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OS SERINGAIS DO GUAPORÉ

José Hilário

As levas de retirantes que, vindas do Ceará para o vale do Guaporé, percorriam


inicialmente a caatinga espinhenta e inóspita - que era um nunca acabar -, abandonando casas,
roçados e animais domésticos motivados pela dificuldade de poder sobreviver com dignidade,
deixando para trás um mundo de escaldantes e selênicas solidões, onde o sol castigava até as
espinhentas macambiras que cresciam junto às margens dos ressequidos riachos sertanejos. No
caminho, nem uma só nuvem num céu de coloração demasiadamente azul. Léguas e mais léguas
percorridas sem um miserável fio de água potável. Homens, mulheres e crianças sedentos.
Escorbuto, sapiranga e um desânimo que imobilizava até os homens mais valentes e as mulheres
mais fortes, deixando muitas carcaças defuntas pelos caminhos da esperança.
Vastas e empoeiradas veredas rolavam sob as solas das alpercatas que conduziam pés
inchados e doloridos, até que começavam a desaparecer os cactos, os xiquexiques, as coroas-de-
frade e os columbís. Então os miseráveis retirantes percebiam que já haviam transposto o
indomável sertão cearense e estavam entrando nos carnaubais do Piauí. Neste ponto, saindo do
mato ralo e espinhoso, novo contigente de retirantes vinha se juntar à caravana e, todos juntos,
irmanados pela mesma fatalidade, silenciosamente, como numa procissão fúnebre, caminhavam,
nutrindo a esperança de um dia poderem avistar as imensas florestas do misterioso vale do
Guaporé.
Sedentos, famélicos, doentes, esquálidos, os que não morriam durante a travessia das
insalubres várzeas maranhenses conseguiam chegar na região do Grão-Pará. Ali, o verde que fora
avarento durante todo o percurso, ia se estendendo mais constante e generoso, porém trazendo
consigo novos contingentes de miseráveis, gente que também almejava conhecer os tão afamados
seringais da fronteira do Brasil com a Bolívia. Estes últimos, mais bem aparelhados por já terem
trabalhado nos seringais paraenses, traziam ferramentas apropriadas, alguns animais domésticos
e, como os demais atormentados, a indômita fé de um dia poderem viver com a dignidade, a
liberdade e o respeito que todo ser humano merece.
Assim, movidos pelo mesmo ideal e unidos pelo mesmo espírito aventureiro, embarcavam
em rústicas embarcações e navegavam por rios compridos e caudalosos. O destino final tinha

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como destino final os imensos seringais do vale do Guaporé, a derradeira etapa do calvário que
começara no sertão nordestino.
Mais algumas léguas navegadas, e então a visão da pequena vila de Riacho Fundo [atual
Porto Velho]. Muitos ficavam por ali mesmo, outros mais ousados seguiam rio Madeira acima,
embevecidos pelas suas águas revoltas e cristalinas que invadiam gretas, baixios e as cavidades
das pedras ricas em ouro e outros minerais preciosos, assenhorando-se de tudo o que ia alagando,
correndo voluptuosamente, saltando cascatas, rompendo morros, furnas e matas. Na fronteira do
Brasil com a Bolívia encontravam uma selva que a tudo aprisionava, até engolir gulosamente a
luz do sol, com força fecunda e poderosa.
Aquele majestoso rio e a imponente selva formavam, no local, um cenário de união,
abraçando os também imensos e despreocupados rios Beni, Guaporé e Mamoré. Os migrantes,
açoitados pelo destino flagicioso, também se sentiam unidos: uma união solidária e fraterna entre
os três distintos e incomparáveis grupos raciais. O primeiro, de cor bronzeada, procedia das
caatingas nordestinas repudiadas e esquecidas porque nelas não fluía a água necessária à
sobrevivência humana. O segundo, composto de negros e mestiços, vinha do Piauí, uma região
onde nem mesmo as copas das maiores palmeiras produziam o alimento suficiente à
sobrevivência humana, nem sombra em abundância para os animais domésticos. O que se ouvia
naquelas caatingas flamíferas eram somente os murmúrios dos sobreviventes da última estiagem:
rezas, falatórios sem nexo e ruídos de flagelados desesperados que desciam em funestas
procissões para a Bahia, à procura da cidade mística de Canudos, onde o beato Antônio
Conselheiro teimava em produzir indiscritíveis loucuras, misérias e incontáveis violências. O
último grupo, formado basicamente por caboclos desdentados, escravos fujões, procedia dos
seringais do Pará. Fugiam não da estiagem, como os nordestinos, mas das carabinas dos
famigerados capitães-do-mato, que os queriam ver acorrentados aos troncos das senzalas de seus
inflexíveis e cruéis patrões seringalistas.
Vencido o derradeiro trecho da caminhada dos grupos que seguiam em direção à fronteira,
finalmente aqueles flagelados pisavam o solo que continha rios e mais rios, para juntos formarem
o Amazonas, o maior monumento de água doce do mundo. Aqueles desventurados, em sua
sagacidade, inicialmente encontraram esses rios impetuosos, imensos, fecundos, terríveis, por
onde navegaram em frágeis embarcações portadoras de esperanças, que é o que melhor define a
epopéia da colonização amazônica.

