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CAPÍTULO

(SOBRE FANTASMAS)
”O homem é o sonho de uma sombra.”
‘σκιᾶς ὄναρ ἄνθρωπος.’
(Píndaro - 8ª Pítica)

Preâmbulo polissêmico: ser - metafísica - ôntico - ontológico


1. A frase da poesia de Píndaro ocupa pontos coincidentes com as teorias heideggerianas e
lacanianas ôntico/otológicas do sujeito/ser: a fantasmagoria do sujeito/ser dito-por-si-mesmo
(λεγὤν εγώγε). Contamos histórias sobre si mesmos. Parafraseando Lacan, “o ser falante (o que
é um pleonasmo) é porque ele é falante que “é ser”; porque só há ser na linguagem… Então, o
falante1 (o falante que vocês são - pelo menos suponho), se acha ser. Em muitos casos (pelo
menos nesse), basta se achar para ser de algum modo. O mínimo que se pode dizer, é que tudo
o que se edifica entre esses animais chamados humanos é construído; fabricado; fundado sobre
a linguagem. Não quer dizer que os outros animais sociais - vocês já ouviram falar de formigas
, abelhas e outros exemplares ilustres, sobre os quais investigamos - porque nós seres de
linguagem passamos tempo investigando - têm alguma-coisa, que não se sabe o que é, que
chamamos de instinto: alguma coisa que os mantêm juntos. E parece difícil não percebermos
que o que faz com que os seres humanos fiquem juntos também tem relação com a linguagem.
Eu chamo de discurso esse alguma-coisa que se fixa na linguagem; se cristaliza; que usa
recursos da linguagem, que são, naturalmente, maiores - são muitos mais recursos - que usam
isso para que o elo social entre falantes funcione”. (J. Lacan - fonte: youtube2 - tradução
adaptada de vídeo).
“Eu” só existo na medida em que discurso. “Eu-existe” porque é sujeito de linguagem;
sujeito de discurso e enquanto se diz. “Eu-existe”, talvez como um erro de expressão; uma
fratura; expresso como que enigmático, confrontando o coloquial “eu existo”. Em que medida o
primeiro é, por constituição, diferente do segundo? Em que medida o primeiro e o segundo
podem diferir somente de “eu/existo”. Em que medida “eu” pode existir? “Eu”poderia, de

1
Lacan fala sobre Discurso, Ser falante e Elo social.
Trecho da conferência de 13 de outubro de 1972, na Universidade Católica de Louvain.
Filme de Françoise Wolff
2
εγώγε

1.
alguma forma, “euzar” sem “existir”? “Eu” pode ser objeto? Se “eu” “existo”, “eu” se coloca
como objeto de “existir” para “ser” (observe as variáveis dentro dessa linguagem nossa). Se
“eu” para “euzar” - para fazer-me verbo - para fazer-me ato/fato - necessita de outro verbo -
como “existir” - “eu” se faz objeto de “existir”. “Eu” não existe como verbo, o que até se
confirma pelo fato de não existir o verbo “euzar”. (Contudo, toda linguagem aponta algo no
“mundo”). “Eu” somente “euzo” porque “existo”. “Eu” não posso “euzar”, simplesmente.
“Euzar”, simbolicamente existe, imaginariamente existe, mas na realidade ocorre como um
dizer que “eu existe”, contudo… é dependente de um certo “existir” como “haver”. E o que vem
a ser “existir”? “Existir” como ato/fato, dentro da linguagem, causa uma “monosecção”.
Entenda: bissecção é divisão em dois; “monosecção” 3 é dividir por um. Algo que é dividir si por
si mesmo, que tem como quociente si mesmo. O “existir” não ocorre como fato somente em
“eu”… há o quê existe além de “eu”: uma cadeira existe é não é “eu”; um bloco existe é não é
“eu”. Entretanto, a cadeira, se existe, depende de “eu” existir. O bloco existe, por que depende
de “eu” existir. A cadeira, o bloco, dito, como expresso em meu discurso, só existem porque
“eu-existe”. Assim como “eu” só existe porque discurso. A linguagem cria um vínculo entre um
“se ver” como “si” - e como um “si” visto, desprende-se um “haver-se”, como objeto (onde
objeto só existe como um haver) -; se “ver como si” transforma “si” em objeto na forma de
“eu”, que objetificado ganha “existir”. É isso que “ex-sistir” se afirma. Desta forma “eu” (εγωγε
- eu mesmo - pelo menos eu) ganha “sistência” fora de “seer” 4. Dentro do Estádio do Espelho
(como é formada a identidade como metáfora de um “si mesmo”) “sistência” é o haver/existir.
Os objetos do mundo passam a “ser” (como “sistência”; como si-mesmo como objeto; no
mesmo pulso do ser como objeto) “ex-sistindo” como si, em caso genitivo e dativo.
2. No esteio de Heidegger: “O homem tem história, porque só ele pode ser histórico, isto
é, só ele pode se encontrar naquele âmbito aberto das metas, critérios, impulsos e poderes, na
medida em que esse âmbito o suporta e subsiste sob o modo de configuração, direção, ação,
resolução e padecimento. Só o homem é histórico - como aquele ente que, exposto ao ente na
totalidade, se liberta para o cerne da necessidade na confrontação com esse ente. Todo ente não
humano é a-histórico, mas pode ser histórico em um sentido derivado” (Princípio Fundamentais
da Filosofia - Kindle - posição 882 - grifo meu).
3. Três mesmas coisas ditas de modos diferentes. A historiedade, bem como historicidade
do animal-humano, é condicionada à capacidade de se dizer - a si-mesmo 5 - dentro de um “elo
social”. Ser é ser falante. É “sujeito/ser” porque - dentro de um contexto social no qual se inclui;

