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Vidas Secas - Graciliano Ramos

Comentários: Flávio Brito

A historiografia literária convencionou como marco inicial da segunda fase do Modernismo o ano de 1930,
quando Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987) publicou Alguma Poesia, e como marco final a data de 1945, quando foi
lançado O Engenheiro, de Haroldo de Campos (1929 - 2003). O contexto político, econômico e social desse período é conturbado.
O mundo ainda sofria a depressão econômica causada pela quebra da bolsa de Nova York, em 1929, que agravou os problemas
sociais de inúmeros países e intensificou o crescimento e a organização de forças de esquerda. Os partidos socialistas e comunistas
entravam em choque com Estados cada vez mais autoritários e nacionalistas, como a Alemanha, a Itália, a Espanha e Portugal. O
nazifascismo avançou, expandindo-se pela Europa até a deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a mais violenta e
tecnológica das guerras até então, que terminou com as explosões atômicas em Hiroshima e Nagasáqui.
No Brasil, em 1930 Getúlio Vargas subiu ao poder, iniciando um período que ficaria conhecido como a "era Vargas" e
que compreende a ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945. Em seu governo, houve uma série de medidas que centralizaram o
poder, entre elas a dissolvição do Congresso Nacional e dos legislativos estaduais e municipais. Assim como ocorreu em grande
parte dos países do Ocidente, no Brasil também a esquerda cresceu e se organizou. Em 1935, eclodiu uma tentativa de revolução
articulada pela ANL - Aliança Nacional Libertadora, formada pelos grupos de esquerda, que foi reprimida pelo governo. Houve
crescimento também de organizações afinadas com a ideologia fascista, principalmente a Ação Integralista Brasileira, fundada por
Plínio Salgado - que também era líder do grupo modernista Verde-Amarelo. Em 1937, com o apoio dos grupos integralistas,
Vargas iniciou a ditadura do Estado Novo, que se caracterizou pelo espírito antidemocrático, a repressão ao comunismo, o
nacionalismo conservador e o populismo.
Durante a era Vargas, a burguesia industrial se fortaleceu e passou a ocupar posições de mando, enquanto o poder das
oligarquias agrárias declinava. A classe média e o operariado cresceram e tornaram-se cada vez mais participantes da vida
política; são dessa fase conquistas como o salário mínimo, os sindicatos, a legislação trabalhista. O fluxo de imigrantes diminuiu e
as migrações internas aumentaram, principalmente a partir de 1933, com a expansão da industrialização no Centro-Sul. A
população brasileira chegou a 41,1 milhões de habitantes em 1940, dos quais 56,2% eram analfabetos. O governo procurou
combater o analfabetismo, através do Ministério da Educação e Saúde, e uma série de reformas modificou a estrutura do ensino
primário e implantou o ensino secundário. Em 1934 foi inaugurada a Universidade de São Paulo (USP), a primeira do Brasil, e em
1935, a Universidade do Distrito Federal. Os estudos universitários passariam a influenciar e redefinir a pesquisa e a crítica
literária.

O sistema literário foi afetado pela instabilidade política, pelas medidas antidemocráticas e repressoras da era Vargas,
mas também se beneficiou da atmosfera de intenso debate sobre a realidade brasileira. Para Antônio Candido, o período foi de
"acentuada politização dos intelectuais, devido à presença das ideologias que atuavam na Europa e influíam em todo o mundo,
sobretudo o comunismo e o fascismo. A isso se liga a intensificação e a renovação dos estudos sobre o Brasil, cujo passado foi
revisto à luz de novas posições técnicas, com desenvolvimento de investigações sobre o negro, as populações rurais, a imigração e
o contato de culturas, - graças à aplicação das modernas correntes de sociologia e antropologia, graças também ao marxismo e à
filosofia da cultura (...)".

Na década de 1930 houve uma significativa irrupção de novos e brilhantes romancistas, com destaque para a ficção
regionalista nordestina de autores como Graciliano Ramos (1892 - 1953), Jorge Amado, José Lins do Rego (1901 - 1957) e Rachel
de Queiroz (1910 - 2003). Foi também uma época de desenvolvimento da indústria do livro, principalmente com o advento da
Segunda Guerra e a consequente dificuldade de importações. Surgiram importantes editoras, como a de José Olympio (1902 -
1990), que publicou os romancistas inovadores do Nordeste. Entre 1936 e 1944, o número de editoras brasileiras cresceu 50% e,
por volta de 1950, o Brasil chegou a produzir 4 mil títulos e cerca de 20 milhões de exemplares por ano. Mas a censura e a

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propaganda do governo estavam sempre presentes na indústria editorial, na imprensa, no rádio e mesmo no material didático,
principalmente com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, criado com o Estado Novo. Apesar do
autoritarismo e da repressão, porém, foram tempos de consagração da cultura popular, com a popularização do samba e do
carnaval, a difusão do rádio e o sucesso de suas estrelas.

A crônica, revitalizada por escritores de grande expressividade, também viveu período de grande consagração junto ao
público. Modernistas da primeira fase, como Mário de Andrade (1893 - 1945) e Oswald de Andrade (1890 - 1954), continuavam
ativos e conviviam na imprensa com os autores da nova geração, como Rachel de Queiroz e Oswald de Andrade (1890 - 1954).
Nas páginas do jornal carioca Diário da Tardesurgiu aquele que é considerado o maior cronista brasileiro, Rubem Braga (1913 -
1990), prosador que atravessou as próximas cinco décadas retratando o Brasil com sensibilidade aguçadíssima.

ESTILO - CARACTERÍSTICAS GERAIS

A segunda fase do Modernismo foi caracterizada, no campo da poesia, pelo amadurecimento e pela ampliação das
conquistas dos primeiros modernistas. Como afirmou a crítica Luciana Stegagno Picchio, "fechada a fase polêmica e destrutiva,
eliminando o excesso de Brasil da página literária, exauridos os jogos primitivistas e antropofágicos, a poesia brasileira, sólida nas
suas conquistas técnicas, na sua liberdade construtiva, pode começar a sua segunda aventura modernista". Assim, nos anos de
1930 a 1945 a poesia modernista se consolida e alarga seus horizontes temáticos.
No plano formal, o verso livre continuou sendo profusamente adotado, mas os poetas do período tinham liberdade para
escolher formas como o soneto ou o madrigal, sem que isso significasse uma volta a estéticas do passado, como o Parnasianismo.
A ruptura já havia sido feita, e era possível dilatar o campo de experimentações poéticas pesquisando formas, utilizando técnicas
de outras escolas e épocas, reelaborando-as e conferindo a elas novos sentidos. É o caso de Louvação da Tarde, de Mário de
Andrade, poema composto, segundo Antônio Candido, "em decassílabos brancos de grande beleza, ordenados numa meditação de
nítido corte pré-romântico transposta para o estilo colonial."
O verso livre modernista, para Antônio Candido e José Aderaldo Castello, correspondeu a uma "alteração profunda da
música contemporânea, ao impressionismo musical, ao atonalismo, ao uso sistemático da dissonância, à divulgação do jazz, à
dodecafonia". Como sempre ocorre, a poesia estava em sintonia com as outras artes e mesmo com as outras esferas da cultura;
desse modo, vários autores dessa fase, que estavam em contato com as propostas inovadoras do Surrealismo e da psicanálise,
foram fortemente influenciados por princípios como a pesquisa do inconsciente e a livre associação de ideias, que passaram a
utilizar na produção poética. No poema O Pastor Pianista, de Murilo Mendes (1901 - 1975), podem ser observadas essas
influências, que contribuem para a fusão de elementos reais e imaginários e a criação de uma atmosfera de sonho.
No plano temático, a abordagem do cotidiano continua sendo explorada, mas os poetas se voltam também para problemas
sociais e históricos, além de manifestarem inquietações existenciais e religiosas que ampliam as proposições da fase anterior. O
registro dos fatos do cotidiano, muitas vezes próximos (ou aparentemente próximos) da banalidade, era algo de extremamente
moderno, já que as normas tradicionais da poesia sempre haviam prescrito a seleção dos temas poéticos. Praticamente todos os
grandes poetas do período, tanto os da primeira fase, como Mário de Andrade e Manuel Bandeira (1886 - 1968), como os da
segunda, como Carlos Drummond de Andrade, ocuparam-se em tematizar momentos do dia-a-dia, configurando uma verdadeira
predileção, como afirmaram Candido e Castello, "pelo que se poderia chamar de "momento poético", isto é, a "notação rápida de
um instante emocional ou de um aspecto do mundo".
Houve ainda a retomada de elementos simbolistas, principalmente pelo grupo de poetas que se agrupou em torno da
revista carioca Festa, entre os quais Cecília Meireles (1901 - 1964). O alargamento do campo temático ocorreu pela abrangência
de novos enfoques, que iam de aspectos sociais a inquietações religiosas, manifestada nas obras dos grandes autores do período,
como se verá a seguir.

RESUMO

Para muitos estudiosos do tema, a segunda geração modernista representou um período muito fértil e rico para a literatura
brasileira. Também chamada de “Fase de Consolidação”, a literatura brasileira estava vivendo uma fase de maturação, com a
concretização e afirmação dos novos valores modernos. Além da prosa, a poesia foi um grande foco dos literatos. Temas
nacionais, sociais e históricos foram os preferidos pelos escritores dessa fase.

CONTEXTO HISTÓRICO

Na década de 30, o país passava por grandes transformações, fortemente marcado pela revolução de 30 e pelo questionamento
das oligarquias tradicionais. Não havia como não sentir os efeitos da crise econômica mundial, os choques ideológicos que
levavam a posições mais definidas e engajadas. Tudo isso, formou um campo propício ao desenvolvimento de um romance

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caracterizado pela denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo um elevado grau de tensão nas
relações do indivíduo com o mundo.

TEMÁTICAS AGRÁRIAS POR REGIÕES: No Nordeste

a. Vinculado aos problemas sociais e climáticos


b. Enfoque para o ciclo da seca e do cangaço
c. Enfoque para o ciclo da cana-de-açúcar envolvendo questões do sul da Bahia e do latifúndio
d. Na região do sul da Bahia a temática se volta para a monocultura do cacau, envolvendo as lutas para posse de terra, o
coronelismo, os jagunços, os trabalhos rurais etc., principalmente na obra de Jorge Amado e Adonias Filho.

BIBLIOGRAFIA

Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrângulo, Alagoas, filho de Sebastião Ramos
de Oliveira e de Maria Amélia Ferro Ramos. Dois anos depois, a família muda-se para Buíque, Pernambuco, e logo depois volta
para Alagoas, morando em Viçosa e Palmeira dos Índios até 1914. Graciliano estuda, então, e trabalha na loja do pai comerciante.
Em 1914, vai para o Rio de Janeiro, onde mora durante um ano e trabalha como jornalista. No ano seguinte, volta para
Palmeira dos Índios e se casa com Maria Augusta Barros, que morre cinco anos depois. Graciliano já, nessa época, escreve para
jornais e trabalha com comércio.
Seu segundo casamento, com Heloísa Medeiros, ocorre em 1928, no mesmo ano em que e eleito prefeito de Palmeira dos
Índios, cidade que seria palco de seu primeiro romance Caetés.
Em 1930, renuncia à prefeitura e vai para Maceió, onde e nomeado diretor da Imprensa Oficial, mas demite-se no ano
seguinte, voltando em seguida para Palmeiras dos Índios, onde funda uma escola e escreve o romance São Bernardo.
Em 1933, é nomeado diretor da Instrução Pública de Alagoas e volta a Maceió. Sua carreira e interrompida em 1936,
quando é demitido por motivos políticos. Nesse mesmo ano, publica o romance Angústia e acaba sendo preso e enviado ao Rio de
Janeiro. Dessa fase em que passa preso resultaria, mais tarde, seu livro Memórias do Cárcere.
Ao sair da prisão, em 1937, passa a morar no Rio de Janeiro, onde escreve para jornais. No ano seguinte, publica a obra
Vidas Secas, escrita num quarto de pensão. Em 1939, e nomeado Inspetor Federal do Ensino. Somente em 1945, Graciliano entra
para o Partido Comunista Brasileiro e, sete anos depois, faz uma viagem a Tchecoslováquia e à União Soviética.
Graciliano Ramos morre em 20 de março de 1953 sem nunca ter retratado uma paisagem do Rio de Janeiro. Conta-se que
certa vez andava com um de seus filhos, a pé, pela cidade. Chegaram a Laranjeiras, onde moravam. O filho parou de repente e
exclamou: "Como isso aqui e bonito! ". Graciliano ficou surpreso e perguntou se ele achava aquela cidade tão bonita assim. Para
Graciliano, Alagoas era seu único universo.

OBRAS

Romances Memórias
Caetés (1933) Infância (1945)
São Bernardo (1934) Memórias do Cárcere (1953)
Angústia (1936) Crônicas
Vidas Secas (1938) Linhas Tortas (1962)
Contos Viventes das Alagoas (1962)
Insônia (1947) Viagens
Alexandre e Outros Heróis (1962) Viagem (1954)

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COMENTÁRIOS CRÍTICOS

Graciliano Ramos foi um escritor extremamente cuidadoso, quanto a forma de seus livros. Reescrevia seus livros sem cessar,
procurando retirar deles tudo aquilo que considerasse excesso. De estilo enxuto, então, Graciliano sempre foi considerado como
exemplo de elegância e de elaboração.
É comum em suas obras o privilégio do substantivo em relação ao adjetivo. Por isso, alguns críticos gostam de afirmar que
Graciliano deve ter se divertido muito quando, no romance Caetés, a personagem recebe uma carta repleta de adjetivos,
denunciando o amor adúltero de sua esposa, Luísa.
Sua obra, apesar de centrar-se em determinada região, transcende o pitoresco e o descritivo dos regionalistas típicos da
geração de 1930. Graciliano analisa profundamente a relação do homem com o meio, explorando também o lado psicológico e o
lingüístico dessa relação.
Independente das limitações regionais, Graciliano faz uma análise profunda da condição humana. Desse modo torna-se
universal.

