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O pintor da tribo

Adriano Espínola

Além, muito além daquele tempo e não muito longe do mar bravio, uma pequena tribo vivia em
uma caverna. As nascentes ali próximas manchavam de verde os campos e faziam escorrer e
saltar a água e a caça pelos córregos.
Depois de numerosos invernos e verões regulares, eis que as nuvens se esgarçam, somem: o
estio se prolonga, e uma inesperada seca então prospera – pássaros e animais migram, árvores
emagrecem e se tornam cinza, as margens começam a se alargar e a rachar, bebendo o rio, até
transformá-lo em um poço turvo e triste, feito o olho magoado de uma velha.
Os homens buscam agora comer as raízes, os lagartos e os insetos que surpreendem por perto.
Entretanto, a fome e a sede começam a dobrar aqueles antes resolutos caçadores.
À noite, os mais velhos se reúnem, aflitos. Não sabem para onde ir. Discutem. Um deles se
ergue:
– Por que não matamos e comemos os mais fracos e inúteis da tribo? Assim poderemos
continuar aqui mesmo, até que a água borbulhe novamente por entre as pedras e os animais
retornem ao vale...
Todos concordam. Uma voz logo se lembra daquele tipo que, ao invés de ir à caça com os
demais, costuma passar o dia inteiro, no fundo da caverna, pintando pássaros e animais feridos,
estrelas e flechas, falando sozinho e proferindo palavras incompreensíveis. Seria o primeiro a ser
sacrificado.
Assim se deu.
Naquela mesma noite, abateram-me com uma pedrada na cabeça, enquanto dormia; retalharam-
no, salgaram os pedaços do seu corpo, expondo-os na manhã seguinte aos dedos rubros do sol
para secar.

Com parcimônia, foram-no consumindo, dia após noite.


Quando restavam apenas os dedos dos pés e das mãos do pintor, para talvez a última refeição
do grupo, súbito cai lá fora um pingo do alto, e outro, e mais outro. Daí a pouco, as nuvens se
abraçam, densas, precipitando-se estrepitosas sobre o chão ardido, durante horas e horas (e pelos
dias seguintes).
A tribo exulta, sai da caverna, dança por entre as árvores sedentas, chega-se ao rio e lá se
prostra ao chão enlameado das margens, para agradecer aos deuses relampejantes.
Está salva.
Porém, nunca mais voltaria a sonhar.
ESPÍNOLA, Adriano. In: Contos cruéis. São Paulo: Geração editorial, 2006.

Vocabulário
Esgarçam: se desfazem.
Estio: tempo quente e seco.
Turvo: sem brilho.
Resolutos: determinados; perseverantes.
Parcimônia: paciência; moderação.
Súbito: de repente.
Estrepitosas: barulhentas.
Exulta: demonstra excesso de alegria.
Prostra: se curva.

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