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Cosmovisão Bíblica N ATA L G A R D I N O

O conceito da
Q
ual a origem dos pensa- ao final, a sua visão a respeito da
mentos e do intelecto? Se- mente e do intelecto humano.
existência de ria a mente apenas o resul-
tado de atividades cerebrais? Ou
uma “alma seria a manifestação de uma en-
O Conceito Bíblico de Alma
No Antigo Testamento, escri-
imortal” ou tidade imaterial, uma “alma”, que to desde cerca de 1500 a.C até 400
se expressaria através do cérebro, a.C, a palavra original em hebraico
da ausência usando-o como um canal? O que, traduzida como “alma” é “nephesh”.
dela é uma essencialmente, faz com que o cé-
rebro humano seja diferente dos
Ela tem sua raiz no verbo “naphah”
(“soprar”, “respirar”), que é usado em
pressuposição animais? Como podem apenas as Gênesis 2:7, informando que Deus
fundamental sinapses explicarem essa diferen-
ça? Em outras palavras, o cérebro
“soprou” (“naphah”) o fôlego de vida
nas narinas do inanimado Adão e
para se chegar a humano gera o “eu” autocons- este passou a ser uma “alma vivente”
ciente, ou ele apenas o abriga? (“nephesh hayah”). É evidente que o
uma conclusão Este tem sido um tema de dis- texto não diz que o homem passou a
para que cussão interminável entre filóso- “ter” uma alma, mas que ele passou
fos, religiosos e cientistas desde a a “ser” uma. Por isso é muito comum
então se possa antiguidade. As discussões se po- na Bíblia se encontrar o termo “alma”
compreender, larizam, de modo simplificado, em
duas posições: o monismo – que
(“nephesh”) como sinônimo de “pes-
soa” (ver Gen.14:21; 46:18, 27; Lev.
ao final, a sua crê que a consciência e o intelecto 4:2, etc.).
são gerados por uma “função ce-
visão a respeito rebral mais alta”1:8 – e o dualismo,
Dentro deste parâmetro, a “alma”
bíblica pode fazer coisas que no con-
da mente e que crê que o que faz toda a dife- ceito posterior e contemporâneo
rença é a interação de uma alma popular ela não pode, como comer
do intelecto imortal. Dentre vários pensado- (Lev. 7:27) ou morrer (Eze. 18:4, 20).
humano. res que marcaram a História, por
um lado temos Descartes (1596-
No texto em que Sansão morre, por
exemplo, ele diz literalmente: “Morra
1650), seguindo Platão, com o ar- minha alma com os filisteus” (Juízes
gumento de que os pensamentos 16:30). É óbvio que ele se referia à
têm que proceder da alma pois morte de sua pessoa, de seu “ser”.
“o corpo não pensa”.2 Por outro Esse é um idiomatismo hebraico
lado, temos Cabanis (1757-1808), onde a expressão “minha alma” pode
seguindo Tertuliano e Galen, de- ser traduzida como “eu” (conforme
fendendo que o cérebro é “um ór- outros exemplos em Gen. 12:13;
gão especial cuja função particu- Num. 23:10; 1 Reis 20:32, etc.).
lar é produzir pensamento, assim De fato, a palavra “alma” na Bíblia
como o estômago e os intestinos está tão relacionada com o ser vivo,
têm a função especial de realizar que há algumas poucas ocasiões em
a digestão”.2 que ela se refere ao próprio corpo
O objetivo deste breve estudo morto – provavelmente recém-fale-
é identificar na cosmovisão bíblica cido (Lev. 19:28; 21:1; Num. 5:2; 9:6,
sob qual destes dois conceitos a 7; 19:13, etc.). Em Levítico 21:11 e
mente é entendida. Para isso, se- Números 6:6 o termo literal é “alma
rão analisadas algumas palavras- morta de homem”. Isso evidencia o
chave nas línguas originais fato de que, em seu sentido primitivo,
considerando o seu contexto his- a palavra “alma” faz tanta referência
tórico-gramatical. Como o con- ao próprio indivíduo, ao seu ser e à
ceito da existência de uma “alma sua personalidade, que às vezes seu
imortal” ou da ausência dela é significado se adere ao do próprio
uma pressuposição fundamental corpo, ainda que morto.