3
Sujeito/ser
4
Seer, como ser originário em português arcaico. O seer originário, como abertura, como o vir-a-
ser.
5
Monosecção é um neologismo. Matematicamente, por óbvio é possível dividir. Contudo, nunca
foi nominada a divisão possível por um (1). Assim, nomino esse tipo de divisão como
monosecção.

2.
dentro de um acordo-social (no qual se usa a linguagem como elo) como instinto ou como
“alguma coisa”; dentro de um mundo de poderes (que se afirma pela literalidade); dentro de um
mundo onde só se pode porque se é dito (enquanto sujeito do ato, sujeito das metas e dos
critérios); dentro de um mundo em que se sucede ou se padece porque se diz ser - o ente,
exposto a essa totalidade, confrota-se a si-mesmo, como sujeito, do que se “pode” dizer ser.
4. Colocar-se, a si-mesmo, como sujeito dessas metas, critérios, impulsos e poderes,
dentro de um historicidade (ser-histórico - zeitlichkeith), depende, fundamentalmente de poder-
se dizer-se ser. Um animal não-humano não encontra essa metas, critérios, impulsos e poderes.
Não pode ser porque não é o que diz. Simplesmente não pode “ser” como sujeito histórico.
Ocupa uma existência que chamarei unicamente de ὤν.
5. É fundamental tal distinção. Quando dizemos que outro animal (não-humano) “é”,
falhamos. Não porque sejamos especiais de qualquer forma como animais-humanos, mas esta é
uma diferença fundamental. Um erro que é causado pela apropriação da linguagem (no caso
exclusivamente genitivo) dentro de uma razão ôntico/ontológica. Talvez só ôntica porque é
ontológica (talvez). Uma falha, talvez, unicamente didática. Dizer-se a si-mesmo é característica
animalesca do animal humano. Algo que diz “ser”, “sou”, “existo”, só “é” porque é humano.
Não há especialidade. A natureza não privilegia essa especialidade. Essa especialidade, pelo
contrário, é que categoriza a natureza e mesmo que se torne um fato/ato evolutivamente muito
bem sucedido, não é prioridade para a mesma. Não há supremacia, a não ser na linguagem. O
“ser” que tentamos empregar às demais ditas “espécies” não é só fator de categorização, no
entanto. É só ato de estabelecimento de metas, impulsos, critérios e poderes dentro de uma
razão. Não há lógica no ato animal não-humano. O logos (λόγος), é exclusivamente nosso.
6. Sendo assim, nesse capítulo, iremos assumir que a linguagem constrói “seres”. E na
impossibilidade de não existir “ser” na linguagem, com a assunção de que a linguagem constrói
mundos, não por hipótese, mas pelo simples fato de ser dito, admitiremos que existem
fantasmas.

