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As mulheres na América colonial

Alberto Baena Zapatero


Estela Roselló Soberón

Introdução
Explicar qual foi o papel das mulheres na história da América
durante o período colonial é uma tarefa complexa, uma vez que
corremos o risco de julgar o passado a partir de nossa sensibilidade atual.
É preciso inicialmente deixar claro que não existiu um único grupo de
mulheres, homogêneo e solidário, mas vários. Se concordarmos com
Joan Scott em que o significado do gênero não é imóvel, mas se trata
de uma construção cultural que se transforma no tempo e no espaço,
entenderemos que as mulheres viram a si mesmas e às suas congêneres
de uma maneira muito diferente em cada época.2 No caso da América
colonial, sua identidade se definiu em função de sua relação com os
homens, mas também de outros fatores como o grupo social, a etnia,
a religiosidade, a sexualidade, a idade e a etapa da vida. É verdade que
a subordinação de gênero foi transversal a todas as mulheres, mas era
capaz de alterar-se em função de todos estes fatores. 3Por exemplo,
uma senhora branca e de boa linhagem sempre ostentaria uma posição
superior à de um escravo negro, ainda que este fosse homem, assim
como uma viúva poderosa poderia impor sua autoridade sobre o resto
de sua família. Ao longo das páginas apresentaremos uma visão geral
da vida e das circunstâncias em que atuaram as diferentes mulheres que
habitaram o novo continente, desde as recém-chegadas, até aquelas que
viram seu mundo transformar-se com a chegada dos conquistadores.
De qualquer maneira, todas elas ajudaram a conformar as peculiares
sociedades que caracterizam a América até nossos dias.

As espanholas na América
Mesmo sendo as menos numerosas entre todas as mulheres que
povoaram a América, as espanholas ocuparam um lugar privilegiado
1 Tradução e notas: Maria Cristina Bohn Martins.
2 Cf. SCOTT, Joan W. El género: una categoría útil para el análisis histórico. In:
AMELANG, James S. Historia y género las mujeres en la Europa moderna y contemporánea.
Valencia: Alfonsel Magnànim, 1990.
3 STERN, Steve J. La historia secreta del género. Mujeres, hombres y poder en México en las
postrimerías del periodo colonial. México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 43.

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graças a sua origem. Estudá-las, resulta especialmente necessário, já


que tradicionalmente se apresentou a conquista e colonização do Novo
Mundo como uma empresa apenas de homens. A subvalorização do
papel desempenhado pelas espanholas tem sido justificada, em certas
ocasiões, sob o argumento de que elas sempre foram numericamente
menos presentes que seus homólogos masculinos, mas também se deveu
a outros fatores. É frequente que as mulheres acabassem invisibilizadas
nas fontes porque o cronista não lhes conferiu importância, ficaram
ocultas sob termos masculinos genéricos como “os soldados”, “o
povo” ou os “moradores”. Além disso, o fato de que os historiadores
tenham assumido preconceitos patriarcais em sua análise conferiu
uma orientação distorcida para suas preocupações. Desta forma, o
pressuposto de que aos homens corresponde o espaço público e às
mulheres o privado, contribui para que abundem as investigações
sobre o trabalho destas últimas no espaço doméstico (como mães e
educadoras dos filhos, administradoras da economia doméstica, etc.)
ou sobre a vida religiosa e conventual. Por este motivo, é necessário
romper os moldes tradicionais que fabricaram una imagem rígida do
passado para recuperar também o labor das mulheres fora de casa:
na guerra, nos negócios, na política, nas festas e celebrações, etc.4 As
mulheres não foram sujeitos passivos que assumiram o destino a elas
atribuído pelo modelo teórico, mas sim sujeitos ativos de suas próprias
vidas.
A presença das espanholas nas primeiras viagens à América foi
reduzida, ainda que tenhamos notícia de que Colombo transportou
30 mulheres em sua terceira viagem. Pouco a pouco seu número iria
aumentando, mas sempre numa proporção menor que a dos homens,
situação provocada por uma série de impedimentos culturais e
legais que lhes dificultava embarcar livremente. Em primeiro lugar,
desconfiava-se de sua resistência física para suportar as longas travessias
e os perigos que deveriam ser enfrentados, ademais, dada sua situação
de dependência jurídica dos homens, se lhes exigia uma permissão por
parte do pai ou do marido para poder viajar.5
Uma vez na América, as mulheres deveriam enfrentar os mesmos
perigos que os homens e muitas se prontificaram a participar das
4 Cf. BAENA, Alberto. Mujeres novohispanas e identidad criolla, edición revisada y
ampliada. Madrid: Distinta tinta, 2018.
5 Cf. PÉREZ CANTÓ, Pilar. Las españolas en la vida colonial. In: MORANT, Isabel.
Historia de las mujeres en España y América latina. v. 2. Madrid: Cátedra, 2005.

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expedições de conquista, em certas ocasiões por escolha pessoal e, em


outras, para acompanhar um familiar homem. Em princípio seu trabalho
deveria se desenvolver na retaguarda, preparando remédios e cuidando
dos feridos, mas em muitos casos acabavam lutando junto aos homens.
Dorantes de Carranza recordou que havia onze mulheres na hoste de
Hernán Cortés, das quais sete eram casadas. Dentre elas destacou os
feitos de María de Estrada, esposa de Alonso Martín, a quem atribuiu
uma atuação especial na Noche Triste6 e na decisiva batalha de Otumba.
O cronista Diego Muñoz Camargo dedicou a ela estas palavras:
se mostró valerosamente haciendo maravillosos y hazañeros hechos
con una espada y una rodela en las manos, peleando valerosamente
con tanta furia y ánimo, que excedía al esfuerzo de cualquier varón,
por esforzado y animoso que fuera, que a los propios nuestros ponía
espanto.7

Cortés, ao terminar a batalha, reconheceu seus méritos


concedendo-lhe dois “pueblos de indios”.8
Se os cronistas pensavam que a guerra ou as aventuras em terras
estranhas não eram apropriadas às mulheres, é lógico pensar que lhes
chamasse a atenção vê-las tomar as armas e deixassem testemunho
disso em seus livros. É assim possível encontrar algumas referências ao
papel desempenhado por mulheres excepcionais, ainda que destacando
seu caráter “varonil” ou suas qualidades masculinas. Por exemplo,
Frei Bartolomé de Las Casas qualificou Isabel de Bobadilla como “viril
matrona”, por sua valentia ao acompanhar o esposo, Pedrarias Dávila,
em sua expedição à Tierra Firme9 em 1514, enquanto que Pedro Mariño
de Lovera destacou o “arrojo varonil” de Inês de Castro frente aos
indígenas na conquista do Chile. Desta forma se resolvia a contradição
entre a teórica incapacidade feminina e a realidade desordenada da
América.
6 NT: O termo se refere à noite transcorrida entre 30 de junho e 1 de julho de 1520, em
que a resistência dos astecas obrigou os espanhóis liderados por Hernán Cortés a retirar-se de
Tenochtitlán onde haviam sido recebidos (a partir de 24 de junho de 1520), como hóspedes de
honra do Imperador Moctezuma Xocoyotzin, que destinou um de seus palácios para alojá-los.
7 CAMARGO, Diego Muñoz. Historia de Tlaxcala. México: Secretaría de Fomento, 1892,
p. 221; 227. [Nota 2].
8 NT: Fomentados pelas autoridades espanholas a partir de 1545, os “pueblos de índios”
(também chamados “reducciones” ou “cabeceras de doctrina” eram assentamentos de indígenas
que tinham por intuito concentrar a população cujo trabalho se queria explorar, favorecer a
cobrança de tributos, aumentar o controle e facilitar a catequese da população submetida.
9 NT: Termo que os espanhois usaram, para distinguir dos territórios insulares, as terras
do continente americano próximas ao mar Caribe no século XVI, especialmente a costa norte
da América do Sul, do Orinoco ao istmo do Panamá.

