas dirá respeito apenas às coisas do
eu alienado (por isso, não interessa a mais ninguém). O sujeito da linguagem não é o
portador da verdade, senão de uma verdade que, através da mediação provida pela
própria linguagem, passará a ajustar ou compartilhar com os outros, ou seja, uma
projeção da verdade.
O pensar cartesiano pressupõe ter consciência; ali, eu, consciência e sujeito
coincidem e são os donos da verdade. Mas é um sujeito ignorante de si; cogita que
pensa, e portanto pensa que é. Este se nos parece ser aquele que chamaremos de terceiro
sujeito de Lacan (e o que mais se aproxima do sujeito racional que derivamos de Freud).
De fato, Lacan (1998: 496-533), em A Instância da Letra no Inconsciente ou A Razão
desde Freud, de 1957, que vimos referindo, comenta: “nem por isso deixa de ser
verdade que o cogito filosófico está no cerne dessa miragem que torna o homem
moderno tão seguro de ser ele mesmo em suas incertezas a seu próprio respeito” (p.
521). A afirmação nos parece significar que Lacan, muito embora persiga um sujeito
atemporal e a-histórico, admite um momento de emergência não de um sujeito
(cons)ciente mas de um sujeito da ciência.
Lacan (1998: 869-892), em A Ciência e a Verdade, de 1965, voltará ao assunto:
o sujeito da ciência foi inaugurado, com o cogito, por Descartes e que, paradoxalmente,
é o sujeito sobre quem opera a psicanálise. Lacan faz o comentário em meio a uma
discussão sobre as posições de Lévi-Strauss e, certamente, discursa para psicanalistas.
Conhece-se a analogias e comparações que Lévi-Strauss (1989, 193-236), em O
Feiticeiro e sua Magia e A Eficácia Simbólica, publicados desde 1949, entre os
psicanalistas e os xamãs. A proposição de Lacan é a de que aquele que Lévi-Strauss traz
à tona, o sujeito xamanístico, ainda opera no universo do significante: “o significante da
natureza é invocado pelo significante do encantamento” (p. 885). Mas esse modo de
consciência é vedado ao psicanalista. Não somente porque é o próprio analista um
sujeito da ciência, como também porque o são seus pacientes. O xamã, pelo que se

117
depreende do psicanalista francês, nas suas operações de cura, não lida com um sujeito
que aprendeu a racionalizar sua dores e a construir um discurso em torno de si e das
coisas do mundo real. “Tudo ali (no universo xamanístico) está por ser ordenado
segundo as relações antinômicas em que se estrutura a linguagem (Lacan, 1998: 886). E
Lacan conclamará os psicanalistas a não agirem como feiticeiros, não porque sejam
homens da ciência, porque o “homem da ciência” não existe (p. 873), mas porque são
sujeitos do seu discurso. Lacan dirá também aos psicanalistas que a comunicação,
ausente no sujeito da magia (porque mantido no sistema de significantes), é intrínseca à
lógica do saber científico e sutura o seu sujeito.
Lévi-Strauss não se convencerá de que os psicanalistas não podem ser
comparados aos feiticeiros. O volume quase inteiro de La Potière Jalouse (Lévi-Strauss,
1988 [1985]) será dedicado a demonstrar que os selvagens inventaram a psicanálise há
muito tempo: “as we can see, the Indians even had psychoanalysts!” (p. 132). O que o
debate parece nos dizer é que lidar, seja psicanalística seja etnograficamente, com o
sujeito do discurso comunicado não é a mesma coisa que lidar com o sujeito do
significante; neste, a metonímica ausente, se ausenta o discurso, também impede a
dissimulação racionalista. O que tornou possível a inferência consistente das “estruturas
sociais” e das “culturas”, operada por nossos antecessores foi a suposição, às vezes bem
fundamentada às vezes não, de que os selvagens operam no universo linguístico do
significante, motivo pelo qual sempre confiamos mais no seus mitos e nos seus ritos do
que nos seus relatos.
Que não se pense que o discurso racional e o conhecimento complexo sejam
exclusividades do moderno pensamento científico (ou que o “pensamento selvagem”
inexista no moderno), de tal forma que o sujeito possa ser diferenciado com base nessas
propriedades. Mas, um relato, selvagem ou moderno, é um discurso. O próprio Lévi-
Strauss já há muito nos alertou para o fato de que nem sempre aquilo que os índios
relatam corresponde ao que sentem e fazem. “Totalização não-reflexiva, a língua
(diríamos, a linguagem) é uma razão humana que tem suas razões e que o homem não
conhece” (Lévi-Strauss, 1989: 280). O próprio Lacan concorda que “nenhuma
linguagem pode dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro” (1998: 882). O discurso do
sujeito falante não resulta de consciência das leis lingüísticas, nem no selvagem nem no
moderno. Como então contornar o sujeito falante? A estratégia estruturalista é colocar-
se aquém do sujeito, indo direto à estrutura essencial anterior a qualquer sujeito
particular; a estratégia psicanalista é provocar uma ruptura no sujeito (da linguagem),

118
ainda que breve e efêmera, de forma que ele deixe vir à tona a verdade do sujeito que
ele ocultou.

O Sujeito Absoluto
Certa vez, relata Dosse (1993, p. 209), questionado por Jean Duvignaud sobre a
liberdade, sobre o sujeito e sobre a dinâmica da vida social, Lévi-Strauss respondeu que
essas não lhe eram questões pertinentes, no nível de questões em que ele se situava.
A antropologia estrutural de Lévi-Strauss não seria apenas um kantismo sem
sujeito transcendental; é uma antropologia sem sujeito empírico. Sua obra percorre uma
trajetória que conduz ao absoluto (ao Absoluto, talvez), aos espaços mentais sem forma
e sem significante, mas que constituem as possibilidades da forma e do significante.
Tem sido normal que a antropologia de Lévi-Strauss seja objeto de perplexidade no
interior de tradições sociológicas como a antropologia social inglesa, cuja noção de
estrutura compreende algo concreto e diretamente observável; como o culturalismo
estadunidense, acostumado a deduzir significações simbólicas de comportamentos
psicológicos e; da própria etno-sociologia francesa, berço onde foram criados os meios
de inferência da conduta social.
Todavia, a insistência de Lévi-Strauss, em tentar reconstruir um atributo interior
a partir das representações sociais, contribui para manter vivo o valor da prática
etnográfica e das inferências relativas ao mundo externo ao “espírito”. Tem-se
perguntado se o desenrolar dos fatos concretos tem a ver com a estrutura. A um
perplexo Edmund Leach (1977), Lévi-Strauss responde que sim.
Só que, desde Tristes Trópicos, depreende-se que Lévi-Strauss (1993) sinaliza
para que não se compreenda as relações entre a estrutura dos mitos e a conduta social
como um eixo de causalidade direta e simples de se verificar. As significações
arrancadas pelo antropólogo belgo-francês nem sempre exprimem a força moral, a
ordem social e o padrão de conduta edificante que muitos querem ver nos mitos; estes
não são necessariamente imagens morais a serem projetadas nos sujeitos.
Se os mitos não são necessariamente traduzíveis naquilo que a conduta social é,
ou nem mesmo no que a conduta deva ser, o que o estruturalismo tem a oferecer à
sociologia e à antropologia social?
Leach, ele próprio, é testemunha viva da dificuldade de se responder a essa
pergunta. Sua experiência na tentativa de correlacionar sistemas de mitos com estrutura
social revela inconsistência social e incompatibilidade de significações míticas, ao

119
constatar os Kashin imersos nas contradições entre seus mitos, perdidos na sua estrutura
agnática de parentesco e no seu sistema de trocas matrimoniais (Leach, 1995).
Acreditamos que Bourdieu tentou responder à questão. Mas, da tentativa de
correlacionar “estruturas estruturantes”, “estruturas estruturadas” e sistemas sociais, o
que resulta é um redirecionamento de seu projeto na direção oposta do estruturalismo
essencialista de Lévi-Strauss. O quadro de conteúdos comparados com que Bourdieu
(1989, p. 16) encerra o primeiro capítulo de O Poder Simbólico é de suma importância
para compreender a sua trajetória e a sua posição intelectual. Ali, Bourdieu não apenas
entrevê os domínios de competências de certos pensadores (Marx, Weber, Lévi-Strauss
e outros), mas deixa notar uma sequencialidade lógica entre as estruturas estruturantes,
as estruturas estruturadas e os instrumentos de dominação. As primeiras contêm as
formas básicas que permitem o conhecimento do mundo objetivo (modus operandi); as
segundas, os sentidos objetivos da interação humana (língua, cultura, opus operatum);
os terceiros, o mundo social objetivo, manisfesto no poder simbólico. Mas a “coluna”
onde Bourdieu vai atuar é a última, buscando nela sua própria lógica, independente das
demais.
É bem verdade que, quando falamos de estrutura da inconsciência e de estrutura
de posições sociais, estamos falando de dois estruturalismos. Não se pode confundir o
que me parece poder ser dito em relação às noções francesa e inglesa de estruturalismo.
Segundo Dosse (1994, pp. 91-2), durante aquilo que chama de primeira fase de
Bourdieu, este tende a uma análise social, onde o sujeito constitui um mero instrumento,
sem consciência, das determinações sociais. Aqui, o sujeito já está ausente ou somente
presente por suas ilusões.
Conquanto todos concordemos que essa elaboração sociológica constitua uma
reconstrução durkheimiana, quer nos parecer que esse estruturalismo bourdieusiano se
aproxima do estruturalismo de posições, que a antropologia social inglesa derivou do
funcionalismo, inovando porém quanto às noções de campo, de habitus e de jogos de
posições.
Os sujeitos estão ausentes das análises lévi-straussiana e bourdieusiana por
implicações diferentes: no primeiro caso, o sujeito existe, mas o plano de análise está
localizado antes da subjetividade; no segundo caso, o sujeito também existe, mas não é
um elemento ativo no processo de constituição da subjetividade. Ou seja, em um caso, o
sujeito não interessa porque a análise se situa na direção do inconsciente autônomo,
independente e impessoal, onde inconsciência se refere a uma meta-estrutura (Lévi-

120
Strauss prefere ‘infra-estrutura’) com capacidade de dar forma e significação; no outro
caso, o sujeito não interessa porque a análise se situa na direção da sociedade
igualmente autônoma, independente e impessoal, onde se remete a uma noção de
inconsciência como um estado do sujeito, simplesmente anterior à tomada de
consciência.
Ainda nessa fase de Bourdieu, a análise se configura estruturalista porque,
diferentemente do processo histórico marxista, as posições sociais estão perpetuadas em
campos simbólicos sincrônicos e invariáveis, constituindo uma proposta sociológica que
parece ter sido inspirada na noção de sucessão de sincronias, de Jakobson.
O sujeito pelo qual se interessa Lévi-Strauss também está oculto. Todavia, assim
como o psicanalista precisa do sujeito falante para tentar fazer emergir o sujeito da
linguagem, o método de Lévi-Strauss necessita do relato mítico, das representações
simbólicas da estrutura manifestas na diversidade social. Aí se encontra o seu sujeito
falante, cuja consciência é incapaz de dar conta tanto da estrutura quanto da realidade
objetiva. Mas, apesar de oculto da teoria e do método, o método lévi-straussiano vai
busca-lo no indivíduo que produz, troca, comunica e consome. É na troca de esposas e
de objetos que o sujeito emerge como agente do mandado da estrutura de significantes,
cujas operações podem ser consideradas como processos de substiuição,
correspondentes, no mundo dos significados, ao simbolismo da troca social. Quer dizer,
‘sujeito’ não é um conceito que exerça sobre Lévi-Strauss um interesse muito grande,
mas constitui no seu trabalho um agente, de cujas ações (no sistema de trocas) muito se
pode extrair sobre a sua natureza psíquica e social.
O sujeito oculto de Lévi-Strauss, interposto entre o inconsciente e mundo social,
não me parece determinado nem por um nem por outro, mas alguém que de alguma
forma resulta da combinação da estrutura de significantes com as regras do mundo
social. Pode-se, de alguma forma, derivar daí uma compatibilidade entre as proposições
kantianas, durkheimianas e lacanianas, ou seja, a proposição de que o sujeito é uma
produção do inconsciente mas também um ser empírico e sociológico, ambos velados e
não-conscientes da sua própria condição.

Uma noção de sujeito sujeitado, também dividido entre dois universos, é a de


que nos fala Bataille (1967). O sujeito sujeitado pela sociedade e pelo mundo do
trabalho é aquele tornado coisa, objeto do mundo profano, que escraviza-o e usa-o. O
sujeito sujeitado pelo sagrado é o sujeito do consumo, cuja realização se encontra no seu

121
próprio sacrifício, através do qual se liberta da sujeição profana. Bataille (1967)
encontra no sacrifício asteca uma extrema expressão de, simultaneamente, humanidade
e divindade. Para ele, o sacrifício implica a recusa do outro enquanto objeto, enquanto
coisa, e opera a aproximação do sacrificado enquanto sujeito. "O sacrifício restitui ao
mundo sagrado o que o uso servil degradou, tornou profano" (p. 94). O sacrifício
(humano) restitui uma intimidade entre o sacrificante e o sacrificado, produzindo
novamente uma relação entre sujeitos, e não entre sujeito e coisa. Para Bataille, a
destruição absoluta é o meio para se negar a relação utilitária. A devolução ao sagrado
da coisa objetivada (o sujeito tornado objeto), através da destruição, do consumo sem
lucro, restitui a profunda liberdade interior, restitui o "sujeito livre", "íntimo", que não
mais se subordina, se sujeita, à ordem "real", social. Entretanto, para que esse sujeito
divino possa ser reencontrado, o sujeito-coisa social deve ser destruído.
*
A evidência do sujeito entre os estruturalistas proporcionou avanços nas ciências
humanas em duas direções: Em uma delas, Lévi-Strauss demonstra a unidade da
espécie, oculta sob a complexidade da diversidade social. Na outra, Lacan traz novo
vigor clínico à psicanálise.
Mas, a menos que acreditemos na verdade do sujeito cartesiano, o dilema
metodológico com que se defrontam os antropólogos do sujeito da ciência é conseguir
alcançar a sua verdade, contornando – ou talvez perfurando – o seu discurso racional e
individualista. Porém, não treinados na técnica psicanalista (e não almejando seu
objetivo de cura individual) e não dispondo de estruturas míticas não subordinadas ao
pensamento científico, cumpre-nos reencontrar o nosso sujeito e os meios etnográficos
para sua aproximação.
O sujeito da linguagem é uma entidade intangível e aparentemente inacessível a
um etnólogo interessado em sujeitos modernos; ele é sujeitado por uma cultura
racionalista e por uma moral econômica que o conduz a escamotear suas motivações.
Mas, se entendermos que seus mitos são justamente o seu cientificismo e o seu
comedimento puritano, então temos uma chance de decifrar o que esconde. Em um
certo sentido, os modernos são como os selvagens: fazem o oposto do que dizem. A
diferença é que os selvagens não se conduzem como contam os seus mitos e os
modernos dizem que a razão não é um mito.39

39
Discutimos, em Barreto (2005), o pensamento científico como pensamento mítico.

122
Capítulo 9
O Sujeito e o Mundo Objetivo

Muito embora o sujeito que a psicanálise queira trazer à tona esteja alienado e
oculto por um outro sujeito – e que interessa à psicanálise, na medida em que,
retroativamente, confere validade ao sujeito original – a experiência de Lacan nos trás
também um sujeito histórico e habitante do mundo social. O sujeito suturado pelo saber
científico é capaz de ver-se, ainda que numa miragem, como um sistema em si mesmo,
graças à comunicação inerente ao próprio discurso do saber científico. Enquanto os
saberes mágico e religioso permanecem contidos no feiticeiro e no sacerdote, a lógica
do saber da ciência é dada exatamente pela sua amplidão comunicativa.
No capítulo anterior, perscrutamos o sujeito que não se pode ver, finalizando
com um comentário que sinaliza a nossa esperança de poder encontrá-lo mesmo assim.
Todavia, podemos contar atualmente com boas referências sobre o sujeito empírico
moderno, certamente, este mesmo sujeito suturado pela ciência, e ampliar a nossa base
teórica.