RESUMO DA OBRA VIDAS SECAS

“Será um romance? É antes uma série de quadros, de gravuras em madeira, talhadas com precisão e firmeza.” (Lúcia Miguel-
Pereira)
Chamar este romance de “série de quadros, de gravuras em madeira, talhada com precisão e firmeza” é aludir a um de seus
traços estilísticos fundamentais: o caráter autônomo e completo de seus capítulos.
Estes podem ser lidos como peças independentes, e como tal foram publicados em jornais, mas reúnem-se com uma
organicidade exemplar. Os capítulos de Vidas Secas mantêm uma estrutura descontínua, não-linear, como que reafirmando o
isolamento, a instabilidade da família de retirantes: Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra
Baleia.
Formado por treze capítulos que se justapõem sem nexos lógicos, o enredo de Vidas Secas organiza-se principalmente pela
proximidade entre o primeiro Mudança – a chegada da família de retirantes a uma velha fazenda abandonada e arruinada – e, o
último, Fuga – a saída da família, que, diante de um novo período de seca, foge para o Sul.
Do capítulo 2 ao 12, a família vive como agregada na fazenda, para cujo proprietário Fabiano trabalha. Assim, passa uma fase
de descanso, em relação ao seu nomadismo, provocado pela seca.
No entanto, além da tortura gerada pela lembrança do passado e pelo medo do futuro, o romance enfoca outras faces da
opressão que se exerce sobre os membros da família – seja entre eles e os outros homens, os moradores da cidade, seja consigo
próprios.
No capítulo, Cadeia, por exemplo, Fabiano vai à cidade, bebe e joga com o soldado amarelo; quando resolve partir, este o
provoca e o leva à cadeia, onde é preso e surrado. Um ano depois, Fabiano o reencontra, agora em seu território, a caatinga.
Embora deseje vingança, acaba se curvando e ensinando o caminho ao soldado amarelo (cap. 11).
No episódio Contas (cap. 10), Fabiano é lesado financeiramente pelo patrão. Embora as contas do patrão não coincidam com
as da Sinhá Vitória, que as confere, Fabiano não se defende; ao contrário, humilha-se e pede desculpas.
Outro exemplo de opressão e de falta de comunicação entre os seres da família animalizados pela miséria em que vivem,
encontra-se no capítulo 6, em que o menino mais velho ouve a palavra inferno, acha-a bonita e procura aprender o seu significado
com a mãe, que o repele brutalmente. Já no capítulo 7, Inverno, há uma cena em que a família se reúne numa noite de inverno, e
Fabiano tenta contar histórias incompreensíveis enquanto os meninos passam frio.
Enfim, a questão central do romance não está nos acontecimentos, mas nas criaturas que o povoam, nas gravuras de madeira.
Com a análise psicológica do universo mental das personagens, que expõem por meio de discurso indireto livre, o narrador
nos vai decifrando sua humanidade embotada, confundida com a paisagem áspera do sertão, neste romance transcende o
regionalismo e seu contexto específico – a seca do Nordeste, a opressão dos pobres, a condição animalesca em que vivem – para
esculpir o ser humano universal.

OPINIÕES SOBRE VIDAS SECAS

“O narrador não quer identificar-se ao personagem, e por isso há na sua voz uma certa objetividade de relator. Mas quer
fazer as vezes do personagem, de modo que, sem perder a própria identidade, sugere a dele. [...] É como se o narrador fosse, não
um intérprete mimético, mas alguém que institui a humanidade de seres que a sociedade põe à margem, empurrando-os para as
fronteiras da animalidade. Aqui, a animalidade reage e penetra pelo universo reservado, em geral, ao adulto civilizado” (Antônio
Cândido).

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Na opinião de Antônio Cândido sobre o enredo de Vidas Secas: “Este encontro do fim com o começo [...] forma um anel
de ferro, em cujo círculo sem saída se fecha a vida esmagada da pobre família de retirantes-agregados-retirantes, mostrando que a
poderosa visão social de Graciliano Ramos neste livro não depende [...] do fato de ele ter feito romance regionaliza ou romance
proletário. Mas do fato de ter sabido criar em todos os níveis, desde o pormenor do discurso até o desenho geral da composição, os
modos literários de mostrar a visão dramática de um mundo opressivo”. (Antônio Cândido)

Resumo por capítulo

1. Mudança
Começando o livro, o narrador coloca diante do leitor o primeiro quadro:
a) uma tomada à distância: a família no ambiente da seca.
b) a caracterização de cada membro da família pelas suas atitudes.

2. Fabiano
O narrador mostra a desintegração progressiva de Fabiano:
a) Fabiano e a vida
b) Fabiano e a seca
c) Fabiano, a família e a seca.

3. Cadeia
Continua o narrador a mostrar Fabiano diante da sociedade. Ele vai comprar querosene: está com água. Vai comprar chita: é
cara. É levado ao jogo, não sabe se comunicar, e é preso.

4. Sinhá Vitória
A apresentação de Sinhá Vitória é semelhante à de Fabiano. Aparece a sua dificuldade de relacionamento com os meninos,
com a Baleia, com Fabiano. Sua aspiração: ter uma cama.

5. Menino mais novo


Quer espantar o irmão e Baleia. Observa o pai montar a égua. Fabiano cai, de pé. Ele vibra. Sinhá fica indiferente diante da
façanha do pai, ele não se conforma com a indiferença da mãe. Tenta se comunicar com o pai, mas não consegue, fica chateado. A
Baleia dormia. Foi tentar conversar com a mãe, levou um cascudo. Dorme, Sonha com um mundo adulto. No dia seguinte tenta
montar o bode, mas sai sem honra da façanha. Cai, leva coices.

6. Menino mais velho


Quer saber o que seja inferno. Sinhá Vitória fala em espetos quentes, fogueiras. Ele lhe perguntou se vira. A mãe zanga-se,
achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote. Baleia era o único vivente que lhe mostra simpatia.

7. Inverno
Família reunida em torna do fogo. Não havia conversa, apenas grunhidos. Ninguém entende ninguém, já são poucos humanos.

8. Festa
Iam à festa de Natal na cidade. Na cidade se vêem distantes da civilização. Fabiano não fala, mas admira a loquacidade das
pessoas da cidade.

9. Baleia
A cachorra Baleia aparecera doente. Fabiano imaginara que ela estivesse com hidrofobia, e amarrara-lhes no pescoço um
rosário de sabugo de milho queimado. Ela, de mal a pior. Resolvera matá-la.

10. Contas
Fabiano diante do imposto e da injustiça do patrão Nascera com esse destino, ninguém era culpado por nascer com destino
ruim.

11. O soldado amarelo


Fabiano ia corcunda, parecia farejar o solo, quando encontrou o soldado amarelo. Lembrou-se do passado. Quis se vingar.
Reviveu todo o passado. Pensou e repensou sua condição.

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O soldado, antes cheio de medo, vendo Fabiano acanalhado, ganha coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E
Fabiano tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. “Governo é governo.”

12. O mundo coberto de penas


Depois do inverno, de novo seca anunciada nas arribações. Fabiano luta contra a natureza, atira nas arribações.
]
13. Fuga
O mesmo quadro do primeiro capítulo. No primeiro quadro os meninos se arrastavam atrás dos pais, neste os pais se arrastam
atrás dos meninos. Os meninos corriam. Era o destino do Norte – O (nor)destino.

Texto - Fuga

A vida na fazenda se tornara difícil. Sinhá Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas
desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas
pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a
pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.
Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro
morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela
dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.
Saíram de madrugada. Sinhá Vitória meteu o braço pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela.
Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os
juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, Sinhá Vitória lembrou-se da cachorra Baleia,
chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o choro.
Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo para o sul. Com a fresca da madrugada, andaram bastante, em
silêncio, quatro sombras no caminho estreito coberto de seixos miúdos – os meninos à frente, conduzindo trouxas de roupa, Sinhá
Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de água, Fabiano atrás de facão de rasto e faca de ponta, a cuia pendurada por uma
correia amarrada ao cinturão, o aió a tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da malotagem no outro. Caminharam
bem três léguas antes que a barra do nascente aparecesse.
Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se até ali na incerteza
de que aquilo fosse realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que se adiantavam, aconselhara-os a poupar
forças. A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-1he sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a
lentamente, adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir quando estava definitivamente perdido. Podia continuar a viver
num cemitério? Nada o prendia aquela terra dura, acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que Fabiano dizia,
pensando em coisas alheias: o chiqueiro e o curral, que precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom companheiro, a égua alazã,
as catingueiras, as panelas de losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele esmoreciam, as alpercatas calavam-se na
escuridão. Seria necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no caminho coberto de seixos.
Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o nascente, e não queria convencer-se da realidade. Procurou distinguir
qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas, por baixo da aba
curva do chapéu, protegiam-lhe os ombros contra a claridade e tremiam.
Os braços penderam, desanimados. – Acabou-se.
Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul.
Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim.
Desde o aparecimento das arribações vivia desassossegado. Trabalhava demais para não perder o sono. Mas no meio do
serviço um arrepio corria-lhe no espinhaço, a noite acordava agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido pelas
pulgas, conjecturando misérias.
A luz aumentou e espalhou-se pela campina. Só aí principiou a viagem. Fabiano atentou na mulher e nos filhos, apanhou a
espingarda e o saco de mantimentos, ordenou a marcha com uma interjeição áspera.
(RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 16. ed. São Paulo, Martins, 1967. p. 147-9).

VIDAS ETERNAMENTE SECAS

Mariana Passos Ramalhete Guerra (Mestranda em Letras, UFES)

Árido, seco, hostil, áspero. Ler a obra de Graciliano Ramos é como tocar na terra do sertão nordestino e sentir
integralmente a dureza e a agressividade num lugar onde o destino é condicionado por um sol que brilha como se existisse

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unicamente para castigar seus habitantes. É como apalpar e vivenciar um ambiente onde qualquer possibilidade de sonho e vida
secam. Publicado em 1938, “Vidas Secas” de Graciliano Ramos (1892-19853), uma das obras mais valiosas e expressivas da
Literatura Brasileira, se conjuntura no cenário literário do Modernismo: a “Geração de 30”.
Inserido num contexto regionalista, a obra expõe, com maestria, os crudelíssimos problemas da seca do sertão nordestino e
da opressão social vivenciada pelos retirantes. O livro exibe de modo abrupto e inquietante a história da degradada família
composta por Fabiano, Sinhá Vitória, Menino mais novo, Menino mais velho e pela cachorra Baleia. Flagelados, miseráveis,
famintos e raquíticos, possuem uma vida mais que “dura”: é uma subvida nordestina. A caatinga e a seca, obrigatoriamente,
fomentam-lhes comportamentos nômades na busca incessante por sobrevivência. Por conseguinte, esse anseio torna-se um ciclo,
no qual há sempre um recomeço, e, sem destino, só lhes resta a opção de retirada. Logo, o romance adquire dimensão
praticamente épica, ao problematizar de modo lúcido, a flagrante realidade das exasperantes e perenes condições de sobrevivência
no sertão, definida concretamente pela viagem sem rumo da família dos desprovidos ao extremo. Reproduz, metonimicamente,
por meio do relato dos “sem destino”, o drama, que no Brasil, geralmente ultraja multidões de errantes em busca de uma vida
melhor. As misérias dos personagens são narradas em terceira pessoa.
O autor divide, a seu bel prazer, o livro em treze capítulos que narram a retirada, a permanência na fazenda e uma segunda
retirada. Tais fatos são narrados a uma maneira bem peculiar e paradoxal: os capítulos mantêm certa autonomia, fragmentação e
interdependência, todavia Graciliano Ramos os justapõe harmoniosamente. É por trás dessa composição aparentemente
desconexa, que se configura uma relação, quase que umbilical, entre a linguagem e a temática social da produção. Graciliano
explora com talento a descontinuidade dos episódios, focalizando singularmente, o traço dominante no caráter de cada integrante
da família. Os personagens supracitados representam uma típica família sertaneja nordestina: pobre, miserável, e extremamente
faminta a ponto de procurar raízes para saciar sua fome e comer um papagaio, que era um de seus bichos de estimação:

Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio onde haviam descansado,
à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do
amigo, e não guardava lembranças disso. (RAMOS, 2008, p.11).

Já no capítulo inicial, verifica-se um vocabulário mais direto, rude e seco, a fim de representar seus interlocutores, o
ambiente e as condições socioeconômicas que os cercam. Em seu estilo refinado e frugal, Graciliano adota uma linguagem
comedida, ora pelo uso moderado de adjetivações, ora pelo uso de frases breves, concisas. Assim, recria, de forma espetacular, a
secura de vida dos personagens e da paisagem nordestina. Nesse mesmo fio condutor, as adjetivações são restritas ao máximo. O
autor descreve suas criaturas de maneira bem simples, como o ambiente e o meio social em que vivem exigem. Fabiano era
vaqueiro; Sinhá Vitória era dona de casa que desejava a “cama com lastro de couro”. As crianças sequer não são nomeadas. O
menino mais novo, ingênuo, vê no pai um modelo a ser seguido. O menino mais velho, curioso e inquieto. E por último a cachorra
Baleia, magra, faminta e manifestando comportamentos humanos. A passagem a seguir, explica melhor:

“Sinhá Vitória dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as
reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.” (RAMOS, 2008, p.37).

Assim, a referência à secura é flagrante em todo o livro. O tratamento da linguagem, por exemplo: praticamente não
existem diálogos. Os personagens se comunicam por interjeições, onomatopeias, “rugidos”, “grunidos”, resmungos e expressões
monossilábicas: “Mas Sinhá Vitória não queria saber de elogios. ___ Arreda!” (RAMOS, 2008, p. 40).

Essa comunicação escassa e limitada é mostrada com mais veemência na passagem a seguir: Na beira do rio haviam
comido papagaio que não sabia falar. Necessidade. Fabiano também não sabia falar. Às vezes largava nomes arrevezados, por
embromação. Via perfeitamente que tudo era besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. (RAMOS, 2008, p.36).

Em seu estilo depurado e sóbrio, pelo uso escasso do vocabulário, comedido de adjetivos e abuso de frases curtas, a obra
romanesca reitera e amplia a problemática social de personagens que são tão rústicos e marginalizados, que não possuem nem
uma das mínimas condições de sobrevivência que é a comunicação. Condição essa (linguagem), que diferencia o ser humano dos
outros “bichos”. O discurso indireto livre cria também, uma convergência entre o que está sendo narrado e o leitor. O que
caracteriza esta refinada técnica é a ambiguidade resultante da fusão entre o discurso no narrador e as falas ou pensamento dos
personagens:

“Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como
negro e nunca arranjar carta de alforria!” (RAMOS, 2008, p. 94).

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 7


Essa engenhosa técnica corrobora para a reflexão acerca das condições inimagináveis e desumanas de sobrevivência,
acirrando ainda mais os aspectos sociais da obra. Em todo livro permite-se entrever marcas do contexto histórico-social da saga do
povo do sertão nordestino. Em “Vidas Secas” ouve-se a voz deste povo. Ouve-se a voz dos personagens de poucas falas.
Graciliano Ramos penetra no pensamento, na carne, nos ossos e na alma de cada um dos membros da família de Fabiano, expondo
a atroz realidade desses nordestinos. Escancara e magreza e a ela não lhe dá um enfoque ornamental; “pinta” um infeliz quadro
acerca da realidade do sertão nordestino de sua época, sem, contudo, isentá-lo do cenário nacional que, da mesma forma,
conserva-se tão excludente.
Destarte, o autor permite que o leitor, mais curioso, remexa nas gavetas da sua produção literária, e visualize a obra não
apenas como reflexo de uma realidade, mas ação relevante e atual da dinâmica de uma região extremamente castigada. Eis, pois, o
convite. Tanto a atmosfera social como a física, ofuscam, bloqueiam e impedem uma melhora de vida: a natureza é austera e o
“chicote” das condições socioeconômicas aflige, tal qual animais, os personagens. A vida, nesse sentido, torna-se de todas as
formas, eternamente seca. Por trás dos eventos narrados, subjaz permanentemente, a utopia de justiça social. Isso se manifesta no
anseio maior que congrega todos os personagens em torno de uma aspiração comum: o direito à fala, à comida, à moradia, enfim,
à cidadania. Todavia, a seca bloqueia qualquer intento de acesso a esses direitos. Como um caçador à procura de sua caça,
permanece sempre à espreita, à espera do momento de aniquilar qualquer chance de defesa. Ela calcina o corpo e a alma dos
personagens, até nos relacionamentos interpessoais. Paralelamente, a exploração econômica é leviana e calcina tanto quanto a
seca, à medida que contribui para a perenização de uma estrutura social profundamente díspare, injusta e concentradora.
O romance aguça o olhar crítico com alusão, particularmente, à miséria e às relações de poder e subserviência, ainda
existentes em território nacional. O assunto abordado em Vidas Secas ainda não se alterou e tal imutabilidade permite-nos uma
sensação desconfortante, um incômodo, visto que não caminhamos adiante. Por tudo isso “Vidas Secas” é um romance áspero e
rude, e, de forma contundente, já apontava a urgência na reforma agrária e social do país há mais de 70 anos. É uma obra clássica,
mas inquietante e questionadora que quase escancara que o “sol nasce para todos”, mas a sombra, não.

https://www.e-publicacoes.uerj.br/palimpsesto/article/download/35185/24893/117257

“Vidas Secas” denuncia o descaso social e a exploração humana


Por Leila Kiyomura - https://jornal.usp.br/?p=108162

Em dois breves parágrafos – os que abrem o primeiro capítulo, Mudança –, o alagoano Graciliano Ramos sintetiza Vidas
Secas. Descreve o cenário e apresenta a saga da cachorra Baleia, da mãe Sinha Vitória, do pai Fabiano e de seus dois filhos, que,
no decorrer da história, são chamados de “mais novo” e “mais velho”. Sem nome e sobrenome, eles carregam a “identidade” das
famílias que ainda hoje vivem o descaso social e a exploração humana no País.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro,
estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a
viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através
dos galhos pelados da caatinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça,
Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no
ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.