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Todo aquele mundo selvático e entrelaçado por imenso cipoal, de incomensuráveis e
distintas hiléias, foi percorrido naquela época e em várias direções por aqueles valentes
brasileiros, em expedições às vezes trágicas. Porém, graças a esse louco desbravar é que foram
descobertos os climas saudáveis ou endêmicos, conhecidas as tribos indígenas amistosas ou
indômitas, palmilhadas as terras para se determinar regiões férteis ou áridas. Esses
conhecimentos foram facilitando àqueles homens a adaptação ao novo meio, provocando a
criação de uma nova cultura, de uma nova maneira de viver, de permanecer e de prosperar. Mas
não somente se depararam com uma desconhecida geografia, como com um mundo vegetal e
animal inédito, que tanto inicialmente os entusiasmou como os castigou. Inimigos constantes
eram os índios caripunas - donos por direito de todas aquelas terras. Silenciosamente, os
selvagens tocaiavam os invasores com seus arcos, flechas, tacapes e armadilhas. Quando
conseguiam se safar, os invasores invariavelmente caíam nos dentes afiados dos jacarés que
infestavam as margens dos rios e lagoas, formando verdadeiros criatórios de tão ferozes criaturas.
Em suas incursões pela selva, o alimento levado por aqueles homens rapidamente
estragava. Diante disso, passavam privações e adquiriam um sem número de enfermidades
tropicais. O impaludismo era uma ameaça constante, ocasionado pelas nuvens de carapanãs que
os molestavam. Sem médico e sem medicamentos, somente contavam com a ajuda de algum
curandeiro que lhes suturava rusticamente as feridas ou lhes amputava pernas e braços, sem outra
anestesia que não fosse uma ordinária, mas sempre bem-vinda “botella de caña” boliviana.
Na calada da noite, as suçuaranas espionavam os que se aventuravam pelas matas, que
eram silenciosamente abatidos e arrastados para o “ninho”, onde eram gulosamente devorados
pela família de felinos. Os que não tinham galinhas, porcos e outros animais domésticos para
comer, às vezes comiam rãs, aves selvagens e peixes desconhecidos que, não raras vezes, lhes
causava intoxicações seríssimas e até a morte. Isso também acontecia aos que se alimentavam de
plantas exóticas, frutas tóxicas ou crustáceos venenosos. A natureza tão pródiga da selva também
apresentava muitos outros inimigos a combater: mosquitos, lacraias, serpentes e formigas
enormes, que avançavam em regimento, esqueletizando os pequenos animais que apanhavam, em
poucos minutos. Nos troncos das árvores apodrecidas e nas locas de pedras das margens dos rios,
as serpentes venenosas eram um perigo constante, se atirando, como se tivessem molas, sobre
quem se aventurasse a cruzar o seu caminho. As caranguejeiras, cujo peso mais da metade é