Bourdieu e os Durkheimianos
A partir de Esquisse d’une Théorie de la Pratique (1972), onde formula
proposições próximas às de Wittgenstein (1991; 2001), relativas à busca de sentido na
objetividade prática da fala, Bourdieu (1972) efetivamente esboça uma teoria da prática
do sujeito, a que vai chamar de habitus. As sociedades humanas permanecem
construções coletivas que submetem o sujeito e nele se traduzem. A partir de certo

123
ponto, Bourdieu concede ao sujeito uma espécie de possibilidade estratégica de escolha.
Mas esse sujeito está muito longe daquele cuja ação faz a história. Ele permanece como
sendo a projeção de uma estrutura de poder simbólico (Bourdieu, 1989), que lhe fornece
certas posições e suas ações são, igualmente, de um conjunto de possibilidades dadas.
Dadas certas posições, que na sociologia de Bourdieu adquirem a noção
geometricamente mais expandida de “campo”, o sujeito tem alguma mobilidade de ação
para jogar um jogo, cujas regras sociais (habitus) ele assimila mas não inventa. As
noções de campo e de jogo simbólico nos parecem inspiradas ainda no resultado de seu
trabalho etnológico na Cabília, onde a dádiva e a honra constituem elementos
simbólicos jogados no campo da hurma. Embora o jogo social possa admitir a aplicação
racional na escolha de estratégias, os elementos com os quais se joga são invariáveis, tal
como já se referiu o próprio Lévi-Strauss a jogos de cartas.
As posições sociais, segundo Bourdieu, (1979), em La Distinction, são dadas por
ocupação e práticas sociais, ou melhor, por atividades (profissões, desportos, consumo)
onde a lógica de sua organização deve ser buscada no interior de suas próprias relações
práticas, no mundo da fala e não no da língua, abandonando-se o determinismo
subjetivo ou subjacente. Aqui, também se sente a influência da teoria holística: a
significação dos fatos não deve ser procurada somente nos fatos, mas, principalmente,
nas suas relações (Bourdieu, 1989, cap. II). Sente-se também a presença de um sujeito
não tão escravizado pela estrutura da linguagem, encontrando espaços de liberdade na
fala. Meio saussureana e chomiskyana, a atualização do sistema lingüístico, através da
conduta lingüística, para usar as expressões de Lyons1987), pode ser operada pelo
sujeito. Ou seja, o sujeito de Bourdieu, pelo menos a partir do Esquisse, é mais ou
menos livre (quer dizer, mais ou menos escravo), entre a estrutura subjacente da
linguagem e a estrutura social.
A estrutura de Bourdieu é um tabuleiro bidimensional cartesiano de jogos
sociais, onde as posições são fixas, constituindo o caráter de invariabilidade que uma
estrutura requer. As evidências simbólicas - que irão comprovar a estrutura - devem, no
seu método, ser inferidas das relações entre os sujeitos pertencentes aos “campos”. A
mobilização entre os campos é sempre difícil e dolorosa exatamente pelas dificuldade,
ou mesmo impossibilidade, de assimilação do código simbólico (estamos falando de
significados) do outro campo e também, pelo mesmo fundamento, pelas defesas
erguidas em cada campo. As evidências da existência dos campos não está exatamente

124
nas designações das atividades (trabalhadores qualificados, empresários, apreciadores
de tênis, consumidores de whisky) mas no código simbólico que os une e os separa.
A atividade (trabalho, desporto, consumo) constitui habitus. Na visão de
Bourdieu, importa mais todavia o jogo projetado num tabuleiro social que, ao que
parece, não apenas submete o sujeito mas faz-lo submergir nas regras, invariáveis, das
quais não tem ou tem pouca consciência.
Enquanto o método de Lévi-Strauss conduz-lo para trás, ou seja, das estruturas
estruturadas para as estruturantes, o de Bourdieu conduz-lo para frente, ou seja, das
estruturas estruturadas para a dominação simbólica da organização social. Enquanto a
trajetória de Lévi-Strauss conduz-lo para aquém do sujeito, a trajetória de Bourdieu
conduz-lo para o sujeito empírico, diluído nos campos do poder simbólico.

Ainda na linha durkheimiana, Berger e Luckmann (1994) retomam a crítica ao


biologismo e ao apriorismo das teorias sobre o ser humano, para diagnosticarem que a
realidade objetiva só pode ser uma construção social, admitindo os “pressupostos
genéticos” (p. 73) do eu, mas afirmando que a “identidade subjetiva” deriva de um
processo sociológico. Goffman (1992) retoma a sociologização para falar de um
indivíduo humano como um ator social, sujeito a um processo de representação ditado
pelo meio, que tende a elaborar uma imagem ideal de si mesmo, como uma máscara
moral exposta diante da sociedade.
*
A sociologização do sujeito contribuiu muito para desfazer as ilusões
decorrentes do determinismo biológico darwinista e do determinismo racional
cartesiano, ou ainda, se fosse o caso, de qualquer determinismo estruturalista. Ocorre
que a natureza metodológica do estruturalismo é sistêmica porque de nada adianta
substituir uns determinismos por outros. Ao empenhar-se em evidenciar o fato social e
as relações do mundo objetivo, alguns seguidores da chamada tradição durkheimiana
acabam por inventar o determinismo sociológico, como se apenas houvesse um vazio
caótico no sujeito, cuja ordem seria então determinada pelo mundo objetivo. Não é na
direção do caos que apontam as atuais pesquisas lingüísticas e os estudos filogênicos da
espécie humana que vimos no capítulo 2. Uma coisa é buscar o significado nas relações
sociais, outra é pensar que somente o significado existe. O ‘dukheimianismo’,
entendendo-se por esta palavra a apropriação parcial dos ensinamentos de Durkheim,
parece ver o sujeito como alguém a quem são dados alguns pincéis, algumas tintas e

125
uma tela. Juntamente com este objetos, o sujeito recebe ainda uma ordem: “Pinte o que
você vê à sua volta.”. Preferimos ver o sujeito como alguém que recebe os mesmos
objetos e o mesmo comando; acontece que o sujeito somente pode representar o mundo
objetivo através dos recursos que lhe permitem a própria visão. Ele não pinta o que
existe, pinta o que vê. Não se trata apenas de expressar pontos de vista, posto que até as
diferenças de opinião são coordenadas pelo meio. Trata-se de não se poder exigir que o
sujeito pinte aquilo que sem o seu aparelhamento ótico ele não pode ver. O resultado, a
tele pintada, a representação no sujeito, é algo decorrente da combinação entre o mundo
objetivo e o aparelhamento que capta a sua imagem.
A evidência da estrutura não é a própria estrutura, posto que não se pode vê-la.
Paradoxalmente, a estrutura é melhor percebida nas representações do psicótico – ou do
pintor surrealista – porque não têm, ou não precisam ter, correspondência com o mundo
objetivo. Por isso, os loucos são importantes para a pesquisa psicanalítica. Pelo mesmo
motivo, consumistas como Hell, são importantes para a nossa pesquisa.

Além do Estruturalismo e da Hermenêutica


Não nos parece ter sido o caso de Bourdieu, pelo esforço centrado na análise do
discurso, negar a estrutura. Mas o Collège de France nos proporcionou outro nome que
talvez tenha costurado, com pontos mais firmes, a estrutura e o discurso.
Michel Foucault, em um artigo encaixado no livro de Dreyfus e Rabinow
(Foucault, 1995), surpreendeu até mesmo alguns expoentes do mundo acadêmico ao
afirmar que seu objetivo nos últimos 20 anos não foi analisar o poder; “foi criar uma
história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-
se sujeitos” (Rabinow e Dreyfus,1995, p. 231), apontando três modos de objetivação
que transformaram os seres humanos em sujeitos.
O primeiro é o modo da investigação, que tenta atingir o estatuto de ciência, a
objetivação do sujeito ao discurso na grammaire générale, na filologia e na lingüística;
a objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que trabalha, a objetivação do simples fato
de estar vivo na história natural ou biológica. Na segunda parte, a objetivação do sujeito
naquilo que chamou de ‘práticas divisoras’. O sujeito é dividido no seu interior e em
relação aos outros. Este processo o objetiva. Ex.: o louco e o são, o doente e o sadio.
Finalmente, o modo pelo qual um ser humano torna-se um sujeito, como os homens
aprenderam a se reconhecer como sujeitos de ‘sexualidade’.

126
Em Vigiar e Punir e em Microfísica do Poder, Foucault desenvolve uma história
dos processos de poder que conduziram ao um sujeito moderno firmemente sujeitado
por estruturas de poder político, jurídico e de trabalho, apontando para um sujeito que
muito se assemelha ao sujeito-objeto aludido por Bataille. O sujeito objetivado por um
processo de divisão (louco x são; doente x sadio) aparece na História da Loucura e nas
obras acima citadas. As Palavras e as Coisas (1992) objetivamente não constitui um
estudo sobre o sujeito, mas é ali que Foucault desenvolve o que poderíamos chamar de
um sujeito da ciência, emergido a partir do século XVII, quando a epistemologia quer
saber como um significado se liga a um significante.
Um sujeito da ciência já havia sido referido por Lacan. O pensar cartesiano
pressupõe ter consciência; ali, eu, consciência e sujeito coincidem e são os donos da
verdade. Mas seria na verdade um sujeito ignorante de si; cogita que pensa, e portanto
pensa que é. Lacan (1998: 496-533), em A Instância da Letra no Inconsciente ou A
Razão desde Freud, de 1957, comenta: “nem por isso deixa de ser verdade que o cogito
filosófico está no cerne dessa miragem que torna o homem moderno tão seguro de ser
ele mesmo em sua incertezas a seu próprio respeito” (p. 521). A afirmação nos parece
significar que Lacan, muito embora persiga um sujeito atemporal e a-histórico, admite
um momento de emergência não de um sujeito (cons)ciente mas de um sujeito da
ciência. Em A Ciência e a Verdade (1998: 869-892), de 1965, Lacan voltará ao assunto:
o sujeito da ciência foi inaugurado, com o cogito, por Descartes (p. 870) e,
paradoxalmente, é o sujeito empírico sobre quem opera a psicanálise.
A proposição de Lacan, ao contrário do que afirmam alguns dos seus intérpretes,
quer dizer que o sujeito empírico efetivamente existe ou, pelo menos, é um conceito
objetivável. Parece-me que o que Foucault perseguiu na sua obra foi esse sujeito. Em
entrevista a Rabinow e Dreyfus (1995), Foucault sustenta que perseguiu uma genealogia
do sujeito, representada através de três domínios:
1. uma ontologia histórica de nós mesmos em relação à verdade através da qual
nos constituímos como sujeitos de saber;
2. uma ontologia histórica de nós mesmos em relação a um campo de poder
através do qual nos constituímos como sujeitos de ação sobre os outros;
3. uma ontologia histórica em relação à ética através da qual nos constituímos
como agentes morais.
A noção de sujeito que se afigura desses domínios parece conduzir a um sujeito
senhor de si, do tipo kantiano ou sartreano. Mas esse não é o caso: Foucault (1995)

127
também admite dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle
e dependência, e o sujeito preso à sua própria identidade por uma consistência ou
autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a.
Em O Cuidado de Si, Foucault (2002) desenvolve uma interessante noção do sujeito que
“cuida de si” que, muito embora seja uma elaboração a partir dos gregos, considera que
apresenta uma aproximação adequada para o sujeito moderno. O “sujeito que cuida de
si” desenvolve um tipo de relação consigo mesmo, a qual Foucault chama de ética e que
determina a maneira pela qual “o indivíduo deve constituir a si mesmo como o sujeito
moral de suas próprias ações” (entrevista a Rabinow e Dreyfus, 1995, p. 263, veja-se
também O Uso dos Prazeres (Foucault (2003).

O Sujeito no Palco
Recentemente, Alain Touraine (2002), em uma obra dedicada às especificações
da modernidade, executa o mais notável investimento conceptual no ‘sujeito’ no campo
das ciências sociais. Partindo da mesma matriz a que nos referimos. Apoiando-se mais
na contribuição de Freud, o sociólogo distanciar-se bem da tradição durkheimiana,
atribuindo ao sujeito a condição de reação contra a dominação da sociedade: “o homem
moderno está constantemente ameaçado pelo poder absoluto da sociedade, e é porque o
nosso século foi obscurecido pelo totalitarismo que ele é levado (...) a reconhecer a idéia
de sujeito como princípio central de resistência ao poder autoritário” (p. 228). Touraine
vincula o pensamento moderno a emergência de dois fatores: a racionalidade e a
subjetividade, que, ao mesmo tempo, se contradizem e se completam. Mas essa
contradição vista pelo sociólogo requer algumas explicações.
A idéia de ‘razão’ de Touraine está vinculada à da racionalidade instrumental,
geralmente apontada por críticos como Karl Mannheim (1986), Guerreiro Ramos
(1983), além da Escola de Frankfurt, como responsável pela submissão e pelo controle
do homem moderno. Vista pelo seu modo instrumental (que Mannheim tratava como
‘funcional’), a racionalidade implica um modelo que ação social que obriga o sujeito a
agir de acordo com um objetivo. Ocorre que, no mundo moderno, esse modelo e ação –
cujo construto teórico foi inicialmente formulado por Weber (1992 [1922]), que o
chamou de ‘racionalidade quanto aos fins’ – acaba sendo aplicado na divisão racional
do trabalho e foi, ao longo de todo o século XX, a base de crítica dos modelos de
robotização do homem; constitui portanto uma refinada forma moderna de sujeição, na

128
medida em que a racionalidade da ação obedece a um projeto externo - estatal ou
empresarial - ao sujeito. Trata-se de uma racionalidade que está longe de constituir o
meio de libertação do indivíduo.
Touraine, aparentemente, ignora o outro conceito de ação racional que compõe o
modelo; trata-se, nas palavras de Weber, da racionalidade quanto aos valores e que foi
apropriada por Mannheim e por Guerreiro Ramos como ‘racionalidade substancial’ (ou
‘substantiva’). Trata-se também de um imperativo de ação social, só que, na visão
desses dois sociólogos, ditada pela própria consciência, e apontada como libertadora do
indivíduo humano. Retomaremos essa discussão um pouco mais adiante.
A idéia de sujeito de que se apropria Touraine não é a do sujeito sujeitado. No
texto do sociólogo, em geral, as noções de ‘sujeito’ estão mais em relação à
racionalidade substantiva do que à racionalidade instrumental, a que freqüentemente se
refere. Dos vários extratos que podemos fazer do autor sobre seu conceito de ‘sujeito’,
citamos: “o mundo moderno é, ao contrário, cada vez mais ocupado pela referência a
um Sujeito que está libertado, isto é, coloca como princípio do bem o controle que o
indivíduo exerce sobre suas ações” (pp. 219-220); “o Sujeito é a vontade de um
indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator (p. 221)”; o Sujeito não é a alma em
oposição ao corpo, mas o sentido dado pela alma ao corpo, em oposição com as
representações e as normas impostas pela ordem social e cultural” (p. 222); “não existe
modernidade sem racionalização (instrumental); mas também não sem formação de um
sujeito-no-mundo (referindo-se a Dumont, 1993) que se sente responsável perante si
mesmo e perante a sociedade” (p. 215). Há, portanto, na visão de Touraine, contradição
entre a razão e o sujeito modernos quando ele relaciona a razão instrumental e o sujeito
liberto, mas seus exemplos conceptuais sobre o sujeito não se referem à razão
instrumental, estando próximas do conceito que vimos acima, embora o autor não o
mencione. Touraine, que preocupou tanto com a diferença entre ‘modernidade’ e
‘modernização’, poderia também ter-se ocupado da diferença conceptual entre
‘racionalidade’ e ‘racionalização’. O primeiro termo designa o estado ou uma qualidade
aplicada da razão; o segundo vincula-se à execução metódica e eficiente de processos
vinculados a um objetivo previamente estabelecido; é essencialmente instrumental.
Assim, não nos parece que o sujeito percebido por Touraine se oponha à razão ou à
racionalidade e nem mesmo ao racionalismo, mas sim à racionalização, especialmente
àquela aplicada aos processos industriais de produção e ao produtivismo.

129
Alain Touraine parece ignorar as premissas exclusivamente sociológicas e
retorna a um sujeito freudiano: “o sujeito não é mais a presença do universal em nós
(...). Ele é o apelo à transformação do Si-mesmo em ator. Ele é Eu, esforço para dizer
Eu, sem jamais esquecer que a vida pessoal está repleta, de um lado de Id, de libido e de
outro de papéis sociais”. O autor parece diferenciar ‘indivíduo’ de ‘sujeito’ reservando
ao primeiro um papel de mero receptáculo de experiências, sem vontade de se
transformar em ator da sua própria existência: “o indivíduo não é senão a unidade
particular onde se misturam a vida e o pensamento, a experiência e a consciência. O
Sujeito é a passagem do Id ao Eu, o controle exercido sobre o vivido para que tenha um
sentido pessoal” (p. 220). Além de liberto do jugo social, o sujeito de Touraine parece
também ser liberto da pulsão. Ele aceita a sexualidade mas não a reprime nem cede às
suas tentações, dotado que é de uma “capacidade de resistir às pressões do hábito e do
desejo, para submeter-se somente ao governo da razão” (p. 218).

*
A abordagem do ser humano através do que chamamos de ‘sujeito’ tem
oferecido uma perspectiva mais completa do que outras categorias ou enfoques, como
‘ser’ e ‘indivíduo’, posto que permite não apenas a inferência de sua racionalidade e de
sua organização social mas também da singular elaboração de si mesmo, constituindo-se
como sujeito. Parece admissível que um indivíduo da espécie humana, seja lá o que
realmente ela for, é um animal que por algum motivo inventou uma forma complexa de
organização social, através de regras aplicadas às suas formas de acasalamento e de
reprodução, atingindo a sua sexualidade de forma contundente e irreversível. O tabu do
incesto e a estrutura de parentesco possibilitaram uma forma de organização social que
talvez tenha sido efetivamente o meio através do qual a espécie superou suas
fragilidades e garantiu a sobrevivência. Mas essa base organizativa causou em cada
indivíduo da espécie conseqüências incalculáveis, cuja complexidade ainda estamos
muito longe de dominar. A pulsão não é um fenômeno exclusivamente humano; ela está
em todos os mamíferos. Construir regras sobre os imperativos biológicos da reprodução
também não é uma exclusividade humana; vemos regras de acasalamento e reprodução
nítidas entre os leões, os morcegos e, em particular, entre os outros primatas. Mas
nenhuma espécie sofisticou tanto essas regras - e nenhuma é capaz de mudá-las
conscientemente - quanto a humana. E as regras sociais não são impostas, nem entre nós

130
nem entre os outros mamíferos, com condescendência e carinho.40 Vemos isso entre os
leões, os chimpanzés e os humanos: a violência é a base da organização social: os leões
matam e devoram os filhotes do macho derrotado que dominava o bando, para garantir a
sua descendência; os chimpanzés estupram e matam os seus semelhantes e estabelecem
um sistema de um macho dominante, vedando aos demais o acesso às fêmeas do bando;
os humanos fazem guerras, vingam, encarceram, estupram, matam, criam Estados, são
capazes de impor condicionantes sociais e psicológicos muito mais sofisticados e
criaram o mais rigoroso sistema acasalamento, procriação e parentesco.

