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razaoinadequada.com

Foucault - Ascese • Razão


Inadequada
Rafael Trindade
13-18 minutos

O sábio não foge do mundo! Esta é a primeira constatação


que aquele que cuida de si mesmo pode chegar. Viver é uma
prerrogativa, é mais que sobreviver, é fazer de sua própria
existência uma obra de arte. Abrimos um novo campo de
reflexão: ética estética. E nela encontramos um homem que
procurar exercitar-se: a ascese são os caminhos encontrados
pelos gregos para tal tarefa. Uma maneira de fortificar-se,
preparar-se, conhecer-se de uma maneira prática.

Há no cuidado de si toda uma preocupação com os


exercícios, tanto mentais quanto físicos. Eles fazem parte de
um conjunto de técnicas que buscam criar, dar forma a uma
subjetividade. Não foi Espinosa quem se perguntou “afinal, o
que pode o corpo?“. Pois bem, muito antes dele os gregos já
se faziam esta pergunta e respondiam colocando-se à prova.

Asceses/exercícios é essencialmente uma questão técnica.


Pode-se analisá-la como uma questão de técnica”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 374

Ser livre é não ser escravo de si mesmo. Por isso esta

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incitação à luta, tanto dentro de si mesmo, quanto fora. Ser


livre é a busca por tornar-se senhor daquilo que nos domina,
e somente assim podemos cuidar de nós mesmos, tornando-
nos mais fortes. Mas o que isso significa necessariamente?
Afinal, já deve estar claro que não queremos inverter a mesa
e dominar aquele que anteriormente nos dominava. Não, isso
é pouco, ainda é jogar o jogo do poder e ignorar a potência
dos corpos. Não queremos nos tornar senhores do mundo,
mas sim de nós mesmos! Há uma diferença claro entre poder
e potência e estamos sempre levando a tensão para este
segundo campo.

Também não queremos fugir deste mundo para um outro,


porque a ascese não é uma renúncia de si. Nos exercitamos
para nos encontrar com a realidade estando mais preparados.
Não procuramos outras realidades, nosso objetivo é aqui e
agora, este mundo, com estas pessoas, neste momento.
Apesar de Platão e de vários outros filósofos depois dele,
precisamos dizer: esta realidade não é feita de aparências,
ela é real, ela se apresenta e cabe a nós tomarmos parte nisto
tudo. Estamos longe do metáfora do idealismo, não queremos
sair da caverna, queremos explorá-la! O sábio não foge do
mundo, mas pode fazer o mundo fugir!

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Vemos que esse grande percurso da natureza servirá, não


para nos arrancar do mundo, mas para nos permitir apreender
a nós mesmos lá onde estamos”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 249

Os gregos utilizavam constantemente a comparação com o


atleta, como aquele que está preparado, que possui um
conjunto de técnicas para atuar em qualquer momento. O
atleta olímpico é aquele que aprendeu um conjunto de
habilidades e preparou seu corpo para as mais variadas
situações. Ele sabe o essencial, os movimentos necessários e
precisos para os exercícios que deverá realizar.

Da mesma maneiro o lutador precisa aprender e dominar um


conjunto de técnicas para poder vencer seu adversário. O
atleta e o lutador não vivem de proezas inúteis! Do mesmo
modo que os filósofos do cuidado de si não buscam realizar
atos heroicos e peripécias incríveis com o objetivo de
deslumbrar seus aprendizes.

Do mesmo modo, não temos que fazer sobre nós mesmos


façanhas (a ascese filosófica desconfia dos personagens que
enaltecem as maravilhas de suas abstinências, de seus
jejuns, de sua presciência do porvir). Como um bom lutador,
devemos aprender exclusivamente aquilo que nos permitirá
resistir aos acontecimentos que podem produzir-se; devemos
aprender a não nos deixar perturbar por eles, a não nos

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deixar levar pelas emoções que poderiam suscitar em nós”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 449

Estes exercícios, de alma e de corpo, têm dois objetivos:

1. Dar coragem, de modo a permitir que o asceta resista às


dificuldades sem se abalar e esquecer de seus objetivos
iniciais. A coragem permite ao sábio resistir aos
acontecimentos exteriores, lhe dá resistência, permitindo que
supere as agruras sem sucumbir. O mundo só pode ser
encarado por aqueles que se imbuem de coragem, e a
coragem vem de saber-se preparado.

2. Sophrosune, moderação, temperança, capacidade de medir,


dominar, dar uma regulação para a relação entre nós e o
mundo. O sábio transforma o conhecimento no mais potente
dos afetos, unindo mente e corpo e trazendo uma medida.

