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Contemporânea

Contemporary Journal
2(7): 1684-1710, 2022
ISSN: 2447-0961

Artigo

A “MEDICALIZAÇÃO DA LOUCURA”: UM EMBARQUE


À DERIVA DA NAU DOS LOUCOS

THE "MEDICALIZATION OF MADNESS": A DRIFTING SHIP


OF THE INSANE
DOI: 10.56083/RCV2N7-007
Recebimento do original: 14/11/2022
Aceitação para publicação: 20/12/2022

Leticia Lages Assunção


Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA)
Instituição: Universidade Federal do Pará (UFPA)
Endereço: Rua Augusto Correa, 01 Guamá, Belém - PA
E-mail: leticialages97@gmail.com

Flávia Cristina Silveira Lemos


Pós-Doutorada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Instituição: Universidade Federal do Pará (UFPA)
Endereço: Rua Augusto Correa, 01 Guamá, Belém - PA
E-mail: flaviacslemos@gmail.com

RESUMO: Neste artigo o que se procura problematizar cotidianamente é


para quem se faz a medicalização da loucura e do sujeito tido como anormal,
colocando em xeque quais agenciamentos se identifica e define essa figura
dentro de um cenário contemporâneo. O percurso a ser traçado começa
desde o embarque na Nau dos loucos (Renascimento), perpassando pela
“terra do internamento” com o Hospital dos Loucos a partir da metade do
século XVII, designando-a como seu local natural na estrutura clássica da
loucura, se encaminhando até a era moderna (séculos XIX e XX) em que
consistirá no advento da instituição asilar conforme o saber que lhe é
correspondente: o saber psiquiátrico, cujo internamento torna-se um ato
terapêutico e o poder médico será aquele que poderá produzir a doença em
sua verdade e a submeter na realidade. A partir desse trajeto, grandes
abalos e questionamentos sobre o saber-poder médico foram levantados no
final do século XIX, reformas práticas e reflexivas dentro do pensamento
psiquiátrico foram situadas em volta dessa relação de poder. Dessa forma,

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não se trata somente de uma mera medicalização e disciplinarização vinda
da medicina, que sustenta de certa forma uma volta para condutas regulares
por meio de produções de controle, de enquadramento e projeção de corpos
dóceis e produtivos, mas de uma tendência contemporânea de tudo
medicalizar. Assim, se abre o que podemos chamar de galeria das patologias,
ou melhor, uma caracterização em massa de diversos distúrbios que fogem
do imaginário social considerado normal e aceitável encontrados nos rostos
e corpos dos sujeitos desviantes - inseridos então, em um catálogo com
diversos rótulos psicopatológicos, devendo ser capturado, controlado,
conduzido, enclausurado, medicalizado, por não condizerem com a
normalidade, por serem e terem placas de censura de não- recomendados a
sociedade. Portanto, buscamos possíveis transgressões através da movência
dos gritos enquanto performance de resistência às práticas autoritárias,
excludentes e silenciadoras da medicalização. Alçamos uma tentativa de
metamorfosear, de transcender.

PALAVRAS-CHAVE: Medicalização, Loucura, Internamento, Normalização.

ABSTRACT: In this article, what is sought to be problematized on a daily


basis is for whom the medicalization of madness and the subject considered
abnormal is carried out, questioning which agencies identify and define this
figure within a contemporary scenario. The route to be traced starts from
boarding the Nau dos Loucos (Renaissance), passing through the “land of
internment” with the Hospital dos Loucos from the mid-17th century,
designating it as its natural place in the classical structure of madness,
heading towards the modern era (19th and 20th centuries) which will consist
of the advent of the asylum institution according to the knowledge that
corresponds to it: the psychiatric knowledge, whose hospitalization becomes
a therapeutic act and the medical power will be the one that can produce the
illness in its truth and submitting it in reality. From this path, great shocks
and questions about medical knowledge-power were raised at the end of the
19th century, practical and reflective reforms within psychiatric thinking were
situated around this power relationship. In this way, it is not just a matter of
mere medicalization and disciplinarization coming from medicine, which in a
way supports a return to regular conduct through productions of control,
framing and projection of docile and productive bodies, but a contemporary
trend of medicalize everything. Thus, what we can call a gallery of
pathologies opens up, or rather, a mass characterization of various disorders
that escape the social imaginary considered normal and acceptable found in
the faces and bodies of deviant subjects - inserted then, in a catalog with
various labels psychopathological, having to be captured, controlled,
conducted, cloistered, medicalized, for not being consistent with normality,
for being and having censorship signs of not being recommended to society.
Therefore, we seek possible transgressions through the movement of

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screams as a performance of resistance to authoritarian, excluding and
silencing practices of medicalization. We make an attempt to metamorphose,
to transcend.

KEYWORDS: Medicalization, Madness, Hospitalization, Normalization.

1. Introdução

Esta pesquisa é sustentada à luz de Michel Foucault enquanto fonte e


cerne que coloca em evidência escritos, os quais somam com reflexões
acerca da loucura, do louco, do anormal e da medicalização. Trajetória essa
da loucura que não é tida como gloriosa e nem atrelada ao progresso ou a
uma conquista com um percurso puro, pois o alicerce encontra-se em uma
moralidade que atribui em seu itinerário a superioridade. Todavia, dar-se-á
por caminhos excludentes, reduzidos e silenciados para além da força por
meio de jogos de saber-poder e de verdade enquanto uma compreensão de
relações de saber e poder exercidas sobre as subjetividades em busca de
uma padronização dos costumes por intermédio das regras construídas
historicamente em virtude dos processos de normalização.
O processo de objetivação é realizado como saber em uma história
política da verdade, em que aquilo que é “verdadeiro” ou “falso” entra em
um sistema de repartição de práticas de poder, proporcionando as
indagações: Quem é produzido como louco da sociedade? Como essa figura
foi construída?
A desconstrução acontece por meio da desnaturalização do conceito de
anormal e de pessoa normal por meio da história de estatização dos
costumes e da compreensão da loucura em diversos momentos da cultura
em termos de fabricação de realidades e de uma ideário de humanidade,