*
De todo o esforço que revimos, podemos derivar alguns postulados que
consideramos aceitáveis para a construção de uma unidade conceptual sobre ‘sujeito’:
i. gramaticalmente, o sujeito não se constitui através do objeto, mas é por
este definido;
ii. cientificamente, o sujeito é aquele que analisa, pensa e possui, ou julga
possuir, um conhecimento sobre o objeto;
iii. em relação a um indivíduo da espécie humana, o sujeito é constituído em
instâncias. Assentado sobre uma base biológica, receptora de sensações
prazerosas ou dolorosas, o indivíduo passa a desejar e constitui o sujeito
da libido. Em seguida, as regras sociais e familiares impõem o sujeito
social;
iv. o sujeito moderno seria portador de uma diferente especificidade,
provocada pela valorização da razão, idealizada como libertadora. Este
sujeito da razão é por esta sujeitado, mas tratar-se-ia de uma sujeição que
opera uma ponderação em relação às imposições da libido e da
sociedade...

O sujeito da razão não deixa de ser sujeitado por uma representação social.
Todavia, tal sujeição não implica exatamente o controle do sujeito através do costume;
ela deriva de um sistema de pensamento que incentiva o sujeito a “agir conforme a
consciência”. Esta consciência está obviamente impregnada da racionalidade coletiva no
interior da qual o sujeito age, mas o livre arbítrio que lhe é concedido retira o controle

40
Veja-se, por exemplo, comparações feitas entre símios e humanos por Wrangham e Peterson (1998) e
Morris (sd [1967]).

131
absoluto do costume social. O sujeito então joga uma espécie de jogo com a sociedade,
onde disputa o seu direito natural à felicidade e ao prazer.
Esta nossa perspectiva do sujeito insere-se numa concepção sistêmica de relação
entre partes. Em lugar de perspectivas absolutas e determinísticas, que, alternadamente,
vêem um ou outro sistema (sociedade e sujeito) como determinantes e dominantes. A
perspectiva derivada da herança dukheimiana é de difícil aceitação no mundo
contemporâneo, onde o sujeito empírico não admite que o sistema social o controla
totalmente porque, no limite, é ele que pensa. Por outro lado, não se consegue conceber
um sujeito que aja socialmente de modo independente do meio; afinal é o meio social
que lhe dá um sistema de pensamento. Sugerimos que o debate sociológico sobre qual
sistema comanda o outro possa ser substituído por esta perspectiva sistêmica: o que
temos é um sistema de relações.
Pode-se argumentar, em favor do durkeimianismo, que, no fim da linha, o
sistema de pensamento tem precedência sobre o próprio pensamento, mas ao conceder
ao sujeito o apelo à consciência, não se pode prever o resultado da sua decisão. Nas
chamadas sociedades tradicionais ou tribais, o sujeito dispunha de apenas um modelo de
referência para orientar a sua conduta; o sujeito moderno dispõe de diversos modelos
sociais, culturais e religiosos. Não se pretende falar aqui em cultura global; esta
implicaria novamente a existência de um único sistema de pensamento – como uma
“aldeia global” - e, em última análise, traria de volta o sujeito submetido a apenas um
modelo de conduta. É exatamente a diversidade que ainda persiste que permite ao
sujeito dispor de outras referências, na medida em que se pode admitir o controle de um
sujeito por um certo sistema cosmológico, mas é impossível a sujeição a vários sistemas
sócio-culturais ao mesmo tempo. Não estamos ignorando as regras do pensamento
simbólico e nem afirmando que o sujeito pode escolher a que sistema obedecer. A
racionalidade, no Ocidente, é uma representação simbólica, instilada na mente já na
educação familiar, acentuando-se na escola, conforme lembra Touraine (2002): “a
formação do homem como sujeito foi identificada, como se vê melhor nos programas de
educação, com a aprendizagem do pensamento racional e a capacidade de resistir às
pressões do hábito e do desejo”.
Durante anos de pesquisa etnológica, acreditamos que um sistema de
significações simbólicas operava uma sujeição aos costumes sociais e que isso
determinava em cada indivíduo a inserção de um sistema de crenças sociais, um sistema
de pensamento, uma identidade social. Julgamos com isso que todo sujeito social estava

132
condicionado aos costumes da sua sociedade, da sua cultura. Todos esses pressupostos
foram testados, confirmados e aprimorados – na maioria dos casos, nos trabalhos
monográficos que caracterizam nossa disciplina – em sociedades tribais, que se nos
mostravam sociedades cosmológicas, integradas e coesas em torno de uma mesma
crença, das mesmas regras de casamento, de um mesmo sistema político, econômico e
jurídico. Todos esses pressupostos continuam resistentes e robustos para a prática
etnográfica, mas sempre tivemos alguma dificuldade ao aplicá-los nas sociedades
modernas. O sujeito moderno parece querer fugir do costume, manifesta desejos de
liberdade, busca outras religiões e relativiza a própria cultura. Mas isso é porque a
modernidade quer e pretende aniquilar o costume: este é o seu costume.

A modernidade não procurou estabelecer uma ruptura com as sociedades


tradicionais apenas instituindo a razão e seu sujeito, mas estabelecendo dois modelos de
racionalidade. Os dois modelos de ação social detectados por Max Weber – e estendidos
por Karl Mannheim e Guerreiro Ramos – que vimos acima ao comentar a noção de
‘sujeito’ de Alain Touraine, possuem a mesma origem nos conceitos de imperativo
hipotético e de imperativo categórico, que Kant estabeleceu em Fundamentação da
Metafísica dos Costumes (1984 [1785]). Todavia, na passagem de um tratamento para
outro, os conceitos sofreram algumas alterações. Na visão de Kant, o imperativo
hipotético constitui um mandado da razão à ação praticada pelo sujeito para alcançar um
fim; esta ação não pode ser julgada em si, pela sua moralidade; ela será boa desde seja
em vista de qualquer intenção possível ou real. O imperativo categórico é um mandado
da razão à ação representada como boa em si; ela é moralmente necessária por si,
independentemente de qualquer intenção, que não seja a sua própria moral; ela se impõe
ao sujeito através da moral que nele habita. Salvar uma vida humana, por exemplo, é um
mandado da razão a priori, que rege o imperativo categórico. O imperativo hipotético
foi assimilado por Weber (1992 [1922], pp. 20-22) como ‘ação racional quanto aos
fins’, cujos significados podem ser considerados idênticos. ‘Ação racional quanto aos
valores’, de Weber segue a mesma base conceptual de Kant, embora não o cite no texto.
Mas Weber trata de acentuar o seu conteúdo sociológico, afastando-se um tanto da
noção transcendental do filósofo de Koenigsberg; para Weber a racionalidade quanto
aos valores é “determinada por la creencia consciente em el valor – ético, estético,
religioso o de cualquiera otra forma como se le enterprete” (Weber, 1992, p. 20).
Vemos que, se Kant coloca o sujeito transcendental no lugar do Deus de Descartes,

133
Weber coloca a religião e a sociedade no lugar do sujeito transcendental; do modo como
se posiciona, a ética e a estética aparecem no mesmo nível dos valores sociais e
religiosos. Mannheim, Guerreiro Ramos e a Escola de Frankfurt assimilam ‘ação quanto
aos fins’ como ‘ação racional instrumental (ou funcional)’ e ‘ação quanto aos valores’
como’ ação racional substantiva (ou substancial)’. Ocorre que todos esses pensadores
vincularam a racionalidade instrumental aos processos da divisão racional do trabalho
na era industrial, associando o seu conceito, como já dito, à dominação técnica do
sistema de produção sobre o sujeito moderno, subtraindo, racionalmente, a sua
liberdade. Weber, embora a teorize, pouco discute as implicações sociológicas da
racionalidade substantiva (a racionalidade quanto aos valores) e o papel do sujeito em
relação a ela, parecendo aceitar como dada a dominação racional instrumental sobre o
sujeito moderno. Mannheim (1986) e Guerreiro Ramos (1983) denunciam a
racionalidade instrumental como escravizadora do sujeito e propõem modelos de ação
com base na razão substantiva, como forma de libertação do homem; ambos, de certa
forma, antecipando a proposta de Touraine (2002).
Contudo, Kant, em cujo pensamento está a origem de toda essa discussão, em
nenhum momento associa o imperativo hipotético – que deu origem à racionalidade
instrumental – à dominação de um sistema externo ao sujeito; seja hipotética ou
categoricamente, o sujeito cumpre um mandado da razão, pressupondo-se a liberdade de
ação em qualquer dos casos. Portanto, a depreender-se de Kant, o sujeito da razão é isso
mesmo: um sujeito sujeitado pela razão, não por um determinado método; a única
diferença é que a ação que cumpre um mandado do imperativo hipotético, como não
pode ser julgada por uma moral, como aquela que cumpre um mandado do imperativo
categórico, somente pode ser julgada pela coerência ou não com uma determinada
intenção; ela é assertórica, obedece a um princípio problemático ou prático. O
julgamento, pelo imperativo hipotético, de uma ação de um sujeito que salta do
vigésimo andar de um prédio, cuja intenção é dar fim à sua vida, é perfeitamente
racional. Tal ação será contudo irracional, se julgada à luz do imperativo categórico,
pelo menos no interior de um sistema cultural, religioso ou mesmo jurídico no qual não
seja moral o suicídio, e desde que admitamos a relativização cultural na visão filosófica
de Kant.41

41
É Weber (1992; 21), aliás, quem chama à atenção para situações em que as duas racionalidades podem
ser conflitantes.

134
Ora, a ação de um sujeito que busca o seu próprio bem-estar, a sua felicidade, é
considerada por Kant (1984, pp.126-127) como um mandado do imperativo hipotético,
portanto prática, assertórica e amoral. Diz-se, modernamente, do sujeito que se ocupa
apenas dos seus próprios interesses que ele é “individualista”; trata-se de uma conduta
que, enquanto estiver de fato restrita à busca exclusiva do bem-estar do sujeito, obedece
ao imperativo hipotético. Mas a amoralidade implicada em tal conduta é vista como
uma imperfeição humana; a conduta esperada de um sujeito sociologicamente normal,
hoje em dia, é que ela seja ponderada pelas duas racionalidades. Se a modernidade
devolve ao sujeito pelo menos parte das diretrizes da racionalidade instrumental
derivada do imperativo hipotético, deve devolver também pelo menos parte da
responsabilidade relativa à conduta moral e substantiva derivada do imperativo
categórico. Talvez o mais significativo atributo da liberdade experimentada pelo sujeito
moderno seja o direito de fazer escolhas, e a escolha entre alternativas é tipicamente um
atributo da racionalidade instrumental. A escolha individual consiste em um processo
racional no qual se pressupõe que o sujeito da decisão seja capaz de escolher a
alternativa que melhor atenda à sua intenção. Aplica-se tal modelo para fazer e para
analisar decisões de compra, de trabalho, de casamento, de local de moradia. No limite,
a intenção do agente é a sua própria felicidade, cuja medida obviamente se encontra no
interior do próprio sujeito da ação, remetendo-se diretamente para a libido e a
sexualidade, lugar da experiência do prazer, do culpa e de todos os temores da
sociedade organizada. A premissa de ação do sujeito exclusivamente voltada para seu
prazer é a justificativa para a existência do sistema moral de repressão operado pela
família, pela religião e pelo Estado, todos hoje considerados, senão como decadentes,
pelo menos como incapazes de um controle sobre o sujeito nos moldes do período pré-
moderno.
Mas incapacidade de ação moral do sujeito não é uma premissa de Kant: “a
moralidade é a relação das ações com a autonomia da vontade”; a necessidade moral,
uma obrigação do sujeito e a “necessidade objetiva de uma ação por obrigação chama-
se dever”, concluindo que a autonomia da vontade do sujeito acaba por constituir o
princípio supremo da moralidade (Kant, 1984 [1785], 143-144). Mas tal moralidade é a
priori; ela não é exatamente a moralidade atribuída aos sistemas sociais. Estes se
encarregam da codificação de princípios morais, aos quais se considera que, uma vez
obedecidos, mantêm a conduta do sujeito dentro de padrões que se presume serem bons
e garantidores da ordem.

135
A moralidade social dos “bons costumes” nada tem a ver com a moralidade a
priori; esta emerge do sujeito como um imperativo categórico, gerando a ação que tem
que ser praticada; o sujeito não precisa que o sistema mande. Para Kant, todo ser
somente pode agir sob a idéia de liberdade, posto que a razão tem que considerar a si
mesma como autora dos seus princípios, independentemente de influências estranhas e,
por conseguinte, considerar-se a si mesma como livre (p. 150).
Em obra posterior à que vimos citando, Alain Touraine desta vez com Farhad
Khosrokhavar, na tentativa de ajustarem um consenso em torno de um conceito a que
chamam de ‘dessubjetivação’ (Touraine e Khosrokhavar, 2004), acabam por fornecer
indícios de que a noção de imperativo categórico ainda é bastante atual, ou melhor,
voltou a ser atual, neste nosso mundo pós-industrial (pelo menos, no meio acadêmico),
dominado pela racionalidade instrumental. Enquanto Khosrokhavar parece insistir em
uma idéia de dessubjetivação do indivíduo moderno, em decorrência do
enfraquecimento da religião e da sociedade na sua relação de poder sobre o sujeito,
como também através de experiências como o sexo sem amor e a erradicação da culpa,
Touraine parece insistir na emergência do sujeito na modernidade, ao contrário, aliás, da
perspectiva de outros analistas, como o caso de Jameson (2005), que vêem o
desaparecimento do sujeito como um dos elementos característicos da era moderna.
Khosrokhavar parece entender que a ausência ou o enfraquecimento de um código de
ética externo ao sujeito, conduz exatamente à dessubjetivação, o que não implica
necessariamente a liberdade do sujeito, mas a recusa desde em sujeita-se aos sistemas
sociais, à religião e ao amor. Para esse co-autor, a idéia de subjetividade parece estar
inevitavelmente atrelada à sujeição do indivíduo a elementos do mundo objetivo. Ora,
Touraine admite a dessubjetivação, mas a entende de outra maneira, exatamente por
entender também a subjetividade por outro processo. O sujeito emerge na modernidade
porque tem-se tornado livre da sociedade: “... pois recuso a idéia de que esse mundo
intermediário (o mundo social) comande, imponha suas normas e suas ideologias.
Quero que o próprio sujeito conquiste a sua liberdade” (p. 95). Contudo, essa liberdade
não implica dessubjetivação. Touraine explica que é no vazio da lei divina que aparece
a idéia de sujeito; este não sente culpa, é certo, por infringir uma lei que não está mais
nele, mas fugir à sua “responsabilidade” implica, sim, culpa e vergonha; estas porém
existem em relação ao próprio sujeito: “não me comportei como devia, não posso mais
me ver no espelho” (p.97). Para Touraine, ‘dessubjetivação’ é a destruição de si, em um
contexto de instabilidade e desorganização social.

136
Ora, esse sujeito ao qual Alain Touraine chega nesse diálogo com Khosrokhavar
não é outro senão o sujeito do imperativo categórico de Kant. É o sujeito moral aquele
que trás em si a responsabilidade; ele não precisa do comando externo. O próprio
exemplo de Touraine (p. 96) – do sujeito que se recusa a salvar o semelhante que está
morrendo afogado – corrobora nossa conclusão. Salvar a vida do semelhante é uma ação
que se impõe ao sujeito por si só, emerge de dentro, é um mandado da razão a priori. A
recusa em fazê-lo implica culpa, mas não pela infração de uma regra social ou a um
código religioso e sim pela desobediência à própria razão. Neste caso, o sujeito até pode
estar sendo coerente (racional) com um mandado do imperativo hipotético, na medida
em que se preocupa em livrar a própria pele, em lugar de se arriscar para salvar o outro,
mas este imperativo é amoral; o sujeito não se sentirá culpado nem virtuoso. Dominado
porém pelo mandado do imperativo categórico, sentirá culpa e vergonha.
Eis o dilema: as ações do sujeito moderno não nos permitem inferir ser ele
comandado por um ou por outro imperativo o tempo todo. Parte substancial dos
embates do sujeito com o mundo objetivo e consigo mesmo deriva de um conflito de
racionalidades e, talvez, da falta de experiência na relação com o imperativo categórico.
Afinal, depois das religiões, vieram os Estados com seus códigos de conduta,
suprimindo do sujeito o dever de discernir. Alain Touraine parece querer livrar o sujeito
do Estado e da sociedade; há algo de kantiano no seu ‘sujeito’, com exceção da
transcendência. Descartes resolveu a subjetivação atribuído a Deus a presença no
homem; Kant solucionou-a através do sujeito transcendental; Freud através do
superego; Durkheim e os durkheimianos esqueceram uma tal representação voltaram-se
para a dominação social que Touraine – embora sociólogo e francês – recusa; Lévi-
Strauss, de certa forma retornando a Kant e a Freud, solucionou-a através da estrutura,
Lacan, através do sujeito da linguagem e Foucault, descobrindo o sujeito-que-cuida-de-
si. Touraine também quer escapar a uma vinculação sagrada ou mesmo transcendental
do sujeito. Quando responde a Khosrokhavar, aproxima-se do sujeito-que-cuida-de-si;
não compreende o sujeito como estando em um processo de busca transcendental, o
que, na sua visão, implicaria a busca de uma unidade humana, para além das diferenças.
Touraine projeta o sujeito - e parece entender mesmo o processo de subjetivação - na
relação deste com o mundo social, só que num movimento que vai do sujeito para o
mundo objetivo: é o sujeito que afirma a sua diferença. Exemplifica isso destacando a
sua responsabilidade pessoal, a sua responsabilidade coletiva, a sua contestação e a sua
capacidade de reconhecer a diversidade cultural e a diversidade pessoal. Ao mesmo