Sobre os Mundos

1. Veja que a linguagem tem esse mágico poder - poder que só ela tem - de descrever mundos.
Ansiamos por descrever algo. Apontamos o tempo todo! O que ela fez, o que ele disse… quanto
custou… o quê foi dito. E o quê foi dito é “o” pior ainda. É dizer o mundo que o outro disse
“ser” o mundo. Há um exercício feito por Wittgenstein que consiste em imaginar uma pessoa,
desprovida ainda de linguagem, construindo um muro. Um pedreiro e seu assistente. Ele aponta
o que precisa. Um tijolo, argamassa, areia, pá, etc… Esse apontar depois se transforma em
dizer. Um dizer como “aqui tijolo”, ou “tijolo cá”, e assim por diante. O que a linguagem
deveria fazer seria isso: apontar. Contudo quando usamos esse símbolos linguísticos, essa
figuras, esses conceitos, não apontamos mais diretamente para qualquer objeto. Cadeira, por
exemplo, como conceito, não aponta nenhum objeto do mundo real. É uma para mim e outra

3.
para você. E eis o dizer do dizer-quê outro disse. A lógica da linguagem, para o primeiro
Wittgenstein, seria o apontamento do símbolo linguístico, a palavra, para um objeto na
realidade. Cada conceito seria uma seta única para um único objeto na realidade. Contudo, o
dizer o mundo, embora continue apontando objetos da realidade, criam mundo absolutamente
diversos. Diversos não pelo fato de mesmos nomes apontarem objetos diferentes em cada
“mundo”, mas pelo fato de que a linguagem constrói conceitos e conceitos edificam mundos.
2. Existe uma história de que quando os europeus incialmente chegaram ao Caribe com
suas naus, após ancorarem-nas, em botes desceram às praias. Conta essa história que os índios
caribenhos na praia, mesmo tendo ao alcance da vista as naus, não as conseguiam ver. Fitavam
o horizonte e embora vissem os marinheiros chegando em botes ao seu encontro na praia, não
conseguiam ver as embarcações maiores, porque nuca as tinham visto, ou imaginado. O
conceito de uma embarcação grande, que singrava os mares transportando pessoas não era parte
do seu vocabulário. Desta forma, semanas se passaram até que um dos nativos, após insistentes
apontamentos desse objetos estranho no horizonte do mar, fizesse com que os outros
percebessem o que era evidente. Após várias semanas, tão somente, os nativos viram as naus
que desde o início eram visíveis.
3. Quanto a linguagem pode construir? Quanto deixamos de ver por conta dos contos da
linguagem. Era fundamental esse preâmbulo para poder falar de tudo aquilo que a linguagem dá
conta, mas que possibilita a existência de um não-existir: nesse caso, os fantasmas. Então, a
partir de agora, daremos conta de um fato que é verificado, que já foi registrado, cuja linguagem
aponta dentro de um mundo, tanto como fatos que não têm explicação, como os que não têm
explicação “ainda”, mas que são registrados e registráveis. Assumiremos, a partir de agora, num
exercício que só a própria linguagem permite, que fantasmas existem.

Sobre Fantasmas

1. Ouve-se seus passos, mesmo sem vê-los. Uma tábua estala, ou um piso crepita como ao tocar
de uma sola, ou salto: 1ª conclusão: fantasmas têm peso. Peso suficiente para causar um estalo
em um assoalho de madeira. Há uma série de inumeráveis possibilidades a serem calculadas,
avaliando-se desde a natureza da madeira até a distância entre vãos, bem como a espessura das
vigas. Contudo, o que nos é importante é que para haver o estalo da madeira por aplicação de
força perpendicular na mesma e não em virtude da dilatação ou contração da fibra das mesmas,
deve-se sempre levar em conta que a maioria dos assoalhos desse material suporta o mínimo de
150 kg de peso sobre si. Ou seja, num vão entre paredes de 4,50 metros, seria suficiente uma
viga de madeira de 7,5 cm x 15 cm x 5 m de dimensões para suportar esse peso. Isso significa
que, levando-se em consideração essas mínimas dimensões, um corpo de até 150 kg é suportado
por um piso de assoalho sem que o mesmo se quebre. Desta forma, podemos assumir que um
fantasma não pese mais do que um ser humano. Assumindo-se que um piso de madeira seja
muito mais frágil que uma lage de material, podemos desde logo definir que os fantasmas não