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resultado de um certo regramento dos discursos de verdades em tecnologias
de saber-poder que produz corpos dóceis e politicamente assujeitadas,
quando não, aniquiladas.
Por conseguinte, se fabrica corpos “racionais-treinados”, verdadeiros
escravos da racionalidade demasiada, da padronização que controla as
subjetividades e da normalidade que treina a “humanidade”, em regras
morais coercitivas para enclausurar tudo aquilo que foge aos padrões
impostos como verdadeiros e incontestáveis. Logo, a docilização dos corpos
e das mentes perpassa por relações de saber, poder e subjetividade,
exercidas com o intuito de cercear, interditar e moldar o sujeito que não se
alinha dentro dos discursos normatizadores, mas que vive a arte da
insubmissão, da transgressão e do fora1. Neste aspecto, se questiona que
tudo o que foge da normalidade recebe um olhar de estranheza, de
subjugação e silenciamento, devendo ser excluído, silenciado e banido para
dar margem e alimentar uma “indústria da loucura”.
Indubitavelmente a humanidade se perde na racionalidade em
contraponto da loucura que não se encontra ligada somente aos devaneios,
mistérios e assombrações do mundo, mas está ligada ao próprio homem e
suas ilusões, angústias, inquietações ao representar a relação do homem
consigo mesmo e com a sua verdade. Por conseguinte, a grande
característica do ser racional é levada à categoria do absoluto e seu caráter
histórico é contestado em virtude da ampliação foucaultiana do conceito
moderno de razão atribuído em uma conversão para a “história da
racionalidade”. Visto que Michel Foucault delimita e desagrega essa
problemática a partir de uma crítica primeiramente à ideia de racionalidade

1
A experiência da loucura parte de uma proporção que é transgressora a racionalidade
excludente e unitária, de modo que a loucura experiencia o pensamento do transcendental
ao não se submeter às vontades silenciadoras da racionalidade que carrega um primado de
positividade culturalmente e socialmente mais favorável, construído e consolidado através
da ideia de uma progressão constante, acentuada por uma fabricação da normalidade

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global e unitária, no sentido da razão se tornar uma forma de domínio da
humanidade, de poder e ao mesmo tempo escravidão/servidão, para
controlar a condução dos comportamentos, do saber, do pensar e do vir a
ser da humanidade presa aos grilhões da normalidade: como verdadeiros
“escravos da razão”, ou seja, “racionais treinados”.
Assim, Foucault apresenta uma concepção filosófica, autêntica e crítica
mediante uma “cisão originária” entre loucura e razão em um âmbito
histórico, cultural, subjetivo e social, traçando um mapeamento do saber e
do poder. Porém, é imprescindível situar a existência e a percepção da
relação do ser humano com a loucura, tal que precisamos entender
primeiramente que não há uma história da loucura em si e em seu sentido
pleno, pois “A loucura não pode ser encontrada no estado selvagem. A
loucura só existe em uma sociedade, ela não existe fora das normas da
sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou
capturam” (Foucault, 2006, p. 163).
Para tanto ao se iniciar uma análise e problematização das práticas
medicalizantes é imprescindível pormenorizar o contexto histórico das
“experiências da loucura”, desde o seu enclausuramento com o percurso
asilar consolidado pelo saber-poder médico enquanto instituição da
medicalização até a psiquiatrização. Portanto, questionamentos são feitos
mediante o saber-poder médico e as reverberações de suas intervenções,
por meio da “autoridade” concedida na produção de discursos sobre
comportamentos, condutas e “normalização dos loucos”.

2. A construção da medicalização na obra História da


Loucura: do percurso asilar à psiquiatrização

Durante o final da Idade Média, houve uma epidemia de lepra. Os


doentes, tratados como animais asquerosos, eram desprezados por

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contraírem uma “maldição” até então desconhecida de causas e tratamentos,
sendo isolados da sociedade e de toda e qualquer instituição a qual faziam
parte. Assim, o temor pelos leprosos era incessante, tanto por parte da
sociedade, quanto da família e da igreja. Em vista disso, se atenta para a
relação com as igrejas, pois para os cristãos Renascentistas a lepra seria uma
espécie de manifestação divina, ou seja, o indivíduo leproso possui uma
oportunidade de se arrepender por seus pecados e erros ainda em vida: “O
abandono é para ele, a salvação; sua exclusão oferece-lhe outra forma de
comunhão” (FOUCAULT, 2017, p. 6). Contudo, as pessoas que os excluem,
desprezam e perseguem seriam salvas e abençoadas por ajudarem no
arrependimento, no qual o leproso ao aceitar sua condição de pecador por
meio da exclusão alcançaria a “cura” enquanto recompensa perante a lei
divina e moral. Desse modo, “uma estranha inversão que se opõe à dos
méritos e das orações, eles se salvam pela mão que não se estende”
(FOUCAULT, 2017, p. 6).
A partir do século XV o vazio se estabelece, a lepra desaparece do
mundo ocidental e o mal deixou de assombrar. No entanto, as pessoas
gostam de comemorar o desaparecimento da lepra “em 1635, os habitantes
de Reims fazem uma procissão solene para agradecer a Deus por ter
libertado a cidade desse flagelo” (FOUCAULT, 2017, p. 4). Destarte, a
regressão da lepra suscita mais do que um vazio, há uma preocupação
nitidamente social atrelada as preocupações morais e formas de coação
autoritária para interditar por meio da exclusão com destino certo para o
internamento. Nesse contexto, a lepra se retira, não por um efeito eficiente
das práticas médicas obscuras, mas de um resultado espontâneo da
segregação e a consequência advinda após o fim das cruzadas com a ruptura
dos focos orientais de infecção. Tal que, deixa sem utilidade os lugares e ritos
nos quais não se encontravam destinados a suprimir e sim, para manter em
uma determinada distância sacralizada, uma exaltação inversa.

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Já ao final do século XV a lepra é “substituída” pelas doenças venéreas
como se fosse uma herança, nasce então uma “nova lepra” (tomando o lugar
da primeira) e junto com ela, seu horror, medo e desprezo. Por conta da
rapidez em se proliferar, assumem um lugar sob mais um cenário suprimido
disfarçado de “inclusão” e não pela preocupação para buscar um possível
tratamento. Haja visto que as doenças venéreas se tornam “coisas médicas”
diferentemente, da lepra.
É diante desse cenário histórico e social ao qual a loucura se dá como
um “mal de todos os séculos”, ou melhor, não cessará mesmo em meio ao
enclausuramento. Por conta disso a experiência diante do Simbolismo
Renascentista vai ter como figura extremamente simbólica e privilegiada
uma paisagem imaginária na qual retrata o “surgimento da loucura”, com o
símbolo do Nau dos loucos2 – um estranho barco que navegava sobre os rios
da Renânia e dos canais Flamengos. Tal que, Narrenschiff é uma composição
literária de Brant (1497) pertencente a onda onírica- a única nave satírica
que realmente existiu, pois, a embarcação era um lugar reservado para
detenção dos ditos insanos, julgados antes mesmo de serem identificados ou
“tratados”. Ao passo que a Nau/Nave levava toda a carga insana de uma
cidade para outra, apartando todas as figuras indesejáveis (todos que não se
adequavam a sociabilidade vigente), fazendo parte não só do cotidiano como
também do enclausuramento dos ditos loucos.
Na figura dos loucos não havia mais uma existência errante, já que as
cidades os expulsavam de seus muros e os marinheiros se responsabilizavam
por livrar as cidades, porém diante desse cenário era bem mais do que uma
simples utilidade social ou uma segurança dos cidadãos tidos como
“normais”. As Naus assombravam a imaginação em toda parte da renascença
como verdadeiros peregrinos em busca da razão, já que os loucos

2
De todas as naves satíricas, a Nau dos Loucos foi a única a ter uma existência real para
além da criação representativa da arte. Ela existiu a base de uma composição ética e social,
transgredindo o imaginário.