O primeiro capítulo de Vidas Secas, “Baleia”, que Graciliano Ramos escreveu em maio de 1937 – Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 8


.
Escrita em 1938, a narrativa que reflete a aridez do sertão abre uma janela para o leitor. O apuro estético do autor dá
liberdade para quem quiser começar a história do final ou do meio ou pelas páginas que escolher. Cada um dos 13 capítulos tem o
seu próprio enredo. A estética do romance não propõe fim nem começo. Assim, o escritor, entre os mais importantes da segunda
fase modernista, desenha a vida do sertanejo em um círculo. Ou uma espiral. Como uma roda viva.
Para refletir com o leitor empenhado nas leituras para o vestibular, o Jornal da USP entrevista Thiago Mio Salla, doutor em
Letras e Ciências da Comunicação e professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Para além das exigências da
prova, a expectativa é de que o vestibulando se deixe fascinar pela beleza do texto de Graciliano, que, tal como um artesão
meticuloso, vai esculpindo e colocando em sequência os quadros da vida de Fabiano, de Sinha Vitória, da cachorra Baleia, dos
meninos”, observa Salla. “Ao mesmo tempo, faz ressoar a voz de todos esses personagens juntamente com sua própria voz de
narrador, por meio de uma linguagem concisa, substantiva. Paralelamente, espero que os leitores se sensibilizem com a forte
mensagem social que dá vida e atualidade ao livro.”
.

Título do livro que o escritor alterou para Vidas Secas – Acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP
.
“Mais do que a seca causada pela inclemência da natureza, o que oprimiria Fabiano e sua família seriam as relações de dominação
estabelecidas pelos próprios homens”, explica Salla. “Por isso não se trata de um romance típico sobre a seca, mas sobre vidas
secas. Vidas apresentadas em toda sua complexidade enquanto partes de um processo sistemático de exploração, humilhação e
alienação. Em resumo, dessa mescla entre artesania da palavra e problematização de feridas tão vivas da realidade brasileira, o
artista extrai sua força, que o engrandece e o coloca como um dos principais artistas de nossa literatura.”

O livro aborda problemas vividos por uma família de retirantes, como a seca, a pobreza e a fome – Retirantes, 1944, de Candido Portinari/Coleção Museu
de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand

O professor faz questão de apresentar a caixa com os manuscritos de Vidas Secas que está no IEB e à disposição dos
pesquisadores. “Aqui está o primeiro capítulo que ele escreveu: Baleia”, diz, apontando o texto original com a ortografia e a
caligrafia do autor.

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 9


Graciliano escreve: “A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as
costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas.”
O livro, segundo o pesquisador, começou com Baleia, escrito em 4 de maio e publicado em O Jornal no dia 23 de maio de
1937. “O autor determinou que esse primeiro capítulo fosse o nono na sequência do romance”, explica. O leitor pode perceber que
as narrativas podem, de fato, ser lidas de modo independente.
O pesquisador lembra que Rubem Braga classificou Vidas Secas como um “romance desmontável” ao relacionar o seu
caráter fragmentário. O leitor pode optar por ler os capítulos de modo independente. No entanto, a ordem que o escritor organizou
tem, segundo Salla, suas razões. “O modo como Graciliano articula os capítulos confere unicidade ao todo. Creio que perdem
força se lidos em separado, sobretudo quando se considera o caráter a um só tempo caleidoscópico e cíclico da obra. Ou seja, a
família foge da seca no início e ao final do livro.”
Outro manuscrito que o pesquisador destaca é a capa do livro que deveria ser intitulado como O Mundo Coberto de Penas.
Um documento em que se pode observar o desenho da letra de Graciliano Ramos riscando e alterando para Vidas Secas. “Caso
conferisse ao livro o primeiro título, que prevaleceu até as vésperas de sua publicação, o escritor realçaria mais o estatuto de conto
do que de capítulo de cada uma das divisões da obra”, justifica. “Isso porque, metonimicamente, ele elegeria o nome de uma parte
para nomear o todo, procedimento muito comum na titulação de livros de contos.
Além disso, se optasse por O Mundo Coberto de Penas, trecho que trata da preparação da família para deixar a fazenda,
realizaria uma leitura mais restrita da vida dos sertanejos, privilegiando tão somente as desgraças e o fatalismo inclemente das
secas no sertão nordestino. Por outro lado, ao optar por Vidas Secas, seu único título adjetivado, elegeu um nome capaz de
englobar todas as narrativas e conferir unidade ao todo, realçando a arquitetura precisa e bem estruturada do conjunto.”
O título escolhido, conforme esclareceu o próprio Graciliano Ramos, destaca a “existência miserável de trabalho, de luta,
sob o guante da natureza implacável e da injustiça humana”. O pesquisador ressalta: “Vidas Secas materializa muito bem aquilo
que, na minha opinião, é o grande legado de Graciliano: a conjunção entre rigor formal, introspecção e problematização de
diferentes temas de caráter social, tais como a miséria, a exploração, a humilhação, entre outros ingredientes que compõem um
caldeirão de conflitos bem brasileiro, prestes a explodir”.

https://jornal.usp.br/cultura/vidas-secas-denuncia-o-descaso-social-e-a-exploracao-humana/

A HORA DA ESTRELA – CLARICE LISPECTOR


Professor: Flávio Brito

1945 Fim da II Guerra Mundial, início da Era Atômica com as explosões de Hiroxima e Nagasáqui. A crença numa paz
duradoura manifesta-se na criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Mais tarde, é publicada a Declaração dos Direitos
do Homem. Logo depois, tem início a Guerra Fria, período marcado pela hostilidade e permanente tensão política entre as grandes
potências mundiais.

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 10


1945. Fim da ditadura de Getúlio Vargas, início da redemocratização brasileira. Convocam-se eleições gerais, os
candidatos apresentam-se, os partidos são legalizados, sem exceção. Logo depois, inicia-se um novo tempo de perseguições
políticas, ilegalidades, exílios.
A literatura brasileira também passa por profundas alterações, surgindo manifestações que representam muitos passos
adiante e, outras, um retrocesso. O tempo; excelente crítico literário, encarrega-se da seleção.
A prosa, tanto nos romances como nos contos, segue o caminho já trilhado por alguns autores da década de 30, em busca
de uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva, com destaque especial para Clarice Lispector. Ao mesmo
tempo, o regionalismo adquire uma nova dimensão com a produção fantástica de João Guimarães Rosa e sua recriação dos
costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jagunço do Brasil Central.
Na poesia, a partir de 1945 ganha corpo uma geração de poetas que se opõe às conquistas e inovações dos modernistas de
1922. A nova proposta é defendida inicialmente pela revista Orfeu, cujo primeiro número, lançado na primavera de 1947, afirma,
entre outras coisas:
"Uma geração só começa a existir no dia em que não acredita nos que a precederam, e só existe realmente no dia em que
deixam de acreditar nela."
Assim é que, negando a liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras "brincadeiras" modernistas, os poetas de 45 se
dedicam a uma poesia mais "equilibrada e séria", distante do que eles chamam de "primarismo desabonador" de Mário de
Andrade e Oswald de Andrade. A preocupação primordial é o "restabelecimento da forma artística e bela", os modelos voltando a
ser parnasianistas e, simbolistas. Esse grupo, chamado de Geração de 45, é formado entre outros poetas, por Lêdo Ivo, Péricles
Eugênio da Silva Ramos, Geir Campos e Darcy Damasceno.
Entretanto, o final dos anos 40 revela um dos mais importantes poetas da nossa literatura, não filiado esteticamente a
nenhum grupo e aprofundador das experiências modernistas anteriores: João Cabral de Melo Neto. Contemporâneos a ele e
apresentando alguns pontos de contato com sua obra, devem ser citados ainda Ferreira Gullar e Mauro Mota.

CLARICE LISPECTOR

 Sondagem psicológica – análise das angústias e dos dramas existenciais do indivíduo.


 Ruptura com a linearidade da narrativa - não segue ordem cronológica.
 Monólogo interior – a introspecção dos personagens.
 Aproxima-se de James Joyce, Virginia Woolf e Faulkner.
 Fluxo de consciência compondo com o enredo factual.
 Momento interior é o tema mais importante.
 Subjetividade.
 Amostras do mundo de forma metafísica.
 A exploração do eu.
 Um novo sentido de liberdade a partir da sua leitura do mundo.
 Esquema:
* A personagem está diante de uma situação do cotidiano.
* Acontece um evento.
* O evento lhe “ilumina” a vida: aprendizado, descoberta.
* Ocorre o desfecho: situação da vida do personagem após o evento.

Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920 em Tchetchelnik, Ucrânia. Quando tinha cerca de dois meses de
idade, seus pais migraram para o Brasil, terra que considerava como sua verdadeira pátria. Em 1924, a família mudou-se para o
Recife, onde iniciou seus estudos. Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio
de Janeiro.
Ingressa em 1939 na Faculdade de Direito, e publica no ano seguinte seu primeiro conto, Triunfo, em uma revista. Forma-
se em 1943 e casa-se no mesmo ano com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos. Durante seus anos de
casada, mora em diversos países pela Europa e nos Estados Unidos.
Em 1944, publica seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, vindo a ganhar o Prêmio Graça Aranha, da Academia
Brasileira de Letras, no ano seguinte. Separa-se de seu marido em 1959 e volta para o Rio de Janeiro com seus dois filhos. No ano
seguinte, publica seu primeiro livro de contos, Laços de família.

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Em 1967, um cigarro provoca um grande incêndio em sua casa e Clarice fica gravemente ferida, correndo risco inclusive
de ter sua mão direita amputada. Porém, após se recuperar, continua com sua carreira literária publicando diversos livros.
Publica em 1977 seu último livro, A hora da estrela, vindo a ser internada pouco tempo depois com câncer. A escritora vem
a falecer no dia 9 de dezembro do mesmo ano, véspera de seu aniversário de 57 anos.
Suas principais obras são: "Perto do coração selvagem" (1944), "Laços de família" (1960), "A maçã no escuro" (1961), "A
legião estrangeira" (1964), "A paixão segundo G.H." (1964), "Felicidade clandestina" (1971), "Água viva" (1973) e "A hora da
estrela" (1977).

ANÁLISE DA OBRA

A hora da estrela é também uma despedida de Clarice Lispector. Lançada pouco antes de sua morte em 1977, a obra conta
os momentos de criação do escritor Rodrigo S. M. (a própria Clarice) narrando a história de Macabéa, uma alagoana órfã, virgem
e solitária, criada por uma tia tirana, que a leva para o Rio de Janeiro, onde trabalha como datilógrafa.
É pelos olhos do narrador e através de seu domínio da palavra que a existência e a essência são expostas como
interrogações. Tal presença masculina retrata um universo de fragmentos, onde o ser humano não é respeitado, mas desacreditado
nessa reconstrução de uma realidade mutilada.
Em A hora da estrela Clarice escreve sabendo que a morte está próxima e põe um pouco de si nas personagens Rodrigo e
Macabéa. Ele, um escritor à espera da morte; ela, uma solitária que gosta de ouvir a Rádio Relógio e que passou a infância no
Nordeste, como Clarice.
A despedida de Clarice é uma obra instigante e inovadora. Como diz o personagem Rodrigo, estou escrevendo na hora
mesma em que sou lido. É Clarice contando uma história e, ao mesmo tempo, revelando ao leitor seu processo de criação e sua
angústia diante da vida e da morte.

ESTRUTURA DA OBRA

É uma obra composta de três histórias que se entrelaçam e que são marcadas, principalmente, por duas características
fundamentais da produção da autora: originalidade de estilo e profundidade psicológica no enfoque de temas aparentemente
comuns.
A linguagem narrativa de Clarice é, às vezes, intensamente lírica, apresentando muitas metáforas e outras figuras de estilo.
Há, por exemplo, alguns paradoxos e comparações insólitas, que realmente surpreendem o leitor. E também é peculiaridade da
autora a construção de frases inconclusas e outros desvios da sintaxe convencional, além da criação de alguns neologismos.

FOCO NARRATIVO

Quanto à linguagem, o livro a apresenta fartamente, em todos os momentos em que o narrador discute a palavra e o fazer
narrativo. Interessante notar que, antes de iniciar a narrativa e logo após a 'Dedicatória do autor', aparecem os treze títulos que
teriam sido cogitados para o livro.
O recurso usado por Clarice Lispector é o narrador-personagem, pois conforme nos faz conhecer a protagonista, também
nos faz conhecê-lo. Ele escreve para se compreender. É um marginalizado conforme lemos: "Escrevo por não ter nada a fazer no
mundo: sobrei e não há lugar pra mim na terra dos homens". Quanto à sua relação com Macabéa, ele declara amá-la e
compreendê-la, embora faça contínuas interrogações sobre ela e embora pareça apenas acompanhando a trajetória dela, sem saber
exatamente o que lhe vai acontecer e torcendo para que não lhe aconteça o pior.
Macabéa, a protagonista, é uma invenção do narrador com a qual se identifica e com ela morre. A personagem é criada de
forma onisciente (tudo sabe) e onipresente (tudo pode). Faz da vida dela um aprendizado da morte. A morte foi a hora de estrela.
O enredo de A hora da Estrela não segue uma ordem linear: há flashbacks iluminando o passado, há idas e vindas do
passado para o presente e vice-versa
ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 12
Além da alinearidade, há pelo menos três histórias encaixadas que se revezam diante dos nossos olhos de leitor:

1. A metanarrativa - Rodrigo S. M. conta a história de Macabéa: Esta é a narrativa central da obra: o escritor Rodrigo S.M. conta a
história de Macabéa, uma nordestina que ele viu, de relance, na rua.