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Talvez o caso mais extremo que demonstra a fascinação que


suscitavam as mulheres guerreiras foi o de Catalina de Erauso. Ainda que
existam dúvidas sobre a veracidade de sua biografia, parece que foi uma
jovem monja que fugiu de seu convento no País Basco e acabou viajando
para a América disfarçada de homem em inícios do século XVII. No
novo continente ganhou notoriedade por seus méritos na guerra contra
os mapuches no Chile, adquirindo o grau de “alférez”. Ao descobrir-se
que era uma mulher, foi enviada a Madrid, onde sua popularidade fez
com que Felipe IV se interessasse por recebê-la tendo-a apelidado de “a
monja alférez”. O rei manteve seu cargo de alferes, concedeu-lhe uma
renda por seus méritos na conquista de Chile, e permitiu-lhe que usasse
seu nome masculino. Depois ela visitou o papa Urbano VIII em Roma,
o qual autorizou-a a continuar vestindo roupas masculinas. Catalina
de Erauso veio a ser um dos casos excepcionais, possíveis apenas nas
áreas de fronteira, e que conseguiam agir na contra-mão daquilo que
se esperava de uma mulher, motivo pelo qual sua fama chegou até
nossos dias, enquanto a lembrança da grande maioria delas se perde na
obscuridade dos tempos.
Curiosamente, a mais famosa das conquistadoras não foi uma
espanhola, mas uma indígena: doña Marina, apelidada Malinche.
Sabemos pouco de sua vida antes da chegada dos espanhóis ao México
em 1519. Ela foi uma das vinte escravas oferecidas como tributo aos
vencedores, depois da vitória de Hernán Cortés sobre os indígenas
Chontales de Tabasco. Seu papel na conquista foi fundamental, já que
não só atuou como intérprete, mas assessorou Cortés em sua relação
com as populações locais. Malinche foi uma astuta intermediária
cultural, que soube beneficiar-se das circunstâncias que lhe coube
viver para sair da servidão e ganhar um lugar destacado, para ela e
seus filhos na nova sociedade colonial. Não obstante, no México atual
seu nome é para muitos, sinônimo de traição ou de maior apreço pelo
que é estrangeiro do que pelo que é próprio. Uma vez mais, uma visão
anacrônica e masculina do passado culpa uma mulher por todos os
males, como se tratasse de uma Eva mexicana.
A maioria das espanholas que sobreviveram à conquista obtiveram
parte do botim e aspiraram fazer bons casamentos. Contudo, conforme
foram passando os anos e a sociedade colonial foi se estabilizando,
tornou-se cada vez mais difícil conseguir este reconhecimento. Dorantes
de Carranza oferece um exemplo da distância que foi se estabelecendo
entre os méritos das mulheres e a distribuição das recompensas. Apesar
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de que o cronista admitia que não houve apenas conquistadores


homens, mas que também contribuíram para as vitórias mulheres
“valerosísimas, y que hicieron grandes hechos y valentías como ellos”,
ele não concedeu a elas o mesmo tratamento. Sua Sumaria relación de
las cosas de la Nueva España pretendia rememorar as façanhas daqueles
que participaram da conquista com o objetivo de obter mercês da Coroa,
para o que apresenta uma lista de conquistadores e seus descendentes,
mas esquece de enumerar as mulheres. Curiosamente, junto ao nome
dos filhos, aparecem os nomes de 65 genros, além dos maridos das
netas e, inclusive, dos sucessores homens pelo lado materno. Trata-
se, portanto, de uma mostra significativa da visão androcêntrica que
caracterizou os escritores da época, que entendiam que as mulheres
podiam transmitir aos homens méritos seus ou de suas linhagens, mas
não os desfrutar pessoalmente.10
As espanholas nunca renunciaram aos prêmios que acreditavam
merecer e continuaram reclamando-os junto às autoridades. Uma
fonte excelente para que os historiadores recuperem sua participação
na conquista e os ganhos que obtiveram são os “memoriais de
méritos e serviços” depositados nos arquivos. Trata-se de um tipo de
documento apresentado às autoridades reais que narravam os serviços,
supostamente prestados pelo peticionário ou seus antepassados,
com o objetivo de obter alguma recompensa por parte da Coroa. Em
relação às mulheres, seu estudo oferece três possíveis situações: que os
apresentaram em seu próprio nome em função de seus méritos ou dos
méritos de sua linhagem; que os apresentassem alegando os méritos
de seus maridos ou suas famílias; ou que, ao contrário, fossem seus
maridos ou descendentes que recorressem aos méritos das mulheres ou
de suas linhagens para receber mercês.
A situação de vulnerabilidade das mulheres fazia com que viúvas
ou órfãs exigissem os recursos necessários para poder viver conforme
sua qualidade. Neste sentido, abundam nas fontes os lamentos de
criollas11 pela a situação de suposta pobreza em que eram lançadas pela
ingratidão da Coroa. Em geral, atuaram como meras transmissoras
de honra e as autoridades preferiam pagar com mercês aos varões de
suas famílias, fossem eles maridos ou filhos. Por este motivo, é lógico
10 BAENA, Alberto. As vice-rainhas e o exercício do poder na Nova Espanha (sec. XVI e
XVII). Revista de História Universidade de São Paulo, n. 176, 2017.
11 “Criollo” era o termo pelo qual eram conhecidos os filhos de espanhóis nascidos na
América.

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que interessasse aos espanhóis recém-chegados casar com as filhas ou


netas de conquistadores, dado o prestígio social que podiam ofercer
e a possibilidade de reclamar mercês. Algumas vezes, o problema de
como tratar as descendentes dos conquistadores era solucionado com a
criação de conventos em que elas ingressassem de maneira gratuita, de
forma a evitar que casassem com membros de grupos inferiores. A vida
conventual significou para algumas um refúgio de liberdade em que
viviam com todo tipo de luxo, recebiam visitas e não deviam obedecer
ao pai ou ao marido. Neste sentido, o convento de Santa Catarina em
Arequipa (Peru), parecia-se com uma pequena cidade com ruas em
que as ricas criollas viviam com criadas que cozinhavam para elas seus
pratos preferidos. Para outras, a clausura resultou uma condenação que
aceitaram com mais ou menos resignação.
Entre os prêmios mais habituais e cobiçados que as autoridades
costumavam conceder aos espanhóis na América durante o século
XVI, encontravam-se as encomiendas. Por meio desta instituição, um
indivíduo recebia o direito de beneficiar-se do tributo em trabalho ou
em espécie, de um grupo de indígenas. Apesar de que desde sua origem
europeia se havia estabelecido que o direito às encomiendas devia recair
sobre homens, na América a prática fez com que muitas mulheres
pudessem desfrutar delas, diretamente ou por herança. Isto significava
uma contradição porque entre as obrigações do encomendero estava a
de defender a terra e, como já explicamos, supostamente esta função
correspondia aos varões. Frente a esta situação, iniciou-se uma ferrenha
discussão entre detratores e partidários. Entre as críticas de escritores
mexicanos como Gonzalo Gómez de Cervantes ou juristas como Juan
de Solórzano Pereira, fazia-se novamente alusão a falta de capacidade
das mulheres, mas também a crença de muitos criollos de que, por meio
do matrimônio das encomenderas com peninsulares recém-chegados,
perdia-se a mão de obra indígena em favor de pessoas que não a
mereciam por não serem naturais do vice-reinado. Esta queixa sobre
a suposta preferência das ricas herdeiras criollas pelos peninsulares
se fazia presente ainda na época da independência, em que elas eram
convidadas, por meio de panfletos, a limpar sua mancha ajudando na
causa insurgente. Pelo lado contrário, o conselheiro de Índias Antonio
de León Pinelo, alegava que o costume de conceder encomiendas a
mulheres demostrava que, elas eram perfeitamente hábeis para tal
responsabilidade. Neste caso, a Coroa tentou resolver o problema entre
teoria e prática obrigando as encomenderas a casar-se, porém, como

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neste caso a titularidade da encomienda passaria para o marido, muitas


se negaram a obedecer.
A maioria dos que emigraram da Europa para a América eram
homens. É difícil obter dados exatos, mas se calcula que até o século XVII
puderam viajar 54.882 pessoas, das quais 10.118 seriam espanholas, cerca
de 16,56 % do total, porcentagem que aumentou para 28% na segunda
metade.12 Em geral, sua presença ampliou quando a fase de conquista
cedeu lugar para um processo de estabilização em que a Coroa e a
Igreja apoiaram a instituição familiar como base das novas sociedades.
Em qualquer caso, estes dados demonstram a escassez de espanholas
disponíveis para casar na América durante a primeira centúria, situação
que mudou apenas lentamente e que viria a marcar profundamente as
novas sociedades. A maior parte delas procediam da Andaluzia e da
Extremadura, sendo destino a Nova Espanha ou o Peru. É importante
destacar que até 1560 a maioria das mulheres que embarcavam eram
casadas, tanto se o faziam acompanhando o marido como se viajavam
sozinhas para ir ao seu encontro; depois disso, abundariam as solteiras
em busca de um futuro melhor.
No século XVII, a imigração de peninsulares diminuiria devido a
que os solteiros podiam encontrar esposa entre um número maior de
criollas. Evidentemente, pelo fato de casar com espanholas os homens
não deixaram de manter relações fora do matrimônio com mulheres
de outros grupos étnicos, o que produziu um número importantes de
mestiços ilegítimos que acabaram em situação de marginalidade social.
Alguns destes indivíduos conseguiam prosperar economicamente e,
longe de resignar-se com uma situação de inferioridade social, lutaram
para que se lhes reconhecessem a honra que gozavam os membros
dos grupos privilegiados. Desta forma, houve pardos ou mestiços que
compraram da Coroa as chamadas “gracias al sacar” que lhes permitiam
direito a cargos que estavam proibidos aos membros de sua condição,
ou que lhes facultavam o uso distintivo do termo “don”, reservado
tradicionalmente à nobreza.13 As mulheres também lutaram para obter
o reconhecimento de seus vizinhos e muitas optaram pela ostentação
de sua condição por meio de vestidos luxuosos, jóias, serviçais, etc. Este
gasto suntuoso se estendeu aos grupos supostamente inferiores, o que
12 MARTÍNEZ, José Luis. Pasajeros de Indias. México: Fondo de Cultura Económica,
2001, p. 190. [Primera edição 1983].
13 Cf. TWINAM, Ann. Vidas públicas, secretos privados. Género, honor, sexualidad e
ilegitimidad en la Hispanoamérica colonial. México: FCE, 1999.