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veneno, hipnotizavam, até paralisar, desde pequenos pássaros até roedores e pequenos pássaros,
envenenando-os, matando-os, devorando-os.
Além das jibóias, das cascavéis, dos urutus, das jararacas e das salamantas, o maior de
todos os monstros ribeirinhos era a sucuri, a “serpente rainha”, que chegava a medir mais de 20
metros de comprimento e podia partir uma canoa ao meio e matar seus tripulantes por asfixia.
Outro grade perigo vinha da pantera negra, de olhos verdes, que seduzia a vítima antes de lhe
saltar à jugular, com lúgubre e diabólico rosnado afeminado.
No que se referia à beleza natural, as revoadas das araras e os ninhais de aves de brilhante
plumagem formavam um verdadeiro espetáculo paradisíaco. Entretanto, o admirador desavisado
podia tropeçar num cipó ou numa raiz solta e cair sobre espinhos pontiagudos ou insetos
venenosos, legítimos possuidores do lugar.
A mesma selva que protegia o índio que a conhecia e respeitava, era mortal inimiga dos
seringueiros. De trás de cada árvore, de cada ramagem, um par de olhos observava; de trás de
cada moita se escondia a morte por veneno, por garras afiadas, por flechas, por estrangulamento;
rios infestados de piranhas; banhados lotados de serpentes; calor infernal e a chuva que não
parava de cair.
Com a chegada da noite, a bicharada se aquietava até o dia seguinte, ficando somente os
piados das corujas e os gritinhos maliciosos das macacas. De madrugada cantava triste o urutau,
enquanto o bugio roncava com voz quase humana. E, dessa forma, na sombra da noite começava
o ciclo da sobrevivência, iluminada pelo brilho fugaz dos vaga-lumes, cujas lanterninhas se
projetavam sobre indistintas veredas difusas. Na escuridão da selva se acelerava o trânsito da vida
e da morte, o ciclo em permanente retroalimentação, onde o mais fraco morria sobre o acetinado
verde das folhas ou entre as fragrâncias das ricas madeiras de lei e efêmeras flores que
renovavam o composto orgânico do solo. Tudo se ocultava, reaparecia e se escondia novamente,
sem nenhuma trama secreta. Era simplesmente a vida em permanente luta contra a morte. A selva
amazônica inventou essa lei. No dia seguinte saiam daquela orgia verde, das sombras das
gigantescas cerejeiras, castanheiras e seringueiras os animais que povoavam o vale do Guaporé:
jaguares, onças, tapires, veados, javalis, lagartos, coelhos, raposas e pássaros, representando a
fauna selvagem onde a piedade não existia.
Era assim aquela Rondônia fantástica. A exuberância das suas matas pareciam paisagens
de outros planetas, mostrando indícios de passados esplendores. Contudo, a vida transcorria

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normalmente, a bicharada obedecendo a lei da natureza, os homens retirando o látex das
seringueiras e defumando-o em enormes bolas amareladas, enquanto suas mulheres plantavam os
cereais indispensáveis à sobrevivência familiar. E foi dessa forma que os migrantes nordestinos
se apoderaram do vale do rio Guaporé, onde, com muita fé e coragem, conseguiram traçar os
sagrados caminhos da esperança.
Talvez seja por isso que todo aquele que hoje visita a fronteira de Rondônia com a Bolívia
leve um pouco daquele dinamismo dentro deles – uma sensação maravilhosa que faz o
pensamento dissolver-se livremente e a alma voar pela terra dos sonhos. Chame aquele jardim
natural, se quiser, de excelso. Não, não é um lugar imaginário. É só partir de uma determinada
posição, navegar pelas águas calmas do rio Guaporé até o Forte Príncipe de Beira. Aí encontrará
o paraíso – e talvez também se encontre a si próprio.
Mas, se é verdade que hoje o vale do Guaporé seja um verdadeiro paraíso, quando o
conheci, ainda na década de 1970, certo dia me vi impedido de continuar a viagem parado num
trecho de lamaçal intransponível junto com um fiscal do IBAMA que me lhe pedido carona um
pouco antes. O fiscal disse que durante anos foi o único responsável pela vida selvagem da
região, perseguindo caçadores furtivos de animais silvestres, apreendendo redes ilegais de pesca e
contrabandistas de aves que atuavam numa área maior que o Estado do Sergipe.
A conversa abordou as suçuaranas que aterrorizam os habitantes da região. O fiscal
divertiu-se a contar uma cena do filme que assistiu, em que o herói, armado apenas com uma
faca, levava a melhor sobre um felino daqueles.
- Mentira – zombou. Lutar com uma suçuarana grande aqui na Amazônia? Não pode ser.
Tem algumas que podem pesar tanto quanto um bezerro. É difícil acreditar como elas são tão
grandes – abriu completamente os braços: ficam deste tamanho. Se pegarem um caçador
desprevenido é o fim da vida dele.
O fiscal também descreveu a sua experiência mais recente: - Caminhava com dificuldade
por uma picada para retirar aves da armadilha de um contrabandista. Ouvi um barulho atrás de
mim e virei-me a tempo de ver qualquer coisa na minha direção, saída do nada. Voltei correndo
para a estrada, mas nunca esquecerei o miado daquela figura sinistra. Não há nada parecido neste
mundo.
- Elas chegam a atacar até os homens?

