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A mesma música que toca ao fundo


entre passear e vadiar sem fim
9-13 minutos

Vem tão lá de trás que neste início de conversa vai parecer


que estou “a falar grego com a tua imaginação”, leitor. E nem
espanta o balanço que leva, hoje, a noção de que há algo de
infeccioso no modo como as redondezas nos absorvem,
agitam o nosso pensamento, se lhes dermos a corda das
nossas passadas, movendo-nos no mundo segundo um ritmo
próprio. Aristóteles dava as suas aulas ao ar livre, e foi porque
os portais cobertos do Liceu, em Atenas, eram conhecidos
como “perípatoi” que, mais tarde, os seus discípulos ficaram
conhecidos como “peripatéticos”, e a palavra ergueu-se do
dicionário grego e foi por aí fora, entrou por tantas outras
línguas, significando também “ambulante” ou “itinerante”.

Sem nos afastarmos muito, convém sublinhar que, muito


antes da figura do flâneur - que surgiria só no séc. xix e que
associamos a Baudelaire e Manet, quando as cidades
europeias expulsaram a noite, distribuindo candeeiros a gás
que vieram permitir a circulação nas principais avenidas e
ruas bem depois de o sol se pôr -, já a deambulação
carregava um tom desafiador. Os filósofos cínicos da
Antiguidade desdenhavam todos os confortos, e um aspeto

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decisivo da sua crítica estava no efeito corrosivo diário: eram


vistos solitariamente ou em pequenos bandos, andrajosos, e,
ao invés de cobrir grandes distâncias, circulavam por uns
poucos bairros mais movimentados, irritando os outros.

A vagabundagem de que, há não tantas décadas assim, ainda


se corria o risco de se ser acusado, quando se podia ir dar
com os ossos à cadeia pelo simples ato de andar pelas ruas e
estar disponível, se a ocasião o favorecesse, para cair
verticalmente no vício, é uma outra coisa, ligada a uma outra
linhagem de consciência e rebelião e que não se confunde
com os atuais itinerários e percursos à disposição dos
amantes das caminhadas. Talvez o elo que, de uma para a
outra, não se perde possa ser encontrado no livro do filósofo
francês Frédéric Gros “Marcher, une philosophie” (2008), onde
defende que o propósito de andar não passa por fazer
amigos, mas antes por partilhar a solidão. Isto porque também
a solidão pode ser partilhada, como o pão e a luz do dia. Gros
lembra Kant e a importância dos seus longos passeios diários,
notando que a vida deste filósofo era de tal modo disciplinada
que cada um dos seus passos parecia desenhar notas entre
as linhas de uma pauta musical. Noutra passagem, o
professor de Filosofia que ultimamente se tem aplicado a
desmontar o modo teatral como a obediência hoje se nos
impõe, silenciando as nossas convicções para nos levar a
representar o nosso papel e a engolir o inaceitável, nota que,
quando caminhamos, o nosso corpo deixa de estar na
paisagem e passa a ser a paisagem.

No tratado que Gros dedica ao tema traçam-se diferentes


atitudes e modos de se caminhar, seja simplesmente para

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espairecer, seja aquele que é próprio dos tunantes, num ato


de desprezo pelas convenções e pela sociedade ou de
simples abandono, seja como o faziam os peregrinos
medievais, esses andarilhos e aventureiros que nos surgem,
hoje, pela mão dos mitos e fábulas, em que a caminhada é
uma forma de contemplação e destino. Este é claramente o
modelo que Gros mais admira e no qual se inscrevem figuras
lendárias como Jean-Jacques Rousseau e Henry David
Thoreau. Para este académico francês, caminhar tem o
mesmo peso na tradição ocidental que a meditação tem no
Oriente. “Não estás a fazer nada quando andas, nada a não
ser caminhar. E é o não ter nada que fazer senão andar que
te permite redescobrir a pura sensação de se existir...”

Thoreau dedicou largas páginas de exaltação e incitamento à


caminhada, paixão que elevou a uma das grandes formas de
arte, afirmando que se soubermos render-nos à natureza,
esta irá confiar aos nossos passos um rumo... “Creio que a
natureza encerra um subtil magnetismo que, se
inconscientemente nos rendermos a ele, dará um rumo aos
nossos passos. Não nos é indiferente a direção que
seguimos. Existe um caminho certo; mas somos demasiado
propensos, por estupidez ou distração, a seguir o caminho
errado.” E lembra-nos que no “canto do tordo dos bosques há
certos interstícios que nos levam a fixar numa terra selvagem
nunca antes pisada pelo homem”, e que há respostas que só
ouviremos “das águas, dos montes e dos vales cobertos de
vinhas, como uma música em surdina que relembra o tropel
dos soldados de partida para a Terra Santa”...