137
tempo este sujeito cuida de si, praticando fitness e procurando formas de amor e de
embelezamento. O sujeito de Touraine parece ser tão racional quanto os sujeitos de
Descartes e de Kant, porém, sem Deus e sem transcendência, sua racionalidade opera
em permanente relação com o mundo externo; é crítico e age em seu próprio benefício,
não no sentido egocêntrico – embora esse modelo favoreça o individualismo – mas
tendo o próprio ser como finalidade, em lugar de sacrificar-se em benefício da
divindade externa.
Todavia, parece haver, sim, uma vinculação sujeito com o sagrado na
modernidade tardia; a busca transcendental não está ausente de novos movimentos
religiosos que, conscientemente, declaram-se empenhados em uma “verdadeira
subjetividade”. Vemos isso nos movimentos new age, que parecem ter buscado no
budismo, no sufismo e na teosofia uma entidade interior que, em alguns casos, é
expressamente chamada de Deus; em outros dão-se nomes como Logos Criador, Self,
Verdadeiro Eu. Em muitos movimentos vinculados à nova era, a busca é pelo self,
enquanto verdade contida dentro do sujeito – um conceito que muito se aproxima de
‘individuação’, de Jung -, rejeitando-se conscientemente a sujeição ao mundo social,
apontado-o, assim como o fazem as diversas correntes do budismo, como ilusório
desviante do verdadeiro caminho.42

Limites da Liberdade
No Ocidente, ‘liberdade’ recebe, geralmente, um tratamento sociológico,
político ou econômico; trata-se de um poderoso valor, mas que resulta numa
impossibilidade, tanto quanto aplicação efetiva da racionalidade. A noção de liberdade
que normalmente se discute gira em torno de um sujeito empírico tido como livre ou
não, na medida em pode ou não pode fazer escolhas. A disponibilidade de bens em
mercado, a ausência de restrições familiares e sociais na escolha de cônjuges, a filiação
ideológica e partidária constituem evidências de liberdade. Mas nenhuma escolha, ainda
que se possa admiti-la como um princípio de liberdade, em situações razoavelmente
complexas, pode ser operada em termos absolutos. Ainda que um sujeito tenha renda e
possa tomar decisões livremente sobre, por exemplo, um bem a ser comprado, ele
sempre dispõe de uma quantidade limitada de conhecimento e informação para embasar

42
Veja-se, por exemplo, Heelas (2003) e Wilson and Cresswell (2001).

138
sua decisão; nenhum sujeito pode escolher exatamente o cônjuge, o bem, o partido
político que desejar, devido a impossibilidades processuais.
Herbet Simon (1989; 1982) demonstrou que um indivíduo da espécie humana
pode até ser racional quanto às suas intenções, mas encontra limitações processuais de
ordem prática para construir todas as alternativas em um evento de decisão. Um
indivíduo, enquanto instrumentalmente racional, procura escolher a melhor das
alternativas, a fim de maximizar o seu propósito. Ocorre que, mesmo em decisões de
baixa complexidade, nenhum indivíduo é capaz de reunir e processar todas as
informações possíveis e imagináveis para ter certeza de que está maximizando a sua
escolha. É impossível dizer que comprei o melhor par de sapatos em um mercado de
razoável oferta, uma vez que é impossível conhecer todos os sapatos que
potencialmente maximizam a minha intenção ou a utilidade do bem para mim. Simon
demonstrou a sua teoria da racionalidade limitada face à impossibilidade de escolha
racional em decisões gerenciais e de consumo, mas a teoria pode ser aplicada à escolha
de cônjuges, trabalhos, alianças; em jogos, guerras etc.
À limitação processual e informacional deve-se acrescentar mais uma: a da
liberdade de escolha do sujeito empírico propriamente. Ainda que eu pudesse conhecer,
analisar e avaliar todos os pares de sapatos em uma economia, o sistema ofertante de
sapatos não é capaz de disponibilizar todos os itens que efetivamente me satisfariam; eu
só tenho “liberdade” de escolher dentro daquilo que me é ofertado. A liberdade de
escolha é um princípio; sua consubstanciação no mundo objetivo é impossível. O sujeito
empírico não é livre e, pior, se defronta com obstáculos irremovíveis de liberdade. A
supressão da liberdade é o preço da organização social, sem a qual, acredita-se, a
própria humanidade não sobreviveria
A modernidade não é em si um estágio da humanidade que gera um sujeito
racionalmente superior, capaz de, enfim, assumir o controle do seu próprio destino;
história e a etnografia possuem registros de indivíduos humanos que se insurgiram
contra as regras sociais, contra o costume. Mas talvez o sujeito moderno possua uma
peculiaridade própria em relação ao modo de sua sujeição: ele é aquele que acredita na
racionalidade. O sujeito, segundo Kant, possui uma relação de causalidade em relação
aos objetos e Touraine (2002, p. 217) sugere que a modernidade, mais do que as épocas
anteriores, seja o palco onde os sujeitos e os objetos mais se separam. É possível que o
sujeito moderno tenha tentado uma relação de maior independência e poder em relação
aos objetos; é possível que as expectativas modernas de liberdade do sujeito tenham

139
intensificado o uso dos objetos, procurando demarcar a posição ativa do sujeito no
processo social, no relato da sua trajetória histórica. É de se notar que a intensificação
da produção industrial de objetos, aparentemente em nome da funcionalidade cotidiana,
coincida com a intensificação de um fenômeno social a que alguns autores tratam como
“individualismo” (Dumont, 1993; Watt, 1999). O sujeito moderno, no seu embate com
o costume, parece querer demonstrar a sua liberdade através de um pretenso controle
sobre os objetos. Baudrillard, referindo-se ao sistema de crédito, afirma-o como
propulsor de um ciclo consensual do sistema de produção e consumo de objetos, onde
quem sai perdendo é o sujeito: trata-se de uma “colusão, que faz com que a própria
sujeição seja vivida como liberdade”, na qual o consumo realimenta a exploração da
força de trabalho (Baudrillard, 1993, p. 170). Daí, as contradições entre o discurso
moderno da liberdade de escolha e a tirania imposta ao sujeito pelo sistema de
produção, consumo e comunicação, apontadas por Leopoldi (2004). O discurso
moderno da liberdade individual talvez não passe de uma falácia, uma enganação
perversa, criada para estabelecer uma separação entre a modernidade e as sociedades
tradicionais.

Conclusão
Não podemos ainda derivar uma teoria geral do sujeito. Quer-nos parecer que,
ainda hoje, vivemos cognitivamente de uma construção cartesiana: pensamos e agimos
como se fôssemos uma unidade indivisível e sob controle de nós mesmos. Não temos
nenhuma tolerância com as nossas ações não-racionais, que devem ser reprimidas como
anomalias e temos muita dificuldade em admitir que somos dois ou mais seres tentando
coabitar uma unidade aparente. Queremos admitir que as coisas do nosso inconsciente
devem ficar lá, recalcadas, e que, no mundo objetivo, somos senhores de nós mesmos.
Nossa hipótese sobre o sujeito pode começar a ser construída a partir do
seguinte:
i. a sujeição começa ainda no estado de natureza, seguida de uma
interdição assimilada através da linguagem, que então nos separa das
outras espécies, constituindo o sujeito da libido que sofreu a proibição do
incesto, atingido diretamente no desejo;
ii. as regras sociais continuam a penetrar o sujeito através da estrutura da
linguagem, mas elas não são capazes de matar o sujeito da libido;

140
iii. até então, o sujeito é sujeitado. Mas a regra social trás o sujeito à
consciência, possibilitando à razão administrar a difícil convivência entre
a pulsão e a regra social.
Lidar com dois sujeitos é, para o sujeito racional, como lidar com vários fatos e
pontos de vista vindos do mundo objetivo; é como lidar com as opiniões diferentes dos
outros. O sujeito racional é aquele que vive a experiência de ser; ele fala, age, ama, luta,
produz, consome e se projeta nos objetos como que para se lembrar que é uma unidade
independente e pensante; é nesse processo que experimenta a sensação de ser, como o
“indivíduo deve constituir a si mesmo como o sujeito moral de suas próprias ações”
visualizado por Foucault. O sujeito racional sabe da experiência de ser livre, mas
também sabe que o mundo vigia-o e pune-o; ele não é simplesmente condicionado pelo
sujeito social e pelo sujeito do desejo; ele potencialmente pode interagir sistemicamente
com os dois, ora concedendo ora reprimindo. Ele não é social nem sexualmente livre; a
sua liberdade está em saber que não pode abandonar à própria sorte os sujeitos
sujeitados que juntamente com ele habitam o mesmo indivíduo.
Há, provavelmente, algo interior nos indivíduos da espécie, seja a divindade,
seja a sexualidade; ali estariam as categorias do sujeito real. Estas, entretanto, são
categorias inatingíveis, posto que somente podemos visualizá-las através das
representações que projetam no mundo objetivo, o que faz das sociedades humanas um
palco onde o sujeito encena papéis, ou seja, algo que ele exatamente não é. Mas,
paradoxalmente, é daquilo que se encena que tentamos extrair o real. Mesmo os
filósofos, que se ocupam da mente, somente podem derivá-la das representações que ela
projeta. Mesmo os psicanalistas e os antropólogos estruturalistas, que se ocupam do
inconsciente, somente conseguem uma idéia concisa de sua constituição porque são
capazes elaborar regras plausíveis que dêem sentido aos embates sociais vividos pelo
sujeito no mundo objetivo. Mas os pesquisadores das ciências sociais também devem
entender que o mundo sobre o qual operam é apenas uma projeção do real. 43 Na
pesquisa e no pensamento sobre o sujeito, ficamos portanto entre o irreal e o inatingível.
A abordagem determinística, na questão do sujeito e a sociedade, deve ser
abandonada. Supondo-se que o primeiro determina a segunda – ou que dela seja livre -,
encontramos um impasse: o sujeito não é senhor da linguagem e não pode se manifestar
através de símbolos outros que não sejam aqueles aprendidos no meio social. Mesmo

43
Muito embora Freud relacione o mundo social ao “princípio da realidade”.

141
quando o sujeito manifesta a sua contestação, mesmo quando infringe uma regra,
somente pode fazê-lo em referência às próprias regras que contesta ou infringe. Parece-
nos imponderável a sustentação de um sujeito (empírico) livre, nos moldes em que
propõe Touraine, uma vez que sua liberdade somente poderia ocorrer quanto a
representações simbólicas e sociais. Ora, mesmo que o sujeito consiga superar as
restrições que colocamos acima, quanto aos limites práticos da racionalidade, se ele se
libertar de um certo sistema social, necessariamente, sujeita-se a outro, exceto o
indivíduo-fora-do-mundo, de Dumont. A liberdade existe no âmbito da razão pura, mas,
em que pesem os argumentos de Kant, a ação livre no mundo objetivo é uma prática que
depende de oportunidades e condições. Aqui, devemos ouvir os críticos da
racionalidade instrumental: nem sempre o próprio dever moral pode ser praticado num
mundo objetivo dominado por obrigações funcionais impostas pelo Estado e pelas
empresas, estes não conseguiram substituir completamente as religiões. Na razão pura a
priori, o sujeito é livre e independente de situações externas, mas elas nem sempre lhe
permitem a ação efetiva; o sujeito é livre, na medida em que é consciente de um dever,
consciente de um mandado da razão. E, se o sujeito empírico não é livre e nem
determina o meio social, o inverso não tem que ser verdadeiro: a determinação do
sujeito pela sociedade também não pode ser aceita; e o impasse, desta vez, é explicado
pela própria razão, tornada consciência. Mesmo que recusemos a razão a priori e a
transcendência e aceitemos, durheimianamente, que a razão emana do meio para o
sujeito, mesmo que aceitemos que a consciência seja - em última análise - social, uma
vez de posse da consciência, o sujeito, em princípio, pode pensar o costume; pode
pensar qualquer coisa. A consciência pode levar o indivíduo a qualquer parte,
principalmente quando dispõe de parâmetros de comparação. Além disso, se aceitarmos
as premissas da lingüística e da antropologia estruturais e as teses pós-estruturais de
Noam Chomsky, a linguagem consistiria em um sistema independente, tanto em relação
ao sujeito da libido quanto à sociedade. Há dois sistemas de códigos: um, pertence ao
domínio dos significados e emana do meio: é aquele através do qual a sociedade impõe
a sujeição; outro, pertence ao domínio dos significantes e não é controlado nem pela
sociedade nem pelo sujeito; é o sistema dado aos humanos, em cujas regras o
significado é capturado. Inevitavelmente, um código social só tem como ser arranjado
no interior de uma única estrutura, e, se há algo ou alguém que pode lidar com essa
relação, este é o ser humano e não a sociedade. A razão não é o único, mas é um
atributo (o outro é a linguagem) que separa a humana das outras espécies e os

142
indivíduos humanos entre si; mas, diferentemente da linguagem, que é a mesma em
todos,44 a razão possibilita a experiência da individualização, tornando-se o único meio
– e o que faz é isto mesmo: mediar - que pode lidar com significados, significantes e
pulsão; ela opera a tarefa ingrata equilibrar os elementos (libido, linguagem e
sociedade) que nenhum sujeito pôde escolher. Contudo, tal mediação não é tarefa fácil;
não é a razão a qualidade que confere liberdade e superioridade ao homem; sua função é
muito ingrata e difícil para que consiga tamanha efetividade. Fosse assim, os humanos
poderiam mesmo libertar-se de suas peias, não haveria sujeitos sucumbidos na
sexualidade, não haveria sujeição ao costume e não haveria a restrição lingüística que,
se é suficiente para exprimir a maioria das idéias, é limitada para dar conta da
afetividade. Mais ainda, os mesmos impasses determinísticos acima anotados nos
impedem de separar, na razão ocidental, o que é atributo da humanidade e o que é
representação social. Os humanos são racionais, mas a super-capacidade atribuída à
razão é uma representação ocidental, e moderna. Tal como a ciência – e já expusemos
isso (Barreto, 2005) -, a razão talvez possa constituir o caminho seguro para o saber; o
problema é que ela é também uma representação social e, como dissemos acima, a
representação social é irreal. Ora, enquanto representação social, o saber racional
constrói apenas um certo tipo de saber.
A razão talvez tenha, sim, um papel destacado na modernidade. Mas antes de
tratar disso, é necessário recompor o termo ‘modernidade’. Há, acreditamos, motivos
históricos para a emergência da razão (que, nas sociedades tribais, por exemplo, opera
com mais tranqüilidade). Não desenvolveremos aqui uma tese histórica, mas partiremos
da premissa de que há dois grandes momentos de emergência da razão: primeiro, a
emergência da racionalidade instrumental, quando os portugueses da Escola de Sagres,
no século XV, inventaram a tecnologia adequada para a navegação por objetivo (a
eficácia do modelo foi bem assimilada pelos ingleses, que mais tarde a aplicaram com
muito sucesso nas fábricas); segundo, a emergência da racionalidade substantiva, como
resposta do sujeito aos desmandos e à perversidade da hierarquização social do ancien
régime, que teve como conseqüência a Revolução Francesa, a Guerra da Secessão e,
tardiamente, a Revolução Bolchevique, eventos que não têm similares na Índia e no
Brasil, posto que nessas sociedades a hierarquia social, embora obviamente desigual,
não foi tão perversa e violenta quanto na Europa, ou talvez por não terem brasileiros e

44
Embora Wittgeinstein (1991) defenda a linguagem como decorrência da práxis e Chomsky (2000;
1998) admita a sua atualização através do cotidiano.