2. A identificação da história do narrador com a da personagem - Rodrigo S.M. conta a história dele mesmo: esta narrativa dá-se
sob a forma do encaixe, paralela à história de Macabéa. Está presente por toda a narrativa sob a forma de comentários e
desvendamentos do narrador que se mostra, se oculta e se exibe diante dos nossos olhos. Se por um lado, ele vê a jovem como
alguém que merece amor, piedade e até um pouco de raiva, por sua patética alienação, por outro lado, ele estabelece com ela um
vínculo mais profundo, que é o da comum condição humana. Esta identidade, que ultrapassa as questões de classe, de gênero e de
consciência de mundo, é um elemento de grande significação no romance, Rodrigo e Macabéa se confundem.

3. A vida de Macabéa - O narrador conta como tece a narrativa.


Narrador e protagonista, inseridos em uma escrita descontínua e imprevisível, permitem ao leitor a reflexão sobre uma época de
transição, de incoerência, como um movimento em busca de uma nova estruturação da obra literária similar à insegurança, à
ansiedade e ao sofrimento. O tema é oferecido, socializando a possibilidade de ruptura.
O narrador revela seu amor pela personagem principal e sofre com a sua desumanização, mas, também, com a própria
tendência em tornar-se insensível.
O foco narrativo escolhido é a primeira pessoa. O narrador lança mão, como recurso, das digressões, o que, aspectualmente
parece dar à narrativa uma característica alinear. Não se engane: ele foge para o passado a fim de buscar informações.

ESPAÇO / TEMPO

O Rio de Janeiro é o espaço. Ocorre que o espaço físico, externo, não importa muito nesta história. O "lado de dentro"das
criaturas é o que interessa aos intimistas.
Pelos indícios que o narrador nos oferece, o tempo é época em que Marylin Monroe já havia morrido - possivelmente a
década de 60 em seu fim ou a de 70 em seus começos - mas faz ainda um grande sucesso como mito que povoa a cabeça e os
sonhos de Macabéa.
Embora a história de Macabea seja profundamente dramática, a narrativa é toda permeada de muito humor e ironia. O
próprio nome da protagonista constitui-se numa grande ironia (tragicomédia).

PERSONAGENS

Macabéa: Alagoana, 19 anos e foi criada por uma tia beata que batia nela (sobre a cabeça, com força); completamente
inconsciente, raramente percebe o que há à sua volta. A principal característica de Macabéa é a sua completa alienação. Ela não
sabe nada de nada. Feia, mora numa pensão em companhia de 3 moças que são balconistas nas Lojas Americanas (Maria da
Penha, Maria da Graça e Maria José). Macabéa recebe o apelido de Maca e é a protagonista da história. Possivelmente o nome
Macabéa seja uma alusão aos macabeus bíblicos, sete ao todo, teimosos, criaturas destemidas demais no enfrentamento do mundo;
a alusão, no entanto, faz-se pelo lado do avesso, pois Macabéa é o inverso deles.

Olímpico: Olímpico se apresentava como Olímpico de Jesus Moreira Chaves. Trabalhava numa metalúrgica e não se classificava
como "operário": era um "metalúrgico". Ambicioso, orgulhoso e matara um homem antes de migrar da Paraíba. Queria ser muito
rico, um dia; e um dia queria também ser deputado. Um secreto desejo era ser toureiro, gostava de ver sangue.

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 13


Rodrigo S. M.: Narrador-personagem da história. Ele tem domínio absoluto sobre o que escreve. Inclusive sobre a morte de
Macabéa, no final.

Glória: Filha de um açougueiro, nascida e criada no Rio de Janeiro, Glória rouba Olímpico de Macabéa. Tem um quê de
selvagem, cheia de corpo, é esperta, atenta ao mundo.

Madame Carlota: É a mulher de Olaria que porá as cartas do baralho para "ler a sorte"de Macabéa. Contará que foi prostituta
quando jovem, que depois montou uma casa de mulheres e ganhou muito dinheiro com isso. Come bombons, diz que é fã de Jesus
Cristo e impressiona Macabéa. Na verdade, Madame Carlota é uma enganadora vulgar.

Outras personagens: As três Marias que moram com Macabéa no mesmo quarto, o médico que a atende e diagnostica a
gravidade da tuberculose e o chefe, seu Raimundo, que reluta em mandá-la embora.

RESUMO DO LIVRO:

Macabéa é uma mulher comum, para quem ninguém olharia, ou melhor, a quem qualquer um desprezaria: corpo franzino,
doente, feia, maus hábitos de higiene. Além disso, era alvo fácil da propaganda e da indústria cultural (para exemplificar, seu
desejo maior era ser igual a Marilyn Monroe, símbolo sexual da época).
Nossa personagem não sabe quem é, o que a torna incapaz de impor-se frente a qualquer um. Começa a namorar Olímpico
de Jesus, nordestino ambicioso, que não vê nela chances de ascensão social de qualquer tipo. Assim sendo, abandona-a para ficar
com Glória, colega de trabalho de Macabéa; afinal, o pai dela era açougueiro, o que lhe sugeria a possibilidade de melhora
financeira. Triste, nossa personagem busca consolo na cartomante, que prevê que ela seria, finalmente, feliz... a felicidade viria do
“estrangeiro”. De certa forma, é o que acontece: ao sair da casa da cartomante, Macabéa é atropelada por Hans, que dirigia um
luxuoso Mercedes-Benz. Esta é a sua “hora da estrela”, momento de libertação para alguém que, afinal, “vivia numa cidade toda
feita contra ela”.

“Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a escrever. (...) Pensar é um ato. Sentir é um fato.”

Existe a necessidade constante de descobrir-se o princípio, mas o homem, limitado que é, não conhece a resposta a todas as
perguntas. A personagem narradora não é diferente dos outros homens, porém, mesmo sem saber tais respostas, de uma coisa ela
tem certeza e, por isso, ela afirma: “Tudo no mundo começou com um sim.” É preciso dizer sim para que algo comece, por isso,
ela diz “sim” a Macabéa. Alguém que forçou seud nascimento, sua saída de dentro do narrador, tornando-se a nordestina,
personagem protagonista de seu romance.
É o grito do narrador que aparece no corpo de Macabéa:

“Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a
ninguém. Aliás - descubro eu agora - também não faço a menor falta, e até o que eu escrevo um outro escreveria. Um outro
escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.”

Assim, ela é uma entre tantas, pois quem olharia para alguém com “corpo cariado”, franzino, trajes sujos, ovários
incapazes de reproduzir? Com ela o narrador identifica-se, pois ele também nada fez de especial (qualquer um escreveria o que ele
escreve); teria de ser escritor, mas nunca escritora; por outro lado, não se pode esquecer de que quem escreve é Clarice Lispector,
conforme se afirma na dedicatória.

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Dessa forma, desencadeia-se, na primeira parte do livro, todo um processo de metalinguagem, que entrecortará a narrativa
até o seu desfecho. O narrador homem - Rodrigo S. M. - tecerá reflexões sobre a posição que o escritor ocupa na sociedade, seu
papel diante dela e, principalmente, sobre o processo de elaboração da escritura de sua obra:

“Escrevo neste instante com prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no
entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e coagular em cubos de geléia trêmula. Será essa
história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que
cada um reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espíirito ou
saudade por lhe faltar coisa mais preciosa do que ouro - existe a quem falte o delicado essencial.
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora seja obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A
história - determino com falso livre arbítrio - vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu,
Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que
experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e chuva caindo.”

Ironizando, repetidas vezes, o desejo que os leitores têm da narrativa tradicional, Clarice Lispector (aqui transfigurada no
narrador Rodrigo S. M.), em contrapartida, não abre mão de suas características mais marcantes, ou seja, a reflexão, o elemento
acima do enredo, o “silêncio e a chuva caindo”, que marcarão a personagem protagonista.
Como contar a vida sem menti-la? Para isso, pondera o narrador, a narrativa há de ser simples, sem arte. O narrador está
enjoado de literatura. Não usará “termos suculentos”, “adjetivos esplendorosos”, “carnudos substantivos”, verbos “esguios que
atravessam agudos o ar em vias de ação”. A linguagem deve ser despojada para ser precisa e para poder alcançar o corpo inteiro e
vivo da realidade. Como escreve o narrador?

“Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um
homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. (...) Que mais? Sim,
não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de
que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim.”

Chegamos, aqui, ao ponto mais importante desse trabalho de metalinguagem: a consciência do escritor como um
marginalizado. É aqui que o narrador se funde com sua personagem: ambos são marginalizados, num espaço que não os aceita.
Tal fusão se dá em todos os níveis - não apenas no desejo de simplicidade da linguagem despojada; para poder falar de Macabéa,
o escritor torna-se um trabalhador braçal, faz-se pobre, dorme pouco, adquire olheiras fundas e escuras, deixa a barba por fazer,
lidando com uma personagem que insiste, com seus dezenove anos, mesmo tendo “corpo cariado”, comparada a uma “cadela
vadia”, “numa cidade toda feita contra ela”, em viver. Assim, personagem e narrador dão seu grito de resistência em busca da
vida.
A resistência de Macabéa pode ser representada, por exemplo, nos momentos em que sorri na rua para pessoas que sequer a
vêem; a resistência do narrador, na busca da palavra, cheia de sentidos secretos... a “coisa”, que, quando não existe, deve ser
inventada (o narrador escritor como senhor da criação).
Tanto Macabéa como a palavra são pedras brutas a serem trabalhadas. A palavra será a mediadora entre o narrador e o
leitor, e entre o leitor e Macabéa, pois é por meio dela que conheceremos a história da personagem, os fatos e, principalmente, o
nascimento deles. O narrador, ao contar Macabéa, conta a si mesmo, não só pelas sucessivas identificações com a personagem,
mas porque ela sai de dentro de si, imanente que é a ele (“pois a datilógrafa não quer sair de meus ombros.”).
Dessa união, nasce uma nordestina vinda de Alagoas para o Rio de Janeiro. Datilógrafa, “o que lhe dava alguma
dignidade”, fazendo-a acreditar que tal profissão indicava que “era alguém na vida” (aqui, não lhe passa pela cabeça que é uma
péssima profissional, semi-analfabeta... ela não tem consciência de nada disso).
Alguém com aparência bruta, capaz de enojar suas quatro companheiras de quarto (na pensão onde morava), trabalhadoras
das Lojas Americanas:
ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 15
“... dormia de combinação de brim, com manchas bastante suspeitas de sangue pálido (...) Dormia de boca aberta por
causa do nariz entupido.
Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar
espaço. No espelho distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se ‘panos’, diziam que vinham do
fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento.
Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação.
Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois
tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala.
Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.
Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo
encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela.”

Sua falta de percepção física acompanha a psicológica. Começa com o fato de ela ser alvo fácil da sociedade consumista e
da indústria cultural: gosta de colecionar anúncios; seus parcos conhecimentos são extraídos da Rádio Relógio (informações
ouvidas, mas nunca entendidas); gosta de cachorro-quente e coca-cola. Aceita tudo isso sem questionar, pois teme as conclusões a
que pode chegar (arrepende-se em Cristo por tudo, mesmo não entendendo o que isso significa; não se vingava porque lhe
disseram que isso é “coisa infernal”; apaixona-se pelo desconhecido, como no caso da palavra “efemérides”, mas nunca
procurava, efetivamente, conhecer o incognoscível, pois era mais fácil aceitar aceitar-lhe a existência e admirá-lo a distância).
Consequentemente, torna-se personagem “torta”, de tanto encaixar-se num meio que tanto a repele. O próprio emprego de
datilógrafa é revelador: ela o era por acreditar que este lhe dava alguma dignidade. Buscava a dignidade, como se não tivesse
direito a ela. Outro dado revelador é seu relacionamento com Olímpico, desculpando-se com ele todo o tempo, chegando a dizer-
lhe que não é muito gente, que só sabe ser impossível.
Ela não se defende por seus próprios valores, mas tenta adaptar-se aos valores do namorado, nunca discutindo a validade
deles. Olímpico representa o contraponto em relação a Macabéa. Seus valores em nada se relacionam aos dela: metalúrgico, quer
ser deputado, afastar-se de Macabéa e ficar com Glória, a loira oxigenada, colega de trabalho de Macabéa; afinal, o pai dela era
açougueiro, o que lhe dava maiores perspectivas de vida.
E tudo isso é, literalmente, engolido, tão deglutido, que ela não admite a ideia de vomitar; afinal, isso seria um desperdício.
Ao mesmo tempo, é sensual em seus pensamentos, ou nos momentos de solidão, como quando viu o homem bonito no
botequim, ou ainda quando ficou em casa - ao invés de ir trabalhar - vivendo a sensação de liberdade.
O prazer em Macabéa é algo que sempre se alia à dor. Ao ver o homem, por exemplo, apesar do prazer que tal visão lhe dá,
há o sofrimento por não o possuir e por ter a certeza de que alguém assim é mesmo só para ser visto. Macabéa já havia
experimentado essas sensações contraditórias com outra pessoa, a tia, que, ao bater na menina, sentia prazer ao vê-la sofrer: “... e
ela era só ela”, imune à vida, vida que era morte, por tanta aceitação.
O instinto de vida, que está ligado ao prazer, vem sustentá-la. Diz o narrador: “Penso no sexo de Macabéa (...) seu sexo era
a única marca veemente de sua existência.” E ainda, mais adiante, ligando o prazer à morte: “Ela nada podia mas seu sexo exigia,
como um nascido girassol num túmulo.”
De que “relação sexual” se pode falar no caso de Macabéa? Da relação com a própria vida, que ela insiste em manter, no
seu conceito tão particular de beleza: usava batom vermelho, queria ser atriz de cinema com Marylin Monroe, apreciava os ruídos,
pois eram vida.
Essas sensações se intensificam quando vai à cartomante Carlota (por recomendação de Glória), no momento em que esta
lhe revela: a felicidade viria de fora, do estrangeiro. A cartomante mostra-lhe a tragédia que é sua vida (coisa de que, até o
momento, não havia tomado consciência), mas, ao mesmo tempo, dá-lhe a esperança de acreditar que as coisas poderiam ser
diferentes... a possível felicidade.
Quando sai da casa da cartomante, é atropelada por Hans, que dirigia um automóvel Mercedes-Benz, momento em que a
vida se torna “um soco no estômago”:
ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 16
“Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos. (...)
Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal. Grotesca como sempre fora. Aquela
relutância em ceder, mas aquela vontade do grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade do doce nada. Era uma
maldita e não sabia. (...)”

A morte dela é o momento em que Eros (Amor) se une a Tanatos (Morte), vida e morte, num momento doce, e sensual:

“Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte.
(...) E havia certa sensualidade no modo como se encolhera. Ou é como a pré-morte se parece com a intensa ânsia
sensual?
É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo. (...)
Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, não era morte pois não a quero para a moça: só um
atropelamento que não significava sequer um desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que se nunca experimentara,
virgem que era , ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma
mulher é ser mulher. Intuíra o instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor. Sim, doloroso reflorescimento tão difícil
que ela empregava nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma. (...)
Nesta hora exata, Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar
algo luminoso. Estrela de mil pontas.
O que é que eu estou vendo agora é e que me assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o
âmago tocando no âmago: vitória!”

Sua boca, agora, vermelha como a de Marylin Monroe, no apogeu orgásmico da morte, grita, pela primeira vez, depois de
vomitar, à vida:

“E então - então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha
tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.”

Chegamos, afinal, ao momento da epifania do narrador fundido à Macabéa: é a vida que grita por si mesma, independente
da opressão e da marginalização social. O momento, entremeado com silêncio, da consciência a que se chega pelo ato de escrever:

“(...) O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não
toca mais e depois toca de novo. Etc. , etc., etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
Eu vos pergunto: - Qual é o peso da luz?
E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas -
mas eu também?!
Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
Sim.”