A ascece estoico-cínica não gira em torno da continuidade


dos pensamentos de Platão porque supera a questão do
“conhece a ti mesmo” (veja aqui). Em Platão temos um corpo
voltado para a ginástica, um corpo que segue um modelo ao
qual ele deve se encaixar. Temos com o filósofo do mundo
das ideias uma outra forma de conhecimento, que procura dar
forma ao corpo e à mente. Já o cuidado de si procura outros
caminhos, uma potência que escape à forma, um simulacro,
uma linha de fuga que trace novas conexões. Em primeiro
lugar a ascese traz a abstinência:

Abstinência:

É todo um modo de relação com o alimento, as roupas, a


habitação que é assim formado através desses exercícios de

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abstinência para formar um estilo de vida, e não exercícios de


abstinência para regrar a própria vida mediante interdições e
proibições precisas” – Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p.
386

Parece estranho falarmos de exercícios e como primeira


prática expormos a abstinência. Estranho, mas não
contraditório. É preciso relembrar, nosso objetivo com os
exercícios não é um corpo musculoso, moldado para a luta
heroica, com pregava Platão, mas sim de um corpo resistente,
capaz de suportar as dificuldades sem desviar-se de seu
caminho. Suportar a fome, a sede, o frio, os acontecimentos,
sejam eles quais forem.

Foucault fala, por exemplo, dos Cínicos, que possuíam um


corpo capaz de dormir em leito duro e vestir roupas rudes.
Afinal, o Cuidado de si não é apenas para os jovens na flor da
idade! Nunca é tarde para se filosofar, dizia Epicuro. Não
queremos um corpo que viva eternamente, mas também não
queremos morrer jovens. Não vamos para a guerra e não
queremos morrer tão cedo porque nossa batalha é outra.

O cuidado de si é para a vida toda, então os gregos se


preocupavam principalmente com exercícios leves e refeições
moderadas. Estamos aqui dando forma às forças reativas.
O corpo não pode atrapalhar a alma nem tomar todo o espaço
da alma. Porque esta é a definição de um corpo impotente.
Desprender-se da gula, da concupiscência, de forma que as
riquezas não mais prendam a nossa atenção e que os
momentos de dificuldades não possam nos abalar. O corpo
não pode atravancar a alma, ele precisa estar preparado para
os momentos de dificuldade e não ser seduzido pelos

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excessos da riqueza.

Qual a medida da bebida? Aquela que aplaca a sede. Qual a


medida da comida? Aplacar a fome. O sábio explora seu
corpo para saber seus limites: quanto tempo pode fazer isso e
aquilo? Quanto ele realmente precisa disto e daquilo? Isso
vale muito bem para hoje, onde vivemos mergulhados na
ilusão de que precisamos comprar, ter, desfrutar de milhares
de coisas que na verdade são empecilhos para uma vida
realmente estética. Não queremos falsos excessos. Quantas
vezes nós consumimos sem consumir? (veja aqui). A
prudência nos dá muitas medidas do que precisamos e
podemos. A abstinência limpa o terreno para abrir um
caminho onde podemos cuidar de nós. Abster-se para
explorar outros caminhos.

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– Myron, Diskobolos

Prova:

Poderíamos também dizer: abster-se para, em um segundo


momento, colocar-se à prova. Porque há sempre uma
interrogação no ar: até onde podemos ir? Queremos saber do
que um corpo é capaz. E para isso não há maneira melhor do
que explorar nossos limites (veja também aqui).

Nosso corpo é feito de relações de movimento e repouso. Ele


estica, se comprime, se alonga. Há uma vontade de medir até
onde se pode ir. Por isso o sábio coloca-se à prova, com o
único intuito de demarcar a si mesmo. Saber, na prática, o
que se é, tendo o corpo como superfície de inscrição destes
limites! Numa prova nos impomos um objetivo que pode ser
ou não alcançado, esta distância entre o objetivo e nosso
corpo nos traz os limites e as medidas que procuramos. Se
primeiro cuidamos das forças reativas, com a abstinência,
agora temos o campo aberto para as forças ativas de
experimentação e criação!

Há sempre uma vontade de saber mais de si mesmo, de dar


mais um passo em direção a si mesmo, de conhecer em si
uma coisa nova. “Olha só! Aqui está algo que não sabia de
mim!“. O filósofo educa-se através das provas que coloca

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para si mesmo. Superando-as ou não. A questão aqui é que a


prova é um fim em si mesmo, seu objetivo é conquistado
necessariamente. Já dizia Espinosa, o prêmio da virtude é a
própria virtude.

Mas não podemos deixar de dizer que esta prova é


acompanhada de uma reflexão. Claro, a meditação não está
separada da ascese. O que fizemos? Como fizemos? Somos
capazes de fazer novamente? Uma atitude consciente
acompanha a prova, para que sejam esclarecidas as
condições em que o corpo e o momento se encontravam. Eis
a raiz do auto-conhecimento. Constituir um sujeito como fim
último para si mesmo! Através do exercício, treinando,
praticando. Após cada prova o sujeito encontra-se mais dono
de si mesmo.