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simbolizavam uma enorme inquietude, ou melhor, a loucura passa a
assombrar a imaginação do homem ocidental ao exercer uma atração diante
de uma sabedoria especial, um fascínio sobre seus pensamentos e devaneios.
Os loucos eram alojados, mas não tratados; eram jogados em prisões
e mantidos pelo orçamento da cidade, sempre isolados. No entanto, a
“preocupação” com a cura diante da exclusão encerrava-se no espaço
sagrado do milagre, alcançado através do arrependimento onde a loucura
espera sua libertação como uma espécie de ritual, significando milagres.
Desse modo a navegação dos loucos não faz mais do que o desenvolvimento
da situação inicial no horizonte das preocupações do homem “racional e
normal”, pois agora é fechado atrás das portas da cidade para que sua
exclusão tivesse o papel de encerrá-lo3. Entregue agora a mil caminhos e
incertezas, o louco é acorrentado, como um prisioneiro da racionalidade, das
preocupações, da insegurança e da normalidade.
Nessa perspectiva, a loucura até pode ser considerada no universo do
discurso, mas nunca será a última palavra da verdade. Outrossim, a
experiência da loucura se estende do século XVI até o momento hodierno,
devido a figura particular semeada desde sua origem na ausência e na
exclusão até a diminuição da loucura em um transtorno mental. Visto que, a
experiência da loucura é simplesmente confiscada pela reflexão crítica,
tornando-se um ponto chave no Classicismo.
As experiências da loucura no Classicismo tornaram-se extremamente
fundamentais para Michel Foucault pelos seguintes aspectos: a loucura será
entendida com relação a razão e somente terá sentido com ênfase no campo
racional, ou melhor, loucura e razão entram em uma ligação eternamente
irreversível, fazendo com que toda loucura tenha sua razão para controlar e

3
Vale ressaltar a relação mútua da loucura com a água, ou seja, o sujeito vive um embarque
à deriva da Nau dos loucos em oposição a racionalidade (positividade) que impõe em certa
medida uma obscuridade.

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julgar, do mesmo modo que toda razão possui a sua loucura mergulhada em
uma verdade irrisória. Consequentemente, um movimento de referência
mútua é estabelecido e a existência de cada uma encontra-se na possível e
perspicaz relação de recusa/negação, atrelada ao mesmo tempo em uma
fundamentação recíproca. Sendo assim, a loucura só passa a ter sentido no
campo da razão e ao se fundamentar fica imersa em suas formas, designando
um momento essencial de sua própria natureza.
Como afirma Foucault:

A loucura torna-se uma das próprias formas da razão. Aquela integra-


se nesta, constituindo seja uma de suas forças secretas, seja um dos
momentos de sua manifestação, seja uma forma paradoxal na qual
pode tomar consciência de si mesma. De todos os modos, a loucura
só tem sentido e valor no próprio campo da razão (FOUCAULT, 2017,
p. 33).

A loucura desenha então, um perfil bem familiar na paisagem social. A


partir daí, o mundo no começo do século XVII é hospitaleiro com a loucura
de uma forma inusitada, ou melhor, o desatino estará presente de forma
perene no coração dos homens ao guardar lembranças das ameaças trágicas,
de uma vida perturbada e inquieta enquanto há uma mobilidade constante
da razão. As vozes da loucura que a Renascença acaba por libertar agora são
reduzidas ao silêncio pela era Clássica através de um golpe estranho de
soberania e progresso da razão, não há mais dúvidas sobre um desequilíbrio
da loucura, das inquietações, ilusões ou erros. É na medida em que as ilusões
e erros são superados pela estrutura da verdade que a loucura será excluída
pelo sujeito que duvida, mas que ao mesmo tempo não pode desatinar.
A partir do século XVII a loucura e o internamento estarão atrelados
com o surgimento do Hospital dos Loucos. Nessa instituição, os loucos são
definidos pelas suas formas de loucuras e desordens de espírito, então cada
cabeça vazia agora ordenada e enquadrada pela verdadeira racionalidade
fala por meio de uma linguagem da ironia e da contradição, desdobrada pela
soberania e pela verdade. Em vista disso, a loucura é o avesso, a desordem,

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a fuga dos padrões impostos pela normalidade que por conta dessas
atribuições a razão a fez viver à deriva da Nau- uma sequência de embarques
com direção para voltar as condutas regulares, em nome da padronização,
da ordem e da norma.

[Trata-se de] “expulsar do corpo social esses seres temíveis,


mantendo-os temporária ou definitivamente isolados, sem contato
com a humanidade, em estabelecimentos destinados a esse uso”.
Essa prática de exclusão é chamada de “antropoemia”: controlar as
forças perigosas da nossa sociedade não é assimilá-las, mas excluí-
las (FOUCAULT, 2015, p. 4).

É importante colocar que o século XVII criou casas de internamento


cujo poder absoluto fez uso de documentos oficiais com determinações gerais
e medidas de prisão arbitrária: “Se existiram, anteriormente, certos
estabelecimentos reservados aos loucos e aos “venéreos”, foi mais por uma
medida de exclusão ou receio dos perigos do que em razão de uma
especialização dos cuidados” (FOUCAULT, 2018, p. 315). Durante um século
e meio os loucos foram postos sob regime desse internamento, com
“tratamento” estendido aos pobres, desempregados, prostitutas e insanos,
isto é, todos aqueles denominados como escória da sociedade, como
improdutivos: “o primeiro critério para determinar a loucura em um indivíduo
consiste em mostrar que é um homem inapto ao trabalho” (FOUCAULT, 2010,
p. 261).
Nessa perspectiva, o hospital na idade clássica tinha o objetivo de
transformar os sujeitos enclausurados em corpos ativos economicamente,
assim, as primeiras formas de “tratamento” eram o labor: o trabalho. Como
nos aponta Foucault: “A lógica que embasa essa prática é evidente. Se a
inaptidão ao trabalho é o primeiro critério da loucura, basta que se aprenda
a trabalhar no hospital para curar a loucura” (FOUCAULT, 2010, p. 266).
Portanto, é entre os muros do internamento que a psiquiatria na era moderna
do século XIX encontrará esses sujeitos e lá os deixará, se exaltando por
terem concedido tal “liberdade”.