para se chegar a uma conclusão Ao se estudar este assunto em
ou outra, primeiro será apresen- sua língua original, outro fato muito
tado o pensamento bíblico a res- importante pode ser percebido logo
peito da alma e do espírito, para ao início: o uso da palavra “alma” não
que então se possa compreender, se aplica apenas ao ser humano, mas
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também aos animais. Já no primeiro
capítulo de Gênesis (1:30) se faz re-
originais – como em Atos 2:41, quan-
do se fala do batismo de quase 3.000
A ideia de
ferência a todos os animais em que “almas”. uma alma
Desta forma, assim como nephesh
há “nephesh” (geralmente traduzido
aqui como “vida” ou “fôlego de vida”). no Antigo Testamento, também o psy- imortal é
Logo também se constata que a mes- che, no Novo, tem várias nuances para
exprimir o sentido de “alma”, podendo
estranha à
ma expressão usada para se referir ao
ser humano como uma “alma vivente” ser traduzido como: cosmovisão
(“nephesh hayah”, ver Gen. 2:7) é em-
pregada de forma idêntica em refe-
A ideia de uma alma imortal é
estranha à cosmovisão bíblica, pois
bíblica, pois
rência aos animais (ver Gen. 1:20, 24; esta considera Deus como o “único esta considera
2:19).
Porém, isso não é percebido na
que possui imortalidade” (1 Tim. 1:17;
6:16). Foi a partir do domínio do im- Deus como
maioria das traduções, pois vertem pério grego que a cultura filosófica o “único
platônica começou a se misturar aos
a expressão “nephesh hayah” como
“alma vivente” apenas quando ela se conceitos judaicos. Por isso, nos tem- que possui
refere ao ser humano, mas como “ser pos de Cristo, é possível ver o estra-
nho termo “fantasma” (“phántasma”)
imortalidade.
vivente” quando se refere aos animais.
Este tipo de tradução inconsistente, saindo da boca dos discípulos judeus
que pressupõe o entendimento filo- (Mat. 14:26). Apesar de a palavra “psy-
sófico posterior ao texto, é chamado che” nunca ser usada com este senti-
pelo teólogo Snaith3:312 de “repreen- do no Novo Testamento, foi “após a
sível” e “grave”, pelo fato de “enganar crescente influência de teólogos gre-
a todos os que não leem hebraico”. gos filosoficamente treinados”, mais
Há também muitas ocasiões em que de um século depois, que a teoria da
a palavra “alma” é omitida quando se alma imortal dominou a comunidade
refere tanto a homens como a animais. cristã.4:3 Tertuliano (160-220 d.C), por
Levítico 24:17-18, por exemplo, assim exemplo, não se intimidou ao registrar
prescreve: “quem matar a alma de um que mantinha a “opinião” de Platão, de
homem, certamente será morto; quem que “cada alma é imortal”.5:220
matar a alma de um animal, pagará
[uma] alma por [uma] alma”. O Conceito Bíblico de “Espírito”
No Novo Testamento, escrito em É importante voltarmos agora ao
grego desde cerca de 50 d.C até 100 Antigo Testamento para ver também
d.C, a palavra geralmente traduzida as origens mais básicas da palavra
como “alma” vem do grego psyche “espírito”. Do hebraico, “ruach”, este
(lê-se psiquê). Apesar de já vir impreg- termo tem o significado de “espírito”,
“ar”, “vento”, “fôlego”, ou “princípio vi-
Ruach em
nada da filosofia grega, ela mantém
praticamente o mesmo sentido de ne- tal”. Ele se refere ao Espírito Santo e hebraico
phesh ao substituí-la nas citações do aos espíritos de anjos ou demônios
(1 Sam.16:16; Jó 4:14). Ele também
pode ser
hebraico para o grego (ex.: Atos 7:14;
1 Cor. 15:45; etc.) e ao ser usada de pode denotar humor, atitude, estado “ar”, “vento”,
forma semelhante em composições de sentimento, vitalidade e coragem.
Ruach (como “fôlego” ou “princípio “fôlego”, ou
vital”) é o que “sai” do homem (Sal. “princípio
146:4; Ecl. 12:7) e dos animais (Ecl.
3:19-20) quando morrem. vital”.
No Novo Testamento, a palavra que
substitui o “ruach” do hebraico para o
grego é “pneuma”. Como no Antigo
Testamento, ela aparece muitas vezes
relacionada ao estado de sentimen-
tos, humor e atitude (ver Rom. 8:15; 1
Cor. 4:21; 2 Tim. 1:7), faz referência ao
Espírito Santo (Luc. 4:14; João 14:17,
etc.), aos seres angelicais tanto bons
(Heb. 1:14), como maus (Mar. 5:8; Luc.