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levou tanto aos moralistas como a aquelas damas privilegiadas que se


viam pressionadas pela situação, a denunciar a “confusão dos estados”
e a “ruína das fazendas”.
As motivações das espanholas que viajavam para a América não
eram muito diferentes das dos homens. Muitas embarcavam rumo ao
desconhecido com a ideia de aproveitar as oportunidades abertas e
conseguir alguma ascensão social. Se pudessem, voltariam à Península a
fim de desfrutar seu sucesso. Assim o explicava Andrea López de Vargas
em uma carta para sua mãe em 1577:
nosotros tenemos voluntad, siendo Dios servido, de no envejecer en
esta tierra, porque, Dios queriendo, en teniendo un poco de resuello,
nos iremos con el ayuda suya, porque, aunque esta tierra es buena para
ganar de comer, no lo es para envejecer en ella, porque es tierra donde
se tiene poco contento para poder estar en ella, sino es, como digo,
mientras se gana para poder ir a esa buena de Castilla.14

O desejo de proteger a institução familiar e o receio que a


condição de “solteirice” provocava, fez com que a Coroa apoiasse
a emigração feminina. Os colonos estavam obrigados a transportar
suas esposas até o novo continente, a não ser que contassem com
seu consentimento ou sua negativa para viajar. Contudo, esta
situação nem sempre se produzia e a maior parte das atividades da
Inquisição na América esteve em perseguir casos de bigamia. Para
as espanholas trazia uma sensação de medo e insegurança diante das
longas ausências de seus esposos, que marcou profundamente sua
personalidade.
Como é lógico, a mescla entre as populações locais e as que foram
chegando, tanto europeus como africanos, deu lugar a um novo tipo de
sociedade caracterizada pela heterogeneidade cultural e étnica. Na parte
alta da pirâmide social situavam-se as espanholas, tanto peninsulares
como criollas, enquanto que nos estratos abaixo distribuíam-se
mestiços, indígenas, mulatos e escravos negros. Não obstante, a divisão
social nunca foi tão rígida como se imaginou tradicionalmente, e os
indivíduos podiam melhorar de situação graças à sua fortuna. Logo
depois da conquista surgiram as chamadas mestiças reais, que eram
descendentes dos conquistadores e da nobreza indígena, a quem foi
concedida a categoria legal de espanholas e foram educadas como
criollas. Sabemos que houve, depois, indivíduos que melhoram sua
14 OTTE, Enrique. Cartas privadas de emigrantes a Indias 1540-1616. México: Fondo de
Cultura Económica, 1993, p. 75 et seq.

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categoria étnica ou a de seus filhos nos registros oficiais pagando ao


pároco correspondente pelo favor.
A maioria das espanholas vivia nas cidades, com o que era mais
fácil manter o controle cultural e biológico do grupo dos brancos frente
a maioria de outras etnias. Tanto a Coroa como a Igreja esperavam que
as espanholas atuassem como transmissoras dos princípios culturais e
religiosos própios da Espanha. Aspectos como as vestimentas, a dieta,
a educação dos filhos, os comportamentos sociais ou os fundamentos
religiosos, eram considerados importantes para perpetuar o vínculo que
unia ambas partes da Monarquia. Neste aspecto, as espanholas deviam
dar bom exemplo aos demais grupos da sociedade colonial e inclusive
atuar como mestres de meninas indígenas nobres, para que elas, depois,
divulgassem seus ensinamentos morais e religiosos entre suas famílias.
Houve espanholas ricas e pobres, mas a maioria se reunia em
centros urbanos nos quais desenvolviam ocupações que iam além da
administração do espaço doméstico. As circunstâncias que fizeram
isto possível foram variadas: houve mulheres casadas que utilizaram os
bens de seus dotes para realizar negócios; outras que aproveitaram a
ausência ou falecimento do esposo para administrar os bens familiares;
ou aquelas que, por sua pobreza, viram-se diante da necessidade de
contribuir com seu trabalho para a manutenção da economia familiar.15
Entre as mais ricas houve encomenderas, grandes fazendeiras,
mineiras, proprietárias de engenhos ou de obrajes,16 e temos notícia
de mulheres que empregaram seu capital no comércio, no empréstimo
de dinheiro ou no aluguel de casas. O que é mais difícil determinar
é até que ponto elas exerceram diretamente a atividade econômica
ou se a delegaram a administradores de sua confiança. Entre as que
tinham menos recursos, houve mulheres que trabalharam de padeiras,
costureiras, lavadeiras, parteiras, curandeiras, vendedoras de rua, etc.,
houve inclusive prostitutas. Também houve grêmios que permitiram às
viúvas continuar a desenvolver o ofício de seus maridos.17
As cidades eram o grande teatro em que homens e mulheres
de diferentes grupos étnicos se relacionavam, sempre de acordo com

15 PÉREZ CANTÓ, Pilar. Las españolas en la vida colonial. In: MORANT, Isabel. Historia
de las mujeres en España y América latina. v. 2. Madrid: Cátedra, 2005, p. 153.
16 Obrajes eram pequenas manufaturas de produtros têxteis que operavam especialmente
com trabalho compulsório indígena.
17 PÉREZ CANTÓ, Pilar. Las españolas en la vida colonial... Op. cit., p. 525-554.

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As Américas na Primeira Modernidade

sua qualidade e condição. Para as elites locais era a oportunidade


de demonstrar seu poder econômico e social frente ao resto dos
habitantes. Uma vez que em muitos casos se tratava de linhagens
novas, que haviam ascendido rapidamente graças às oportunidades na
América, seu desejo sempre foi assimilar-se à nobreza europeia. Para
conseguir este objetivo investiram grandes fortunas em seu aspecto
público (roupas, jóias, carruagens, escravos, etc.) e buscaram imitar
os costumes aristocráticos.
As cidades do México e Lima eram as capitais dos grandes vice-
reinados americanos e em torno de seus governantes se desenvolveu
uma rica vida cortesã. Neste aspecto, o papel das vice-rainhas era muito
relevante, como nos recordam as palavras escritas em 1528 por Baldassare
Castiglione no seu famoso livro, El cortesano: “No puede haber corte
ninguna, por grande y maravillosa que sea, que alcance valor ni lustre ni
alegría sin damas”.18 Algumas vice-rainhas demostraram poder maior,
participando da política por meio da influência sobre seus esposos,
criando redes de patronato em seu benefício e organizando negócios
privados. Dada a cultura patriarcal que imperava, esta atividade devia
fazer-se de forma discreta já que, sendo evidente aos olhos de seus
contemporâneos, a vice-rainha seria acusada de dominadora, e o vice-
rei perderia todo o respeito de seus vassalos.19
As vice-rainhas foram uma referência social e política de primeira
ordem. Durante as principais festas do reino recebiam as personalidades
no palácio para cumprir com a cerimônia do “beija-mão”, enquanto
na catedral tinham reservado um luxuoso lugar especial, a chamada
“jaula”. Ademais, a sobreposição entre o público e o privado que
caracterizou a cultura da época motivou que qualquer nascimento,
batismo, comunhão, aniversário ou funeral de qualquer membro da
familia vice-reinal, fosse festejado pela cidade como prova do amor que
sentiam por seus governantes.20
Assim como ocorria com seus esposos, as vice-rainhas se
transladavam para a América acompanhadas por um grupo de damas
e “donas”, muitas delas solteiras. Estas mulheres deviam servir a suas
senhoras em seu novo destino, mas alimentavam o mesmo desejo que
18 CASTIGLIONE, Baldassare. El cortesano. Madrid: Espasa-Calpe, 1984, p. 231.
19 BAENA, Alberto. Mujeres novohispanas e identidad criolla, edición revisada y ampliada...
Op. cit., p. 1-34.
20 Idem. As vice-rainhas e o exercício do poder na Nova Espanha (sec. XVI e XVII)... Op.
cit.