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A organização dessas estruturas complexas abarca uma sensibilidade
à miséria e a obrigatoriedade de uma assistência em virtude dos problemas
econômicos, envolvendo o desemprego e a ociosidade. Desse modo, a
pobreza terá um lugar só seu no mundo, designando castigos e sinais de
maldição, nos quais designaram que o pobre, o miserável, não pode
responder por sua existência, mas é de todos os modos invisibilizada, pois:
“A sociedade industrial capitalista não podia tolerar a existência de grupos
de vagabundos” (FOUCAULT, 2010, p. 265). A miséria não é mais
denominada como uma relação de humilhação e glória, e sim, uma dialética
entre a desordem e a ordem encerrada por uma instituição da culpabilidade.
Destarte, nasce uma experiência do patético não de uma salvação
comumente ligada à caridade, mas mostra no miserável o resultado da
desordem e um obstáculo para se manter a ordem, porque faz com que o
sujeito tenha ocupações e obrigações cumprindo seu dever perante a
sociedade.
São estabelecidas casas de trabalho forçado para que ninguém possa
praticar a mendicância: “E ninguém será tão fútil, nem quererá parecer tão
pernicioso aos olhos do público, que dê esmolas a esses mendigos ou os
encoraje.” (FOUCAULT, 2017, p. 58). Não convém mais uma exaltação da
miséria, mas uma supressão para inscrever uma ordem na qual suscite o
desaparecimento por conta de uma concepção moral que a condena. Afirma
o filósofo: “Nesses estabelecimentos, não havia nenhuma intenção
terapêutica, todos eram sujeitados a trabalhos forçados” (FOUCAULT, 2010,
p. 265). Logo, a hospitalidade que os acolhia deu lugar as medidas de
enclausuramento, os colocou para fora do caminho para que não
continuassem vagando e nem perturbando a ordem do espaço social.
A loucura encontrada, no final do século XVIII, interditada entre os
muros do hospital pela sensibilidade moral e não mais religiosa, traça uma
trajetória reversa da que foi proporcionada pela idade média, a loucura agora
é fechada pela era clássica. Consequentemente, o louco na idade média era

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considerado um personagem sagrado no qual participava dos obscuros
poderes da miséria, porém, tal representação já não lhe cabe mais, então
sofre uma degradação que passa a ser encarada apenas no âmbito moral.
O aspecto das substituições das medidas negativas de exclusão por
medidas de detenção surge como uma “solução”. O desempregado não é
escorraçado da sociedade ou meramente punido, mas se estabelece um
sistema de obrigações implícitas, como se fosse uma espécie de contrato
social e moral, isto é, o sujeito possui o direito de ser alimentado enquanto
o seu dever será o de aceitar a coação física e moral advinda do
internamento. Então, as medidas tomadas como respostas dadas pelo século
XVII para crises econômicas, cujo o internamento tinha como serventia
reabsorver os ociosos para proteger a sociedade de eventuais revoltas,
acabou por despertar consciências.
É fundamental apontar que o internamento no hospital geral não era
apenas um refúgio para velhice ou enfermidade, nem um simples ateliê ou
espaço que corroborava o trabalho forçado, mas era uma instituição que se
encarregava moralmente de castigar, punir e corrigir as anormalidades que
batiam de encontro com as ordens impostas. Tal que para correção lhes é
atribuído todo um aparato jurídico, juntamente, com materiais de repressão
propostos para tornar útil ao público toda a escória da sociedade. Portanto,
a demonstração de ordem nas casas de internação se configura pelo símbolo
de uma “polícia”4, na qual envolve a todos para controlar se valendo das
regras coercitivas, das normas da razão e da vigilância.
A era clássica se utiliza principalmente do duplo papel representado
pelo internamento com a reabsorção do desemprego para ocultar os efeitos
sociais visíveis e fazer um controle dos preços de produção. Tal que a

4
Tal simbologia utilizada diz respeito a uma forma de governo, a uma instituição que em
seu tecido e estrutura sobressai o controle e as práticas de elaboração do conforme, ou
melhor, cada sujeito deve tornar-se o que se deve ser. Nessa perspectiva, um sujeito dócil,
útil e autônomo/livre, pois só é possível governar sujeitos livres.

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ociosidade e o trabalho substituem a grande exclusão da lepra nas paisagens
do universo moral, dando um direito de herança para loucura se revelar e se
desenvolver. Nesses lugares de internação a ociosidade é representada de
maneira maldita, condenada por uma sociedade que dita leis do trabalho
como saída para uma transcendência ética- que rejeita todo e qualquer tipo
de inutilidade social.
Quanto à exclusão da loucura e seu enclausuramento permeia não só
pelos instrumentos de repressão, mas por ser considerado sem utilidade
pelas forças produtivas tanto economicamente quanto politicamente, então,
passaram a ser banidas, silenciadas, reprimidas pelos aparelhos de exclusão,
vigilância e medicalização. Evidencia-se aqui o lucro econômico e uma
utilidade política sustentada pelo sistema de Estado, pois a burguesia não se
interessa pelos loucos em si, mas pelo poder que o controla, pelo conjunto
excludente de mecanismos e técnicas consolidadas a partir do século XIX
(FOUCAULT, 2018, p. 287). Assim, a função produtiva para os loucos aparece
como função simbólica e disciplinar para Foucault- enquanto uma via de
adestramento (FOUCAULT, 2018, p. 338).

a burguesia não se importa absolutamente com os delinquentes nem


com sua punição ou reinserção social, que não têm muita importância
do ponto de vista econômico, mas se interessa pelo conjunto de
mecanismos que controlam, seguem, punem e reformam o
delinquente (FOUCAULT, 2018, p. 288).