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- Se estiverem famintas, sim. Não queira transformar-se em comida de onça, parceiro –
disse o fiscal. É estranho como as pessoas pensam que somos nós o topo da cadeia alimentícia.
Mais uma mentira. Os felinos é que o são.
- Há onças por aqui? – perguntei.
- Talvez umas duas ou três mais atrevidas – respondeu o fiscal, referindo-se às menos
perigosas, as pintadas. São capazes de comer um cão ou um veado pequeno. Mas as hipóteses
delas atacarem um homem são muito pequenas.
- As suçuaranas não chegam aqui?
- As onças assassinas preferem as matas fechadas e os estuários dos rios. São o verdadeiro
pesadelo das populações ribeirinhas – como os ursos do Alasca ou os tigres de Bengala. Mas
podem aparecer algumas – acabou por admitir o fiscal – A falta de comida por causa das
queimadas as deixam enfurecidas. É preciso ter cuidado.
Já havia escurecido quando ouvi o som de um pássaro melancólico, infinitamente
solitário.
- Uirapuru – explicou o fiscal.
Apesar do calor insuportável, tive que fechar os vidros do carro por causa das moscas e
dos carapanãs – com seus gemidos semelhantes a brocas de dentistas – que tinham aparecido com
força. Liguei o rádio, e por um bom tempo fiquei ouvindo um cantor romântico entoar a
conhecida canção “Amélia”.
E lá estava-mos nós, dois homens sentados nos bancos do carro tentando cochilar e
esperar por socorro quando o dia amanhecesse. A água mineral contida na garrafa plástica tinha
acabado. O fiscal ressonava, a sonhar, sem dúvida, com alguma fantástica suçuarana. E a
Amélia? Bem, ouvir aquela melodia era viajar para a minha casa distante. Naquele momento
minha mulher me pareceu ser a personagem principal daquela canção.
Deitado de costas e a olhar para o céu negro, senti-me subir até aquela imensidão
brilhante. Qualquer pessoa que dormisse num carro encalhado na estrada de Costa Marques, sob
as estrelas amazônicas, sentiria uma afinidade especial com elas. Há algo de tranqüilizador
quando se vê o Cruzeiro do Sul no seu posto, saber que aponta sempre para o Norte marcando no
infinito uma espécie de posição pessoal fixa.
Como um raio laser, uma estrela cadente riscou o céu. E subitamente percebi como os
índios caripunas, habitantes da região, que dormiram naquele mesmo lugar por milhares de anos

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antes do homem branco chegar, conseguiram idealizar os seus mitológicos e maravilhosos heróis
dos céus, que chegavam das estrelas naqueles místicos tempos de sonho para desenharem as
paisagens.
Os caripunas cantam canções dos tempos dos sonhos enquanto caminham. Cada verso
corresponde a um elemento físico – um rio, uma colina, uma pedra, um bicho – criado pelos
heróis dos céu no tempo antes do tempo. Seguindo os versos de um tempo para outro, mantêm-se
nos percursos pretendidos – chamados “caminhos das canções” ou “trilhas dos antepassados” –
através da selva outrora sem rotas. Pensando nisso, e com as constelações a brilhar na minha
mente, acabei caindo no meu próprio sonho.

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