143
indianos sofrido pressão tão dramática sobre a libido que os levassem à revolta. A
racionalidade substantiva trouxe ainda a revalorização da democracia e a invenção do
socialismo de Estado, mas foi acomodada ou sufocada pela racionalidade instrumental
das fábricas, tanto as inglesas quanto, mais tarde, as soviéticas. É nesse confronto de
racionalidades que Touraine (2002) se vê envolvido na sua análise do papel da razão na
modernidade. Esta, na sua expressão industrial e econômica, é marcada profundamente
pela razão instrumental. Entretanto, superada a lógica da instrumentalização, a razão
substantiva, que permaneceu obscurecida, emerge, em uma época em que poderíamos,
sim, aceitar como posterior à modernidade, tanto na sua expressão econômico-industrial
quanto na tentativa de superação da própria razão instrumental. A era industrial foi a
própria ética protestante em ação; a teoria econômica foi a própria consciência
protestante tornada práxis. É neste nosso mundo de diversidade religiosa, de new agers
que renegam a ética protestante, de uma nova oportunidade da racionalidade
substantiva, de questionamento do sujeito sujeitado, que emerge o sujeito de si mesmo.
Nesse sentido, o sujeito da modernidade não é o sujeito de si: é o sujeito sujeitado pela
ética protestante e pela industrialização, o sujeito do trabalho. O sujeito da pós-
modernidade industrial é que começa a despontar como o sujeito da razão substantiva,
do imperativo categórico.
É por isto que a pulsão, a sexualidade, o prazer e o consumo de objetos voltam a
ser discutidos: a razão instrumental, protestante e economicista, representada na força
da sociedade industrial sobre o sujeito, é posta em cheque precisamente pelo sujeito,
que indaga o que, afinal, essa racionalidade, que, neste caso, lhe é externa, fez por ele.
O sujeito, nesta fase tardia da modernidade, não apenas contesta o Estado, voltando-se
para os movimentos culturais e sociais, como identifica Touraine (2002 e 2004); vemos
isso também na sua postura em relação à sociedade do trabalho, reagindo às teses
gerencialistas de dominação, que, ao longo do século XX, foram do taylorismo à
cultura organizaconal. A objetivação do sujeito na modernidade, como apontou
Foucault (1991), colocou-o em uma relação de passividade face ao objeto, tanto o
produzido quanto o consumido. Reagir em relação à sociedade do trabalho implica
também reagir em relação à sociedade do consumo. Aliás, ambos os sujeitos – o do
trabalho e o do consumo – são na verdade o mesmo, posto que produção e consumo,
como aponta Baudrillard (1993), inserem-se na mesma ordem industrial, um
realimentando o outro, ambos pertencendo ao mesmo macro-sistema industrial. Se a
relação de sujeição com a sociedade do trabalho sofrer um rompimento, o mesmo

144
ocorrerá em relação à sujeição ao consumo. Posta uma nova relação, em que o sujeito
retoma a sua posição ativa no processo de trabalho, inevitavelmente haverá uma nova
relação para com o objeto. Deixar de ser objeto e retomar a condição de sujeito leva-lo-á
a definir-se através do objeto, em lugar de ser constituído por este.
Mas não nos iludamos. Este é o sujeito que desponta; é o sujeito que quer e
parece estar gostando de ser. Concordamos com Alan Touraine: emerge um sujeito. Mas
nossa visão não é prescritiva e estamos conscientes de que a poderosa máquina
industrial de sujeição, tal como a máquina do Estado, recusa-se a morrer. Nossa
perspectiva, aqui, também não é apenas uma decorrência do amor pelo ser humano, que
nos últimos 300 anos foi vítima da falácia da sua liberdade. Vemos um processo de
transformação. A era industrial-protestante submeteu o indivíduo em nome da
necessidade - seja moral, seja econômica - de trabalho, transformando-o no sujeito-coisa
de Georges Bataille, enquanto operava a transmutação da hierarquização social, via
nascimento e parentesco, em uma outra forma que hierarquiza através da posse de
objetos, dando uma sensação falsa de liberdade. De fato, nesse sentido, a relação do
sujeito com o objeto de consumo não passa de sujeição ao sistema industrial-
protestante. Já citamos exemplos que evidenciam um outro sujeito, mas consideramos
que a melhor maneira de evidenciar o nosso pensamento seja a investigação das formas
de sujeição a que vimos assistindo; os exemplos ajudam a entender uma lógica mas não
a explicam. A sujeição industrial-protestante opera diretamente em relação ao homem,
assim entendido como um indivíduo humano do gênero masculino, e apenas
indiretamente em relação à mulher que, na verdade foi sujeitada pelo homem, dando
continuidade a um mandamento judaico-cristão que perdura há quatro mil anos. A
mulher tem sido empregada nas empresas há muitos anos, é bem verdade, mas em um
papel acessório, para reduzir o poder de barganha dos trabalhadores, para reduzir custos
ou simplesmente para embelezar o escritório. A mulher inserida e sujeita diretamente ao
sistema industrial é um fenômeno recente e sociologicamente ainda em curso. Aliás, não
temos muita certeza se essa sujeição chega a ser efetiva; trataremos do assunto no
capítulo seguinte. Importa agora sinalizar que a transmutação de mulher-objeto em
mulher-sujeito constitui exatamente o parâmetro que utilizaremos para compreender a
emergência do sujeito ou, de outra forma, a transmutação do humano-objeto em
humano-sujeito.

145
Passar da reflexão filosófica e humanística para uma pesquisa empírica sobre o
sujeito exige algum ponto de partida: uma hipótese sobre o sujeito. Nossa hipótese
admite a emergência do sujeito, nos termos sustentados por Alain Touraine e resgatados
por Michel Foucault, mas não como conseqüência de uma evolução histórica. Trata-se
de um sujeito ocidental, que está buscando alternativas para lidar sistemicamente com
uma combinação peculiar entre libido, sociedade e linguagem através da racionalidade,
inevitavelmente limitada. O sujeito da modernidade tardia joga um jogo com os objetos,
mais ou menos nos termos postos por Bourdieu, só que busca algo mais do
simplesmente se posicionar ou ascender socialmente. Ele joga pela sua condição
antropológica: seu desejo de vencer é libidinoso, suas peças são lingüísticas, suas
estratégias são (ou devem ser) racionais e tudo isso é operado no tabuleiro social:
temporal e espacialmente restrito. As regras do jogo não são apenas econômicas,
sociológicas, biológicas ou psicológicas; são uma combinação sistêmica e complexa de
tudo isso: são antropológicas.
Talvez a questão mais relevante sobre a existência de duas noções de sujeito seja
o paradoxo que o cerca. Não se trata de dois tipos de sujeito, onde um é ativo e senhor
de sua ação e outro é dependente e sujeitado. Ambos estão no mesmo ser e é exatamente
a própria sujeição que o torna capaz de se colocar de modo distanciado e inconfundível
em relação ao objeto. Esta é uma condição humana: os sujeitos não se confundem com
os objetos; tornam-se sujeitos para poder perceber os objetos através de significados.
Estamos num ponto, situado entre o estágio das outras espécies animais e a divindade,
no qual nos é vedada a percepção contínua natureza-natureza e, ao mesmo tempo, não
podemos assimilar os objetos exatamente como eles são, mas através do sistema de
significantes e significados. Separamo-nos entre sujeitos e objetos, mas em
contrapartida, somos condenados a perceber a realidade através do que ela reflete e não
do que ela é.
A identificação de duas instâncias da subjetividade também não nos remete a
dois tipos de sujeito. ‘Subjetividade’ não é conceito que pertença exclusivamente ao
domínio da Psicanálise ou da Sociologia, mas, enquanto a primeira tende a procurá-la
nos escaninhos do inconsciente, na estrutura de significantes, a segunda tende a buscá-la
na ação social, no sistema de significados. Trata-se de duas instâncias e não de duas
subjetividades; a primeira, psíquica e estrutural, está relacionada com a constituição do
próprio ser antropológico: sua natureza humana e sua sexualidade; a segunda,
sociológica, política, jurídica e econômica, está relacionada aos papéis sociais e, em

146
certo sentido, é muitas vezes chamada e “identidade social”.45 Na pesquisa sobre o
sujeito em ações sociais, como o trabalho e o consumo, impõe-nos reconhecer que tal
atributo humano – a subjetividade – vincula-se ao domínio do inconsciente e,
simultaneamente, ao mundo objetivo.

45
Para uma reflexão sobre consumo, identidade social e cidadania, veja-se Canclini, Nestor.
Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.

147
Capítulo 10
Conclusão

Quando do início dos nossos trabalhos, na busca de uma categoria não


econômica para tratar do fenômeno do consumo, chegou-nos a entusiasmar a exploração
das propriedades comunicativas nas operações dos objetos no sistema de consumo:
procura, compra, troca, dádiva, uso. Como não somos versados em teoria da
comunicação propriamente, tentamos a investigação das propriedades da Lingüística,
cujo extrato final, exposto nos Capítulos 2, 3, 4 e 5 desta obra, acabou por retirar a
nossa motivação. Ficou, entretanto, um aprendizado de inestimável valor para nós.
Não deveríamos esperar que o sujeito do consumo pudesse significar a mesma
coisa que o sujeito da fala. Lembrando as lições que aprendemos e expusemos no
Capítulo 2, reconhecemos que o sistema de consumo não atenderia a todas as restrições
e, portanto, não poderia ser aceito como uma língua natural, admitindo-o, com restrições
como língua não-natural. Demonstramos as dificuldades da Lingüística na revisão
crítica à pesquisa de Grant McCracken (2003), no Capítulo 5. A Lingüística nos revelou
a possibilidade de os objetos do sistema de consumo conter propriedades reativas à
estrutura de significantes, mas não deveríamos esperar um discurso.
Os ajustes, adaptações e as formas que o método estruturalista se apropriou da
teoria lingüística, revistos no Capítulo 3, mostraram também que deveríamos evitar a
tentativa de retratar uma organização social com base em compra e uso de bens.
Reconhecemos o valor da tentativa sociológica de Bourdieu (1979), na exposição da
função simbólica dos bens de consumo enquanto meios re-elaborados de distinção e de
separação sociais. Mas, ao mesmo tempo, sentíamos mais desafiados pela tentativa de
inserção do sistema de consumo em uma categoria que nos aproximasse mais de uma

148
condição mais essencial do ser. O Sujeito, ao que já havíamos tocado nos estudos de
Lévi-Strauss tornou-se nossa melhor opção.
Mas, havia um problema. ‘Sujeito’ parecia ser mais uma categoria pertencente à
Psicanálise, graças ao grande volume da obra de Lacan a ele dedicado, e devemos
confessar que considerável parte do esforço desenvolvido nesta tese, no sentido de re-
inserir a categoria em nossa disciplina, foi para evitar a rejeição de nossos pares.
Contudo, não havia como escapar do psicanalista, de cujo pensamento a assimilação,
assim como o rigor do método lingüístico, não é para principiantes. Felizmente, nossa
familiaridade com o método de Lévi-Strauss muito nos facilitou. Reencontrar o sujeito
nas obras de Michel Foucault – cuja contribuição transcende todas as disciplinas
humanas – e na sociologia de Alain Touraine, acalmou as nossas inquietações quanto à
assunção do sujeito enquanto categoria temática de pesquisa antropológica, além de dar
mais nitidez à nossa perspectiva.
Restava ainda um problema: estávamos dispostos a uma investigação empírica,
mas, como estudar o sujeito fora de uma proposta terapêutica? A solução veio
juntamente com a escolha do objeto de pesquisa, permitindo-nos a exploração de um
paradoxo lingüístico singular; nosso objeto era o sujeito. Da escolha de Daniel Miller
veio a nossa alternativa. Por que não? A mulher apresentava-se como um sujeito rico de
significações, permitia um contraponto para comparações e atendia às nossas exigências
de uma categoria humana: a mulher-sujeito ou, tanto faz, o sujeito-mulher. Tínhamos,
ao mesmo tempo, duas categorias antropológicas: a subjetividade e a sexualidade.
Todavia, nossas inquietações ainda não estavam aplacadas. Como abordar o
sujeito-mulher? Ao mesmo tempo em que redigíamos os resultados das nossas
investigações sobre o sujeito, pensávamos em como desenvolver um método de
abordagem. O leitor deve ter percebido essa preocupação no texto dos dois capítulos
anteriores a esta conclusão. Na pesquisa acadêmica, sempre tivemos mais facilidade no
trato das idéias do que das pessoas; nossa própria timidez impedia que abordássemos
distintas senhoras em situações de compra e de uso de objetos nas ruas, como sem
maiores problemas parece ter feito nosso colega num subúrbio de Londres. Optamos por
um questionário como instrumento de abordagem e base para entrevistas posteriores.
Não podia ser um questionário simples e objetivo – desses que se costuma usar nas
pesquisas de mercado – mas ao mesmo tempo tinha que constituir uma ferramenta
segura, que impedisse a sua manipulação pela respondente (não estávamos interessados
em uma pesquisa de opinião) e tivesse efetivamente a capacidade de tocar o sujeito.

149
A Concepção da Pesquisa
A pesquisa estruturalista apoiada no método lingüístico implica o
reconhecimento da presença dos atributos metafórico e metonímico no mito. Nossa
investigação deveria então partir do recolhimento de um sistema de mitos
contemporâneos e daí aplicar a propriedade substitutiva dos elementos sincrônicos, de
tal modo que a equivalência de tais elementos nos permitissem uma derivação segura de
significações. Uma vez que estávamos interessados em uma significação do sujeito
feminino, o trabalho deveria consistir primeiramente da coleta de um sistema mítico
relacionado a essa categoria. Mas as dificuldades desse processo na cultura
contemporânea são imensas. O mito, em nosso modelo sociocultural tem como raiz a
racionalidade, como já tivemos a oportunidade de sustentar em Barreto (2005) e no
Capítulo 8 desta tese. Ora, neste caso, a razão está presente com a dupla função de
fundamentação mítica e de operador cognitivo de negação do próprio mito; ela é o lastro
da crença do sujeito no seu poder de se livrar das peias do costume, ao mesmo tempo
em que opera a síntese do sujeito em si mesmo, fornecendo-lhe a segurança de ser o que
pensa ser: o sujeito suturado pela ciência a que se refere Lacan. Deste modo, a narrativa
mítica escamoteia as suas propriedades lingüísticas e passa a funcionar como uma
espécie de enunciado científico.
Isso ainda não era suficiente para desistirmos totalmente do método. Poderíamos
partir de um enunciado cientifico, neste caso, uma sentença que dissesse respeito a uma
crença contemporânea em relação ao nosso objeto, o sujeito-mulher, e seguir o método
da ciência. Poderíamos facilmente derivar um enunciado da própria pesquisa de Daniel
Miller e, observando as restrições de Karl Popper (1972), submetê-lo ao
questionamento, visando à sua negação; em não podendo negá-lo, aceitaríamos o
enunciado como verdadeiro. O enunciado seria: “a mulher reconstitui e ajusta a
subjetividade operando objetos em intenção do lar, do marido e dos filhos”.
Restavam ainda dois problemas metodológicos: o primeiro, o percebemos no
alerta deflagrado por Lévi-Strauss (2003), na introdução à obra de Marcel Mauss, sobre
o perigo que espreita todo etnólogo, ao pensar que o discurso do sujeito constitui uma
fonte segura da própria sujeição. No nosso caso, mais do que nas investigações em
sociedades tribais, o risco do discurso racionalizado poderia nos ofuscar e deixar
entrever exatamente o que o sujeito não é. Enveredar por uma pesquisa de opinião,

150
dirigida à mulher contemporânea, certamente nos levaria a um sujeito-mulher que
negaria a condição de sujeito do lar, do homem e dos filhos.
O segundo problema era exatamente como tocar o sujeito através de um meio
não-terapêutico. Não nos interessava – e nem tínhamos as ferramentas para isso –
construir diagnósticos terapêuticos para cada indivíduo que entrevistássemos; qualquer
inferência sobre casos individuais que a pesquisa pudesse revelar (e revelou!) deveriam
ser colocadas de lado. A função dominante da pesquisa não poderia então ser o
instrumento de diagnósticos, mas indicar o sujeito através dos objetos de consumos que
manipulava, ou seja, possibilitar verificar a suposição de que a compra, a dação e o uso
de bens de consumo de bens constituíssem uma atividade humana vinculada ao
processo de subjetivação. Para isso, era necessário que os bens fossem efetivamente
operados enquanto objetos, ou seja, fossem dotados de significação. Em seguida,
poderíamos obter alguma segurança de que, admitindo-se como verdadeira a relação
lingüística e, neste caso, cartesiana sujeito x objeto, o sujeito pudesse ser visualizado no
processo.
O método poderia então consistir em percorrer o caminho inverso de Lévi-
Strauss: inferir o sujeito a partir da fala, sabendo que aquilo que ele fala nem sempre faz
emergir o sujeito da linguagem. Constatamos então que o método não diferiria muito da
técnica terapêutica, mas, primeiramente, não visava diagnóstico nem cura e, depois, não
se conflitava – muito pelo contrário – com as metodologias científicas dominantes.
Todavia, não conseguimos evitar o sorriso irônico, ao lembrarmos das correlações bem-
humoradas que Lévi-Strauss estabeleceu entre os feiticeiros e os psicanalistas.
Superada a concepção do projeto, devidamente colocada no interior da técnica
científica vigente, restava ainda a estruturação de um instrumento de verificação e
obtenção de dados que evitasse, ou talvez contornasse o “risco Lévi-Strauss”.

O Processo da Pesquisa46
Atentos à hipótese de que a operação com objetos enuncia o sujeito e dispondo
de um caso anterior – a pesquisa de Miller – que, embora não procurasse o mesmo
objetivo, visou o mesmo objeto e revelava conclusões que pudessem ser comparadas às
que procurávamos, nossa primeira preocupação foi delimitar um seguimento-objeto.
Este foi definido em um objeto que simultaneamente atendesse as exigências de serem

46
Informações sobre critérios de valoração, apuração e ponderação de dados e outras são dadas nos
Anexos A e B.

151
mulheres, casadas (ou ex-casadas), mães e profissionais com experiência no mercado de
trabalho. Embora nosso trabalho se diferenciasse, alem do objetivo, em metodologia e
em fundamentação teórica ao do antropólogo inglês, havíamos percebido, como
notamos no Capitulo 7, que as mulheres abordadas por Miller consistiam
predominantemente de donas-de-casa, que completavam o ato de sacrifício masculino
do trabalho, adquirindo itens de subsistência para a casa. A mulher profissional, além da
própria experiência com o trabalho, num contexto sócio-político de autonomia do
gênero feminino, teria mais autonomia para dispor de sua própria renda e talvez não
revelasse um sujeito sujeitado pelo lar, pelo marido e pelos filhos.
Contrariando todas as recomendações técnicas prescritas pelos pesquisadores de
mercado, elaboramos um questionário extenso (Anexo A), com questões que, longe de
permitirem inferências independentes em si, exigiam a correlação com respostas a
outras questões. Acreditávamos que assim evitaríamos a manipulação das respondentes,
o que nos parece ter dado certo. Para esse fim, utilizamos também do recurso de não
revelar à respondente a finalidade da pesquisa, somente explicitada em alguns casos,
durante as entrevistas pessoais.
Em seguida, criamos quatro indicadores significativos que deveriam comportar
os resultados quantificados das respostas dadas, a que chamamos de índices de zelo. São
eles: zelo em relação à casa, zelo em relação a si mesma, zelo em relação aos filhos e
zelo em relação ao marido. Os indicadores de zelo deveriam oferecer a medida de
sujeição da mulher pesquisada. Assim, investigação consistiu, primeiramente, da
apuração das condições, critérios, meios e recursos com os quais a mulher compra itens
para seus filhos, para o marido, para si mesma e para a casa. Em seguida, através de
ações e experiências em compras, como tempo gasto, sensações, motivações,
responsabilidade, iniciativa, impulso, arrependimento, utilidade, praticidade e
economia, procurou-se identificar um grau de zelo em relação aos beneficiários da
compra, inclusive ela mesma. Não queríamos saber apenas o que a mulher compra, mas
relacionar elementos subjacentes ao ato de comprar, de tal modo que pudessem
constituir-se como um sistema que, em última análise, revelasse se e como a mulher
constitui a si mesma ao adquirir objetos, ou seja, revelasse sintaxe e não somente fala.
Dessa forma, um sub-sistema de respostas que indicasse – na compra, por
exemplo, de um item para o filho – um tempo longo despendido no ato de compra,
elevada preocupação com a qualidade, elevada preocupação com a receptividade do
beneficiário em relação ao objeto e pouca preocupação em economizar, aumentava o