O hospital geral se torna um lugar em que se mistura sujeitos


indesejáveis e improdutivos, aparecendo como instrumento de exclusão,
assistência e transformação espiritual na qual a função médica não aparece.
Tendo em vista que o lugar funciona através de um estranho poder, como
uma terceira ordem na repressão; uma instância de ordem monárquica e
burguesa para estruturar o mundo da miséria. Dessa maneira, o
internamento é um fenômeno superficial de um sistema que leva todos os
indivíduos para uma mesma orientação, uma normatização em virtude de

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uma sociedade ética e uniforme, cuja racionalidade se sobressaiu ao apagar
os sentidos da loucura. Não se pode dizer que as casas de internamento
alcançaram uma determinada eficácia em sua plenitude com o papel positivo
que dela se esperava, ou seja, havia uma absorção dos desempregados,
enfermos, prostitutas, loucos e era justamente, para ocultar, silenciar e
excluir, evitando inconveniências políticas e sociais corroborando possíveis
revoltas e perturbações nas quais poderiam transpassar a moralidade.
Vale frisar que a medicina dos séculos XVII e XVIII era individualista e
a experiência hospitalar excluída da formação do médico com uma
qualificação apenas para a transmissão de receitas e não para a assimilação
ou a integração no campo das experiências (FOUCAULT, 2018, p. 175). Aqui
se trata de uma hospitalização que não faz do hospital um instrumento de
cura, mas a centralidade dessa preocupação em si é impedir a propagação
da desordem econômica e social. É importante reafirmar que a forma
preventiva imposta pela medicina como saúde da população em nome da
necessidade de higiene implica em intervenções médicas excludentes aos
que não seguem uma ordem normativa considerada adequada, seguindo à
risca uma série de prescrições para que possa “pertencer” ou ser reconhecido
socialmente, tudo isso através de medidas de controle, ou melhor, de um
saber-poder médico: “O médico penetra em diferentes instâncias de poder”
(FOUCAULT, 2018, p. 309).
A partir daí começa a se formar um saber médico-administrativo e o
percurso traçado pela política médica no séc. XVII, teve como base prioritária
a organização da família-filhos enquanto uma primeira instância da
medicalização dos sujeitos. Para tanto, a medicalização desempenhou um
papel de articulação nos objetivos a serem atingidos no que se tratava da
boa saúde do corpo social, ou melhor, da necessidade de cuidados dos
indivíduos com seus anseios, desejos, paixões (FOUCAULT, 2018, p. 307).
Logo, um controle coletivo da higiene, das prática higienista e técnicas de

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cura propiciada por um grupo de médicos que seria qualificado e
recomendado pelo Estado.

Os direitos e deveres dos indivíduos concernindo à sua saúde e à dos


outros, o mercado onde coincidem as demandas e as ofertas de
cuidados médicos, as intervenções autoritárias do poder na ordem da
higiene e das doenças, a institucionalização e a defesa da relação
privada com o médico, tudo isso, em sua multiplicidade e coerência,
marca o funcionamento global da política de saúde do século XIX, que
entretanto não se pode compreender abstraindo-se este elemento
central, formado no século XVIII: a família medicalizada-
medicalizante (FOUCAULT, 2018, p. 307).

É o aparecimento do médico, a primeira característica da


transformação hospitalar no final do século XVIII, cujo a tomada de saber-
poder médico se manifesta no ritual de sua visita, corroborado não só pelo
campo documental ou organização, mas pela estruturação de um lugar de
formação e transmissão de conhecimento. No entanto, o hospital se
disciplina para explicar o esquadrinhamento no qual está imerso a medicina
hospitalar, como afirma Foucault:

Pela disciplinarização do espaço médico, pelo fato de se poder isolar


cada indivíduo, colocá-lo em um leito, prescrever-lhe um regime etc.,
pretende-se chegar a uma medicina individualizante. Efetivamente, é
o indivíduo que será observado, seguido, conhecido e curado. O
indivíduo emerge como objeto do saber e prática médicos
(FOUCAULT, 2018, p. 188-189).

A era moderna (séculos XIX e XX) consistirá no advento da instituição


asilar e no saber que lhe é correspondente: o saber psiquiátrico, cujo
internamento torna-se um ato terapêutico e a loucura é simplesmente
individualizada como doença mental, ou seja, é percebida menos como erro
do que como relação à volta da conduta normal e regular: “A loucura,
vontade perturbada, paixão pervertida, deve aí encontrar uma vontade reta
e paixões ortodoxas” (FOUCAULT, 2018, p. 202). Nesta condição, a loucura
é capturada em objetividade por um saber normativo de caráter médico, ao

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ponto que é tida nesse período como “conhecida e dominada”, se tornando
objeto de apreensão e delimitação.
Com a idade moderna a grande ruptura será antropológica, cujo a
compreensão da loucura se dará por meio de conceituações dentro do
desarranjo cerebral, da perturbação psicológica, da doença mental; tornando
o louco um objeto da ciência, e, em vista disso, haverá nele uma
possibilidade de desvendar os saberes e as verdades invertidas do ser
humano dito “normal”. Desta maneira, a loucura era deduzida como uma
louca doença e tal ruptura se deu na distinção entre o físico e mental em
uma redução da experiência clássica do desatino e da percepção moral que
a torna apenas uma patologia.
Nessa perspectiva, o internamento não será o primeiro esforço em
direção a psiquiatrização da loucura como doença, e por mais excludente que
seja, não poderá ser negada, resultando do castigo, da correção, do controle.
Dessa forma, são definidos como doentes os que forem perpassados pela
sensibilidade médica a qual estava começando a nascer. Tais apreensões
fecham os alienados em uma definição de loucura que consiste no
reconhecimento dos registros do internamento até à solidez encontrada nas
categorias médicas, entre as quais a patologia dividiu na arqueologia as
doenças do espírito. Logo, ao ser reconhecido o status de doente seria, então,
instituído a um tratamento hospitalar aparentemente concedido no século
XIX a todos os doentes mentais.
É evidente que o pensamento médico ao longo desse conjunto da
relação médico-doente se apresenta como elemento constituinte no mundo
da loucura. Sendo assim, a realidade da doença mental produzida pelo saber-
poder médico transcreve por si só os efeitos e formas reproduzidas por
fenômenos seguidos de um discurso cientificamente aceitável, favorável,
diferentemente da loucura. Nesse cenário, o médico é tido como um
normalizador de condutas, ao passo que lhe é atribuído a figura de grande
perito na arte de corrigir, modelar, governar e melhorar o corpo social para

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que fique em seu melhor estado de saúde possível e passível. Essa é a grande
função higienista corroborada por um saber-poder médico regado de
privilégios politicamente, economicamente e socialmente no século XVIII.
Visto que, esse personagem desempenhou o grande papel de estruturador
desse espaço por meio de suas práticas de controle e governo, em nome de
um olhar controlador e vigilante sobre os corpos-alvos. Nessa proporção,
médicos começam a mencionar como o corpo se desgasta, se apaga, se
destrói dentro desses lugares com moldes fornecidos pelos domínios do
poder tido como “evolução”, como “iluminação” - no sentido de quase
salvação daqueles que não se enquadravam.

tinham por função fazer do personagem do médico o “mestre da


loucura”; aquele que faz se manifestar em sua verdade quando ela
se esconde, quando permanece soterrada e silenciada, e aquele que
a domina, a acalma e a absorve depois de tê-la sabiamente
desencadeado (FOUCAULT, 2018, p. 204).