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os homens de utilizar sua posição na Corte para conseguir um bom


matrimônio, e a maioria não regressava à Espanha junto com sua
protetora. Ao longo do século XVII, o número de damas que seguiam
a cada vice-rainha oscilou entre l8 e 29. Estas mulheres eram utilizadas
pelas vice-rainhas para estabelecer uma rede de lealdades nos novos
territórios a que chegavam e fortalecer sua frágil posição. As criadas
solteras se casavam com criollos e, no caso daquelas outras que estavam
casadas, procurava-se o enlace de seus filhos com jovens de famílias
importantes. Ademais, a corte das vice- rainhas se completava com
damas criollas das linhagens mais influentes.21 Talvez a mais famosa
destas damas tenha sido Juana Inés de Asbaje y Ramírez de Santillana,
mais conhecida como sor Juana Inés de la Cruz.
Juana Inés de Asbaje demonstrou desde muito jovem excepcional
inteligência e erudição, o que lhe abriu as portas da Corte mexicana.
Durante seus anos de juventude teve uma relação especial com a vice-
rainha Leonor de Carreto, mas parece que sua falta de interesse pelo
matrimônio e seu desejo de dedicar-se à literatura a animaram a se
tornar uma monja. No convento, gozou da proteção de outra vice-
rainha, María Luisa Manrique y Gonzaga, condessa de Paredes, foi
reconhecida pelos seus contemporâneos e apelidada de a “décima
musa” pela qualidade de suas obras, passando para a história como uma
das melhores escritoras do barroco espanhol.
Sóror Juana foi uma a mais entre as mulheres que viram seus
interesses se chocarem com as normas impostas pelo patriarcado. Sua
vontade de aprender despertou o desejo de ingressar na universidade
que, entretanto, estava fechada para as mulheres. Já como monja, seus
textos sobre teologia valeram para ela a reprovação das autoridades
religiosas, que buscaram estimulá-la a dedicar-se a outros temas que
seriam mais apropriados para sua condição. Na América foi imposto
às mulheres um modelo teórico muito similar ao da Europa. Os livros
de frei Luis de León ou de Luís Vives sobre o papel que elas deviam
desempenhar foram lidos na América e numerosos moralistas trataram
que suas ideias fossem ali respeitadas. Assim, religiosos como frei Juan
de Zumárraga, frei Antonio de Ezcaray, frei Andrés de Olmos, frei
Agustín Dávila Padilla, Francisco de Florencia, Juan de Palafox, Gil
González Dávila, ou Juan Martínez de la Parra entre outros, assumiram
a infrutífera missão de aplicar o modelo europeu ao novo continente.
21 Cf. BAENA, Alberto. Mujeres novohispanas e identidad criolla, edición revisada y
ampliada... Op. cit.

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As Américas na Primeira Modernidade

Do mesmo modo, as hagiografías e a literatura espiritual eram leituras


habituais entre as americanas, religiosas ou leigas, o que fez com que
muitas tentassem imitar o exemplo das místicas, praticando a oração
mental e o castigo do corpo.

Índias, mestiças, mulatas e negras


Tal como foi mencionado no princípio deste capítulo, as mulheres
da América colonial constituíram um grupo heterogêneo e plural,
cujos antecedentes remontavam a épocas pré-colombianas. Antes
da chegada dos europeus ao Novo Mundo, a população de homens
e mulheres que o habitavam já tinha uma história muito diversa. É
curioso recordar as imagens que vinham à mente de Colombo e de
seus homens conforme se aproximavam da Tierra Firme, naquela
primeira viagem que haveria de mudar a história da humanidade.
Durante a travessia, o marinheiro genovês e seus companheiros de
tripulação nunca descartaram a possibilidade de encontrar sereias nos
mares ignotos pelos quais navegavam. Assim, em algum momento,
o próprio Almirante afirmou haver visto três delas, mas com um
sabor de desilusão. Contudo, logo que se depararam com as costas
americanas, os europeus deixaram para trás as fantásticas criaturas,
e em seu lugar começaram a encontrar e a vincular-se com mulheres
indígenas, estas sim humanas e de carne e osso, que haveriam de
gerar novas emoções, desejos, imaginários, necessidades e relações na
história global da Idade Moderna.
As indígenas que povoaram o continente americano antes da
chegada dos europeus tinham pertencido a grupos muitos distintos
entre si. Da Patagônia aos Estados Unidos, o território havia estado
habitado por povos originários daquelas terras, tais como eram os
guaranis, os mapuches, akawayos, aimaras, quechuas, incas, mayas,
nahuas, otomíes, mames, mixtecos, pimas, hopis, navajos, apaches, sioux
ou cherokees, para mencionar apenas alguns. A partir do momento do
contato entre europeus e americanos, a diversidade daquela população
nativa gerou, sem dúvida, situações distintas e particulares. Em
algumas predominaram as reações de resistência, enquanto que, em
outras, as de adaptação. A sujeição frente à apropriação, a obediência
frente à negociação, foram algumas das respostas que formaram parte
daquelas histórias distintas, construídas a partir dos múltiplos fatores
que rodearam a população feminina das diferentes regiões do território
americano. Apesar daquela grande diversidade, em todas as histórias
28
Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins (org.)

que surgiram a partir daquele momento, na América colonial houve um


denominador comum: o protagonismo indubitável das índias, mulheres
que a todo instante atuaram como sujeitos plenos de iniciativas,
necessidades, desejos, preocupações e decisões próprias.
No caso dos primeiros vice-reinados espanhóis no Novo Mundo,
muitas mulheres índias pertencentes às famílias nobres de tempos pré-
hispânicos conservaram certos privilégios. Algumas delas se casaram
com espanhóis poderosos, que buscaram se unir a elas para ganhar
riquezas e terras. As índias cacicas daqueles territórios cobraram
tributos, mantiveram suas casas, suas terras e suas propriedades
durante muito tempo. Assim, pouco a pouco, como muitas outras, estas
mulheres índias se integraram à nova ordem dominante da civilização
católica e europeia que enraizou-se na América a partir do século XVI.
No México e no Perú, em que a existência de civilizações
originárias sedentárias facilitou o processo de conversão religiosa e
de evangelização da população nativa, rapidamente os missionários
exigiram às mulheres indígenas que transformassem muitos de seus
antigos costumes, ideias, crenças e atividades econômicas e domésticas
cotidianas para adotar uma vida cristã. Além disso, os franciscanos,
dominicanos, agostinianos e mais tarde, os jesuítas, buscaram que as
mulheres indígenas dos primeiros tempos das sociedades coloniais
modificassem suas antigas formas de vincular-se com os homens, assim
como lhes exigiram criar novas famílias que respondessem ao modelo
de família cristã ideal.
Desta maneira, por exemplo, muitas indígenas que durante séculos
haviam vivido desnudas e sem as inibições do pudor católico, tiveram
que aprender a cobrir seus corpos e a sentir vergonha. Do mesmo modo,
se durante a época pré-colombiana as mulheres indígenas haviam
estado acostumadas a viver dentro de famílias polígamas, agora, a partir
da chegada da religião cristã, estas tiveram que aprender a respeitar o
sacramento do matrimônio e a comportar-se de acordo com os valores
que a Igreja católica promovia como parte do estereótipo de esposa
cristã virtuosa. Pouco a pouco, muitas indígenas se acostumaram a
obedecer às novas regras morais, assim como internalizaram muitos
estereótipos cristãos vinculados, por exemplo, com os sentimentos de
culpa e de medo do Inferno, em relação a situações cotidianas como a
nudez ou a promiscuidade que em tempos pré-coloniais não haviam
gerado incômodo entre elas.

29
As Américas na Primeira Modernidade

Naqueles primeiros anos da conversão da população nativa


ao cristianismo, a resposta das mulheres indígenas foi diversa. Nem
todas elas quiseram adotar o que os freis predicavam em suas missas
e sermões. Em verdade, durante muito tempo, muitas delas resistiram
em adotar a nova moral e a comportar-se de acordo com o que os
missionários ensinavam. Assim, por exemplo, elas escondiam antigos
ídolos nas igrejas para poder seguir os adorando e rendendo culto a
eles. Efetivamente, muitas mulheres nativas não só se converteram
elas próprias à nova religião, mas também colaboraram com
os missionários para converter às crianças e aos homens que as
rodeavam. Neste sentido são interessantes, por exemplo, as crônicas
daqueles primeiros anos de evangelização na Nova Espanha, nas quais
aparecem relatos exemplares em que as mulheres atuam como um
importante instrumento no processo de evangelização e transformação
dos costumes. Processos que, sob o olhar dos autores daqueles
escritos, formavam parte do combate contra a ordem diabólica que
havia dominado as sociedades pré-hispánicas. Assim, por exemplo, o
franciscano Gerónimo de Mendieta contava como em certa ocasião,
uma índia do México havia recebido uma forte surra por acusar a seu
marido de estar amancebado com outra mulher. O relato edificante
do frei terminava quando Nosso Senhor Jesus Cristo e a própria
Virgem apareciam para a mulher piedosa e golpeada, que graças a
suas orações e à intervenção do Filho de Deus, recebeu a visita de São
Pedro, que, tocando-a com suas mãos, curou as feridas ocasionadas
pelo espancamento do marido pecador.22
Apesar de que, desde muito cedo as mulheres indígenas ficaram
excluídas da possibilidade de ingressar nos conventos como monjas,
muitas delas serviram às monjas espanholas e criollas dentro daqueles
recintos religiosos. Além disso, pouco a pouco, as indígenas americanas
se habituaram à igreja, ajudaram em conventos e hospitais e, sobretudo,
organizaram-se em confrarias que promoveram o culto a diversos
santos e tornaram possível a proliferação da vida religiosa em suas
manifestações mais populares e cotidianas. A organização de festas, o
cuidado com os altares nos templos, a assistência aos irmãos enfermos,
a coleta de esmolas, para mencionar apenas algumas, foram atividades
da vida religiosa cotidiana nas quais as indígenas da América colonial
tiveram uma atuação dinâmica e constante.