152
índice de zelo em relação aos filhos. Em outro exemplo, um sub-sistema de respostas
que comportasse indicação de elevado tempo na compra, desejar estar sozinha no ato de
compra e altíssima preocupação com a qualidade, aumentava o índice de zelo em
relação a si mesma. Esperávamos então que a contemplação sistêmica do modo, das
atitudes, dos sentimentos, da racionalidade e de outros atributos com que as
respondentes operavam os objetos nos autorizasse a deduzir a verbalização do sujeito. 47
Tabulados os resultados (cuja técnica aplicada consta do Anexo B, juntamente
com as próprias tabelas dos resultados consolidados), associamos os índices a graus de
sujeição, por exemplo, o índice de zelo em relação ao marido denotaria o grau de
sujeição ao mesmo. Precisávamos, todavia, estar seguros da natureza do sujeito que se
nos afiguraria dali. Os recursos que utilizamos para evitar a manipulação das respostas
não nos pareciam medida suficiente para fazer com que, em todos os casos,
provocássemos a emergência do sujeito da linguagem. A dedução de que os atributos
(sensações, sentimentos, racionalidade etc) observados na manipulação de objetos
tivesse propriedades indicativas do sujeito nós a extraímos das técnicas dos psicanalistas
aplicadas a crianças, consideradas incapazes de constituir o discurso falado. Não
iríamos lidar com incapazes, mas tratava-se de buscar evidências das ligações de objetos
com sujeitos.
Para constituir um modelo consistente, escolhemos alguns itens específicos.
Como item de compra para o filho um par de sapatos, sugerindo a relação simbólica
com seu caminhar para o futuro, denotando o sucesso da maternidade. O objeto
escolhido por nós para a compra direcionada ao marido foi uma camisa, associada à
cobertura da pele e, portanto, à superposição do elemento de cultura ao da natureza. O
item de cunho pessoal escolhido para relacionar a mulher respondente a si mesma foi
um batom. Consideramos que o batom (bâton, bastão) fosse o objeto que melhor
associaria a mulher ao processo de independência feminina. Sua significação simbólica
ao longo da história ocidental está associada à prostituta e, com ela, o que é mais
importante, à autonomia da mulher em relação ao homem. Não esperávamos
obviamente de nenhuma das senhoras que nos atenderam relação alguma com a
prostituta, mas, pelo menos, relação não-consciente com a liberdade da mulher. Afinal,
o batom é o próprio falo recolhido dentro de uma bainha, guardado dentro da bolsa, a

47
Um interesse acessório da pesquisa foi identificar a relação das entrevistadas com os objetos através de
propriedades como: comunicação, modernidade, liberdade efetiva, liberdade desejada e racionalidade na
escolha. Os resultados obtidos dessa parte da investigação (segunda parte do questionário; ver Anexo A),
serviram como elemento de ponderação dos resultados principais.

153
qualquer momento disponível. A associação com a sexualidade feminina foi buscada
através de um jarro para flores, ligando-se o jarro ao pote da pottiere jalousse, o
continente uterino, e as flores à sexualidade propriamente. Uma vassoura e um pacote
de sabão em pó compunham a ligação do zelo e a casa. Para completar a cesta,
incluímos uma agenda comum, como indicativa do meio de controle sobre o tempo a
que se vincula a cultura contemporânea e o sujeito profissional.
Não esperávamos que as respondentes operassem quaisquer ligações simbólicas
como as que sugerimos acima (como, de fato, não operaram), nem alimentamos
expectativas de que pudéssemos extrair significativas ilações simbólicas das atitudes,
modos e sentimentos que as respondentes viessem a denotar em relação a todos os
objetos em si. Mas era necessário construir num quadro lógico, num pequeno sistema de
objetos, um conjunto de itens substituíveis entre si e, ao mesmo tempo, associáveis aos
elementos casa, filhos, marido e si mesma. Sabemos que um comprador não opera
simetricamente a substituição da compra de, por exemplo, um pacote de sabão em pó
pela de um sapato para o filho. Mas, levada em conta a efetiva possibilidade de, ao
longo do tempo, um comprador operar substituições, consideramos todos os itens como
pertencentes à categoria dos objetos compráveis por uma mulher, com a sua própria
renda, nas condições delimitadas. Motivo pelo qual evitamos incluir itens como imóveis
e automóveis e solicitar às respondentes que não considerassem jóias, perfumes e
celulares; algumas respondentes poderiam nunca incluir tais itens em sua cesta.48
A categoria intangível do produtema, a que nos referimos nos finais dos
Capítulos 5 e 7, “onde se misturam utilidades, soluções e prazeres, mas também uma
infinidade de outros itens inexprimíveis, nos quais, sem saber como, os consumidores
buscam algo que não sabem o que é”, foi testada através dos atributos ‘para cumprir um
dever’, ‘para sentir-se identificada com outras pessoas’, ‘para sentir-se recompensada’,
‘para resolver um problema prático’, ‘agradável’, ‘irritante’, ‘prazerosa’ e outros que o
leitor verificará no questionário usado. Em nenhum momento pretendemos elevar o
produtema a uma categoria homóloga a do fonema. Desde o início desta tese já
havíamos recusado a operação com objetos como homóloga da fala; não se separa o
produtema assim como se isola gramaticalmente o fonema. Mas o produtema se revelou

48
Tivemos algumas lacunas de respostas ao item ‘agenda’, mas o fato não comprometeu a consistência
dos resultados. Uma versão preliminar do questionário incluía o item ‘quadro de arte’. Antes mesmo do
teste de consistência que realizamos, retiramos o item, dada a sua assimetria em relação ao sistema que
procurávamos compor.

154
uma categoria aceitável de combinações entre atitudes, motivações, razões e
sentimentos no ato de compra.

Temendo o surgimento de inconsistências a partir do uso de um recurso


quantitativo auxiliar, cujas técnicas estão detalhados no Anexo B, e ainda insatisfeitos
quanto aos recursos para reduzir o risco Lévi-Strauss, decidimos complementar a
pesquisa com entrevistas pessoais, o que acabou se revelando também de um valor
inestimável para as nossas conclusões finais.
Não conseguimos eliminar o risco Lévi-Strauss; ele estaria presente na ação
inevitavelmente operada pelo próprio pesquisador na quantificação das respostas e
também, obviamente, na análise dos dados. Mas o método, revelou virtudes: não
precisou recorrer à figura do informante, evitando assim os riscos de eventuais
avaliações subjetivas deste; em cem por cento dos casos entrevistados as conclusões
corroboraram com as respostas ao questionário e, apesar de ser, neste caso, uma
conclusão derivada das conseqüências da pesquisa, portanto, medida pelo seu efeito e
não pela sua causa, o resultado final surpreendeu o pesquisador.

Classificamos nossa pesquisa como um teste por que se tratava efetivamente


testar uma metodologia de inferência empírica do sujeito. Criamos uma metodologia
que exigiu um enorme esforço técnico de tabulação de resultados e nossa amostra
consistiu de apenas 27 indivíduos. De cada cem questionários distribuídos, o numero de
respostas foi de menos de dez. Trata-se de um retorno considerado normal, mas
consideradas as complexidades do próprio instrumento e de sua tabulação, o resultado
demoraria um longo tempo. Talvez até dispuséssemos de recurso de tempo para uma
investigação em larga escala, mas não tínhamos recursos financeiros para isso, uma vez
não foi uma pesquisa patrocinada. De resto, era mesmo o nosso objetivo principal a
sugestão de uma teoria do consumo, face a uma hipótese de existência de propriedades
simbólicas nos bens de consumo capazes de relacioná-los ao sujeito. Procurávamos um
indicador do sujeito nos objetos de consumo. Nesse sentido, consideramos o objetivo
como alcançado.
Todavia, a categoria complexa de ‘sujeito’ requer maiores explicações sobre o
sujeito que conseguimos efetivamente visualizar. Nos itens seguintes, traremos essas
explicações.

155
O Sujeito do Consumo
As inferências extraídas de nossa experiência não nos permitiram, e nem era essa
a nossa intenção, um novo conceito de sujeito. Mas, do estudo que empreendemos nos
dois capítulos anteriores, podemos depreender que o processo a que se chama
“constituição do sujeito” implica uma sucessão de acomodações – nem sempre
confortáveis – operadas por um indivíduo da espécie humana em uma estrutura inata, o
inconsciente, tal como a linguagem. O processo começa através da pulsão e
provavelmente nunca termina, donde se pode deduzir que, se o sujeito não tem
obviamente consciência da estrutura, tem ou deve ter consciência de um resultado
sintético desse processo, ao que podemos chamar de consciência de si. Tal consciência,
entretanto, implica a captura do mundo externo através de um reflexo, como aquele
representado entre o sujeito e o objeto da frase. Podemos então esperar que qualquer
indivíduo da espécie, na sua relação com o mundo objetivo, opere constantemente
arranjos constitutivos da subjetividade através de objetos. Tal é a suposição que
alimentou, ao longo deste trabalho, a expectativa de podermos inferir um sujeito a partir
de sua relação com bens de consumo: o sujeito que procuramos alcançar através do
método e dos recursos que descrevemos no tópico acima.
Todavia, o pressuposto lingüístico no qual vimos nos apoiando permite apenas
reforçar a crença de que há um sujeito em quase todos os indivíduos da espécie. Para
toca-lo, era preciso trazê-lo para a perspectiva cartesiana, não exatamente como um
sujeito racional, mas como um elemento “classificável”, dotado de significado. A
associação de atributos, chamados produtemas, que julgamos ter podido associar a cada
indivíduo ouvido na pesquisa, cujas falas foram consolidadas nos índices de zelo, teve o
propósito de inferir significados. Permitimo-nos então chamar o sujeito que pudemos
perceber de sujeito do consumo. O sujeito do consumo é aquele opera objetos de
consumo, através do que, consciente ou inconscientemente, constitui ou reconstitui
significados em si mesmo. Do processo de nossa experiência, não se podia esperar que
efetivamente fôssemos tocar a inconsciência, até porque, a considerar-se o método da
psicanálise, esta seria uma função cabível ao próprio sujeito empírico.49 Mas estamos
convencidos de temos podido extrair do sistema de respostas indicadores concisos de
significação. A notação lingüística que utilizamos para a inferência fora chamada de

49
Temos motivos para crer que, em alguns dos casos que perscrutamos, a respondente se viu diante
conflitos consigo mesma, principalmente quando confrontada diante de atos de compra de objetos para os
outros e para si mesma, trazendo-nos questões pessoais que, dados os nossos interesses e limites
metodológicos, tivemos cuidadosamente que afastar.

156
índice, não apenas por se tratar de indicadores numéricos, mas por que se nos parecem
exatamente resultados indicadores de significação.
Os resultados consolidados dos índices de zelo, arranjados ordinalmente,
apresentaram a seguinte classificação:
1º lugar: filhos
2º lugar: marido
3º lugar: si mesma
4º lugar: casa
A leitura que propomos para a assimilação dessa apuração é a de que, na amostra
que perscrutamos, os sujeitos operam o arranjo de si perante o mundo objetivo,
primeiramente, enquanto mães; em segundo lugar, enquanto esposas; em terceiro,
enquanto sujeitos de si mesmas e, por último, como mulheres “do lar”. Podemos bem
aceitá-la como uma ordenação de prioridades do sujeito-que-cuida-de-si, na medida em
que o cuidado de si não se faz representar pelo egocentrismo e pelo egoísmo; não é o
sujeito desestruturado e devorado pelos objetos; não age como Hell e Mme. Bovary.
Estas representam uma patologia estrutural que não permite inferência alguma de
sentido, como na frase (2) de Chomsky (1980, p.17), Furiously sleep ideas green
Colorless, que, por ser estruturalmente incorreta, não permite o sentido nem mesmo
operando-se substituições de elementos sincrônicos. Representam o sujeito-mulher
desestruturado, consumista, para cujo perigo – decorrente do consumismo errático,
portanto, sabotador da virtude da produção – o moralismo da economia protestante quer
nos alertar.

Embora se nos transmitisse sentido, devemos confessar a surpresa que nos


causou, quando da tabulação e da consolidação dos dados, a tendência irreversível da
escala ordinal dos índices de zelo que sintetizamos acima. Tínhamos como referência o
resultado e as deduções da pesquisa de Daniel Miller que, como sabemos, estava
direcionada para donas-de-casa típicas. Admitindo que a compra de itens de provimento
operada por mulheres assim predominantemente qualificadas facilitara a conclusão de
dedicação ao lar, aos filhos e ao marido, fomos buscar mulheres que trabalham
profissionalmente, postas em confronto com itens não apenas dirigidos para tais
beneficiários, como também para si mesmas. Esperávamos que, na nossa experiência, a
medida de zelo não se mostrasse tão definida naquela ordem. Nossas expectativas
estavam influenciadas pelo discurso da “autonomia da mulher moderna” que, como

157
profissional e dona de si, pudesse colocar o zelo em relação a si mesma em uma ordem
não inferior a do marido e não tão distante do zelo aos filhos.
Mesmo assim, observando o resultado consolidado dos índices de zelo (Anexo
B, p. 1), vamos encontrar, em uma amostra de apenas 27 mulheres profissionais, três
casos (os das senhoras DRN, AMTPV e LBMB) cujos índices de zelo em relação a si
mesmas são destacadamente superiores a todos os outros, além dos casos das senhoras
RNC, ABP e MJJC cujos índices de zelo em relação a si são iguais aos dirigidos aos
filhos.50 Nossa pesquisa não ambiciona uma comparação com o trabalho de Miller,
dadas as diferenças de metodologia e em algumas premissas, além de não contemplar
eventuais diferenças etnológicas entre donas-de-casa londrinas e profissionais cariocas.
Mas podemos admitir que alguns parâmetros são compráveis; um deles é a ocupação.
Acreditamos que as características da nossa amostra explicam os resultados notados
acima, não exatamente por que sejam mulheres profissionais, mas pelo seu modo de
relação com o mundo objetivo, que as conduz, inclusive ao trabalho profissional.
De qualquer forma, temos um quadro que não deixa dúvidas quanto à
preponderância do zelo em relação aos filhos. O resultado da tabulação do questionário
que se nos afigurou levou-nos a dirigir nossas entrevistas também para a relação
trabalho x consumo. O aprendizado derivado desse direcionamento, face à nossa base
teórica, proporcionou uma inferência da mulher-sujeito, descrita no tópico a seguir.

A Mulher-Sujeito
Sugerimos, no Capítulo 7, após a nossa revisão de casos significativos de
mitologia e ritualística sacrifical e canibal, que o melhor parâmetro para a analogia do
estudo de Daniel Miller era o caso hebreu, onde o ato de sacrifício da mulher poderia
ser considerado como derivado do sacrifício – principal – do trabalho, associado ao
homem. Observamos também que a associação do Deus judaico-cristão ao pater
constitui substrato simbólico que permite a hierarquização entre o homem e a mulher,
onde esta se sujeita ao homem e este a Deus, sacrificando em seu favor a melhor parte
do produto do seu trabalho.

50
Notamos que as idades dos filhos afetam o zelo e por isso tivemos o cuidado de observar o fato.
Chegamos a mesmo a pensar em inserir um fator de ponderação para corrigir o índice de zelo aos filhos,
mas a medida não se revelou necessária. Encontramos casos de mães com filhos de 1 ano cujo índice de
zelo em relação ao marido era maior do que em relação ao filhos. Outros casos de mulheres com filhos
adultos e mesmo casados apresentaram elevados índices de zelo aos filhos.