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6:18, etc.) e raras vezes à vida humana Escrituras. O mais próximo disso foi o
(1 Cor. 2:11; Heb. 12:23). Vale obser- profeta Daniel ter registrado que as vi-
var, porém, que “pneuma” (“espírito”) sões ocorriam “em sua cabeça” (Dan.
só é usada em referência aos seres 4:5, 10; 7:15). No Antigo Testamento,
humanos junto com o qualificativo uma palavra usada para se referir à
“do homem” ou algo parecido. Sem mente ou ao “eu” é “leb”. Apesar de
o qualificativo ela trata sempre de se- ser traduzida muitas vezes como “co-
res sobrenaturais, nunca de humanos ração” (Gen. 6:5; 50:21; Ez. 2:4; etc.),
“desencarnados”.6:243 na verdade ela faz referência ao “ser
Apesar da diferença básica de interior”. No Novo Testamento, po-
significados entre “alma” e “espírito” rém, o próprio coração (“kardia”) é O nosso
na Bíblia, às vezes as duas expressões considerado a fonte da inteligência
podem ser sinônimas. Por exemplo, e dos pensamentos (Gen. 6:5; Mat “eu”, aquilo que
em Mateus 10:28, ao considerar no 13:15; Mar. 6:52; 8:17; Atos 28:27, somos, não é uma
indivíduo a parte visível (corpo) e a etc.). Esse era o conceito mais popu-
invisível (individualidade), são usa- lar na época. “Afinal”, como já havia entidade imaterial
dos os termos “corpo” e “alma”; mas dito o filósofo Lucrécio (99-55 a.C), “é e imortal,
ao fazer a mesma coisa em 1 Corín- ali que o medo e o terror pulam. É ali
tios 7:34, se diz “corpo” e “espírito”. que a alegria gentilmente pulsa”.1:4 independente
Há uma única ocorrência na Bíblia em Alguns tipos de pensamentos e
que são consideradas três partes in- emoções, por sua vez, eram atribuí-
do corpo; somos
divisíveis: “corpo”, “alma” e “espírito” dos aos rins (termo geralmente tradu- em essência o
(1 Tess. 5:23). Contudo, os autores bí- zido como “mente” (ver Sal. 7:9; 26:2;
blicos não parecem se preocupar em Jer. 11:20; 17:10; Jo. 19:27; Apoc. resultado de como
definir diferenças de termos nestes 2:23, etc.). Já a sede do afeto e da processamos toda
casos, mas apenas em considerar o misericórdia estaria relacionada aos
todo como a parte visível e a invisível. intestinos (Luc. 1:78; 2 Co. 6:12; 2 Co. a informação
7:15; Fp. 1:8; 2:1; Fm. 1:7, 12; 1 Jo. armazenada em
A Relação entre Mente e Cérebro 3:17, etc.). Não é incomum os autores
Curiosamente, ao se considerar da Bíblia usarem a linguagem corren- nosso cérebro e
a localização – ou sede – do intelecto, te para se comunicar. Hoje também
descobrimos que a palavra cérebro seria muito estranho ouvir alguém
respondemos a
não é mencionada nenhuma vez nas dizer, por exemplo, que uma pessoa ela.
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querida “mora em seu cérebro”, em vez de ser “em verso, geralmente usado para ensinar o dualismo
seu coração” – apesar de sabermos que esta não é corpo-alma, na verdade está mostrando que o “psi-
a realidade. quê”, ou o “eu” dos mártires e de qualquer outro
Contudo, apesar de não localizar exatamente a cristão, de alguma forma, é preservado intacto para
sede da consciência, várias palavras diferentes são ser restaurado no dia da ressurreição (Jó 19:25-27;
usadas na Bíblia para representar os pensamentos, Daniel 12:13, etc.).