22 ROSELLÓ SOBERÓN, Estela. Así en la Tierra como en el Cielo. México: El Colegio de


México, 2006, p. 94.

30
Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins (org.)

Os processos de conquista sempre foram acontecimentos tristes e


violentos. Neles, seguramente houveram violações e humilhações contra
as mulheres nativas dos povoados que eram submetidos. Ademais,
antes de 1542, ano em que a Coroa espanhola emitiu as Leyes Nuevas
proibindo a escravidão das indígenas, essa era legalizada na América
colonial hispânica. Para dizer a verdade, mesmo depois da proibição,
muitos europeus seguiram escravizando nativas. Isso ocorreu, por
exemplo, no território do Chile durante as guerras dos séculos XVI
e XVII, em que os espanhóis capturavam as mulheres mapuches ou
huilliches para reduzi-las à escravidão. Como em outros territórios
da América colonial, as escravas indígenas serviam aos religiosos,
estancieiros e soldados.23
Por outro lado, além dos abusos sexuais, a escravidão e os
atos violentos que muitos europeus cometeram contra as indígenas
americanas a partir dos primeiros contatos entre ambos mundos,
desde os primeiros momentos de interação entre índios e europeus, as
mulheres nativas também adquiriram valor particular nos intercâmbios,
negociações, pactos e relações de poder entre os homens do Velho e do
Novo Mundo. Assim, por exemplo, entre as passagens mais memoráveis
da Relación de la conquista de la Nueva España escrita pelo soldado
Bernal Díaz del Castillo,24 encontra-se a narração dos obséquios feitos
pelos caciques de Tabasco aos homens de Hernán Cortés em um de
seus primeiros encontros. Após descrever as mantas e vários objetos de
ouro que compunham o conjunto dos presentes, Bernal acrescenta que
no fue nada todo este presente en comparación de veinte mujeres y
entre ellas una muy excelente mujer que se dijo doña Marina... y diré
que Cortés recibió aquel presente con alegría.25

Como já explicamos, o Capitão tomou a índia Malinche como


sua concubina e repartiu as outras mulheres entre seus homens para
que lhes fizessem companhia. Também no caso da conquista dos
23 VALENZUELA MÁRQUEZ, Jaime. Indias esclavas ante la real Audiencia de Chile
1650-1680. In: MÁRQUEZ, Jaime Valenzuela. América en diásporas. Esclavitudes y migraciones
forzadas en Chile y otras regiones americanas (siglos XVI-XIX). Santiago: Pontificia Universidad
Católica de Chile, Instituto de Historia/ Red Columnaria/ RIL Editores, 2017, p. 326.
24 Depois de ter estado presente nas expedições de Franciso Hernández de Córdoba (1517)
e de Juan de Grijalva (1518) às costas do Iucatã, Bernal Díaz del Castillho fez parte das tropas
de Hernán Cortés que tomaram a capital asteca, Tenochtitlan. Ele foi o autor de um dos mais
conhecidos relatos deste evento, a História Verdadeira da Conquista da Nova Espanha, obra
concluída em 1568.
25 DEL CASTILLO, Bernal Díaz. Historia verdadera de la Nueva España. México: Porrúa,
2017, p. 58.

31
As Américas na Primeira Modernidade

incas, Francisco Pizarro tomou por concubina a índia Quispe Cusi,


cujo nome cristão foi Inés Haullas-Nustas. Por sua vez, o conquistador
Diego de Sandoval tomou por esposa a irmã do inca Atahualpa.26 O
mesmo ocorreu no Paraguai, em que os chefes das tribos guaranis
intercambiavam mulheres por presentes que lhes eram entregues pelos
conquistadores espanhóis.27
Pouco a pouco, os homens europeus e as indígenas americanas
começaram a vincular-se, as vezes por meio da força e da submissão, as
vezes de maneira mais livre, dando origem a uniões sexuais e relações
entre casais que resultaram em uma nova população americana,
híbrida. Esta nova população, produto da mescla entre os europeus
e as mulheres nativas do novo continente originaria novas formas de
falar, de comer, de vestir, de organizar cidades, de trabalhar, de sentir
e de estar no mundo. Sem dúvida alguma, ao longo dos três séculos de
história colonial, as mulheres haveriam de ser importantes criadoras e
transmissoras deste novo universo cultural no continente americano.
Porém, se em princípio muitas indígenas foram escravizadas ou
utilizadas como objeto para selar alianças, pactuar a paz ou estabelecer
relações entre os índios e os europeus na América, também é certo
que elas não foram passivas frente à sua escravidão ou às guerras de
submissão europeias. Sabemos ao contrário, que muitas participaram
ativamente da busca de sua liberdade, assim como nas guerras de
conquista, nas rebeliões indígenas e nas formas de resistência geradas
ao longo de três séculos, durante todo o período colonial, para fazer
frente ao domínio europeu sobre as populações originárias. No caso
da escravidão, por exemplo, sabe-se que muitas buscaram os meios
jurídicos para recuperar sua liberdade e lutaram por ela nos tribunais
de justiça pertinentes.
Também se conhece que, por exemplo, muitas índias araucanas
combateram os conquistadores espanhóis durante as guerras de
conquista no Chile; mulheres que passaram para a história pelo arrojo,
força e valentia com que defenderam os índios e enfrentavam aos
europeus. Por sua parte, uma vez mais, Bernal Díaz del Castillo narra
a história de uma índia velha e gorda que cobriu o corpo de pinturas e

26 HERRERO Sánchez, Patricia. Las mujeres en el virreinato del Perú. IX Congreso virtual
sobre Historia de las mujeres. La Rioja, 2017, p. 315.
27 Cf. PELOZATTO Reilly, Mauro Luis. Las mujeres en el virreinato de Perú: diferentes
situaciones locales y regionales. Argentina: Diario Nova, 2016, p. 2.

32
Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins (org.)

algodão, para participar de uma batalha rodeada de copal28 e imagens


de seus deuses; foi assim que ela se pôs na defesa dos índios que lutavam
contra os espanhóis em Chiapas, no século XVI.29 Por outro lado,
existem registros de muitas índias de Tlatelolco que durante a guerra
lançaram dardos contra os espanhóis para impedir o triunfo sobre os
mexicanos naquela cidade.
Mas, além desta participação bélica nas batalhas das guerras de
conquista, durante os três séculos de história colonial americana, muitas
índias opuseram outro tipo de resistência menos sangrenta, mas não
menos contundente, para evitar o domínio cultural espanhol sobre suas
comunidades. Foi este o caso, por exemplo, da indígena tzeltal, María
Candelaria, que promoveu, no século XVIII, a rebelião dos índios de
Cancuc30 contra as autoridades religiosas espanholas daquele povoado.
De acordo com o que narra o historiador Juan Pedro Viqueira, ela se
converteu em um veículo mediante o qual a Virgem Maria se dirigiu
aos tzeltales para animá-los a sublevar-se contra os espanhóis.31
Mas, se é certo que durante os três séculos que conformaram a
história colonial americana houve momentos e territórios em que a
guerra contra os índios foi uma constante, e, portanto, a resistência
da população nativa contra realidades adversas foi contínua, também
é certo que, na maior parte do continente, os tempos de guerra e
confrontação das conquistas do século XVI deram lugar a momentos de
paz ao longo dos séculos XVII e XVIII. Durante eles, a América colonial
viu florescerem cidades, povoados, fazendas, zonas mineiras e rotas
comerciais. A formação de sociedades mestiças, corporativas e católicas
acompanhou o processo de crescimento econômico nos territórios
americanos. Tanto no fortalecimento das economias coloniais, como na
consolidação da cultura católica que deu sentido às sociedades do Novo

28 Trata-se de uma espécie de resina que tinha diversas utilidades na Mesoamérica antiga.
Fresca podia ser usada como incenso em cerimônias, por exemplo.
29 RUZ, Mario. Reseña a libro de Juan Pedro Viqueira. Instituto de Investigaciones
Filológicas, 2013, p. 181.
30 Rebelião indígena cujo centro esteve no povoado de Cancuc em Chiapas. Iniciada em
agosto de 1712 depois que María López (que assumiu, então, o nome de María Candelaria)
relatou ter recebido, da Virgem, a notícia de que Deus e o rei estavam mortos. Depois desta
aparição, enviaram-se anúncios para todos os povoados da etnia tzeltal de que já não havia rei,
convocando os indígenas para comparecer a Cancuc em que foi erigida uma ermida. Antes
de ser contida em novembro do mesmo ano, a rebelião consagrou seus próprios sacerdotes e
perturbou gravemente o pagamento de tributos dos indígenas da região.
31 VIQUEIRA, Juan Pedro. María de la Candelaria, india natural de Cancuc. México:
FCE, 1993, p. 10.