Foucault abre um leque para uma discussão que neste texto nos é algo
muito caro, que é a investigação de como o olhar médico se institucionalizou
e se efetivou dentro do espaço social para ratificar uma vigilância global e
individualizante, separando os sujeitos que deviam ser observados e
enquadrados. Contudo, os temas e dispositivos de vigilância se inscrevem na
arquitetura, ou melhor, no espaço das instituições: “trata-se de utilizar a
organização do espaço para alcançar objetivos econômico-políticos5”
(FOUCAULT, 2018, p. 321). Logo, o espaço se especifica e se torna funcional:
se faz, portanto, uma história dos espaços, uma história dos poderes
(FOUCAULT, 2018, p. 322).
Trata-se aqui neste contexto da medicina enquanto prática médica, e
a história como um instinto social infalível e puro por assim acrescentar
estabilidade no “progresso”, quando, na verdade, foi uma criação para

5
Expressão cunhada por Michel Foucault (2018) em referência ao espaço como arte de
construir e manifestar o poder e a força.

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justificar definições médicas munidas de um saber-poder que detinha plenos
poderes para delimitar condutas anormais. Nesse sentido, coadunamos com
Foucault que: “A medicina não tem somente como objeto estudar ou curar
as doenças; ela tem relações íntimas com a organização social” (FOUCAULT,
2010, p. 325). A figura do alienado foi recebida em sua individualidade como
se fosse apenas patológica e antes mesmo de receber um estatuto médico
atribuído na modernidade, o louco já havia adquirido (na idade média), uma
densidade pessoal, uma identidade que foi absorvida por uma massa da
indiferença que com o passar dos séculos misturou os traços de um rosto e
as linhas da subjetividade nas quais já haviam sido individualizadas,
definidas e enquadradas.

A medicina como técnica geral de saúde, mais do que como serviço


das doenças e artes das curas, assume um lugar cada vez mais
importante nas estruturas administrativas e nessa maquinaria de
poder que, durante o século XVIII, não cessa de se estender e de se
afirmar (FOUCAULT, 2018, p. 309).

As relações de poder constituíam a priori às práticas psiquiátricas que


fabricavam o sujeito dito “normal” a partir das transformações da passagem
para as anomalias. Embora o asilo tenha sido uma peça-chave fundamental
na estratégia estabelecida pela psiquiatria para que tivesse uma função
permanente e efetiva, também garantia o caráter médico cujo as medidas
terapêuticas se debruçavam nas punições e na moralização para intervenção
permanente na sociedade (FOUCAULT, 2010, p. 326). A medicina passa
então a se delimitar mais no século XX por meio de práticas autoritárias
exercidas sobre o louco com uma criação de superioridade. Destarte,
comportamentos referentes a fuga dos padrões ditados pela racionalidade
acabaram por se tornar objeto de intervenção médica, para assim colocar
em um jogo de conduta o homem social em meio ao exercício da
normalidade. Em vista disso, reformas práticas são feitas no pensamento
psiquiátrico ao recolocar em questão o papel da psiquiatria clássica de

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produzir a verdade da doença no espaço hospitalar: Poder-se-ia então falar
das antipsiquiatrias6 que atravessaram a história da psiquiatria moderna
(FOUCAULT, 2018, p. 206).
Em suma, os discursos e práticas de medicalização da loucura
demasiadamente autoritárias se atrela a um “governar da loucura”, no
aspecto de condução dos corpos e mentes para uma normalidade: A conduta
é o ato de direcionar o sujeito e esse exercício do poder consiste em “conduzir
condutas” para ordenar e enquadrar, tal que, o eixo a ser tratado condiz em
um termo quase que novo: “governo da loucura” 7. Governar a loucura seria
tentar colocar um ponto final sobre ela, encerra-la em limites aceitáveis e
favoráveis socialmente. Ao passo que não se anula a preponderância da
medicalização em virtude do avanço da ciência e da saúde como um todo,
porém a proposta aqui seria a delimitação de limites para que tais práticas
medicalizantes não excedam com formas autoritárias de controle.
Governar é de alguma forma estruturar o campo das ações de outros
sujeitos: um mapeamento de condutas e comportamentos. Contudo, nessa
perspectiva de “governo” pode-se dizer que as relações de poder foram mais
do que governamentalizadas, e sim, elaboradas, centralizadas e
racionalizadas na forma das instituições. Desse modo, a arte de governar é
o exercício do poder enquanto modelo da economia; como a própria essência
do governo, tanto que se governam sobretudo corpos e suas relações com
os costumes, bens e territórios. Assim, o governo da loucura assumiu o
encargo de controle e condução a um fim conveniente e favorável, pois todo
governo tem uma finalidade, e em relação à loucura, era de silencia-la;
apaga-la.

6
Antipsiquiatria neste contexto se opõe às formas conservadoras de poder ao transferir ao
“doente” o poder de produzir sua própria loucura, sua linguagem e a verdade dessa loucura
ao invés de reduzi-la como se fosse um discurso vazio, pois está para além.
7
Discussão encontrada no Microfísica do poder (2018) em que a partir do séc. XVI se
desenvolve inúmeros tratados como arte de governar, com muitas pistas para se pensar a
problemática em torno do governo de si mesmo, das almas e das condutas.

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Desde o século XVIII, vivemos na era da governamentalidade.
Governamentalização do Estado, que é um fenômeno particularmente
astucioso, pois se efetivamente os problemas da
governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão
política fundamental e o espaço real de luta política, a
governamentalização do Estado foi um fenômeno que permitiu o
Estado sobreviver (FOUCAULT, 2018, p. 430).