Enfim, descobrimos, agora, que tudo começa e acaba com um sim. Também é preciso coragem para morrer, silêncio para
ouvir o grito da vida.

http://www.coladaweb.com/resumos/a-hora-da-estrela-clarice-lispector
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/a/a_hora_da_estrela

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A QUESTÃO SOCIAL NA OBRA “A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR

Julienne da Silva Silveira / Viviane Cristina Oliveira

Em entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, no programa Panorama na TV Cultura, gravada em janeiro de 1977 e
apresentada ao público em dezembro do mesmo ano, após sua morte, Clarice Lispector menciona a composição de uma nova obra,
uma novela. Apesar de questionada, a autora não revela o nome da personagem central; diz somente que se trata de uma
“inocência pisada”.

A autora comenta que pensou em escrever essa novela quando visitou a feira dos nordestinos no Rio de Janeiro. Clarice
percebe um olhar perdido de um nordestino e esse fato a deixa intrigada; depois ela vai a uma cartomante e, em seguida, pega um
táxi para voltar para casa e, no trajeto, fica imaginando que seria engraçado se o táxi a atropelasse depois de ter ouvido coisas
boas. E assim nasce o romance ou, como a autora prefere chamar, novela. A entrevista de Clarice é editada novamente e levada ao
público na página do youtube, acrescida de depoimentos de admiradores da escritora, em 07 de dezembro de 2012. Suzana
Amaral, diretora do filme A hora da estrela, contribui com esta reedição ao comentar sobre Clarice, sobre a forma como foi escrita
a narrativa: “como se fosse um vômito... ela toca no problema social do Brasil.”.

Nota-se que essas considerações de Suzana estão na obra, “vomitar o que não tinha corpo, vomitar algo luminoso. Estrela
de mil pontas.” (LISPECTOR, 1998, p. 83). A diretora destaca, assim, que Clarice tem um novo olhar: autora de várias crônicas
intimistas, que trata da crise do indivíduo consciente e inconsciente, ela une em A hora da estrela duas vertentes: os devaneios
psicológicos e a questão social impregnada em Macabéa. No filme A hora da estrela, a diretora busca ser fiel ao livro de Clarice.
Percebemos na leitura e na interpretação da atriz Marcélia Cartaxo, que dá vida a Macabéa, o retrato da miséria que vivia e o seu
conformismo que desespera o espectador e o leitor. Na obra de Clarice Lispector, Rodrigo S. M. é narrador e pseudo-autor da
narrativa, narrador que sofre ao escrever o livro: “Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela.” (LISPECTOR, 1998, p. 27).

Rodrigo S. M. conversa com o leitor; a força da linguagem e a exploração psicológica da personagem tecidas por essa voz
masculina provocam e incomodam durante a leitura. O narrador fica preocupado com a vida de Macabéa, como falar dos
problemas sociais que ela vive se não pode ajudá-la de forma concreta. Nas palavras de Rodrigo S.M.: Devo dizer que essa moça
não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através
dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo (LISPECTOR, 1998, p. 33).

Como Rodrigo irá escrever Macabéa, é preciso ter cuidado ao pisar no território da personagem. Assim, Clarice faz um
jogo ficcional em seu romance. Suas palavras se infiltram através da voz do narrador. E ao escrever, segundo Mainardi (2010),
Rodrigo S. M. descreve Macabéa sem embelezar as palavras, abrindo uma discussão sobre a escrita que instigou diversos críticos
literários. Para Silva (2005), Rodrigo precisa se adaptar à pobreza, sentir as necessidades de Macabéa para escrever, percebe a
falta de recursos literários, mas seu desejo maior é escrever uma história simples. Hèlene Cixous, escritora francesa que divulgou
o trabalho de Clarice mundialmente através do Centro de Estudos Femininos (fundado por Cixous em 1974) na Universidade de
Paris VIII, afirma:

Macabéa não é (apenas uma) personagem de ficção. Ela é um grão de poeira que entrou no olho da autora e provocou uma
torrente de lágrimas. [...] É também uma torrente de perguntas imensas e humildes que não pedem respostas [...]. Macabéa precisa
de um autor especial. É por amor a Macabéa que Clarice Lispector vai criar o autor necessário (CIXOUS, 1999, p. 129).

Para Cixous (1999), Clarice moldou Rodrigo, principalmente seus questionamentos em relação à obra em si, o árduo
trabalho de escrevê-la. Para a pesquisadora, Clarice retrata de forma minuciosa e simples a vida de Macabéa, como se fosse seu
autorretrato. “Seria sua história, um autorretrato distante, mais distante do modelo do que o autorretrato habitual.” (CIXOUS, p.
131). Um dos indícios que validariam tal percepção estaria na contracapa do livro contendo os trezes capítulos possíveis; nesta
percebemos a assinatura de Clarice entre eles, então seriam quatorze contando com o nome dela. Inserindo-se no percurso dessa
migrante, a autora nos leva a refletir sobre sua vinda para o Rio de Janeiro, seu processo pessoal de migração, rememorado “qual a
criatura que na terra seria a mais estrangeira possível, e que ao mesmo tempo nos ‘comovesse’” (CIXOUS, p. 133 e 135).

Hèlene Cixous comenta sobre a pessoa que vem de uma terra sofrida pela fome e miséria, como alguém que pertencesse a
outro planeta. Clarice trabalha isto, “um pedacinho de vida vindo do Nordeste” (CIXOUS, p.135), para sobreviver no Rio de

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Janeiro, um mundo cheio de cultura. Macabéa – A terceira Margem No texto “Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar”,
Lígia Chiappini tece, a partir da leitura de A hora da estrela, uma relação entre as personagens de Clarice de forma a discutir a
existência humana e a condição feminina sobre o olhar cego da crítica literária.

Em A hora da estrela, enfatiza Chiappini, a protagonista é sempre flagrada em seus conflitos sociais; ela se sente livre ao
faltar ao trabalho e sente o prazer de não ter nenhuma obrigação como um único momento feliz de sua vida. Macabéa é diferente
de outras mulheres de Clarice, sua simplicidade, seus modos desajeitados, roupas velhas, destoam das personagens de classe
média clariceanas que se questionam psicologicamente, como por exemplo, Ana em Laços de família. A personagem em A hora
da estrela nos remete com mais intensidade à realidade; seus problemas psicológicos e sociais provocam o leitor para uma
reflexão mais profunda sobre a classe baixa esquecida na sociedade brasileira. Sua alimentação era sempre um cachorro-quente e
Coca-Cola. A escrita de Clarice nos causa estranhamento por causa do tom narrativo que conduz o destino de Macabéa, tom
marcado por certa: “brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pedia tapa” (LISPECTOR, 1998, p.
25).
Macabéa faz parte de uma classe social marginalizada e excluída da sociedade, ao que se acrescenta o fato de ser mulher,
outro motivo de exclusão. Uma retirante que se muda para o Rio de Janeiro por causa da ti a. E a ti a morre e Macabéa passa a
morar numa pensão com quatro moças. Retornando à questão regional pela via dessa nordestina, que migra para o Rio de Janeiro,
vale recordar as reflexões de Afrânio Coutinho sobre o regional em literatura, acionadas no texto de Adriana Araújo (s/a).
Coutinho pensa em dois caminhos para a expressão literária da valorização de peculiaridades locais e exploração descritiva do
espaço geográfico. Pelo primeiro caminho, toda arte pode ser considerada regional quando parte de um local particular.

No segundo caminho, Coutinho define o sentido do regionalismo autêntico, sendo a obra regionalista aquela que não é
localizada apenas no senti do literal da palavra. Coutinho faz uma divisão didática na literatura regional, mesmo que alguns
escritores tratem de assuntos universais, o que se considera regional é tudo que não vem do centro, o Rio de Janeiro. Assim, vale
ressaltar Macabéa e o seu local de origem, uma alagoana de origem pobre. Macabéa é uma nordestina que sonhava ser estrela de
cinema, mas que vivia uma rotina sem expectativa de uma vida melhor. Seus momentos de descontração consistiam em, por
exemplo, ouvir o rádio e anotar as palavras difíceis para conversar com Olímpico, seu namorado que ficava aflito por não saber
explicar as perguntas de Macabéa. Na sua pureza e ingenuidade, passa a observar suas colegas e, principalmente Glória, quando
falta ao serviço de datilógrafa para ficar em casa e acordar tarde, passar batom e ir passear no parque.

Uma personagem de uma região pobre do país, que se encanta com pequenas coisas para se sentir feliz. Macabéa não está
no sertão, mas traz o sertão para o espaço urbano. Clarice em outras obras ressalta a pobreza e a sensibilidade que levam o leitor a
refletir sobre as reações ou silêncios que podem acontecer no dia a dia, quando nos deparamos com algumas cenas. Cenas de
pessoas humildes, pessoas submeti das à miséria, a relações de escravização e espoliação, ora provocando o ódio, ora a repulsa ou
a vergonha, como podemos observar em crônicas como “Por detrás da devoção”, centrada nos conflitos entre empregados e
patrões, e “As caridades odiosas”, na qual percebemos o incômodo e vergonha da personagem compelida a dar esmolas.

Nesse senti do, nos escritos de Clarice é possível notar as duas margens de classes que se encontram e sempre vão se
encontrar. E, incluir Macabéa nesse contexto, seria então uma terceira margem? porque além de pobre e marginalizada pela
sociedade, suas características nordestinas fazem Macabéa um ser inexistente e vítima de preconceitos. Segundo Foucault (1988),
“[a] repressão funciona, de certo, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio – afirmação da
inexistência (...)”; o que percebemos em A hora da estrela é uma figura feminina sem corpo que “sonhava estranhamente em sexo,
ela que de aparência era assexuada” (LISPECTOR, 1998, p. 34.).

Foucault (1988) relata sobre os tabus da sociedade em relação à mulher e Clarice escreve seus contos plenos de
questionamentos que abalem essa história da escrita e a posição masculina na sociedade. Ela nos leva para uma compreensão da
existência do eu-feminino, o lugar onde a mulher está na sociedade. O escritor Nascimento (2012) nos revela: Pois se trata de uma
pintora que se escreve, deslocando a figura masculina do escritor (já no caso de Rodrigo S. M.., este compete com a escritora C.L.,
em A hora da estrela). Clarice Lispector classifica Macabéa como uma “inocência pisada” e sem a condição de ser feminina. A
sociedade não enxerga Macabéa, ela é “como um cabelo na sopa não dá vontade de comer” (LISPECTOR, 1998, p.60).

Macabéa só passa a existir quando morre no final da narrativa. Sendo uma forma de libertação de Macabéa que nasce para
o mundo, “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha vida: nasci.” (LISPECTOR, 1998, p.80). O senti do trágico de
mistério, do inescapável destino representado pela morte que irrompe após as boas notícias da cartomante, insere o leitor no ritmo
do espanto, da incompreensão que perpassa uma narrativa que vale aqui recordar, a narrativa do conto “A terceira margem do
rio”, de João Guimarães Rosa. Em “A terceira margem do rio”, um filho conta a história do pai que vai embora numa canoa, uma

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 19


metáfora do mistério da condição finita do homem diante do infinito. Na sua memória de menino, habitam duas imagens: a
primeira, a imagem do pai pintada por outras pessoas e a segunda, a imagem do pai partindo para permanecer entre duas margens.
E o filho carregou a história do pai a vida inteira, vendo os outros irem embora e não se permitiu sonhar.

No trecho “[e] apontavam em mim uns primeiros cabelos brancos” (Rosa, 2001, p.84), o leitor percebe o envelhecimento
daquele que aguardava o retorno da figura paterna. Triste, o filho se perde nos questionamentos que fazia ao pensar como o pai se
senti a e, no fim do conto, torna-se a continuação do pai ao pedir para ser entregue ao rio no trecho “[m]as, então, ao menos, que,
no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas beiras:
e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio” (Rosa, 2001, p.85).

O rio é uma imensidão com longas beiras, assim como a vida, a terceira margem. E isso, nos remete à Macabéa, sua ida à
cartomante quando, depois de uma reflexão sobre sua vida, vai embora feliz esperando algo inusitado acontecer. Quando se
depara com a eternidade: a morte inesperada, sua consciência passa a viver após a morte. Tornar-se estrela nesse momento, estrela
por atrair a atenção que antes não ti vera dos que ao redor passavam, bem como por alcançar o mistério que a todos rodeia, é
matéria para as margens terceiras, as sociais, as místicas, as subjetivas, as ficcionais. Assim, é possível ler Macabéa na terceira
margem; uma mulher nordestina, tuberculosa, profundamente carente e solitária de relações familiares, uma personagem invisível,
mesmo aos que compartilham experiência semelhante, a das margens da sociedade. Macabéa é o retrato das pessoas que comem
mal e moram em moradias precárias, ou como as empregadas que moram nas casas dos patrões. E, nesse senti do, podemos notar
“como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama de quarto, atrás de balcões trabalhando até a
estafa” (LISPECTOR, 1998, p.14).

E podendo ser substituídas facilmente por seus patrões que exigem um bom trabalho, mas que não valorizam seus
empregados dando-lhes condições dignas para a sobrevivência. Macabéa continua, nessas vidas e corpos, vagando pelas ruas das
cidades, reatualizando sempre, e de maneiras diversas, a angústia de narradores como Rodrigo S. M.; narradores intimados a tratar
de experiências que não poderão plenamente compreender pela impossibilidade de representar o que a outro pertence. Aliás, pode-
se arriscar dizer que, em nossa contemporaneidade, já é possível escutar de Macabéas as vozes.

Vozes de mulheres e homens que, não somente como personagens, mas narradores e narradoras, requerem seu lugar de
fala; mulheres e homens provenientes das periferias, das margens sociais, margens de raça e gênero, que ensaiam, requerem,
enfim, a sua hora na literatura brasileira. Considerações Finais Esta pesquisa sobre a obra de Clarice Lispector teve como foco a
questão social regionalista e os estudos que problematizam a questão do feminino. Dessa forma, tornou-se possível destacar as
margens sociais plasmadas na escrita de Clarice, escritora costumeiramente associada à linhagem do romance psicológico,
distanciado dos apelos sociais. Esta pesquisa foi motivada por leituras e discussões em sala de aula, além de pesquisas individuais.