33
As Américas na Primeira Modernidade

Mundo durante os séculos XVI, XVII e XVIII, as indígenas tiveram


uma participação muito ativa.
Já em suas primeiras notícias sobre o Novo Mundo, Colombo
informava aos Reis Católicos lhe parecer que “las mujeres... trabajan
más que los hombres”.32 Assim, uma vez estabelecida a nova ordem
colonial na América, as índias começaram a desempenhar diversos
tipos de atividades econômicas tanto no campo, como nas vilas,
povoados e cidades de todo o território americano. No caso de Cuzco,
por exemplo, era comum encontrar as índias elaborando e vendendo
chicha nos mercados.33 Também em outras regiões do alto Peru ou
em Potosi, as índias comerciavam com coca.34 No México, as índias de
todas as regiões da antiga Mesoamérica vendiam águas frescas, pulque,
tortillas,35 frutas e outros produtos da terra em mercados, ruas e praças.
Entre as atividades econômicas femininas nas quais mais participaram
as mulheres indígenas estavam as têxteis e o cultivo da terra. Assim, na
região pampeana, muitas criaram ovelhas, lavaram a lã, fiaram, teceram
e tingiram.36 Em Córdoba, as indígenas produziram roupa de algodão
para os encomendeiros, enquanto que, em Tucumán, por exemplo,
muitas teceram ponchos para toda a população, indígena e espanhola.
Desta maneira as mulheres indígenas assumiram um lugar
importante na vida econômica, cultural e social de suas comunidades.
Além das atividades anteriormente apresentadas, muitas nativas
americanas conservaram antigas tradições e saberes populares que
continuaram vivos durante o período colonial. Conhece-se bem, neste
sentido, a importância delas ao serem transmissoras do conhecimento
medicinal pré-hispánico. A venda e utilização médica de todo tipo de
ervas e remédios antigos para curar foram, também, parte daquela
realidade feminina americana. Entre os saberes indígenas femininos
mais buscados encontrava-se, sem dúvida, o das parteiras, mulheres
que saíam de suas casas para atender as suas congêneres e ajudá-las no
parto.
32 COLÓN. Cartas. Barcelona: Linkgua, 2012, p. 4.
33 A chicha é uma bebida fermentada feita geralmente a base de milho que era consumida
nos Andes, mas também entre povos indígenas de outras regiões sul-americanas.
34 Cf. TUPAYACHI, Erik Gabriel Bustamante. Cofradías y mujeres en la sociedad rural: las
mayoralas en Cajatambo y Jauja siglo XVII. Versión en línea, 2016.
35 O pulque (ou octli) é uma bebida alcoólica feita do suco fermentado do agave, consumida
tradicionalmente na Mesoamérica. Já a tortilla (ou tlaxcalli) é um alimento tradicional, também
da Mesoamérica, preparado a partir do milho.
36 PELOZATTO Reilly, Mauro Luis. Las mujeres en el virreinato de Perú... Op. cit., p. 2.

34
Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins (org.)

São muitas as fontes que registraram a vida cotidiana, o lugar


ocupado pelas mulheres indígenas na América colonial: testamentos,
processos judiciais, censos, registros batismais, crônicas, diários. Há
ainda, as fontes pictóricas, que também aportam informações de sumo
interesse para os historiadores: as imagens que aparecem nos biombos
e em pinturas de castas do século XVIII trazem pistas importantes
para reconstruir o lugar ocupado pelas indígenas naquela sociedade.
Por exemplo, para o caso do México, estas últimas nos dão ideia dos
ofícios que desempenharam as mulheres nativas naquele vice-reinado:
servidoras domésticas, vendedoras de tortillas, ajudantes em ateliês
têxteis, vendedoras de frutas nas ruas.
Como é fácil supor, a população de nativas na América colonial
não se manteve pura ou isolada. Ao contrário, estas mulheres se
mesclaram com homens europeus, com índios de grupos diferentes
dos seus, com varões de origem asiática, que também chegaram ao
Novo Mundo devido ao comércio com as Filipinas. Assim também,
com os homens afrodescendentes que chegaram a América de maneira
massiva a partir da segunda metade do século XVII para trabalhar como
escravos em minas, fazendas, plantações e cidades. A mescla biológica
das indígenas com homens de origens diferentes não foi um fenômeno
exclusivo. Com a paulatina consolidação das sociedades coloniais
também se deu a paulatina construção de um novo universo cultural
em que confluíram múltiplas tradições. A convivência entre as índias
e os homens e mulheres procedentes de outras regiões do mundo e da
própria América gerou intercâmbios materiais, linguísticos, alimentícios
e emocionais em que as mulheres nativas tiveram uma participação
ativa. Para mencionar apenas um exemplo, cabe recordar a forma pela
qual as mulheres indígenas do México vendiam às espanholas daquela
cidade, amuletos amorosos feitos a base de colibris. Efetivamente, a
magia foi uma das dimensões em que muitas tradições europeias de
origem medieval, outras de origem pré-hispânica e algumas outras de
origem africana, deram lugar a um universo cultural americano rico,
híbrido e complexo. Nele, as indígenas tiveram, certamente, um lugar
importante; porém é necessário assinalar que não foi menor aquele
que foi ocupado pelas mulheres de origem africana que rapidamente
se integraram de maneira fundamental ao universo feminino das
sociedades da América colonial.
As epidemias que dizimaram a população indígena de várias
regiões do continente americano no século XVI e, em consequência,
35
As Américas na Primeira Modernidade

a perda de muitos homens e mulheres indígenas que haviam se


encarregado de ativar a economia daquele continente, reunidas à
necessidade de uma grande quantidade de mão de obra em plantações
de açúcar e de tabaco, em fazendas, estâncias e minas de todo o território
geraram a pronta necessidade de importar escravos de origem africana
para o Novo Mundo. Não houve região do continente americano que
tenha estado alheia a esta realidade. Rapidamente, a partir da segunda
metade do século XVI e, sobretudo, durante o século XVII, o tráfico
negreiro massivo se converteu em um proveitoso negócio para as
companhias europeias que forneceram escravos para todos os vice-
reinados do Novo Mundo.
Nos primeiros anos da introdução da população de origem
africana na América, permitiu-se que chegassem a tais territórios uma
proporção de cinquenta por cento de escravos e cinquenta por cento
de escravas. Entretanto, os trabalhos para os quais se necessitava mão
de obra no Novo Mundo eram mais propícios para homens que para
mulheres, de forma que logo estipulou-se que as cargas de escravos
comportassem dois terços de homens e um terço de mulheres.37 É
importante recordar que as mulheres africanas não só foram escravas
no continente americano; em seus próprios lugares de origem elas
foram muito valorizadas, já que seu trabalho e seu papel social e cultural
foram essenciais no desenvolvimento econômico, assim como para dar
continuidade à ordem social estabelecida em suas comunidades locais.
Neste sentido, sabe-se que na África as mulheres escravas chegavam
a custar mais que os próprios homens.38 Ao chegar ao Novo Mundo,
estas mulheres também se converteram em personagens essenciais
para a vida cotidiana de todas as sociedades americanas coloniais,
pois desempenharam ofícios e ofereceram serviços que tinham muita
demanda.
Nos primeiros anos após sua chegada a América, as escravas negras
procediam das costas africanas em que os portugueses, holandeses e
ingleses comerciavam com escravistas africanos. As negras boçais39 que
chegaram nos primeros tempos do tráfico negreiro, estabeleceram-se
por todo o território americano. Depois, muitas delas começaram a

37 GONZALO, Aguirre Beltrán. La población negra en México. México: FCE, 1989, p. 30.
38 KLEIN, Herbert. El tráfico de esclavos. Perú: IEP, 2011, p. 232.
39 Expressão pela qual eram conhecidos os escravos recém-chegados da África
diferenciando-os dos “ladinos” que eram aqueles que, havendo chegado há mais tempo,
conheciam a língua local.