E para não ficarmos pelo solilóquio, vale a pena recorrer a um

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seu contemporâneo, o nosso Camilo que, ao tomar uns ares


no realismo para dar maior rijeza ao seu rascante
romantismo, nas “Novelas do Minho”, notou como dos
povoados sertanejos que Portugal tinha andavam já os
políticos e os literatos a tirar-lhes umas tontas medidas que
não faziam mais do que meter “a riso as coisas e as pessoas
de lá”. A conversa do “país real” não era ainda exibida como
um osso desenterrado na província, mas já despontavam os
sinais de uma mistificação grosseira feita a uma distância
citadina e afadigada face ao “país da madressilva e da
laranjeira” que, desde então, só raramente tem merecido o
papel de musa para ficções e outras obras do espírito, ao
invés de ser pespegado num prospeto, servido nalgum
catálogo como armadilha para turistas ou emoldurado
ridiculamente como museu de antigas tradições que se
arrefentam a céu aberto.

Voltando a Thoreau, nas páginas do seu diário ele referia o


impulso que retirava de caminhar, dizendo que no momento
em que as suas pernas se punham a mexer, os seus
pensamentos começavam a fluir. E, em “Caminhada”
(Antígona, 2012), adianta: “Quando quero distrair-me, procuro
o bosque mais sombrio, o mais cerrado e interminável e, aos
olhos de qualquer cidadão, o mais medonho. Entro num
pântano como se fosse um local sagrado – um sanctum
sanctorum. É nele que se encontram a força e a essência da
Natureza. O bosque selvagem cobre a terra virgem – e este
mesmo solo é bom para os homens e para as árvores. A
saúde do homem requer tantas jeiras de prado para a sua
preservação como a sua quinta exige montes de esterco.

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Existem nelas os fortes alimentos de que se nutre. Uma


cidade é salva não tanto pelos seus honestos habitantes, mas
pelos bosques e pântanos que a rodeiam. Uma cidade onde
uma sobranceira floresta primitiva ondula e onde outra floresta
primitiva se decompõe no subsolo tem condições para
produzir não só cereais e batatas, mas também poetas e
filósofos para as gerações vindouras. Em semelhante solo
cresceram Homero, Confúcio e outros que tais, e é dessa
natureza selvagem que proveio o Reformador que comia
gafanhotos e mel silvestre.” 

Já na tradição do romantismo inglês, o poeta que mais


alongou e tornou fabulosa a sombra destes finos vagabundos
foi William Wordsworth que, segundo Thomas de Quincey
estimou, terá caminhado ao longo de toda a sua vida perto de
300 mil quilómetros, o que dá uma média de 10 quilómetros
por dia a partir da idade de cinco anos.

Há exemplos inúmeros de tantos mais artistas que tiraram


preciosas lições do hábito de sair para uma caminhada,
dissecar as cenas, ver como a luz se distribui e condói nas
formas, como seguem os carreiros, as estradas abertas, ou
banhar-se nas ruas, experimentando as máscaras dos rostos
com que nos cruzamos, e, de noite, agigantar-se agora para a
seguir ficar anão conforme a sombra salta de um candeeiro
para o seguinte; levar tudo dentro, ao lume no caldeirão do
espírito... Tantas artes souberam reformular as suas
impressões do mundo através de um hábito tão simples como
andar a pé, beneficiando desse efeito de reflexo e eco entre o
ritmo do nosso corpo e o nosso estado mental. Como Ferris
Jabr notava há uns anos na “New Yorker”, quando

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caminhamos, o ritmo da nossa passada naturalmente vacila


ou acelera seguindo o nosso humor, a cadência do nosso
discurso interior; “por outro lado, podemos alterar o ritmo dos
nossos pensamentos se deliberadamente estugarmos o
passo ou desacelerarmos”.

A sustentar toda esta genealogia e tradição artística que


ergueu às cavalitas da arte de caminhar, Jabr refere que há
repercussões na nossa biologia quando nos pomos a andar.
O coração ganha ânimo e desata a bombear o sangue mais
depressa; assim, este leva mais oxigénio não apenas para os
músculos mas para todos os outros órgãos, incluindo o
cérebro. E há já alguns estudos que têm demonstrado que
durante o exercício, e mesmo sem um grande esforço físico,
as pessoas alcançam melhores resultados em testes
relacionados com a memória e a atenção. “Caminhar com
alguma assiduidade também promove novas conexões entre
as células cerebrais, atrasa o normal definhamento do tecido
cerebral que acontece com a idade, aumenta o volume do
hipocampo (região do cérebro crucial para a memória) e eleva
os níveis das moléculas que tanto estimulam o crescimento
de novos neurónios como transmitem as mensagens entre
eles.”

Aí está, para os que nestas coisas não se dão por satisfeitos


a menos que se dê à ciência uma última palavra. E se a
obsessão destes tempos é a saúde, se, ao invés da
mortalidade atingida por meio de obras do espírito, a maioria
das pessoas, hoje, estão com Woody Allen quando este disse
“não quero atingir a imortalidade através do meu trabalho,
quero atingi-la não morrendo”, ainda há muito quem vislumbre

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na caminhada um rumo em si mesmo e se regozije com esta


vantagem de andarmos erguidos, aproximando-nos da altura
daquilo que vemos.

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