158
Ora, que o trabalho seja uma atividade humana capaz de instilar o sujeito tem
sido uma idéia de mais fácil aceitação do que a operações de consumo de objetos ser
capaz de fazê-lo. Em que pese a automação alienante de algumas funções, através do
trabalho, o sujeito produz o objeto e em relação a ele estabelece o distanciamento
comedido e necessário que o torna humano. O sujeito se constitui na medida em que é
capaz de constituir um objeto, colocando-se como parte ativa e determinante de um
processo.
Todavia, a sujeição ao trabalho é uma via tipicamente masculina. De um lado, a
sexualidade do homem é consolidada através da modelagem da matéria prima, que
opera como um substituto – incompleto, é bem verdade – da função uterina que lhe é
negada. De outro, o homem encontra no trabalho o seu modo sujeição social através da
competição. Impedido de ter uma fêmea da própria família, o macho humano é
compelido a buscar uma companheira em arenas de competição. Modernamente, o
ambiente de trabalho oferece um excelente de lócus de afirmação, conquista da
subjetividade e da sexualidade masculina.
Mas, no caso da mulher, o trabalho como meio de constituição subjetiva também
é um difícil argumento. Talvez seja mesmo um paradoxo. Não tendo recebido o “não do
Pai”, a mulher não busca o parceiro mostrando seu valor em arenas de competição; ela
aguarda em casa que o conquistador venha-lhe depositar aos pés os símbolos de sua
capacidade de procriador e de provedor. Não é que a mulher não trabalhe fora do lar –
ela o faz há muito tempo – e não acumule símbolos de conquista. Não é que os
arquétipos plantados há milhares de anos nas mentes tanto masculinas quanto femininas
não possam ser transformados. O que devemos investigar é se as funções sociais e
econômicas de trabalho fora do lar operam na mulher o mesmo processo de sujeição que
operam nos homens. De fato, não se vê, para a mulher, o trabalho como fonte de
conquista e afirmação da sexualidade. Diferentemente, ao homem que não trabalha ou
não guerreia, falta o elemento fundamental de sujeição.
Para mulher contemporânea, o trabalho tem sido um instrumento de liberdade,
embora a aparente contradição que isso possa significar. De modo geral, no Ocidente, a
mulher tem preferido experimentar a sujeição sociológica e econômica às empresas em
troca de mais independência em relação à figura masculina. Mas a sujeição ao mercado
de trabalho é, neste caso, reduzida a uma relação com o mundo externo; é de ordem
social, econômica e política e, provavelmente, pouco tem a ver com o construto interior
do sujeito-mulher. Deixar de trabalhar constitui para a mulher um problema de

159
dependência econômica; pode até mesmo constituir um problema de equivalência de
gêneros, mas não é um problema moral e nem vinculado à sexualidade.
Manter, por outro lado, o argumento de que a mulher moderna permanece a
reproduzir, através da devoção, o mesmo papel social há cinco mil anos é uma outra
tarefa difícil. Para tentarmos entender a sujeição das mulheres devemos recorrer ao
construto que elaboramos no capítulo anterior, onde fomos encontrar as duas instâncias
da subjetividade. Uma coisa é a sujeição social, nos seus aspectos sociológicos,
econômicos e políticos; outra, é a sujeição à sexualidade, que pertencente à ordem
psíquica e antropológica. Na relação com o trabalho, todo homem é duplamente
sujeitado: aos elementos sociais e aos elementos do inconsciente; ele, através do
trabalho, busca a afirmação do seu papel externo e a sua identificação interior. No caso
da mulher que trabalha profissionalmente, a sujeição social é apenas externa.
Consideramos que as ascensões profissional e política da mulher têm implicações
profundas na subjetividade feminina. Tais condições somente se tornaram possíveis no
interior de um processo de clarificação consciente da condição da mulher e da sua
relação com o parceiro. Na relação homem-mulher – com exceção da interdição do
incesto e das regras de parentesco – estávamos, há menos de cem anos, no Ocidente, por
exemplo, mais perto das relações macho-fêmea entre os outros primatas do que de uma
condição efetivamente humana. A conscientização da condição feminina é, para nós,
comparável à consciência da condição do escravo. E foi a emergência do absurdo dessa
condição o instrumento capaz de eliminá-la. A consciência do si-mulher é, sem dúvida,
o fundamento da transformação operada e o motor da substituição da mulher-objeto pela
mulher-sujeito. Assim como não faz sentido estabelecer uma distância hierárquica do
tipo senhor-escravo, também não tem sentido estabelecer um tal distanciamento entre
homem-mulher. E o processo de clarificação da consciência implica, de fato, uma nova
ordem de subjetividade, posto que indica o caminho para a constatação racional de que
os substratos condicionantes, decorrentes da herança dos costumes, não têm que se
repetir de modo irrefletido e para sempre. Mas queremos insistir que isso não alterou
nem os processos nem os elementos da constituição da sexualidade feminina; não
alterou a subjetividade feminina no seu casulo mais interior. Não acharemos qualquer
novo sentido na sexualidade feminina na sua nova relação com o trabalho.
Será a mulher o sujeito do consumo?
Miller foi bastante oportuno em propor a compra como função sacrificial da
mulher. Todavia, concordar com Miller requer cautela. Sua teoria do sacrifício

160
necessita, como vimos, de complementos e o ato de compra como ação sacrifical requer
explicações adicionais. Lembremo-nos que sacrifício-referência de Miller é hebreu,
portanto substancialmente reformado pelo Cristianismo. O que é preciso perguntar
agora é: subsiste nos tempos contemporâneos um ato de sacrifício que implique o
sujeito entregar objetos à entidade de sua devoção? Essa entrega implica sujeição
interior?
Homens fazem chacota e contam piadas quando as mulheres vão ao shopping.
Mulheres são consumistas. Isso parece ser fundamento para uma espécie de
rebaixamento moral da mulher. Conforme lembra Everardo Rocha, na apresentação à
edição brasileira da obra de Douglas e Isherwood,51 tudo que diz respeito à produção
(portanto masculino) é moral, correto e edificante; tudo que diz respeito ao consumo
(portanto feminino) é amoral, concupiscente e degradante. Trata-se de um princípio
ético mantido pela teoria econômica protestante, que, nos últimos 450 anos, tem sido
responsável pela realimentação da virtude de produzir e da culpa por consumir objetos.
A parte do sistema de consumo que implica o uso dos objetos pode estar atrelada
aos símbolos de posição e à comunicação social, mas nada tem de exclusivo em relação
a um ou outro dos gêneros. Agora, comprar, sim, é tipicamente uma função de
mulheres. Na nossa cultura, isso possui algumas raízes: nos mercados mediterrâneos,
por exemplo, a função de compra sempre foi feminina; uma espécie de extensão da
obrigação de buscar a água na fonte. Os homens precisavam cuidar da produção e da
própria função de comerciar. Eles iam aos mercados para olhar as mulheres, numa
sociedade onde normalmente ficavam reclusas, e não para comprar – exceto ferramentas
para a produção. Nos nossos dias, as compras técnicas de ativos e insumos são
resultados de uma pretensa racionalidade aplicada a decisões financeiras, justificadas
como investimento necessário ao lucro da produção. Comprar para o consumo final
tornou-se ato complementar ao do sacrifício a que foi reduzido o trabalho (sempre
masculino) e, como comprar implica gastar a moeda obtida através do “suor do rosto”
masculino, sua conotação tornou-se pejorativa e moralmente decaída.
A ética protestante tratou de preservar o valor da produção e elevar a virtude da
poupança, a qual deve se transformar em investimento para financiar mais produção
(como se tudo isso não dependesse de compras e de consumo final). O ato de compra
permanece assim como elemento de sustentação do processo, mas, de uma importância

51
Op. cit., pp. 10-13.

161
a qual não se quer dar valor, do mesmo modo como não se atribui valor feminino às
grandes realizações humanas. A noção de Miller de compra como ato de sacrifício fica
assim justificada: a mulher não comete ato de sacrifício direto; seu papel sacrifical
consiste em ter que sair da paz e da segurança do lar para aturar verdureiros grosseiros e
peixeiros trapaceiros no ato de comprar; ela vai desempenhar o seu papel menor de
despender a moeda obtida pela função masculina. Se o sacrifício do homem é a
obediência ao mandado da divindade (o trabalho), o sacrifício da mulher posiciona-se
em relação ao homem: transformar o que restou do produto do sacrifício masculino (o
salário) em itens de provimento para o lar; revela aí sua sujeição (social), a parte que lhe
cabe na divisão sexual do trabalho.

O papel ambíguo, a divisão pessoal e a “dupla jornada” da mulher


contemporânea são evidências de uma condição muito complexa. A mulher saiu para o
trabalho, mas não deixou substituto no lar. Hoje dia, homens lavam louça e cuidam de
crianças, mas nunca reivindicaram o direito ao avental doméstico. O problema,
portanto, não é simplesmente funcional. Tarefas domésticas podem ser divididas ou
completadas por máquinas, mas isso não resolve o vazio que seria deixado no lar,
motivo pelo qual a mulher-sujeito social do lar ainda permanece, acumulada com a
mulher-sujeito do emprego.
Mas, além da sujeição social, há a sexualidade. Se nosso argumento em relação à
impossibilidade da sujeição psíquica e antropológica da mulher ao trabalho está correto,
o ofício profissional não irá constituir uma mulher, enquanto representante do ser
feminino. Esta é uma outra condição que impede a mulher de entregar o lar ao homem,
posto que significaria a perda do elemento fundamental da subjetividade, ainda que os
homens reclamassem, em massa, o direito ao avental.
Miller observa que a mulher moderna opera um certo deslocamento do objeto de
devoção do marido para os filhos; justifica esse deslocamento apontando o maior
empenho e maior esforço constatados nas compras direcionadas aos filhos. Por
exemplo, mais preocupação e o mais zelo em relação ao teor nutritivo e às implicações
na saúde dos itens de alimentos comprados para os filhos. Queremos crer que o autor
tentou estabelecer uma correlação plausível entre uma mulher contemporânea que
trabalha profissionalmente – embora não tenha sido este o seu foco – e se torna
economicamente independente e sua teoria de que a devoção da mulher é uma
propensão estrutural. Em outras palavras, para justificar um eventual contra-argumento

162
de ordem sócio-econômica, no qual a mulher profissional contemporânea não depende
do homem – e portanto não tem que sacrificar a ele –, Miller justifica que a função de
zelo e servidão permanece inalterada, como se nenhuma mulher pudesse dela escapar:
se não se devota a um, devota-se a outro. Se a sujeição masculina é dupla – social e
sexual – e simultânea ao trabalho, a sujeição feminina é, na verdade, tripla: passou a
sujeitar-se sócio-economicamente às empresas, ao mesmo tempo que permanece
duplamente – social e sexualmente – sujeita ao lar.
A segunda instância da sujeição da mulher – interior, estrutural – permanece, a
depreender-se do trabalho de Miller, inalterada. Nossos argumentos em favor desta
conclusão não estão na maior ou na menor dedicação com que a mulher compra e
entrega objetos aos filhos ou aos maridos. Se se pode admitir o ato de compra como
pertencente ao processo de constituição da sexualidade feminina, ele não está na
intensidade – maior ou menor devoção – mas no ato em si: comprar permanece como
uma função feminina e complementar do trabalho. Sobretudo, quanto aos itens de
provimento investigados pelo autor, a função comprar atrela o significante ‘mulher’ aos
significados ‘zelo’, ‘devoção’, ‘dedicação’, ‘carinho’, ‘cuidado’.
Mas essa situação ideal que o antropólogo inglês construiu, pesquisando donas-
de-casa que, tipicamente, têm o dever de gastar da maneira mas honrada o suado
resultado do trabalho a que têm direito os seus maridos, parece constituir uma evidência
das funções de subjetividade segundo um modelo muito antigo de ato sacrifical. O que
se nos apresentaria se investigássemos os atos de compra feitos por mulheres que
trabalham e gastam o seu próprio ganho? Como entender a relação sacrifical em
compras de objetos para elas mesmas? Ao lançar-se no trabalho externo, estaria a
mulher contemporânea, mais do que simplesmente buscando independência econômica;
estaria tentando romper um fundamento essencial do processo de subjetivação?
O resultado obtido através do nosso questionário, amplamente confirmado nas
entrevistas, indica que a atividade profissional e a dedicação ao trabalho e à profissão
são fatores contemporâneos que não alteraram a relação de sujeição estrutural. Ou seja,
a feminilidade, a depreender-se dos resultados da nossa pesquisa, permanece constituída
em relação ao pater e, principalmente, à maternidade. Foi notável a constatação, por
exemplo, de a maioria das entrevistadas demonstrar dificuldade em explicar porque
trabalhava. Nenhuma delas encontrou na sexualidade o fundamento para o fato de
trabalhar profissionalmente. De acordo com nossos resultados, a mulher, nos limites
mais íntimos, se sente mulher quando zela pelos seus e não quando trabalha. Uma das

163
entrevistadas admitiu que quando vai trabalhar, seu coração fica em casa. Chegamos à
conclusão de que o trabalho, assim como o voto feminino, tornou-se uma bandeira para
demarcar uma igualdade política; uma demonstração de que a desigualdade sexual de
homens e mulheres não apóia, não lastreia e não justifica nenhuma outra desigualdade.
O trabalho, aparentemente, torna as mulheres livres em relação aos homens. Isto,
contudo se dá numa relação social, expressa em condições sociais, políticas, jurídicas e
econômicas. Aparentemente, foi confirmada a hipótese de que a sujeição feminina
interior – psíquica e antropológica – tem como contrapartida os objetos vinculados ao
lar.
*
Tendo-nos posicionado de modo segmentado e complementar em relação a duas
instâncias do sujeito – o sujeito-mulher estrutural e o sujeito-mulher social – pudemos
experimentar uma visão diferenciada do processo de subjetivação. Há uma profunda,
complexa e invisível diferença entre papéis sociais e sexualidade. O exercício de uma
função tipicamente masculina como o trabalho não altera em nada a sexualidade
feminina. Comprar e ser “consumista” não altera a sexualidade masculina. Os papéis e
as identidades sociais não têm uma correspondência direta com a feminilidade e a
masculinidade; a ação social característica de um gênero não implica reprodução de
arquétipos psíquicos e antropológicos. Milhares de anos de construto estrutural não
serão facilmente desfeitos por novas e conscientes práticas sociais. Como ensina Lévi-
Strauss,52 a análise estrutural dos elementos sincrônicos é capaz de revelar relações que
nem sempre correspondem à prática social, derivada da observação diacrônica dos fatos.
Ainda há muito a aprender na relação entre o construto subjetivo mais profundo e
interior e as ações humanas. Quando praticamos uma ação social ou quando operamos
no mundo objetivo, a partir de significados simbólicos socialmente aceitos, tendemos a
considerar que tais significados representam aquilo que realmente somos. E mais: que
tal modelo de ação é necessário à nossa subjetividade. Há, sem dúvida, relação entre a
ação e o sujeito, mas os elos que os unem são tortuosos, indiretos e ambíguos; nem
sempre a nossa análise nos levará, sem percalços e sem enganos, de uma ao outro.
Se não pudemos desenvolver um método rigorosamente estruturalista, no qual a
evidência do sujeito pudesse emergir sem nenhuma interferência do pesquisador, como

52
Ver caps. XI e XV de Antropologia Estrutural., Lévi-Strauss, 1989.

164
num modelo matemático, temos a esperança de, através das duas instâncias propostas,
ter para aqui trazido uma evidência da distância entre a estrutura e o discurso.
Talvez devêssemos passar a falar em ações e práticas sociais masculinas e
femininas, que tanto podem ser desempenhadas por homens quanto por mulheres. A
diferença estará na significação; enquanto ‘trabalhar’ é masculino, possui significados
diferentes para homens e para mulheres; enquanto ‘comprar’ é feminino, possui
igualmente implicações simbólicas diferentes para ambos. A ação social
simbolicamente masculina do trabalho, se resolve, em parte, o problema da liberdade da
mulher, cria outros problemas. Acostumados a conquistar, os homens temem a mulher
conquistadora, ignorando que o fato de ela ser uma vencedora profissional não implica
perda da feminilidade. Nesse período de investigação junto às mulheres, também
percebemos que a invasão do mercado de trabalho pelas mulheres não é menos
problemática para os homens do que a invasão masculina do supermercado o é para as
mulheres. Se as mulheres “fazem tudo errado”, homens “compram tudo errado” e não
sabem “arrumar a cozinha”. As mulheres esperam que os homens sejam tão submissos
nas compras e no lar quanto os homens esperam que elas sejam submissas no trabalho.
Provocadas por uma nossa proposição de uma hipotética revolução masculinista, onde
homens reivindicariam o direito ao avental, as entrevistadas demonstraram surpresa;
reclamam, sim, da cooperação masculina nos afazeres domésticos, mas desde que em
uma posição subalterna e controlada; elas não demonstraram assimilar uma hipotética
troca de posições.

Conclusão: comer e ser comido


Temos, nós os ocidentais, cinco mil anos de historia e de cultura masculinas.
Tempo suficiente para esquecer e para substituir a Grande Deusa-Mãe do período
Neolítico, cujos seios fartos, ventre generoso e vulva inchada, representava o grande
mistério da fertilidade. Mas, quanto mais as escavações, como as empreendidas pelo
arqueólogo Ian Hodder (2005) no sítio de Çatalhöyük, na região central da atual
Turquia, trazem à tona as estatuetas da Grande Mãe, mais temos motivos para admitir
que, não se sabe bem através de que processos, a generosidade opulenta e nada graciosa
(para os padrões contemporâneos de beleza) foi remetida para os confins do mito,
erguendo-se em seu lugar o Falo de Deus.

165
Nossa experiência sugere uma mulher que, no trato dos objetos de consumo,
elabora uma proposta simbólica de si mesma, projetando-a ao mundo objetivo, em um
processo de inserção de significação como que se preparando para ser devorada. Seu o
ato de “sacrifício” não estaria, neste caso, apenas no esforço de ir às compras (até por
que, da forma como estruturamos nossa pesquisa, nem sempre o ato é um esforço) ou
mesmo na dedicação através da dação dos objetos adquiridos (posto que nem sempre
ela, no nosso caso, os dá), mas na (re)elaboração de si como sujeito, nunca como coisa,
constituindo uma espécie de valor de si, na generosidade opulenta de uma Deusa-Mãe.
Não nos pareceram atos de “sacrifício”, no sentido de “abrir mão”, de algo que lhe
pertence, como tempo e/ou dinheiro, assim como o sacrificante hebreu oferece o melhor
do seu rebanho à divindade fálica; antes, seu sacrifício melhor seria comparado ao de
Bataille; um consumo sem lucro. É bem verdade que, em algumas respostas a certos
itens do questionário e, sobretudo, em algumas entrevistas pudemos perceber um certo
sentimento de espera de reconhecimento e aprovação, como se a compra e a dádiva do
objeto em intenção dos filhos e do marido devesse implicar uma retribuição pelo
“sacrifício” de despender tempo e dinheiro dedicado a outrem. Mas tal não foi a tônica
predominante. Trata-se, no caso estudado, de um processo ‘inútil’, com o sentido de
negação utilitária, não em relação ao bem comprado e dado, posto que quase sempre se
mostra útil, mas de não esperar retorno útil pelo “sacrifício”. Enquanto adquire coisas
para si e para os outros, engorda de significação, para em seguida entrega-las como
conteúdo de si mesma. É um processo diferente daquele que opera o sujeito-coisa, cujo
retorno ao si-mesmo deve ser buscado no mesmo ato de “sacrifício”, no trabalho
exigido pelo deus fálico.