Clarice Lispector cria uma personagem silenciada através dos preconceitos da sociedade brasileira e, assim, existem muitas
Macabéas pelo país buscando mais vida em seus lares humildes. A obra permite múltiplos olhares; Macabéa representa o povo
nordestino que migra para a cidade grande e reproduz um cotidiano simples, pisado e invisível. Macabéa é mulher sem vaidade,
conformada com a falta de recursos básicos, vive de cachorro-quente e Coca-Cola e ainda tinha pequenos prazeres. E são nesses
pequenos detalhes que percebemos que há vida nessa personagem. E quando tudo poderia mudar, Macabéa é atropelada e morre.
Essa nordestina, cujo destino trágico é narrado por uma voz masculina cindida entre hostilidade e afeto, nos permite acionar, na
leitura do texto, os traços regionais marcantes em sua trajetória, o que não significou classificar a obra de regionalista. Aliás, a
multiplicidade de perspectivas, a interpenetração de espaços na trajetória de Macabéa, embaralha também as possibilidades de
acomodar a narrativa a conceitos como literatura regional ou intimista. A hora da estrela faz o leitor refletir sobre o chão de
Macabéa, sua existência humana e condição feminina na sociedade – não uma margem ou outra, mas uma terceira, uma em que é
possível olhar, pela janela social, o que há de mais densamente ou tragicamente humano no destino que não é somente da
nordestina, mas de todos, narradores e leitores.

https://abralic.org.br/anais/arquivos/2017_1522197573.pdf

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 20


GRANDE SERTÃO: VEREDAS – GUIMARÃES ROSA
Comentários: Flávio Brito

Análise da obra

É o único romance escrito por Guimarães Rosa, publicado no mesmo ano que Corpo de Baile (1956). Obra-prima, traduzida para
muitas línguas, é uma narrativa em que a experiência de vida e de texto fundem-se numa obra fascinante, permanentemente
desafiadora. O romance constrói-se como uma longa narrativa oral. Riobaldo, um velho fazendeiro, ex-jagunço, conta sua
experiência de vida a um interlocutor, que jamais tem a palavra e cuja fala é apenas sugerida.

Conta histórias de vingança, seus amores, perseguições, lutas pelos sertões de Minas, Goiás, e sul da Bahia, tudo isso entremeado
de reflexões. As demais personagens falam pela boca de Riobaldo, valendo-se de seu estilo de narrar e de suas características
lingusticas individuais.

As histórias vão sendo emendadas, articulando-se com a preocupação do narrador de discutir a existência ou não do diabo, do que
depende a salvação de sua alma.

O tempo é psicológico. A narrativa é irregular (enredo não linear), sendo acrescidos vários casos pequenos. Narrado em primeira
pessoa - narrador-personagem - utiliza-se do discurso direto e indireto livre.

A trama ocorre no sertão mineiro (norte), sul da Bahia e Goiás. No entanto, por se tratar de uma narrativa densa, repleta de
reflexões e divagações, ganha um caráter universal - "o sertão é o mundo".

Personagens

Riobaldo: personagem-narrador que conta sua estória a um doutor que nunca aparece. Riobaldo sente dificuldades em narrar, seja
por sua precariedade em organizar os fatos, seja por sua dificuldade em entendê-los. Relata sua infância, a breve carreira de
professor (de Zé Bebelo), até sua entrada no cangaço (de jagunço Tatarana a chefe Urutu-Branco), estabelecendo-se às margens
do São Francisco como um pacato fazendeiro.

Diadorim: é o jagunço Reinaldo, integrante do bando de Joca Ramiro. Esconde sua identidade real (Maria Deodorina)
travestindo-se de homem. Sua identidade é descoberta ao final do romance, com sua morte.

Zé Bebelo: personalidade com anseios políticos que acaba por formar bando de jagunços para combater Joca Ramiro. sai
perdedor, sendo exilado para Goiás e acaba por retornar com a morte do grande chefe para vingar o seu assassinato.

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 21


Joca Ramiro: é o maior chefe dos jagunços, mostrando um senso de justiça e ponderação no julgamento de Zé Bebelo, sendo
bastante admirado.

Medeiro Vaz: chefe de jagunços que se une aos homens de Joca Ramiro para combater contra Hermógenes e Ricardão por conta
da morte do grande chefe.

Hermógenes e Ricardão: são os traidores, sendo chamados de "judas", que acabam por matar Joca Ramiro. Muitos jagunços
acreditavam que Hermógenes havia feito o pacto com o Diabo.

Só Candelário: outro chefe que ajuda na vingança. Possuía grande temor de contrair lepra.

Quelemém de Góis: compadre e confidente de Riobaldo, que o ajuda em suas dúvidas e inquietações sobre o Homem e o mundo.

As três faces amorosas de Riobaldo:

Nhorinhá: prostituta, representa o amor físico. O seu caráter profano e sensual atrai Riobaldo, mas somente no aspecto carnal.

Otacília: contrária a Nhorinhá, Riobaldo destina a ela o seu amor verdadeiro (sentimental). É constantemente evocada pelo
narrador quando este se encontrava desolado e saudoso durante sua vida de jagunço. Recebe a pedra de topázio de "seô Habão",
simbolizando o noivado.

Diadorim: representa o amor impossível, proibido. Ao mesmo tempo em que se mostra bastante sensível com uma bela paisagem,
é capaz de matar a sangue frio. É ela que causa grande conflito em Riobaldo, sendo objeto de desejo e repulsa (por conta de sua
pseudo identidade).

Enredo

A primeira parte do romance (até aproximadamente à página 80), Riobaldo faz um relato "caótico" e desconexo de vários fatos
(aparentemente sem relações entre si), sempre expondo suas inquietações filosóficas (reflexões sobre a vida, a origem de tudo,
Deus, Diabo, ...) - Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se fôr
jagunço, mas a matéria vertente."

O discurso ambivalente de Riobaldo (...) se abre a partir de uma necessidade, verbalizada de maneira interrogativa. No entanto, há
uma grande dificuldade em narrar e organizar seus pensamentos: Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram.
Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. É o compadre Quelemém de
Góis que lhe socorre em suas dúvidas, mas não de forma satisfatória, daí a sua necessidade de narrar.

A partir da página 80, Riobaldo começa a organizar suas memórias. Fala da mãe Brigi, que o obrigava à esmolação para a paga de
uma promessa. É nessa ocasião, à beira do "Velho Chico", que Riobaldo se encontra pela primeira vez com o garoto Reinaldo,
fazendo juntos uma travessia pelo rio São Francisco. Riobaldo fica fascinado com a coragem de Reinaldo, pois como este afirma :
"sou diferente (...) meu pai disse que eu careço de ser diferente (...).

A mãe de Riobaldo vem a falecer, sendo ele levado à fazenda São Gregório, de seu padrinho Selorico Mendes. É lá que Riobaldo
toma contato com o grande chefe Joca Ramiro, juntamente com os chefes Hermógenes e Ricardão. Selorico Mendes envia o seu
afilhado ao Curralinho, a fim de que tivesse contato com os estudos. Posteriormente, assume a função de professor de Zé Bebelo
(fazendeiro residente no Palhão com pretensões políticas. Zé Bebelo, querendo pôr fim aos jagunços que atuavam no sertão
mineiro, convida Riobaldo a participar de seu bando. Riobaldo troca as letras pelas armas. É desse ponto que começa suas
aventuras pelo norte de Minas, sul da Bahia e Goiás como jagunço e depois como chefe.

O bando de Zé Bebelo faz combate com Hermógenes e seus jagunços, onde este acaba por fugir. Riobaldo deserta do bando de Zé
Bebelo e acaba por encontrar Reinaldo (jagunço do bando de Joca Ramiro), ingressando no bando do "grande chefe". A amizade
entre Riobaldo e Reinaldo acaba por se tornar sólida, onde Reinaldo revela o seu nome - Diadorim - pedindo-lhe segredo.
Juntamente com Hermógenes, Ricardão e outros jagunços, combate contra as tropas do governo e de Zé Bebelo.

ANÁLISE DAS OBRAS LITERÁRIAS – UNIMONTES 2024 / PROFESSOR FLÁVIO BRITO 22


Depois de um conflito com o bando de Zé Bebelo, o bando liderado por Hermógenes fica acuado, acabando-se por se separar,
reunindo-se posteriormente. O chefe Só Candelário acaba por integrar-se ao bando de Hermógenes, tornando-se líder do bando
até o encontro com Joca Ramiro. Nessa ocasião, Joca Ramiro presenteia Riobaldo com um rifle, em reconhecimento à sua boa
pontaria (a qual lhe faz valer apelidos como "Tatarana" e "Cerzidor"). O grupo de Joca Ramiro acaba por se dividir para enfrentar
Zé Bebelo, conseguindo capturá-lo. Zé Bebelo é submetido a julgamento por Joca Ramiro e seus chefes - Hermógenes , Ricardão,
Só Candeário, Titão Passos e João Goanhá - acabando a ser condenado ao exílio em Goiás.

Depois do julgamento, o bando do grande chefe se dispersa, Riobaldo e Diadorim acabam por seguir o chefe Titão Passos.
Posteriormente, o jagunço Gavião-Cujo vai ao encontro do grupo de Titão Passos para informar a morte de Joca Ramiro, que foi
assassinado à traição por Hermógenes e Ricardão ("os judas"). Riobaldo fica impressionado com a reação de Diadorim diante da
notícia. Os jagunços se reúnem para combaterem os judas.

Por essa época, Riobaldo tem um caso com Nhorinhá (prostituta), filha de Ana Danúzia. Conhece Otacília na fazenda Santa
Catarina, onde tem intenções verdadeiras de amor. Diadorim, em determinada ocasião, por ter raiva de Otacília, chega a ameaçar
Riobaldo com um punhal.

Medeiro Vaz junta-se ao bando para a vingança, assumindo a chefia. Inicia-se a travessia do Liso do Sussuarão. O bando não
agüenta a travessia e acaba por retornar. Medeiro Vaz morre. Zé Bebelo retorna do exílio para ajudar na vingança contra os judas,
tomando a chefia do bando.

Por suas andanças, o bando de Zé Bebelo chega à fazenda dos Tucanos, onde são encurralados por Hermógenes. Momentos de
grande tensão. Zé Bebelo envia dois homens para informarem a presença de jagunços naquele local. Riobaldo desconfia de uma
possível traição com esse ato. O bando de Hermógenes fica acuado pelas tropas do governo e os dois lados se unem
provisoriamente para escaparem dos soldados . Zé Bebelo e seus homens fogem à surdina da fazenda, deixando os de Hermógenes
travando combate com os soldados. Riobaldo oferece a pedra de topázio a Diadorim, mas este recusa, até que a vingança tenha
sido consumada.

Os Bebelos chegam às Veredas-Mortas. É um dos pontos altos do romance, onde Riobaldo faz o pacto com o Diabo para
vencerem os judas. Riobaldo acaba assumindo a chefia do bando com o nome de "Urutu-Branco"; Zé Bebelo sai do bando.
Riobaldo dá a incumbência a "seô Habão" para entregar a pedra de topázio a Otacília, firmando o compromisso de casamento. O
chefe Urutu-Branco acaba por reunir mais homens (inclusive o cego Borromeu e o menino pretinho Gurigó).

À procura dos Hermógenes, fazem a penosa travessia do Liso do Sussuarão, onde Riobaldo sofre atentado por Treciano, que é
morto pelo próprio chefe. Atravessado o Liso, Riobaldo chega em terras baianas, atacando a fazenda de Hermógenes e
aprisionando sua mulher. Retornam aos sertões de Minas, à procura dos judas. Encurralam o bando de Ricardão nos Campos do
Tamanduá-tão, onde o Urutu-Branco mata o traidor. Encontro dos Hermógenes no Paredão. Luta sangrenta. Diadorim enfrenta
diretamente Hermógenes, ocasionando a morte de ambos. Riobaldo descobre então que Diadorim se chama Maria Deodorina da
Fé Bittancourt Marins, filha de Joca Ramiro.

Riobaldo acaba por adoecer (febre-tifo). Depois de se restabelecer, fica sabendo da morte de seu padrinho e herda duas fazendas
suas. Vai ao encontro de Zé Bebelo, o qual o envia com um bilhete de apresentação a Quelemém de Góis:

Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela
enorme paciência - calma de que minha dor passasse; e que podia esperar muito longo tempo. O que vendo, tive vergonha, assaz
.
Mas , por fim , eu tomei coragem , e tudo perguntei:
-"O senhor acha que a minha alma eu vendi , pactário?! "
Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me respondeu :
-"Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais ..."
(...)
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. (...) Amável senhor me ouviu, minha idéia confirmou:
que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano , circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o
que eu digo, se fôr ... Existe é homem humano. Travessia.

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Comentários

O fato de Riobaldo parecer ter feito um pacto com o diabo, embora em muitos momentos isso pareça evidente, a existência ou não
do pacto fica por conta das interpretações do leitor.

O poder corrosivo do tempo passado confunde os acontecimentos na mente do narrador, impedindo-o de separar o falso do
verdadeiro, o vivido do imaginado. A opção pelo monólogo de caráter memorialista implica, no plano da narrativa, distribuição
desordenada das seqüências, ligadas pelo ritmo fragmentário e caótico da memória. Dessa forma, a linguagem assume, para o
narrador, um poder mágico.

Contar a própria vida constitui a matéria narrativa, mas as dificuldades do viver e do narrar por distorcerem as duas práticas criam
um texto ambíguo, tão enigmático quanto à vida, em que tudo é e não é, simultaneamente.

Além dos casos ligados à busca de Hermógenes e Ricardão, assassinos do chefe Joca Ramiro, e que constituem um dos fios da
narrativa, existe também o plano amoroso, centrado nas relações existentes entre Riobaldo e Diadorim. O amor por Diadorim é
motivo de grandes preocupações para o narrador. Na verdade, Riobaldo conhece Diadorim como homem - o valente guerreiro
Reinaldo - e só fica sabendo de sua identidade feminina no final da luta, quando Diadorim é morto por Hermógenes.

De maneira geral, os críticos apontam três planos no romance: o plano da vida de jagunçagem, que permite rastrear os
componentes geoeconômico-político-sociais do sertão; o plano das reflexões, criado pelos temores de Riobaldo velho, revendo e
avaliando o passado e sua própria vida; e o plano mítico, centrado nos conflitos representados pelas forças da natureza.

Os fragmentos que transcrevemos de Grande Sertão: Veredas traduzem algumas reflexões de Riobaldo sobre a existência e a
natureza do diabo:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos.
Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! — é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo franco — é
alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso — por estúrdio que me vejam — é de minha certa importância.
Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor; assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua
alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela —já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece deter sua aragem de
descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver; então era eu mesmo, este vosso
servidor Fosse lhe contar.. Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças —
eu digo. Pois não é ditado. “menino — trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento. Estrumes... O
diabo na rua, no meio do redemunho...

..................................................................................................

E não conheci arriação, nem cansaço.

Ele tinha que vir; se existisse. Naquela hora, existia, Tinha de vir; demorão, ou jajão. Mas, em que formas? Chão de
encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem. De repente, com um catrapus de sinal, ou momenteiro com o
silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto? O Morcegão? O Xu? E de um lugar — tão longe e perto
de mim, das reformas do Inferno — ele já devia de estar me vigiando, o cão que me fareja. Como é possível se estar; desarmado,
de si, entregue ao que outro queira fazer; no se desmedir; de tapados buracos e tomar pessoa? Tudo era para sobrosso, para
mais medo: ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença de não me ser; não tinha os descansos do ar A minha idéia
não fraquejasse.

No texto que segue, uma antológica reflexão de Riobaldo:

É é não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é,., Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom
filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois - e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

Mire veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas —
mas que elas vão sempre mudando, Afinam e desafinam.

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No final da narrativa, a revelação de que Diadorim era mulher, a dor de Riobaldo pela sua morte e a expressão de seu amor:

E disse, Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: - mas, para o senhor divulgar comigo,
a par justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma
mulher; moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer - mas com ela tapei foi um
soluçar; e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher Diadorim era mulher como o sol não
acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.

O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a
Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos
que cortou com a tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome
chamar; eu exclamei me doendo:

-"Meu amor!..."

.................................................................................................