tais como “mahashavah” (Sal. 94:11; 139:2), “nous”
(Rom. 12:2; 1 Cor. 14:15); “dianoia” (Heb. 8:10; Conclusão
1 Pe. 1:13; 1 Jo. 5:20); “dialogismos” (Mar. 7:21; Na cosmovisão bíblica– antes de ser reinterpre-
Luc. 5:22; 1 Co. 3:20), etc. Em todos os casos, é tada segundo a ótica da filosofia grega – não é uma
responsabilidade do homem cuidar de sua mente entidade sobrenatural associada ao corpo que lhe
para que ela não seja corrompida (Prov. 4:23; Rom. dá consciência, mas sim o fato de que o humano
12:1). (Ver neste mesmo número da Origem em Re- foi criado segundo a “imagem de Deus”, com ca-
vista o artigo “Código moral pré-programado?”, do pacidade de pensar, planejar, e principalmente de
neurologista Roberto Lenz). Porém, na cosmovisão fazer juízo e justiça (Efe. 4:24; Sal. 97:2; Isa. 5:16;
bíblica, ao morrer o indivíduo, “neste mesmo dia Jer. 9:24; Ez. 33:19; 45:9; Os. 2:17; Am. 5:24). Seu
perecem todos os seus pensamentos” (Sal. 146:4). raciocínio é superior ao dos animais porque Deus
A sua grande esperança é a ressurreição do corpo o fez assim. Deste modo, segundo esta cosmovi-
e da mente no dia do Juízo final. Esta sempre foi a são, pode-se concluir que a mente, ou a consciên-
crença dos personagens bíblicos desde o princípio cia, é um produto “virtual” gerado no próprio ser
(Jó 19:26; Daniel 12:2, 13; Jo. 6:44; 11:24; 2 Tim. humano. Ou seja, o nosso “eu”, aquilo que somos,
4:8, etc.). não é uma entidade imaterial e imortal, indepen-
Foi quando os cristãos perderam a ressurreição dente do corpo; somos em essência o resultado de
de vista que a doutrina da imortalidade da alma foi como processamos toda a informação armazenada
infiltrada através dos ensinos dos líderes da igreja, em nosso cérebro e respondemos a ela. (Ver neste
a partir da segunda metade do segundo século.7:25 mesmo número da Origem em Revista o artigo “O
Até o Concílio de Niceia (325 d.C), no entanto, sem- monismo na relação mente-cérebro e o dogma
pre houve “pais” que escreveram contra a imortali- evolutivo materialista”, do neurologista Roberto
dade da alma, tais como Clemente de Roma, Iná- Lenz) Em suma, este é um entendimento parecido
cio, Taciano, Irineu e Arnóbio, entre outros. Porém, com o dos materialistas, mas diferente por crer que
através da influência de grandes pensadores como esta “entidade virtual” chamada “mente” foi proje-
Tertuliano, Orígenes e, mais tarde, Agostinho, a vi- tada por um Criador inteligente que vai pedir con-
são da alma imortal se tornou o ponto de vista do- tas pelo modo como o homem a usa.
minante do cristianismo.
Cerca de mil anos depois, na época da Refor- Referências
ma, o assunto da natureza da “alma” voltou a ser
discutido quando Martinho Lutero e Tyndale tenta-
ram restaurar o conceito bíblico. Entretanto, Calvi- 1. Changeux JP. The Neuronal Man: the Biology of Mind. Nova
Jersey: Princeton University Press, 1985.
no, apesar de estar ao lado destes dois como um 2. Mcguigan FJ. The Historical Development of Cognitive Psy-
grande reformador, não concordou com eles nes- chophysiology: Theory and Measurement. In: Schultheisz E.
te ponto específico, e escreveu prolificamente a (ed.). History of Physiology. Advances in Physiological Sci-
respeito do seu ponto de vista em favor da alma ences 1981; vol. 21: Budapest: Pergamon Press, 1981.
3. Snaith N. Justice and Immortality. Scottish Journal of Theo-
imortal. De acordo com Fudge,7:22,328 não fosse a logy 1964; 17(3):312-313.
“impetuosidade de Calvino, o silêncio de Lutero, 4. Bremmer JN. The Rise and Fall of the After life. New York:
e a antipatia de ambos contra os anabatistas” (que Routledge, 2002.
eventualmente defendiam o monismo), é possível 5. Tertuliano. On the Ressurrection of the Flesh. Ante-Nicene
Christian Library, vol. 15. Edimburgo: T&T Clark, 1870.
que o mundo protestante hoje não cresse na imor- 6. Jobes KH. Baker Exegetical Commentary on the New Tes-
talidade da alma. tament: 1 Peter. Grand Rapids: MI: Baker Academic, 2005.
Longe disso, essa ideia está tão entranhada na 7. Fudge EW. The Fire that Consumes: A Biblical and Histori-
cosmovisão da maioria dos cristãos, que podem fa- cal Study of the Doctrine of Final Punishment. 3.ed. Eugene,
Oregon: Cascade Books, 2011.
zer uma leitura imortalista por cima de textos que
dizem exatamente o contrário. Usam Mateus 10:28, Natal Gardino é teólogo, doutor em
por exemplo, onde Jesus diz que Deus pode “des- Ministérios pela Andrews University.
truir” (gr., “apollumi”) no inferno tanto o corpo como natal.gardino@hotmail.com
a alma, para ensinarem que a alma é “imortal”. Este
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