Não encontramos indícios diretos e inequívocos de um novo sujeito, nos moldes


sugeridos por Alain Touraine, mas nosso método revelou-se capaz de fazer percebê-los
nas entrelinhas, exatamente na indecisão, na culpa e na ambigüidade da conduta da
mulher nestes nossos tempos; na divisão do sujeito-mulher. A mulher rompeu os
costumes, sabe disso, mas ainda não está muito certa das conseqüências do que anda
fazendo, do mesmo modo como não sabia das conseqüências de consumir – e de
conduzir seu parceiro a também fazê-lo – o fruto da árvore do conhecimento do bem e
do mal.
Embora a sexualidade seja uma construção psíquica e social, ela está demais
assentada na biologia da espécie para poder ser alterada em alguns milênios. Nestes dois

166
mil anos da era cristã, observamos uma substancial mudança da sujeição feminina, mas
ela se restringe à ordem sociológica. E a constatação mais valiosa que podemos extrair
dessa transformação é que a sujeição social e a sujeição sexual, embora íntimas e
inerentes, são dicotomizáveis. Se, de um lado, o sujeito luta com a pulsão inconsciente e
libidinosa; de outro, luta com o mundo objetivo que proíbe, cerceia e cria tabus. A única
arma do sujeito é essa sua limitada racionalidade que o propende a ousar e tomar o
destino com as próprias mãos, através do discernimento do bem e do mal. A ousadia do
sujeito-mulher, nos últimos cem anos não o libertou – e nem poderia fazê-lo – da
maternidade; em lugar disso explicitou a sua divisão. De um lado, inventou um mercado
profissional, cuja natureza tangível acabou por atrair a maior parte das atenções do
feminismo e de sua resistência; neste campo, ameaçadoramente imita os homens e
produz, como se isso fosse o mais importante. De outro, consome e engorda,
preservando seus generosos seios ativos e seu ventre receptivo, cujo volume o mito da
beleza quer esconder. Neste outro campo, oferta-se em holocausto, mantendo a
continuidade da espécie e o caminho aberto para retorno à Deusa-Mãe.

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176
177
Anexo A

176
Anexo A

As páginas que se seguem constituem-se do questionário-base que adotamos em


nossa pesquisa. O leitor notará que se trata de um instrumento de coleta de dados de 46
questões, quando, no Anexo B, apresentamos a apuração e a consolidação dos dados de
apenas 17 questões, constitutivas da primeira parte do documento. Essa situação requer
algumas explicações.
Quando do início de nossos trabalhos de campo, já tínhamos em mente
empreender uma investigação empírica do sujeito. A decisão sobre um instrumento para
tal fim, acabou por revelar uma considerável dificuldade metodológica, uma vez que
não dispúnhamos de uma referência anterior especifica para este caso, em nossa
disciplina. Tínhamos que inventar um e, de certa forma, fomos buscar inspiração na
metodologia etnográfica utilizada por Daniel Miller, conforme expusemos amplamente
no corpo da tese. Escolhemos então como meio de abordagem um questionário, que
forneceria, como de fato forneceu, as bases para entrevistas pessoais. Ocorre que, dos
nossos estudos teóricos, surgiram opções investigativas para o sistema de consumo e
uso de objetos com meio de comunicação e organização social, motivo pelo qual – além
da primeira parte do questionário, que visa a obtenção de dados objetivos sobre os
índices de zelo, que admitimos constituir o signo indicador de sujeição, através de atos
de compra – acrescentamos a segunda parte com a intenção muito ambiciosa de inferir
medidas de comunicação, modernidade, liberdade de decisão e estilo de vida. Acabamos
constatando que tal empreendimento nos exigiria um esforço desmedido, face ao nosso
projeto, o tempo e os recursos materiais e financeiros de que dispúnhamos,
permanecendo apenas com os propósitos iniciais de investigação do sujeito, mais
motivadora, embora se nos tenha apresentado como uma temática árida e de difícil
objetivação. Não foi um trabalho perdido; a maior dos dados da segunda parte chegaram
a ser tabulados e serviram para ponderar a apuração dos resultados da primeira parte,
posto que, nesta segunda, inserimos questões – as de números 32 a 40 – exatamente
para esse fim. Todavia, optamos por não expor tais resultados, uma vez que são dados
parciais, para os quais acabamos por não desenvolver nem uma preparação teórica nem
uma metodologia especifica.

177
Muito embora o uso de métodos quantitativos não seja comum em nossa
disciplina e nem tenha constituído nossa única fonte de informações, julgamos
conveniente oferecer ao leitor algumas explicações sobre conceitos e critérios de
amostragem. Trata-se, a nossa, de uma amostragem não-probabilística, usada, dentre
outras finalidades, para experiências e testes. Tal amostragem é classificada como
intencional, posto definida por avaliações preestabelecidas pelo pesquisador e aplicável
a elementos do quais são sabidas as especificações. No nosso caso, tínhamos uma
definição precisa de população (pessoas do sexo feminino, casadas ou ex-casadas, mães
e profissionais), em situações específicas de compra de objetos. Tal precisão é
considerada suficiente para que opere com segurança com uma pequena amostra. Na
hipótese de desejarmos alcançar tal perfil sem uma prévia delimitação de amostra, ou
seja, uma amostra probabilística aleatória, teríamos que definir um intervalo de
confiança, um percentual admitido de erro e ouvir um número muito maior de pessoas.1
Conforme já exposto no corpo do texto principal desta tese, excluímos da
avaliação qualquer dado sobre estratificação social e classificação sócio-econômica. A
decisão foi decorrente de estarmos sobretudo interessados em uma questão
essencialmente antropológica e se revelou adequada; nas entrevistas pessoais tivemos
acesso a indicadores de classe sócio-econômica das respondentes e vimos que tais dados
não eram efetivamente necessários. Não utilizamos esses indicadores em nenhuma
avaliação e procuramos afastá-los dos juízos heurísticos do pesquisador.
Foram ouvidas 31 pessoas, das quais julgamos conveniente excluir 4, por falta
de respostas a algumas questões, prejudicando a sua tabulação com segurança.
Apuramos então as informações de 27 respondentes, das quais entrevistamos 10
pessoalmente ou por correspondência eletrônica, dentre as que se dispuseram para tal

1
Nesse caso, a amostra seria dada pela fórmula n = 4 PQ

para um intervalo de confiança de 95%,


onde:
n = número de elementos da amostra
P = proporção de ocorrência da variável em estudo
Q = proporção de não-ocorrência da variável em estudo,
sendo que P+Q=1
e = erro admitido (quanto à precisão da amostra), variando, em geral,
entre 1% e 10%, sendo o mais usual 5%.

178
fim. Os critérios de apuração e tabulação do questionário e das entrevistas estão
contidos no Anexo B.

179
Anexo B
Anexo B

As páginas que se seguem constituem-se de planilhas de trabalho adotadas para


apurar e para consolidar dados quantitativos atribuídos às respostas do questionário-
base (Anexo A), usado como instrumento de coleta de informações de nossa pesquisa.
A primeira planilha apresenta o resultado sintetizado e as seguintes correspondem à
tabulação de cada uma das respondentes de questionários que, após análise,
apresentaram dados completos e puderam ser estudados. Descrevemos, a seguir, os
critérios e premissas adotados para a pontuação dos questionários e apuração de
resultados. Das 27 respondentes que tiveram seus questionários tabulados, 21
identificaram-se completamente e 13 dispuseram-se à entrevista. Embora garantíssemos
sigilo quanto à identidade das respondentes, algumas preferiram não ser identificadas e
estão assinaladas pela sigla SI (Sem Identificação); são as últimas cujos questionários
foram tabulados (últimas planilhas).
Um teste piloto foi realizado com duas respondentes visando à aferição da sua
consistência e serviu de base para que se efetua-se algumas pequenas alterações. O
questionário se mostrou um instrumento robusto, oferecendo a devida segurança ao seu
operador. A maioria dos questionários com retorno (já esclarecemos que este foi de
menos de dez por cento) proveio de alunas e de mães e esposas de alunos e alunas de
pós-graduação do Curso de Gestão de Recursos Humanos, conduzido pelo
Departamento de Administração da Universidade Federal Fluminense.

Nenhuma das entrevistadas julgou necessário alterar respostas já dadas no


questionário e nem precisou retificar as inferências do pesquisador que lhes foram
apresentadas. Nenhuma das respondentes reclamou de insuficiência de itens de resposta.
Muito embora essa situação possa ser considerada um indicador da consistência da
metodologia, era necessário muito cuidado, uma vez que não estávamos a empreender
uma pesquisa de opiniões. Em alguns poucos casos, tivemos que esclarecer que não se
tratava de uma pesquisa psicológica ou psicanalítica; estamos certos de que muitas
entrevistadas sentiram-se atingidas em aspectos relativos à sua própria subjetividade e,
de alguma forma, as questões do questionário trouxeram-lhe alguma indagação à

199
consciência. Isso foi motivo de júbilo para o pesquisador, posto que era um sinal da
eficácia de um instrumento do qual, inicialmente, nutríamos alguma insegurança.
Conforme já exposto no texto principal, adotamos uma noção de ‘produtema’,
do que evitamos uma conceituação, apenas tomando-o por similaridade a ‘fonema’ e a
‘mitema’, termos usuais e conhecidos em nossa disciplina. Na tabulação dos dados
procuramos inferir significação de um sistema de produtemas, explicitados nos itens de
escolha das questões, onde, como se pode ver, permite-se o uso de mais de um item para
a resposta. Aliás, o pesquisador desejava mesmo que a respondente usasse mais de um
produtema para responder. Questionários ricos no uso de mais de um item de resposta,
como o da senhora MBCC, proporcionaram índices mais elevados.
Todas as questões possuíam sete campos, correspondentes aos índices de zelo,
sendo: três (sabão em pó, vassoura e jarra para flores) para a casa; dois (batom e
agenda) para si mesma; um (sapato) para filhos e um (camisa) para o marido. Os itens
foram escolhidos, além dos aspectos metodológicos e simbólicos já expostos, por darem
maior segurança ao pesquisador quanto à sua efetiva compra pelas integrantes da
amostra. Foram escolhidos mais de um item para os índices ‘casa’ e ‘si mesma’ para
que se obtivesse medidas mais seguras. Consideramos que um item para cada ente,
marido ou filho, fosse suficiente, pois não acreditávamos que os produtemas
significassem motivações, sensações, razões e outros atributos muito variáveis em
relação a outros itens, a não ser bens e serviços complexos como escola, moradia,
automóveis, que dificultariam a aplicação do nosso método. Por outro lado, dado o
nosso enfoque na mulher-sujeito, consideramos que esta revelaria julgamentos
diferentes para diferentes itens de ‘casa’ e de ‘si mesma’, neste caso, em relação ao item
pessoal (o batom) e ao profissional (a agenda). Observamos anteriormente que o item
‘agenda’ não mostrou a mesma consistência, para fins de aferição, dos demais, mas não
prejudicou os resultados. Com a pesquisa em andamento, notamos que não eram
necessários dois itens para o cuidado higiênicos da casa, o sabão e a vassoura, mas a
alteração acarretaria contratempos para ajustes e em nada prejudicou o trabalho. As
avaliações relativas ao sabão em pó se mostraram bem mais facilitadas; as respondentes
atenderam ao item com muito mais precisão. Em pelo menos um caso, a respondente
deixou bastante claro, apenas pelo questionário, que “odiava vassoura”, o que não
deixou de ser um bom indicador.
As questões tiveram os seus campos numerados de I a VII – que são os números
que vemos no alto de cada planilha de cada respondente – tendo obviamente os índices

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de zelo em relação à casa e a si mesma que ser ponderados, pois seriam inferidos de
mais de um item de compra. Cada questionário teve as suas respostas valoradas de 1 a 5
a partir da heurística do pesquisador, obedecendo porém a critérios muito rigorosos, a
fim de reduzir o que chamamos de “risco Lévi-Strauss”. Em seguida, os valores foram
passados para cada uma das planilhas correspondentes às respondentes e ponderados
nas respectivas colunas de zelo. Depois de totalizados nas linhas abaixo da planilha, os
valores foram novamente ponderados, desta vez pelo número máximo de pontos (85)
que um item poderia obter, apurando-se assim o índice propriamente, na última linha de
cada planilha.
Por fim, os índices de cada questionário foram transplantados para a planilha
sintética, para que se apurassem os índices totais, que forneceram a base quantitativa da
pesquisa. Evitamos a aplicação de qualquer método estatístico de inferência por não se
tratar, como esclarecemos no Anexo A, de uma amostra probabilística, como também
pelo fato de o pesquisador já acumular experiência com métodos quantitativos e
conhecer os riscos de inferências a partir de índices de correlação estatística. Em lugar
disso, dirigimo-nos às respondentes que se dispuseram a responder a entrevistas,
consubstanciando a parte etnográfica da experiência.
A valoração das respostas esteve longe de ser uma tarefa simples. As respostas
às questões 3, 7 e 8 tinham que ser ponderadas pelas respostas das questões 9 e 10, pois
não se pode atribuir juízos heurísticos sobre tempo e impulso inicial sem informações
adicionais como, no caso, critérios sociais, psicológicos e econômicos de escolha e
decisão. As respostas às questões 12 e 15 também tiveram que ser ponderadas pelas
respostas 9, 10, 13 e 14. A valoração, além disso, tinha que levar em consideração,
simultaneamente, uma medida linear de ponderação para todas as respostas de todos os
questionários e uma medida de ponderação em relação ao conjunto de respostas de uma
mesma respondente, além de ponderações específicas entre as opções e os índices de
zelo aos quais se referia. Assim, foi necessário ter critérios firmes para um modelo
mental de quantificação universal, por exemplo, “fazer economia” denota pouco zelo
em relação ao beneficiário e, ao mesmo tempo, ter sensibilidade para ponderar respostas
com outras do mesmo questionário ou da própria questão e em relação ao beneficiário a
que se referia a ação. Por exemplo, arrepender-se de ter feito uma compra por falta de
uso por parte do beneficiário enseja juízos diferentes se o beneficiário for um filho ou a
própria respondente; desejar estar acompanhada do marido na compra de uma jarra para
flores enseja juízos diferentes e denota zelos diferentes em relação à casa e ao marido.

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Não fosse a larga experiência do pesquisador em correção de provas dissertativas de
alunos de graduação, o método estaria inviabilizado.
O método de quantificação heurística para valores qualitativos tem boa aceitação
e é bastante utilizado em pesquisas e modelos de decisão em ciências sociais aplicadas,
pela facilidade de objetivação das variáveis observados que ele oferece. Sempre que
possível, o procedimento inclui o julgamento efetuado por diversos analistas sobre a
mesma matéria, seguindo-se reavaliações após cada analista ter conhecimento das
avaliações e das justificativas dos outros. Assim, através da racionalidade inter-
subjetiva, reduz-se as distorções e o risco Lévi-Strauss. Infelizmente, não podíamos
contar com esse recurso.

Embora não tenhamos adotado medidas de correlação estatística, podemos


assegurar que todos os índices apurados são consistentes – mesmo aqueles apurados
pelas respostas da senhora MaTrk, todos abaixo de 0,5. Foi perfeitamente possível
perceber respondentes espontâneas, dispostas a informar o máximo e, em oposição,
respondentes tímidas ou que pareciam estar reagindo ao que podem ter percebido como
uma certa “invasão de privacidade”. Mas, em última análise, perdemos poucos
questionários por insuficiência de dados. Algumas inconsistências aritméticas notadas
na questão 2, que diz respeito ao percentual de gastos sobre a renda, não
comprometeram a análise das informações qualitativas ali contidas. Quanto às falhas do
pesquisador na atribuição de valores às respostas, esperamos que tenham ficado
diluídas, juntamente com seus acertos, na totalização dos dados agregados; o método foi
concebido levando em conta que certamente estas falhas aconteceriam. Admitimos que
inferências adicionais possam ser extraídas dos resultados apurados pelo questionário
nas relações da amostra com itens específicos, tais como vassouras e batons, mas
optamos por evitá-las para não incorrer em mais riscos além daqueles a que já fomos
forçados.
Quanto às entrevistas pessoais, procurou-se estimular as respondentes, deixando-
as falar com o máximo de liberdade possível sobre questões como filhos, casamento e
trabalho, de onde extraíamos informações complementares para novas perguntas e
inferências. Nem sempre expusemos nossas inferências e juízos extraídos das respostas
do questionário para evitar que as respondentes criassem defesas em relação ao que
pensamos serem respostas espontâneas. As melhores entrevistas obtivemos por
correspondência eletrônica, provavelmente por maior liberdade de expressão e tempo

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disponível por parte das respondentes. Não somos capazes de identificar pessoalmente
ou de correlacionar a pessoa à respondente em diversos casos. A falta de contato
pessoal, por um lado, impediu avaliar reações corporais e manifestações emocionais,
mas, por outro, garantiu maior sigilo e espontaneidade nas respostas.
As entrevistas foram de muito valor para a pesquisa, uma vez que, através do
questionário, as relações das respondentes com o trabalho somente poderiam ser
inferidas através do item funcional ‘agenda’, que decididamente não oferecia maiores
possibilidades de inferência. Na verdade, o questionário fora concebido para servir de
fonte de informações para inferências relativas ao sistema de consumo. Felizmente,
graças à reflexão crítica da pesquisa de Daniel Miller quanto aos papéis e as posições
simbólicas do homem e da mulher, estávamos atentos à questão da relação da mulher
com o trabalho. A exploração do tema teve boa receptividade entre as entrevistadas,
pois se trata de uma evidente questão feminista. Nesse sentido, muito contribuiu a nossa
participação, no período de nossa pesquisa, no I Seminário Internacional de Estudos
Feministas, onde estivemos em companhia do professor orientador desta tese, onde
ambos expusemos trabalhos, aliás, com boa recptividade.

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