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chegar desde Sevilha, em que aquelas mulheres embarcaram nos galeões


que haveriam de transladá-las a seu novo destino. Pouco a pouco, às
negras boçais procedentes de Angola e Congo, entre outras regiões do
continente africano, somaram-se as muitas mulatas vindas da Espanha
e de Portugal. A partir do século XVII, a população feminina americana
também esteve conformada por negras criollas, já nascidas nas Antilhas
ou em territórios continentais, além das afromestiças que nasceram
como resultado da mescla entre homens e mulheres de origem indígena
e africana.
Como a história das indígenas americanas, a história das mulheres
negras, mulatas, morenas, pardas e afro-mestiças no Novo Mundo
foi, também, diversa e plural. À diversidade de origem e procedência
geográfica temos que acrescentar, entre muitas outras coisas, uma
condição que certamente marcou notáveis diferenças entre elas: a
da escravização ou liberdade. Ainda que, a princípio, as mulheres de
origem africana chegassem à América como escravas, com o tempo,
muitas delas viveram também sob a condição da liberdade. Algumas,
porque a compraram ou obtiveram de seus amos, outras, porque
nasceram de pais europeus que a concedeu; muitas outras, ganharam a
liberdade ao escapar e viver como fugitivas. Em todo caso, a história das
mulheres africanas e afrodescendentes na América está marcada pelas
ambivalências, tensões e dificuldades próprias de todos aqueles seres
humanos que tiveram que viver sob a terrível condição de oscilar entre
serem considerados, por vezes como mercadorias, por vezes como
pessoas.
As afrodescendentes na América colonial desempenharam
todo tipo de atividades econômicas. Muitas escravas negras, mulatas
e afromestiças trabalharam como tecelãs em obrajes; outras mais,
nas fazendas e estâncias de gado. Sem dúvida, a maior parte delas se
empregou nas cidades. Por um lado, trabalharam nas praças e ruas, e
por outro, nas casas das famílias mais privilegiadas, onde realizaram
múltiplas tarefas domésticas.
Nas ruas de capitais americanas como Lima, as negras e mulatas
escravas desfilavam com jóias e roupas luxuosas para mostrar o poder,
a riqueza e o status das famílias a que pertenciam. Em alguns casos,
os amos destas mulheres permitiram que, durante algumas horas
do dia, elas levassem a cabo pequenos trabalhos para ganhar algum
dinheiro para elas mesmas. Há registro de muitas negras e mulatas

37
As Américas na Primeira Modernidade

que economizaram durante toda a vida para comprar, na velhice, a sua


liberdade.
Por outro lado, muitas das mulheres afrodescendentes livres
que circulavam nos espaços públicos das vilas e povoados, dedicaram-
se a vender frutas, bebidas, doces, biscoitos, merengues e guloseimas.
Algumas negras, mulatas e afrodescendentes, por exemplo, a famosa
Madre Chepa de Veracruz,40 chegaram a ter um patrimônio considerável
e inclusive foram donas de hospedarias e de escravos.
Quanto aos trabalhos domésticos mais comuns neste setor
feminino, muitas negras, mulatas e afromestiças foram famosas
por serem extraordinárias cozinheiras. Algumas trabalharam como
lavadeiras e outras foram muito valorizadas como amas de leite
e cuidadoras das crianças de famílias espanholas e criollas. Este
último ponto se relaciona ao fato de muitas mulheres brancas que
eram proprietárias de escravas afrodescendentes, preferiam não
amamentar elas próprias, para evitar a deformidade de seus seios ou
a dor que algumas registravam decorrer da amamentação. Este fato
gerou vínculos muito estreitos entre as amas negras e mulatas e seus
“filhos de leite”, como eram chamadas as crianças que amamentavam
e criavam como se fossem seus.
É interessante pensar na história dos corpos das mulheres
de origem africana que viveram na América colonial. Ao revisar as
cartas de manumissão destas mulheres, ou mesmo as descrições que
se fazia de muitas delas, quando eram processadas ante o Santo Ofício
da Inquisição, é terrível deparar-se com seus corpos mutilados, sem
dentes ou marcados a ferro com as iniciais dos amos aos quais haviam
servido. Evidentemente, as dificuldades, maus tratos e más condições
que se abatiam sobre as afrodescendentes foram ainda piores quando
se tratava de mulheres escravas. Realmente, de acordo com a religião
católica, a escravidão de qualquer ser humano contemplava somente
o seu corpo, já que a alma sempre se conservava livre e disposta para
alcançar a salvação no além. Esta crença afetou de maneira terrível e
particular, a milhões de mulheres afrodescendentes que foram usadas,
castigadas ou açoitadas e que foram forçadas a usar seu corpo como

40 Josepha de Zarate, conhecida, também, como Madre Chepa, foi encarcerada na cidade
do México em 1723, denunciada por feitiçaria. Foi julgada e condenada pelo Tribunal do Santo
Ofício, em 1724. Ela tinha cerca de 40 anos, era viúva, e havia angariado fama, prestígio social
– e alguns recursos que lhe permitiam viver com certo conforto –, atuando como curandeira,
parteira e dona de hospedaria na cidade porto de Vera Cruz.

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Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins (org.)

ferramenta de trabalho para satisfazer as necessidades materiais ou


corporais de outros. Seja como amas de leite de crianças que não eram
suas, como amantes de amos que elas não podiam escolher ou como
trabalhadoras que deviam suportar difíceis condições físicas durante
suas jornadas laborais, ao serem consideradas mercadorias ou objetos,
as mulheres negras viveram sua corporalidade desde lugares muito
particulares, nem sempre fáceis de compreender ou imaginar desde
nossa mentalidade atual.
Por vezes, as próprias escravas afrodescendentes utilizaram o
valor de seu corpo escravo para conseguir, paradoxalmente, melhores
condições de vida para elas ou para suas descendentes. Assim, por
exemplo, muitas escravas negras ou mulatas buscaram tornarem-se
amantes de seus amos ou propiciaram relações com eles, posto que
muitas vezes, isto lhes garantia um tratamento melhor e também a
possibilidade de conseguir liberdade para seus filhos. Neste sentido, é
curioso o que narra o italiano Gemelli Careri em seu diário de viagem.
Em sua passagem pela América, este aventureiro de finais do século
XVII, descreveu a relação que muitas mulatas mantinham com os
criollos daquele continente, assim como as relações entre mulheres
criollas e peninsulares. Em seus escritos, Careri reflete as tensões que
por vezes existiram entre criollos e peninsulares, devido à relação
com as diferentes mulheres com que conviviam nas sociedades
americanas.
[Las criollas] son hermosísimas y muy bien plantadas. Tienen mucha
inclinación por los europeos (a quienes llaman gachupines) y con ellos
(aunque muy pobres) más a gusto se casan que con sus ciudadanos
llamados criollos, aunque ricos; viendo a estos amantes de las mulatas,
de las cuales han mamado, junto con la leche, las malas costumbres.
De ello se sigue que los criollos odian de tal manera a los europeos, que
al pasar alguno por las calles, le hacen burla, avisándose de tienda en
tienda con la expresión: él es. Y por eso, algunas veces, los españoles
encolerizándose, les han disparado pistoletazos. En fin, ha llegado a tal
punto esta competencia, que odian a sus mismos padres porque son
europeos.41

Por outro lado, é importante recordar mais uma coisa quando


se fala da história do corpo das negras e mulatas na América colonial.
Durante muito tempo, os estereótipos com os quais se concebeu estas
mulheres no imaginário da Idade Moderna oscilaram entre o prazer

41 GEMELLI CARERI, Giovanni Francesco. Viaje a la Nueva España. México: Universidad


Nacional Autónoma de México, 1976, p. 22.

39
As Américas na Primeira Modernidade

e a perdição. De acordo com os ideais e crenças que deram sentido à


vida durante os séculos XVI e XVII, a população de origem africana foi
associada, de maneira muito próxima, ao pecado e ao Demônio. Em
muitos textos da época se falou de como o Satanás gostava de aparecer
na forma de uma mulher afrodescendente e tentar os frágeis pecadores
com seu corpo lascivo e sedutor.
Diferentemente de outras mulheres da América colonial, as
afrodescendentes moviam-se de maneira descontraída; em festas,
carnavais e bailes, as negras, mulatas e afromestiças rompiam as
normas do recato que a Igreja exigia daquelas que a Igreja definia como
mulheres virtuosas. Repetidamente o tema da nudez feminina rondava
o imaginário pelo qual se pensava nas mulheres de origem africana
no Novo Mundo. E assim, entre as ideias que mais temor causavam
aos muitos que reconheciam a fragilidade de sua própria condição
humana, encontrava-se a capacidade de sedução destas mulheres, de,
por meio de suas vestimentas, por exemplo, fazê-los cair em tentação.
Basta recordar, por exemplo, as seguintes linhas, por meio das quais o
viajante inglês Thomas Gage descreveu o jogo de erotismo que ia das
vestimentas à nudez entre as negras e mulatas que encontrou em sua
passagem pela Guatemala e Nova Espanha:
Cúbrense los pechos desnudos, negros, morenos con una pañoleta muy
fina que se prenden en lo alto del cuello a guisa de rebocillo, y cuando
salen de casa añaden a su atavío una mantilla de linón o cambrai, orlada
con una randa muy ancha de encajes, algunas la llevan en los hombros,
otras en la cabeza, pero todas cuidan que no les pase la cintura y les
impida lucir el talle y la cadera.42

A associação entre as mulheres de origem africana, o pecado e


o Diabo encontrou outra manifestação cotidiana nas sociedades da
América colonial. Nelas, muita gente viveu convencida de que diversas
negras, mulatas e afrodescendentes eram bruxas ou feiticeiras, isto é,
que eram inclinadas a estabelecer pactos com Satanás. Os processos
inquisitoriais do período colonial mostram o protagonismo que tiveram
as afrodescendentes em assuntos de magia, feitiçaria e bruxaria. Ainda
que seja certo que muitas delas participaram de sabás orgiásticos e rituais
religiosos pouco “ortodoxos”, também é verdade que muitas outras
eram ‘católicas piedosas e observadoras das regras da ortodoxia religiosa.
Neste sentido, são notáveis as confrarias de negros e mulatos em toda a

42 GAGE, Thomas. Nuevo reconocimiento de las Indias occidentales (siglo XVII). México:
Conaculta, 1994, p. 180 et seq.

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Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins (org.)