Em resumo, se enfatiza que tais experiências e conceituações acerca


da loucura ao longo da história são distribuídas em cada época de acordo
com as regras coercitivas de organização impostas pelo simples limite da
razão, na qual estabelece em torno de si uma positividade moldada e
reproduzida a partir de um determinado curso histórico, composto por um
trajeto do que seria a doença mental/transtorno mental (termo relativamente
novo): “A expansão do mercado da psiquiatria e da indústria farmacêutica
parece não ter limites, na medida em que a são inúmeras as experiências
humanas que podem ser convertidas em doenças mentais” (FREITAS;
AMARANTE, 2015, p. 105). Atentando-se para as estruturas de exclusão e
mecanismos de enclausuramento, por meio de práticas que produziram o
louco em meio a discursos e relações de saber-poder.
Nesse sentido, essa é uma discussão que busca promover formas de
resistências e reflexões, pois não há relações de poder sem resistências, sem
linhas de fuga, sem inversões, e nem se produz mais um humano
demasiadamente humano, mas um humano demasiadamente medicalizado,
normalizado, controlado, padronizado.

3. Processos de subjetivação: normalização e poder disciplinar

Para abarcar tais práticas de subjetivação, Foucault vai propor


primeiramente interrogá-las, desconstruindo modos de vida, de pensar e agir
que foram moldados, cristalizados. A problematização dessas produções de
corpos e mentes é imprescindível nesse texto, pois perpassam por criações
de corpos dóceis e úteis através da disciplina e da docilização. Nessa

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perspectiva, um corpo dócil é um corpo manipulável como afirma Foucault:
“É dócil um corpo que poder ser submetido, que pode ser utilizado, que pode
ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2014, p. 134). Portanto, as
disciplinas produzem não só corpos, como também subjetivações que sofrem
um modelo visível de poder disciplinar e seja qual for a sociedade, o corpo
controlado/moldado estará amarrados aos poderes, proibições e padrões.
O corpo ao decorrer do século XIX será o novo princípio. Um corpo que
precisará ser protegido por um controle duradouro, uma exclusão dos tidos
degenerados e uma vigilância fortalecida com métodos de assepsia
(FOUCAULT, 2018, p. 234). Com efeito se tem o surgimento do corpo social
na medida em que a materialidade do poder se exerce sobre o corpo do
sujeito. Concomitantemente, uma atenção maior foi atribuída ao corpo que
se pode manipular, modelar, treinar, na medida em que obedece tornando-
se mais hábil. Desse modo, por intermédio de vários processos nos quais
refletiam o controle e a correção do comportamento do corpo, o sujeito se
tornou algo fabricável em massa. Logo, a partir de um corpo inapto há uma
fabricação de um indivíduo no qual precisa ter seus comportamentos
corrigidos aos poucos e de forma gradual, através da coação calculada
(FOUCAULT, 2014, p. 134).
O reflexo em torno desses processos se tratava tanto de uma
submissão duradoura quanto de um funcionamento que em seu fim mesmo
visava um corpo útil, inteligível; racional-treinado. Nessa perspectiva, é
corroborada a noção de docilização, ou seja, um corpo dócil é um corpo
manipulável. Portanto, este corpo docilizado sofre um modelo visível de
poder disciplinar, seja em qual for a sociedade o corpo controlado está
amarrado aos poderes, proibições e padrões culturalmente propagados por
funções normalizadoras. Por meio da produção do olhar vigilante cada sujeito
vai exercer sobre si a vigilância- tanto dos que vigiam quanto dos que estão
sendo vigiados, uma espécie de maquinaria em que nenhum sujeito é o

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maquinista, porém o lugar em que cada um se encontra é algo determinante
para se criar efeitos de supremacia e soberania.
Se instala então, o que se pode chamar de maquinário de controle e
até “domesticação” dos corpos e mentes mediante um saber-poder
corroborado pelo controle e pela clausura, em detrimento de um discurso
patologizante. Assim, se abre o que podemos chamar de galeria das
patologias, ou melhor, há uma caracterização e “exposição” em massa de
diversos distúrbios que fogem do imaginário social considerado normal e
aceitável, sendo encontrados nos rostos e nos corpos dos sujeitos desviantes
- inseridos em um catálogo com diversos rótulos psicopatológicos que devem
ser capturados, controlados, conduzidos, enclausurados, por não condizerem
com a normalidade, por serem indesejáveis.
A normalização das condutas não se trata, necessariamente, de cuidar
do corpo, pelo contrário, é uma perda do domínio de si e cuidado. É trabalhar
o corpo e exercer uma coerção incessante para manter um poder duradouro
sobre um sujeito ativo. Assim, é por meio da disciplina como forma geral de
dominação, pelo caminhar dos séculos XVII e XVIII, que se tornou possível
um controle minucioso através de seus métodos ao realizar no indivíduo
imposições nas quais um corpo dócil é um corpo útil. Logo, se poderia ter
domínio sobre o outro fazendo com que seja conduzido como se deseja, ou
seja, por meio da eficácia e rapidez.
Os alicerces encontrados nas ferramentas tecnológicas consolidam não
somente uma relação de sujeição estrita, uma “disciplinarização da loucura”,
como também uma analítica foucaultiana que possibilita a compreensão dos
efeitos que o poder disciplinar pode exercer diretamente em comportamentos
que fogem dos padrões considerados normais, por meio da ideia de controle
e utilidade. Assim, as técnicas de poder centradas nos corpos dos indivíduos-
pelo controle disciplinar e pela vigilância, impõem uma via de mão dupla
tanto por uma série de comportamentos a serem seguidos quanto pela
relação com a rapidez, produtividade e eficácia, propagando ao máximo a

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eficiência sem abrir espaço para o ócio e a inutilidade. Dessa forma, há uma
constituição de um corpo mecanizado, treinado, manipulado para viver em
busca da perfeição disciplinar enquanto corpos condenados a viver na
clausura infinita das limitações.
A sanção normalizadora das normas fortalece uma “igualdade da
normalidade” através de uma sociedade disciplinar/sociedade do controle
que fabrica corpos disciplinados e corrobora a indústria da loucura como uma
máquina de produção baseada na arte de governar o outro. Afirma Foucault:
“o poder de regulamentação obriga à homogeneidade; mas individualiza,
permitindo medir os desvios, determinar os níveis, fixar as especialidades e
tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras” (FOUCAULT, 2014,
p. 181). Logo, a sociedade disciplinar é essa rede captura faz parte de um
controle incessante em que todos os sujeitos são prisioneiros seguindo,
justamente, um caminho para se impor o “bom adestramento”.
Vale ressaltar que a primeira experiência de hospitalização da loucura
não teria sido no internamento como prática social e moral, cuja
apresentação histórica situada no discurso foucaultiano encontra-se na
contestação do internamento como única via encontrada para tratar da
loucura, mas como justificativa para definições médicas nas quais
delimitavam condutas consideradas anormais em virtude de um saber-poder.
Esse saber-poder posto nas mãos da medicina constata o delírio criado no
discurso do desatino sob o olhar da loucura, de modo que não será um
progresso, e sim, uma alteração a respeito da loucura a qual a medicina lhe
prepara um rosto novo para sua natureza, pois agora caberá ao médico
desvendar as marcas da verdade: “Os desenvolvimentos da medicina, a
medicalização geral do comportamento, dos discursos, dos desejos etc. se
dão onde os dois planos heterogêneos da disciplina e da soberania se
encontram” (FOUCAULT, 2018, 294). Portanto, a medicina coloca o
comportamento do sujeito socialmente aceito, fortalecido nos termos de
normal e anormal, isto é, o juízo médico é baseado em um jogo de condutas,