4.
devem exceder o peso de um ser humano. Considerando-se, em seguida, que o peso médio de
um ser humano é de 59,8 kg, no caso das mulheres e 70,6 kg no caso dos homens, podemos
concluir que o peso médio de um fantasma não exceda o peso médio de um humano. Levando-
se em consideração que peso é força e o estalar da madeira exige uma força mínima empregada
sobre si para a ocorrência do evento “estalar”, infere-se que o peso desse fantasma deve
obedecer à equação de que descreve o peso como força, como sendo o produto da massa pela
aceleração da gravidade. Ou seja, a massa tem que ser superior a zero e no mínimo igual à
massa mínima necessária para produzir o rangido. O rangido é resultado do cisalhamento da
madeira por compressão tangencial vertical, no qual há deslocamento entre o plano do estado
inicial para um secundário, suficiente para gerar atrito. Atrito seja entre outras tábuas ou pressão
sobre os pregos. Outro inumeráveis fatores podem contribuir para o ranger da madeira por
compressão, dentro os quais a idade da madeira, o trabalho já apresentado pelo conjunto de
tábuas em um assoalho, o grau de conservação do mesmo, etc. Contudo é possível se fixar um
mínimo excluindo-se ainda as hipóteses em que o ranger não seja causado por força, externa ao
conjunto, empregada. Em um conjunto de tábuas empenadas é de se considerar que o
movimento de qualquer uma delas se dê por força mínima, também diferente de zero. Daí é
possível considerar a força necessária a ser empregada para que uma tábua qualquer, com uma
curvatura mínima, se mova. Essa força deverá equivaler ao peso mínimo. Se a tábua curvada
minimamente estivesse solta, considerando-se que seja uma tábua. Uma tábua curva de peso P,
que tenha qualquer força empregada exatamente em seu centro, não se move. Na medida em
que nos afastamos do centro a quantidade de força necessária para o movimento da tábua vai
diminuido proporcionalmente à sua distância do centro. Ou seja, essa força respeita a equação
que define o Momento na física newtoniana. Assim temos que a força necessária menor será a
empregada em alguma das extremidades de uma tábua de assoalho. A força necessária
empregada a cada milimetro em que nos afastamos do centro é menor, para fazer um
movimento mínimo. Quanto mais próximos do chão pressionarmos o ponto, maior terá de ser a
força empregada, pois o ponto de contato com o chão acaba se aproximando do ponto em que a
força é empregada, diminuindo o momento e aumentando o peso a ser movido no outro lado da
madeira. Com isso, pode-se deduzir que em estado de repouso o peso a ser movido é igual à
metade do peso da madeira em sentido longitudinal. Isso porque ao ser rolada,
proporcionalmente se diminui o momento, e consequentemente se aumenta a força a ser
empregada no instante inicial porque também o peso a ser movido do outro lado da tábua
também aumenta por ter sido aumentado, igualmente, o tamanho do ponto de contato com o
chão. O chão define quanto peso temos que empregar. Assim conseguiremos calcular a força
mínima, através do momento na maior distância do centro. Considerando-se que uma tábua de
assoalho mínima tem 1,5 cm de espessura, 7 cm de largura e 130 cm de comprimento, podemos
inferir que o peso médio de uma tábua mínima, do material mais leve, é de 1,300 kgf ou N.
Consideraremos que o peso a ser movido é de metade, ou seja, 0,650 kgf ou N. Considerando-se
a distância do centro (do ponto de contato da tábua curva com o solo como ponto de

5.
alavancagem) é de 3,5 cm, pode-se calcular que o peso mínimo (ou força mínima) a ser
empregado é na extremidade da tábua, inferimos que a distância é de 3,5 cm. Assim,
calculando-se que o sistema em equilíbrio tem 650 gramas para cada lado, o peso mínimo a ser
empregado para o movimento inicial da tábua, no extremo da tábua, deve mover 650 gramas.
Aplicando-se a equação que define o momento ao presente sistema, podemos concluir que o
peso mínimo a ser empregado para o mínimo movimento da tábua é de 180 gramas. Disso tudo
conclui-se que o peso mínimo de um fantasma deve ser de 180 gramas, não devendo pesar mais
de 150 kg. Conclusão esta suficiente para o que se propõe até aqui. Passamos agora a outras
considerações.
2. O som de um bater de pés contra qualquer superfície que seja, assume também que essa
estrutura fantasmagórica tenha um peso. O som produzido é energia. Energia que no nosso
mundo é fruto de conversão. Um corpo colidindo com outro deve gerar energia suficiente para
que do choque parte da energia do movimento seja convertida em energia sonora. Para que o
som possa por nós, humanos, ser ouvido tem de estar numa frequência entre 20 Hz e 20 kHz,
sendo infrassons aqueles com frequência menor à primeira e ultrassons aqueles com frequência
superior à segunda. Tanto infra como ultrassons não nos interessam neste estudo, pois não são
frequências incapazes de serem captadas pelos ouvidos humanos e considerando que os sons
dos passos de um fantasma são audíveis, devemos nos fixar na frequência entre 20 Hz e 20kHz.
É conversão de energia. Energia cinética transformada em energia sonora. Dois objetos têm que
se encontrar em trajetórias ou opostas ou oblíquas, ou

6.

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