América colonial em que as mulheres desempenharam funções de grande


importância. É interessante pensar que, entre as devoções mais presentes
entre a população feminina afrodescendente americana, encontramos
Maria Madalena, a santa pecadora que, uma vez arrependida, encontrou o
perdão e a salvação eterna. Não é difícil imaginar o que significava aquela
santa redimida para muitas negras e mulatas que, apesar dos preconceitos
que as rodeavam, buscaram encontrar um lugar digno no imaginário da
religiosidade católica da época.
Bruxas e feiticeiras ou não, o fato é que muitas destas mulheres
atuaram como curandeiras e parteiras, cujo prestígio e fama foi parte
importante da vida cotidiana de suas comunidades. Estas mulheres
romperam com os estereótipos da época, já que muitas saíram de suas
casas para trabalhar e ganhar a vida sendo, inclusive, a principal fonte do
sustento de suas famílias. Muitas destas especialistas em curar tiveram
vínculos estreitos com as índias que preparavam infusões a base de ervas
e curandeiras com quem intercambiavam saberes e conhecimentos
práticos e terapêuticos.
As afrodescendentes americanas viveram, quase
irremediavelmente, nas margens das sociedades católicas coloniais.
Sendo assim, estas mulheres tiveram que encontrar estratégias de
sobrevivência que lhes permitiam viver com maior comodidade,
ou a chegar a desfrutar de melhores condições de vida, e que se
refletissem em maior bem-estar em sua vida cotidiana. Tratando-se
de mulheres, ao contar com uma origem vinculada ao pecado, e não
gozando de praticamente nenhum privilégio, as negras, mulatas e
afro-mestiças americanas se viram obrigadas a lançar mão de tudo que
lhes oportunizasse uma vida mais digna. Muitas vezes, recorreram a
mecanismos pouco ortodoxos; por exemplo, sabe-se que para fazer
ouvir sua voz e pedir justiça às autoridades, algumas delas blasfemaram
para ser levadas frente aos tribunais inquisitoriais e, uma vez ali,
tornaram públicos os abusos aos quais eram submetidas por seus amos.
Em outras ocasiões, fizeram uso dos tribunais eclesiásticos para pedir
respeito aos seus direitos, por exemplo, de não serem separadas de seus
maridos escravos.
Efetivamente, ao estar vinculadas com esposos e parentes escravos,
as negras, mulatas e afromestiças da América viveram realidades
familiares complexas. Em princípio, a Igreja católica proibiu que as
famílias dos afrodescendentes fossem desmembradas. Contudo, os

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As Américas na Primeira Modernidade

amos nem sempre respeitaram esta proibição e muitas vezes, venderam


os escravos longe de seus cônjuges. Muitas mulheres que viveram esta
situação certamente protestaram frente aos tribunais que, não poucas
vezes, decidiram a seu favor e obrigaram os amos a fazer os escravos
regressarem para perto de suas esposas. Apesar disto, em muitos casos,
as mulheres afrodescendentes perderam seus maridos durante longas
temporadas que faziam-nas pensar que estivessem mortos. Em tais
circunstâncias, muitas voltavam a casar-se e quando, tempos depois,
porventura seus primeiros maridos reapareciam, eram acusadas de
bigamia frente ao Santo Ofício. Naqueles casos, o Santo Tribunal não
as castigava, mas obrigava a que regressassem para o primeiro cônjuge.
Pouco a pouco, a presença das mulheres de origem africana na
América colonial deu origem a um sem-número de palavras carinhosas
que formaram parte da intimidade de muitos lares culturalmente
híbridos. As amas de todo o continente cuidavam das crianças das famílias
e cozinhavam para elas, para seus pais e seus parentes, pratos distintos
que se converteram em parte da herança africana no Novo Mundo.
Foram muitos os bailes, canções, contos, adivinhações, movimentos e
gestos corporais como o de carregar os cântaros de água sobre a cabeça,
que as negras, mulatas e afro-mestiças conservaram de suas culturas
originárias. Com o tempo, a América não se fazia compreensível sem
levar em conta a bagagem cultural que estas mulheres transmitiram
durante séculos e gerações a todos os setores da população.

Considerações finais
Como se pode acompanhar ao longo destas páginas, durante muito
tempo a América foi um espaço de fronteira em que os ideais e modelos
teóricos se diluíram diante das necessidades cotidianas e da obstinada
realidade. A Europa nunca conseguiu reproduzir no Novo Mundo
seu ideal de sociedade e, longe dele, seus habitantes se transformaram
em contato com outras culturas e outras circunstâncias naturais.
Espanholas, índias, mestiças e afrodescendentes foram protagonistas
de choques, intercâmbios e cruzamentos culturais que caracterizaram a
América colonial. Diferente do que se acreditou durante muito tempo,
estas mulheres não foram sujeitos passivos, submetidos ou sem vontade.
Ao contrário, o que encontramos nos processos judiciais, nos diários de
viajantes, nas crônicas de freis, nas cartas, testamentos, censos, editos e
cédulas que nos falam delas, são mulheres cheias de iniciativas, desejos e
interesses próprios. As mulheres que pertenceram a estes setores sociais
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Jorge Cañizares-Esguerra, Luiz Estevam de O. Fernandes, Maria Cristina Bohn Martins (org.)

negociaram constantemente; vincularam-se, atuaram e buscaram


estratégias de sobrevivência que, a partir de sua criatividade, permitiu-
lhes viver melhor num mundo dominado pelas autoridades masculinas
que as rodeavam.
Assim por exemplo, o dinamismo que caracterizou suas histórias
de vida se refletiu, entre outras coisas, na possibilidade de apresentarem-
se a si mesmas a partir de qualidades diferentes, de acordo com as
condições que as rodeavam em cada momento de sua vida. Quer dizer,
longe de possuir identidades rígidas ou inamovíveis, elas puderam, as
vezes com mais, as vezes com menos flexibilidade, jogar com a identidade
que quiseram ostentar em diferentes circunstâncias de sua vida. Assim,
por exemplo, em certos momentos, algumas afro-mestiças preferiram
passar por índias para evitar terem que pagar alguns tributos, ou para
evitar de serem julgadas pelo Santo Oficio da Inquisição que não tinha
jurisdição sobre a população indígena. Algumas nativas, em troca,
prefiriram apresentarem-se a si próprias como mulatas para conseguir
benefícios impossíveis de obter em sua qualidade de indígenas. Quer
dizer, na América colonial, as identidades femininas foram porosas e
mutantes e, ao contrário do que se acreditou durante muito tempo, elas
não obedeceram a um sistema de castas rígido ou inamovível como o
que existiu ou existe na Índia.
Neste sentido, a história das mulheres na América colonial foi
dinâmica, complexa, impossível de predizer. Do mesmo modo que
o corpo feminino podia alcançar formas distintas, de acordo com
a etapa do ciclo da vida de cada mulher, da mesma maneira que, no
imaginário da Idade Moderna, as bruxas podiam mudar de forma e
condição, as mulheres do Novo Mundo, as ortodoxas e as heterodoxas,
as privilegiadas e as menos favorecidas, puderam mover-se com maior
liberdade do que as vezes se acredita. Ainda que todas elas tenham
vivido, indiscutivelmente, subordinadas a uma ordem cultural e social
predominantemente masculina, a submissão não foi, necessariamente,
a condição que caracterizou sua existência. Ao contrário, a história das
mulheres na América colonial deve ser estudada, também, a partir dos
mecanismos e estratégias nem sempre óbvias, que fizeram delas sujeitos
históricos ativos. Mulheres que, graças a sua atuação e decisão, gozaram,
obviamente dentro das condições de possibilidade de sua existência,
de supremacia, força, autoridade, capacidade de mando e, recordando
a Giovanni Levi, de um poder imaterial que, sem dúvida, imprimiu à
história do Novo Mundo seu caráter particular.
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