Nos exercícios de prova busca-se medir em que ponto se


está em relação àquilo que se era, em relação ao progresso
já feito, e em relação ao ponto a que se deve chegar”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 387

Por isso o Cuidado de Si não pode ser apenas realizado em


um momento da vida. A prova deve tornar-se uma atitude
frente o real! a vida inteira deve tornar-se uma prova!

A prova não deve ser apenas, diferentemente da abstinência,


uma espécie de formador cujos limites fixamos em um certo
momento da existência, mas pode e deve tornar-se uma
atitude geral na existência. Isso significa que vemos aparecer,
creio, a ideia fundamental de que a vida deve ser
reconhecida, pensada, vivida, praticada como uma perpétua
prova”

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– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 393

Este era então o grande objetivo dos gregos: constituir uma


relação plena, acabada, completa e autossuficiente! Apenas o
sábio treinou devidamente, então apenas ele está realmente
preparado para o que quer que aconteça. Ele realizou
repetidamente os movimentos essenciais da existência e
nada pode abalá-lo! Os antigos conquistavam a ataraxia não
porque se afastaram do mundo! Muito pelo contrário! Vemos
agora como eles mergulharam mais que qualquer outro para
encontrar as ferramentas da existência, suas medidas, seus
limites.

Os antigos queriam adquirir algo, criar! Fazer nascer um


sujeito mais forte! Suas palavras, ‘a ascese antiga não reduz:
ela equipa, ela dota'”

– Foucault, Hermenêutica do Sujeito, p. 285

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– Myron, Diskobolos

A ascese tem como objetivo nos preparar para a fortuna,


para os acasos da vida, para o futuro incerto. Um futuro
recheado de acontecimentos para os quais temos que estar
devidamente preparados, física e emocionalmente, mesmo
que ainda não o conheçamos. Por isso os gregos sempre
retomam a comparação do sábio com o atleta, os dois
treinaram muito para tornarem-se quem são. O atleta para a
competição, o lutador para a luta e o sábio para a vida. E isso
porque o bom atleta e o sábio tiveram o mesmo caminho,
exercícios e constância.

Podemos dizer então que o sábio é o atleta do


acontecimento! Ele praticou, se preparou, estudou, traçou as
possibilidades, conheceu seus limites com precisão, e quanto
o acontecimento lhe bater à porta ele atenderá com felicidade,
porque estará à altura do que lhe acontecer (ver Escoicos, o
que é psicologia?). A bagagem que o sábio vai juntando ao
seu redor lhe traz  ferramentas filosóficas que ele pode usar
sempre que for necessário. Este conhecimento, esta provação

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pela qual o sábio se coloca traz igualmente um corpo


saudável para qualquer eventualidade. Ele é dotado de arma
e de escudo. Os antigos chamavam de paraskeué:  armadura,
proteção. É isso que o atleta visa, estar protegido e bem
equipado para a fortuna.

Muito diferente da prática cristã de renúncia do mundo, os


gregos abstinham-se e provavam-se para ir mais longe,
tornarem-se mais fortes. Os músculos são menos necessários
que a boa relação entre mente e corpo, entre pensamento e
vida.

A finalidade dessas provações não é, sobretudo, de praticar a


renúncia por si mesma, ela consiste em tornar capaz de
abster-se do supérfluo, constituindo sobre si uma soberania
que não depende de modo algum de sua presença ou de sua
ausência As provações a que se é submetido não são
estados sucessivos na privação, elas são uma forma de medir
e de confirmar a independência de que se é capaz a respeito
de tudo aquilo que não é indispensável e essencial”

– Foucault, Cuidado de si, p. 64

O cuidado de si que se dá na forma de um exercício, uma


atividade, mas que é igualmente acompanhada de uma
reflexão e de um retorno constante ao mundo e à vida.
Áskesis, ascese enquanto conversão a si, exercício de si
sobre si. Um saber prático que só pode se adquirir treinando
de maneira contínua e obstinada tendo como fim a sua
própria existência.

A experiência de si que se forma nessa posse não é


simplesmente a de uma força dominada ou de uma soberania

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exercida sobre uma força prestes a se revoltar, é a de um


prazer que se tem consigo mesmo. Alguém que conseguiu,
finalmente, ter acesso a si próprio é, para si, um objeto de
prazer. Não somente contenta-se com o que se é e aceita-se
limitar-se a isso, como também ‘apraz-se’ consigo mesmo”

– Foucault, Cuidado de Si, p. 70

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