"Enterrem separados dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba..." Tal que disse, doidava. Recaí no
marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços
decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.

Ela tinha amor em mim.

E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que
eu, a minha verdade. Fim que foi.

Aqui a estória se acabou.

Aqui, a estória acabada.

Aqui, a estória acaba.

O narrador, extrapolando a história, continua por mais cinco ou seis páginas o seu monólogo.

Linguagem

Em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa faz uma recriação da linguagem, "recondicionando-a inventivamente, saindo do
lugar-comum a fim de dar maior grandeza ao discurso. Nu da cintura para os queixos (ao invés de nu da cintura para cima) e
ainda Não sabiam de nada coisíssima (no lugar de não sabiam de coisa nenhuma) constituem exemplos do apuramento da
linguagem roseana.

Toda a narrativa é marcada pela oralidade (Riobaldo conta seus casos a um interlocutor), portanto, sem possibilidades de ser
reformulado, já que é emitido instantaneamente. Ainda tem-se as dúvidas do narrador e suas divagações, onde é percebido a
intenção de Riobaldo em reafirmar o que diz utilizando a própria linguagem.

O falar mineiro associado a arcaísmos, brasileirismos e neologismos faz com que o autor de Sagarana extrapole os limites
geográficos de Minas. A linguagem ultrapassa os limites "prosaicos" para ganhar dimensão poético-filosófica (principalmente ao
relatar os sentimentos para com Diadorim ou a tirar conclusões sobre o ocorrido através de seus aforismos):

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1. Viver é muito perigoso
2. Deus é paciência
3. Sertão. O senhor sabe: sertão 'onde manda quem é forte, com as astúcias.
4. ...sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar .
5. ...toda saudade é uma espécie de velhice.
6. Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota - quase tudo para ele é o igual.
7. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver.
8. Viver é um descuido prosseguido.
9. Sertão é do tamanho do mundo
10. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que o outro cozinhou quente demais.
11. Quem desconfia, fica sábio.
12. Sertão é o sozinho.
13. Sertão: é dentro da gente.
14. ...sertão é sem lugar.
15. Para as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar as portas.
16. Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.
17. ...amor só mente para dizer maior verdade.
18. Paciência de velho tem muito valor.
19. Sossego traz desejos.
20. ...quem ama é sempre muito escravo , mas não obedece nunca de verdade.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS — A INTERMINÁVEL SAGA DE RIOBALDO EM BUSCA DA VERDADE

CLÁUDIA PEDROSO

Para analisar os valores simbólicos da produção do romance, denominamos cada busca que nos pareceu significante
como Travessia, mantendo uma certa fidelidade à temática escolhida por Rosa. Também optamos por fazer uma
organização particular das ações do herói, reagrupando a ordem dos acontecimentos, uma vez que escolhemos apresentá-los
em uma espécie de cronologia linear, desmontando o tão bem desarranjado enredo montado pelo autor. Assim, a significativa
Travessia pela Narrativa configura-se como o ponto de partida da análise por nós ensejada, uma vez que subordina todas
as demais ações do heroi. A seguir, a Travessia pelo do-Chico marca o encontro de Riobaldo com o Menino, o que mudará
irreversivelmente os rumos daquele para sempre. Depois, focamos o narrador em sua vida mundana, descobrindo sua
identidade e fugindo de tudo o que isso significava. A seguir, o encontro com seus dois mestres: Reinaldo e Zé Bebelo,
responsáveis pelo ingresso de Riobaldo no universo jagunço; em seguida, o reconhecimento do amor que sente por
Diadorim; após isso, situamos a Travessia pelo enigmático, com o episódio do pacto. Forte e motivado após a Travessia
anterior, Riobaldo é coroado ―Rei‖, assumindo a chefia do bando; a última Travessia realizada é como líder, que conduz seus
homens à significativa vitória - mas como homem, conhece sua mais amarga derrota: a morte de Hermógenes traz também a
morte de seu amor – o que marca seu destronamento como Rei do Sertão. De acordo com nosso entendimento, as
duas principais travessias situam-se logo no início do capítulo intitulado ―As Travessias de Riobaldo‖. O ponto de
partida das ações de Riobaldo é o encontro com o Menino, é a causa. A narrativa, a tentativa de Riobaldo por meio da
construção dialógica para entender o trajeto traçado até ali, é a consequência. O narrador insere-se no mundo por meio da
palavra e enceta, através dela, a grande Travessia - uma vez que todas as demais estão à ela equacionadas, na tentativa
de alcançar uma verdade que lhe foge a todo instante: O Diabo existe?
A existência do Diabo pode parecer uma questão meramente filosófico- religiosa, mas sua abrangência na obra é
muito grande: a partir das respostas à pergunta-chave, outras surgirão. Se o Diabo existe, a possibilidade de que tenha
sido evocado nas Veredas-Tortas (não, Riobaldo jamais estivera nas Veredas- Mortas) e aceitado o compromisso com o
narrador aumenta. Em caso de efetivamente ter acontecido o acordo, Riobaldo comprometera algo que sequer lhe
pertencia: sua alma. Ainda sob essa perspectiva, em vários momentos da narrativa, ele renega o Drão e apega-se a seus santos,
retomando a tradição católica milenar e amplamente difundida na cultura brasileira. Ora, pactuado, ele recebera do Demo tudo
o que pedira: poder, coragem, ficara sendo maior que ele mesmo, mas não o honra, renega-o. É de se compreender que, em
se tratando de um ser maligno e vingador, o panorama não ficasse favorável ao narrador, que, assim, fica ―cego‖ a algumas
verdades, entre as quais, a que lhe era mais cara ao coração: a verdade sobre Diadorim. Apartado do amigo-amado desde
que assumira o poder, não percebe os indicativos que aquele lhe fornece acerca das possibilidades do relacionamento

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futuro de ambos; tudo o que Riobaldo almejava é, embebido pelo poder que lhe é conferido, mostrar seu poderio e
concretizar a vingança, algo que os chefes que lhe sucederam não levaram a cabo. Assim, ele tornar-se-ia o ―supra- Chefe‖,
maior do que todos, memorável. Com sua ingratidão, no entanto, teria provocado o ―padrinho‖ e provocado-lhe a ira. A
vingança do Diabo teria sido a morte de Diadorim, que perecera, em última análise, no lugar de Riobaldo, já que afinal,
tomara seu lugar ao lutar com Hermógenes. Na tradição jagunça, chefes lutam contra chefes e jagunços contra jagunços.
Ao provocar a inversão dos papeis, um aspecto típico da carnavalização, Diadorim alcançara o fim, para deleite da
entidade demoníaca com quem Riobaldo teria pactuado. Dor e sofrimentos eternos: é esse o inferno particular a que
Riobaldo é condenado, e ele tenta purgar suas ações por meio da verbalização de suas Travessias, como forma de
encontrar sua Verdade.
Por outro lado, se a resposta à sua busca acerca da existência do Diabo fosse negativa, de onde o narrador
teria tirado forças e coragem para realizar os feitos que realizara? Um processo de autossugestão não fica descartado, mas
compromete a análise sob essa ótica, afinal, mesmo com a inexistência do Demo, fica patente a existência da intenção
do pacto, marcando a experimentação da ideia da realização daquele, o que pode ter ofendido outra instância do
enigmático: Deus. E Ele então, teria facultado a Riobaldo essas experimentações-limites de maneira com que o narrador
percebesse que só Ele é o caminho e tudo o que sai fora Dele é dor e sofrimento.
Pudemos entender ainda que a tríade que acompanha Riobaldo em seu desfile pelo universo sertanejo, encerrava,
ironicamente, uma parte da vivência do seu momento como Grande Chefe Jagunço: o cego Borromeu simboliza a cegueira
metafórica do narrador, que não vê que carrega a seu lado o Diabo – representado pelo ―sacizinho dioguim‖ Guirigó - e
tampouco enxerga a mulher – metaforizada na Mulher do Hermógenes, aquela, de quem Riobaldo não quis sequer saber o
nome - que existia em Diadorim, camuflada pelo vestuário e atitudes masculinos. Vimos também que Diadorim foi a
outra grande incógnita da vida de nosso narrador, sua eterna neblina, seu desejo mais esconso, sua estrela mais brilhante, o
buriti mais verde, o rio mais caudaloso que tivera de atravessar.
Tudo por que se apaixonara perdida e profundamente pelo jagunço enigmático de olhos verdes e mãos brancas e
delicadas. Entramos aqui novamente em revolto rio ao retomarmos a problemática, ainda que superficialmente, do
homossexualismo no sertão brasileiro do início do século XX, considerando-se ainda o universo masculino dos jagunços e os
conceitos machistas, demonstrados pelo narrador, como elementos complicadores. Assistimos a um Riobaldo encantando-se
com o amigo, para quem fora atraído pelo primeiro e esverdejante olhar, no raiar de sua adolescência. Inegavelmente
catapultado para um amor que não conhecera os limites da sua própria irrealização, o narrador entregou seu destino ao
jagunço e tornou-se sua sombra, pautando a sua vida pela dele. Sentiu-se fisicamente atraído por Diadorim e esse é um
drama intimo que o atingiu, jogando-o em um redemunho de emoções contraditórias de aceitação- negação desse sentimento
que ora o conduzia ao céu, ora ao inferno.
Colocamos que a aceitação e a verbalização do amor por Diadorim na Guararavacã do Gauicuí foi a Travessia mais
corajosa que Riobaldo encetou porque, ainda que metafórica, foi a mais intensa emocionalmente, já que lhe exigiu,
lucidamente, despir-se de todos os seus preconceitos, despojando-se de tudo o que acreditara e aceitando que seria possível
existir um amor puro e limpo entre dois iguais e que esse sentimento, dada a sua condição, não poderia ser considerado um
erro, e também não poderia vir do Demo, por ser grande e poderoso demais. Novamente aqui encontramos outra das
peculiaridades da Menipeia, já que o amor entre eles, naquelas circunstâncias, é reconhecido como uma espécie de paixão
limítrofe com a loucura.
Obviamente que essa aceitação plena não fora tranquila, e gerara inúmeras indas e vindas, já que ao longo de toda
a narrativa vimos Riobaldo conjecturando como seria se Diadorim fosse mulher, sonhando com o amado passando sob um
arco-iris e tornando-se mulher. Enfim, encarar a verdade de amar um homem não fez com que Riobaldo tivesse alterado
as suas convicções mais íntimas, mas fez com que ele entendesse que uma outra forma de amar era possível, ainda
que insatisfatória, dado o caráter da impossibilidade da realização físico-amorosa de que o relacionamento era dotado naquela
instância. Nem a descoberta de que Diadorim era, na verdade, uma mulher, ou seja, a realização de seu sonho mais
íntimo, aquieta o seu coração, afinal, quando se encantou por Diadorim, quando enunciou:
―Diadorim meu amor‖, este encontrava-se na condição masculina; apesar de não ser, estava homem, então podemos
afirmar, sem sombra de dúvida, que Riobaldo entregou seu coração a um homem e vivenciou essa emoção em seu grau
de potencia máxima, vivenciando uma experiência de violação das normas universalmente aceitas no âmbito em que se
encontrava inserido, caracterizando outro dos elementos da Menipeia.
Magia e frustração convivem dentro do narrador, que encontrou no ser amado a firmeza e a retidão. Indiferente ao
torvelinho emocional que assolava o narrador, Diadorim manteve-se firme em sua postura, sereno e vigilante. Ainda que
Riobaldo nos dê a entrever que era também muito amado por Diadorim, percebe-se que a distância mantida entre eles,
fora mais por vontade do jagunço Reinaldo do que por desejo do narrador.
As passagens mais belas e líricas da narrativa estão irremediavelmente subordinadas à presença ou à lembrança de
Diadorim, um misto de anjo e demônio de Riobaldo. Os nomes do amigo-amado do narrador, que nos são apresentados, são

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múltiplos, assim como, a personalidade da personagem também o é: Menino, corajoso e desafiador, qualidades que seriam
retomadas no universo adulto; Reinaldo, o jagunço valente e vingador; Diadorim, o que traz a dor e o diabo em si (diá é um
dos nomes do Diabo e é também como Riobaldo, certa feita, referiu-se ao amigo-amado) e Maria Deodorina – Maria, nome
santo, da mãe do Menino Jesus e Deodorina – ainda com dor no nome, traz aqui a presença de Deus: Deo = Theos = Deus)
Contrapondo-se à figura enigmática de Diadorim, o narrador nos apresenta a figura de Otacília, virginal, doce e
submissa, que espera candidamente encastelada na Fazenda Santa Catarina a volta do prometido.
Outra personagem que participa ativamente das Travessias riobaldianas é o inesquecível Zé Bebelo, figura que
aparece como um gênio do bem ao nosso heroi em momentos-chaves da narrativa: ao aceitar um emprego de professor na
Fazenda Nhanva, no Palhão, Riobaldo encontra a figura mais carnavalizada da história. Ainda que esse aspecto não tenha
desviado Zé Bebelo dos caminhos que traçara, é-nos impossível lembrar essa personagem sem um sorriso no rosto. É bom
que não nos confundamos, no entanto. A alegria imanente de Zé Bebelo não altera a seriedade de sua vida: ele tem
objetivos muito nítidos e traça seus caminhos de modo a alcançá-los com sucesso, mas é uma personagem aberta às
novidades que a vida traz e, sendo seu código de honra muito mais forte do que suas metas pessoais, abre mão de uma
eventual carreira promissora como político e volta para o Sertão com o intuito de vingar a morte à traição de Joca Ramiro,
que houvera lhe dado um julgamento justo, pela ocasião de sua prisão pelo grupo jagunço chefiado por aquele e do qual fazia
parte Riobaldo, seu antigo professor e secretário. Seus exemplos éticos e morais sempre serão parâmetros para a vida de
Riobaldo, tanto em termos de chefia como em termos pessoais.
O narrador considera-se devedor de Bebelo à medida que lhe reconhece o caráter impávido e correto e deseja
agir como ele. Mesmo quando destronado pelo antigo comandado, Zé Bebelo não perde a elegância e parte de cabeça
erguida, deixando um grande vazio na vida de Riobaldo, a despeito de tudo o que conquistara. O narrador, que começara
como professor, rapidamente tornara-se discípulo do alegre homem, que, ao lado de Diadorim – e resguardadas as devidas
proporções - comandará boa parte dos destinos do nosso heroi em sua interminável busca pela verdade.
Entendemos por bem situar um paralelo entre essas duas personagens tão importantes quanto instigantes para melhor
compor o panorama da narrativa: enquanto Zé Bebelo é a luz que guia os caminhos de Riobaldo, Diadorim é sua neblina,
por ser sua fantasia mais escondida. Ao contrário do antigo patrão de Riobaldo, é melancólico e enigmático. É o não. Já
Zé Bebelo é a possibilidade, a realização passível de ser alcançada, representação do que Riobaldo pode vir a ser, e será! É o
sim, a segurança, a motivação e, em última instância, a salvação de Riobaldo.
Diadorim, no entanto, é a dor, a dúvida, o impossível. Perdição. Apesar de coexistirem permeando grande parte da
narrativa de Riobaldo, nos momentos em que um deles aparece, o outro fica eclipsado e vice-versa. É como se o
narrador tivesse dificuldade em conseguir conciliar as duas forças representadas por eles. Não há zonas de confluência e
diálogos entre Zé Bebelo e Diadorim, e, por serem tão diametralmente opostos, é como se representassem verdades distintas,
ainda que por vezes, complementares.
Agenciadores das buscas de Riobaldo, têm envolvimento fulcral no desenrolar da trama, já que muitas de suas atitudes
motivaram Riobaldo a algumas vivências em diversos níveis de profundidade, voltadas à provocação e à experimentação
da verdade, a que lhe escapa a todo instante e, que, portanto, encerra o inacabamento do heroi. Nessas
experimentações, em parte provocadas por um dos dois ―mestres‖, Riobaldo voou ao céu e desceu ao inferno, ao mesmo
tempo em que colocou suas armas à disposição das lutas deflagradas no sertão geograficamente instituído. Inserido nessa
estrutura triplanar, Riobaldo exercitou as suas memórias e em sua enunciação verbalizou sua história com o intuito de
encontrar a sua verdade, encadeando um processo intermitente de busca.
Aclaradas as premissas que julgamos pertinente trazer de volta para essa conclusão, retornamos às Travessias
propriamente ditas de Riobaldo, que configuram-se em ações de experimentação da ideia e busca da verdade por meio da
enunciação de seu discurso a um senhor que o visita. Percebe-se que as coisas sucedidas precisam fazer algum sentido para o
narrador e é na busca desse sentido que ele se lança, revivendo um passado e procurando encontrar as respostas aos tantos
porquês que pululam em sua mente: Por que eu encontrei aquele Menino? Por que eu o segui na canoa? Por que eu quis ter
coragem? Por que eu fiz o pacto? Por que eu não percebi a verdade quando ainda tinha chance de vivenciar uma
felicidade plena ao lado de Diadorim? Por que a Morte? Por que? Por que? Por que?
É o mesmo Riobaldo quem nos aponta uma vereda:

O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu
sou é eu mesmo. Divêrjo de todo mundo... Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa.
O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre – o senhor solte em minha
frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém! (GS:V – p. 31)
(grifo nosso)

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Assim, na primeira Travessia, encontramos nosso narrador, um próspero fazendeiro, contando, a um visitante,
sua história. Com a finalidade de entender e alcançar as respostas, fez da atitude dialógica o instrumento de experimentação
da ideia em busca da verdade. É em sua própria essência que o narrador justifica o anseio que o guia e o faz querer
sempre ir atrás de respostas, abrindo caminhos; porém, é notório que o ponto de partida para o desencadeamento das buscas e
das respostas, nunca alcançadas em sua plenitude, já que, como vimos anteriormente, ao deparar-se com elas, Riobaldo foge
e enceta novas buscas, é a segunda Travessia, já que foi a partir dali que estabeleceu-se um forte vínculo de
dependência com o desconhecido Menino, que marcaria o narrador por toda a vida, fazendo com que ele se sentisse sempre na
iminência de reencontrar-se através da Travessia pela palavra que encetada na primeira das Travessias.
A terceira Travessia nos fez encontrar um Riobaldo órfão e solitário. Vimos que, no caso do narrador, a morte serviu
um poderoso desencadeador de ações de busca. Como elemento causador ou como consequência de ações pontuais, a morte
configurou-se como um dos motores propulsores que levaram Riobaldo em direção a algumas das suas buscas pela verdade.
Observamos que toda morte retoma um certo aspecto ritualístico, já que ela é prenhe de novas perspectivas de vida,
relacionando-se com a carnavalização, parte integrante da Menipeia, e que enfoca a ênfase das mudanças e transformações,
da morte e da renovação. Também em Grande Sertão: Veredas, vimos a morte como elemento engendrador de novas
experimentações do narrador. A primeira morte sentida pelo ainda menino Riobaldo foi a da mãe Bigrí.
No entanto, foi com morte dela que Riobaldo descobriu o pai biológico, aquele que conhecera inicialmente como
padrinho. Assim, morreu a mãe, mas ―nasceu‖ a figura paterna. Riobaldo situou a importância desse evento como um marco em
sua vida. Ainda que compulsoriamente, Riobaldo encontrou uma verdade importante: a sua origem. Filho natural do
abastado fazendeiro Selorico Mendes, não sentiu, entretanto, alegria com essa descoberta e fugiu dela, abandonando a
vida confortável que levava. Não gostou da verdade encontrada porque entendia que seu pai-padrinho era um covarde. No
entanto, ao fugir, lançou-se em direção ao desconhecido e acabou encontrando duas personagens fulcrais na sua
experimentação, o que configurou sua quarta Travessia: o encontro com Zé Bebelo e Diadorim, seus grandes Mestres,
figuras inesquecíveis na vida do narrador.
De acordo com essa ótica, podemos afirmar que cada um deles, foi a sua maneira, decisivo na construção da
experimentação do narrador, proporcionando-lhe diferentes possibilidades de vivência por meio de preciosas lições.
Enquanto Zé Bebelo figurou-se como o grande modelo de conduta, organização e estratégia, Diadorim foi o agenciador
de experimentos sentimentais ímpares. Zé Bebelo ensinou Riobaldo a parte lógica e racional da vida no sertão, mostrando-lhe a
importância da ordem e do progresso. Já Diadorim ofereceu-lhe as possibilidades de uma vida diferente de tudo o que
já vivenciara ou imaginara vivenciar. Duas personalidades, muitas verdades: ambos instrumentaram Riobaldo para seguir
adiante em suas vivências.
Na quinta Travessia encontramos o reconhecimento do amor entre os iguais. Riobaldo assumiu o imenso amor que o
liga a Diadorim, na Guararavacã do Guaicúi. Ao reconhecer esse sentimento avassalador, notamos que uma vereda se abriu no
coração do narrado. Mas ao tentar segui-la, deparou-se com outras picadas abertas no seio do selvagem sertão: o
preconceito, a culpa, o medo eterno. Emoção e contradição. O viver no limiar da superação de desafios, alguns dos
quais nem sempre identificáveis. Isto é o que Diadorim representa. Foi essa a verdade encontrada por Riobaldo.
Entregue irreversivelmente ao amigo, tudo o que o narrador almejava era permanecer ao lado de seu amor. Mas
Riobaldo queria ainda mais: queria ser alguém a quem Diadorim pudesse admirar, queria ser mais do que era, uma vez que
intimamente reconhecia-se fraco, pouco valoroso. Sabendo que a qualidade mais apreciada por seu amor era a coragem, ele
resolveu encenar um pacto com o Diabo, de modo a tornar-se tudo o que nunca fora: um homem de coragem. Riobaldo
não mais queria ser um fugidor, um passivo. Por Diadorim, queria ser mais, muito mais, queria ser agente, respeitado.
E foi assim que começou a sexta Travessia. Riobaldo procurou uma encruzilhada em um lugar que imaginara
ser as Veredas-Mortas – depois descobre que estivera nas Veredas-Tortas – e evocou o poder das trevas. Noite vazada
no embate com o oculto, sentiu-se forte e passou a desafiar a tudo e a todos. Em busca de arregimentar coragem, Riobaldo
travou um diálogo no limiar, entre o humano e o sobre/subhumano. O que pudemos observar nessa Travessia foi uma busca
não pelo Diabo, mas pela ideia da existência do Diabo e suas eventuais implicações no procedimento do homem. O pacto
torna-se, sob esse aspecto, uma experimentação pela ideia, em uma aventura extraordinária de Riobaldo, que, no ordinário,
não encontra sustentação. Assim, motivado pela experiência do dialogo no limiar, entre a terra e o inferno, Riobaldo
sofreu alterações visíveis a seus pares. A sua mudança de comportamento foi notória: aparece uma certa leveza pautando as
suas ações, que também denotavam essa transformação.
Do jagunço sério e inseguro, surgiu um novo, mais divertido, gozador e irreverente. Também mais valente. A
sétima Travessia mostrou o que houve a partir do pacto. Sentindo-se forte, Riobaldo acabou por destronar Zé Bebelo sendo
coroado Rei, o novo Chefe do bando. A ele pertenceriam todas as decisões que deveriam ser tomadas a partir de então. A
verdade é que Riobaldo fora capaz de conquistar o mais alto ponto do grau da hierarquia do universo jagunço, mostrando a
todos, mas principalmente a Diadorim, o valor de sua coragem. Obviamente nem tudo foi como ele esperava e seu
amado, à medida em que Riobaldo ascendia no grupo, mais se afastava dele, provando que a busca de Riobaldo era

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uma necessidade própria e não de Diadorim, não era uma condição para ser amado, como acreditara. Diadorim estranhou
o amigo e parece não ter gostado das transformações pós-pacto.
De qualquer maneira, chegamos a oitava e última Travessia, a da ação propriamente dita do Chefe jagunço
comandando sua tropa, conhecendo a vitória e vivenciando sua mais acre derrota com a morte de Diadorim e seu
consequente destronamento como Rei. Autoconfiante, Riobaldo liderou o grupo em ousada travessia pelo assustador Liso de
Sussuarão, espaço enigmático, aberto apenas à passagem dos escolhidos. Por meio do Liso o narrador começou a
concretizar a vingança pela morte de Joca Ramiro, pai de Diadorim. A vingança foi realizada mas trouxe na esteira a grande
tragédia da vida de Riobaldo: Diadorim foi morto. Dor incomensurável desse homem, filho natural de fazendeiro, jagunço
quase que por acaso, líder pelo pacto, sofredor por destino.
A grande verdade alcançada nessa Travessia foi que, como Chefe Urutú-Branco, Riobaldo mostrou-se capaz de
comandar um exército de jagunços e organizá-los de modo a vencer a grande batalha e assim, concretizou a vingança
há tempos acalentada. Já como homem, arregimentou fracassos e frustrações: não fora capaz de proteger o ente que mais
amara e não percebera nada acerca da verdadeira identidade do amigo, sua eterna neblina. Tudo o que Riobaldo pensara em
realizar com Diadorim encontrou um final trágico com a morte. Ao mesmo tempo em que a neblina se desfez, o segredo do
Menino/Reinaldo/Diadorim veio à tona e todos puderem conhecer a sua condição feminina. Morreu o jagunço e surgiu a
donzela, mas surgiu já marcada indelevelmente pela morte. A completude da vitória confrontou-se com a incompletude da
derrota e o narrador recebeu a realidade como um golpe fatal. A descoberta da verdade transtornara Riobaldo, que
abandonou de vez o universo jagunço. Morta a causa, Diadorim, acabou a necessidade de conviver em um mundo que,
reconhecidamente, não era o seu. É seu destronamento como Rei.
Tudo em que acreditara, os motivos pelos quais lutara, os sonhos que sonhara, morreram junto com Diadorim,
personagem que condensou os dramas de Riobaldo: o amor e a dor. Desencantado, perdido, Riobaldo reencontrou Zé Bebelo, a
quem narrou seus dramas e de quem recebeu o conselho de procurar Quelemém, o Sábio da Jijuã, homem entendido das
coisas do espírito. É quando o narrador, morto figurativamente para a vida anterior que levava, volta à vida, ou ao menos,
tenta voltar a ela, uma vez que nada mais será como antes e o que lhe resta é a busca incessante por uma verdade que
pretensamente lhe trará algum consolo.
Algumas facetas da verdade surgiram em meio à atitude dialógica, mas essa verdade não é monolítica, é
fragmentada, exatamente como o processo enunciativo de Riobaldo e assim, sua compreensão não se dá de maneira ampla,
mas igualmente fragmentada, lançando luz e sombra ao passado de Riobaldo que, como era de se esperar, não fechou a
questão em relação a existência ou não do Diabo, sua questão fulcral, mas atingiu a compreensão de que o que ―[e]xiste é
homem humano. Travessia.‖( GS:V – p. 624) Sem pontos de interrogação, sem reticências, sem exclamações. Ponto final,
verdade alcançada, definitiva. A verdade compreendida é a falibilidade do homem e sua necessidade premente de sempre
seguir em suas Travessias. Ao adjetivá-lo como humano, Riobaldo reduziu a condição do homem a uma esfera de
normalidade e ordinariedade, exatamente o que preconiza a Menipeia.
O caráter circular de que é dotada a narrativa vem de um ensinamento implícito de Zé Bebelo: recomeçar sempre. E
foi isso que Riobaldo tentou fazer na enunciação peremptória de uma vida marcada por buscas e fugas. O narrador, ao
verbalizar sua vida, tenta realizar suas experiências de novo, e depois, mais uma vez e ainda outra... Afinal, ele precisa de
certezas, de definições, como afirma em seu discurso, em sua eterna e mais ampla travessia:

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja
bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e o outro o branco, que o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados... Como
é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a
esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito
misturado... (GS: V – p. 237)

Dessa maneira, de acordo com a análise realizada ao longo dessa dissertação, pudemos concluir que Grande
Sertão: Veredas pode ser classificado como uma Sátira Menipeia contemporânea, dado o caráter de romance filosófico-
experimental que lhe é imanente, uma vez que leva o protagonista Riobaldo a vivenciar, por meio da interminável
atitude dialógica, experiências de busca da verdade, deixando patente, assim, o inacabamento do homem, o que faz
com que essa busca jamais encontre um ponto final.
A amplitude e a riqueza da narrativa rosiana, que expressa todas as angústias prementes nas lembranças de (mais)
uma viagem ao passado que o narrador empreende pelas veredas de sua memória - ou, quem sabe, da sua imaginação -,
por meio de um diálogo rizomático, em uma interminável busca pela verdade, pelas respostas que circundam ao seu
redor, mas que não são passíveis de serem plenamente alcançadas ou compreendidas ou ainda, assimiladas, devido à

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incompletude, à inconsistência do próprio homem e fruto de seu inacabamento, também nos instigaram a buscar a nossa
verdade que igualmente nos foge a todo instante, uma vez que o processo constitutivo para nos encontrarmos enquanto
indivíduos está em permanente movimento. Mais do que uma simples leitura, deparamo-nos com uma experiência.
Percebemos que, à maneira do narrador, não estamos prontos; cada verdade com a qual nos defrontamos muitas
vezes traz novos ensejos de buscas, ou de fugas das mesmas! Alcançamos a certeza de que não existimos como seres
unívocos e monolíticos, fechados e mornos. Somos, Riobaldo, eu, vocês, fruto de nossas experiências de estarmos no
mundo. Dessa forma, não somos, estamos. Existimos à medida que caminhamos, ora em círculos, ora ascendentemente,
ora em declínio, mas caminhando conhecemos e ampliamos nosso olhar, nossa forma de entender o mundo.
Somos assim, de certa maneira, heróis menipéicos em nosso eterno processo de busca pela verdade. Mas a cada vez
que pensamos ter feito uma longa travessia, a vida se encarrega de mostrar que só cruzamos uma veredazinha, e que
ainda há muito a caminhar. É isso que nos faz eternos andarilhos, palmilhando e atravessando os nossos sertões particulares.
Não há nada além disso, só o homem e sua busca. Como diz Riobaldo, ao encerrar a narrativa, ―Existe é homem
humano. Travessia.
E é assim que o sertão, que é tudo e está em todo o lugar, porque vive justamente dentro de nós - age
sobre cada um, forçando-nos a vivenciá-lo, a vencê-lo, a seguir adiante, a atravessar Rios revoltos, Lisos traiçoeiros,
Encruzilhadas místicas, líricas Guararavacãs, latifúndios de lembranças e vivências que nunca terão fim, porque o homem
não está pronto para a chegada, apenas para a partida...

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