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um exercício constante de normatização, no qual a medicina detém plenos
poderes para impor a sociedade um padrão, uma disciplina.
A medicina se fez por uma atividade normativa e subordinada, em que
o normal é alicerçado pela forma absoluta do conceito normativo que definiu
um tipo ideal de estrutura e de comportamento. Nesse sentido: “O anormal
não é patológico. Patológico implica em pathos, sentimento direto e concreto
de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada. Mas o
patológico é realmente o anormal” (CANGUILHEM, 1995, p. 106). Nessa
percepção, o normal não possui a rigidez de algo determinativo para todos
os sujeitos e sim, a versatilidade de uma norma que transforma relações com
as suas condições individualizadas, pois o limite entre normal e patológico se
tornou indeterminado. Desse modo, há uma relativização da saúde e da
doença, o que seria normal mesmo sendo normativo em certas condições
pode vir a ser patológico se permanecer sem alterações.

4. À guisa de conclusão

As reflexões propostas neste artigo fazem parte de uma discussão


materializada para além, não apenas para fazer ou reproduzir um diagnóstico
definido ou definitivo, mas para promover formas de resistências e reflexões.
De maneira que resistir aos processos de medicalização exacerbada em
defesa de uma sociedade de controle em que proteção e domínio andam
juntos, é um problematizar cotidiano de: como estamos pensando ações de
enfrentamento frente ao processo de medicalização enquanto maquinário de
condução dos corpos? Que gritos ecoam?
Essas são questões significativas para construção de um cenário e de
um recorte rico em inquietações tão atuais e necessárias a respeito da
medicalização da loucura e da vida. Portanto, é colocar em xeque a
apreensão de um diagnóstico do presente, da normalização de traços

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considerados desviantes, analisando o nosso momento, o cotidiano. É se
dispor a tornar-se o outro!
Partindo do sentido de transgressão, após todo o percurso histórico-
filosófico realizado, fazemos uma abertura para discussão sobre o papel da
medicina institucionalizada com privilégios e domínios de saber-poder para o
aniquilamento das diferenças e controle dos corpos por meio da
medicalização. Tal que, a medicalização8 emerge quando problemas de
diferentes ordens são apresentados como “patologias, transtornos,
distúrbios” para encobrir questões políticas, sociais, culturais que atravessam
a vida, a subjetividade e o cotidiano dos sujeitos, inserindo-os em um
catálogo extenso de patologias.
O diagnóstico é atribuído a partir de critérios dentro do que se
considera normal ou anormal, como uma estampa, um estigma dado aos que
questionam, que fantasiam e os que mergulham em seus devaneios. Esses
rótulos corroboram a padronização e homogeneização de condutas sem
questionar ou modificar, ou melhor, coloca-se no sujeito etiquetas, o
deixando contido. Dessa forma, a docilização e a patologização são formas
de fortalecer uma sociedade disciplinar, cujo a importância de se manter
dentro das demandas é não só uma construção social, mas vias de
adestramento e domesticação dos corpos. Tais demandas dizem respeito a
criatividade, produtividade, utilidade enquanto construções sociais
alicerçadas em um sentimento de pertencimento do próprio sujeito- que
busca se enquadrar de todas as formas.
Uma ligação historicamente construída passa a se enraizar não
somente no aspecto da doença ou do diagnóstico, mas sobretudo, na
transformação da medicina como instituição anátomo-política com um
poderio significativo que vai se instaurando com naturalidade e eficácia por

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O que muda é o lócus, não se medicaliza mais somente dentro dos muros dos hospitais
psiquiátricos, mas esse processo se faz até em céu aberto.

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meio da governamentalidade e da vigilância social e moral. Todavia, a forma
como a medicalização se encontra tão fixada é tão notória que estamos
vivendo sob uma tendência contemporânea de tudo medicalizar e: “para
sermos sujeitos nos sujeitamos ao poder médico-farmacológico,
consequentemente menos sujeitos somos em relação a nosso pensamento,
ao nosso modo de agir e ao que sentimos” (FREITAS; AMARANTE, 2015, p,
34). Dessa forma, fortalecemos cotidianamente uma cultura medicalizante
da vida, da existência, e que não é atribuída a um profissional em específico,
pois não se medicaliza somente pela medicina ou pela figura do médico, mas
sim pela sociedade como um todo.
No que se refere ao biopoder, tal ligação- medicina e indústria
farmacêutica, se potencializa relações de forças em torno do poder para o
governo dos corpos em massa. Logo, essa é uma discussão transdisciplinar,
de modo que atravessa vidas, corpos, subjetividades e se possui todo esse
atravessamento, então perpassa também pela nossa formação. Então, como
pensar ações de enfrentamento a essas práticas medicalizantes exacerbadas
e excludentes? Quais outras formas podemos “tratar” a loucura? Quais são
as “promessas” de saída que estão sendo criadas e propagadas?
Tais questões demandam em certa medida possibilidades e aberturas
para resistências, por meio de estratégias multidisciplinares que perpassem
pela articulação em rede com o intuito de achar brechas e fissuras. Contudo,
o resistir acontece nas soluções e implicações coletivas, nas conversações,
nos encontros, no diálogo como ferramenta potencializadora e no cuidado
das existências diante de práticas que vão atravessando esses corpos, os
capturando e os agenciando: “nas ações de transparência e responsabilidade
ética que possibilitem uma política de saúde, não uma política de mercado”
(FREITAS; AMARANTE, 2015, p 133). Portanto, é primordial pensar em
políticas públicas de cuidado e atenção psicossocial, questionando assim,
instituição criadas apenas para o lucro.

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Referências

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FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France


(1972-1973). São Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 7 ed. Rio de Janeiro/São Paulo:


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FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico: curso do Collège de France


(1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FOUCAULT, Michel. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e


Psicanálise. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 45 ed. Petrópolis


(RJ): Vozes, 2014.

FREITAS, Fernando. AMARANTE, Paulo. Medicalização em Psiquiatria. Rio


de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.

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