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Resenha – “Querida, Konbini”, Sayaka Murata

Depois de um hiato não planejado, finalmente voltei a escrever pro site. E enquanto eu
pensava sobre o quê escrever, internamente eu sabia que tinha que fazer um texto sobre
o livro que mais me tocou durante todo o ano de 2020. Quanto mais pensava, mais
urgência eu tinha em escrever sobre “Querida, Konbini”, livro escrito por Sayaka
Murata que me fez rir e até mesmo soltar algumas lágrimas melancólicas durante a
leitura.
Como essa é uma resenha com spoilers, eu recomendo a leitura da obra, mas se você
não tiver problemas com isso, siga em frente!
Antes de falar sobre o livro em si, eu acho necessário fazer uma breve contextualização
sobre a autora e a minha situação durante a leitura da obra. Sayaka Murata trabalhou
como atendente em uma loja de conveniência japonesa, conhecidas como Konbini, uma
espécie de trabalho temporário para estudantes e pessoas que precisam ganhar dinheiro
com um trabalho “fácil” de conseguir. Através das experiências vividas nesse local,
Sayaka tirou muitas das inspirações para escrever seus livros, sendo o mais inspirado
nesse período o próprio “Querida, Konbini”.
Já eu trabalho praticamente desde os 12 anos. Meus pais vem de uma família de
comerciantes, então é claro que eles me colocaram para trabalhar como uma forma de
repassar o talento da família e economizar dinheiro com um funcionário sem carteira
assinada. Desde então, já trabalhei em mercadinhos, em uma granja e por último na
lanchonete da minha mãe como atendente. E não é nenhuma vergonha. Na verdade, eu
sempre me orgulhei de ser ótimo na minha função.
Então, encontrar um livro que fala sobre a experiência de trabalhar com atendimento foi
ao mesmo tempo algo mágico e triste. E eu irei explicar o porquê ao longo do texto.
Como trabalho no período da manhã, há vários intervalos de tempo entre um cliente e
outro, o que me permite ler bastante pelo celular. Foi assim que li “Querida, Konbini”,
livro achado por acaso na biblioteca virtual que participo e que logo se tornou meu livro
favorito do ano quando encerrei sua leitura.
Mas sobre o que é se trata? Ao longo das suas 150 páginas, a obra conta a história
de Keiko Furukura, uma mulher de trinta e seis anos que passou metade da sua vida
trabalhando em uma Konbini, um emprego em que quase ninguém passa mais de seis
meses.
A história não tem nada de megalomaníaca, e por isso acho que ela é tão boa. Sayaka
escreve sobre a vida real de uma forma mais realista, permitindo a identificação do
leitor com sua protagonista que perfura a bolha oriente-ocidente. Um dos meus maiores
medos ao consumir obras orientais é estranhar algo devido as diferenças da cultura, mas
talvez por falar sobre o esmagamento do capitalismo sobre a individualidade humana é
que Sayaka tenha conseguido criar uma obra tão universal.
O livro não é dividido por capítulos, mas há um espaçamento duplo quando muda-se de
um grupo de cenas para o outro. Felizmente, a escrita da Sayaka é fluída, permitindo
mergulhar na vida de Keiko sem afundar em detalhes desnecessários, mas também sem
nunca faltar nada que impeça de entender a história e seguir em frente. O melhor da
obra é o fato de Keiko ser uma espécie de “outsider” que nunca é colocada num papel
de vítima, uma escolha ousada por parte da autora que permite o crescimento de uma
personagem que já nasceu estagnada.
Afinal, Keiko está a 18 anos trabalhando em uma Konbini porque se acostumou. Ela se
fundiu ao seu ambiente de trabalho pelo conforto que ele fornece. E por nunca ter tido
as melhores habilidades sociais, Keiko se sentiu útil apenas naquele lugar, onde ela
possui um manual de regras e uma socialização limitada que sempre dá a sensação de
dever cumprido. Algo que eu mesmo experimentei quando comecei a trabalhar
atendendo.
Ao longo do livro, vemos como Keiko se comporta em outros ambientes. Perto das suas
“colegas” do colégio, ela mimetiza os comportamentos de quem é considerado normal.
Mas todas elas estranham Keiko nunca ter arranjado um trabalho melhor, ou ter casado
ou até mesmo feito sexo. O que fica bem evidente durante a leitura é que nenhuma
pessoa respeita a decisão individual de Keiko de se negar a fazer atividades
consideradas “necessárias” por grande parte da humanidade. O melhor é que vemos que
Keiko não é uma louca, na verdade ela é extremamente racional e até inteligente,
sabendo quando e o que falar e também quando se calar. O problema é que as pessoas
parecem não compreendê-la, cortando sempre as interações sociais nas quais ela se
arrisca a ter.
Keiko divide a humanidade entre as pessoas que estão do “lado de cá”, que representa o
fracasso na vida adulta, e as pessoas do “lado de lá”, que são consideradas normais
apenas por terem um emprego de prestígio ou por terem casado e tido filhos. O triunfo
de “Querida, Konbini” é explanar a dualidade da crítica entre ter uma vida normal e
uma vida anormal e mostrar que nenhuma das duas é completamente certa ou errada.
Por isso que quem se arriscar a ler o livro pode estranhar o final abrupto.
Estamos acostumados as obras de ficção sempre terminarem numa crescente pra cima
ou pra baixo. Como se os protagonistas sempre precisassem vencer ou serem derrotados
para podermos ter um final decente. Sayaka desafia essa noção ao fazer Keiko enfrentar
um obstáculo surpreendente, a masculinidade tóxica.
No meio do livro conhecemos Shihara, um homem fracassado e misógino que enxerga
as mulheres como propriedade e as culpa pelo seu próprio fracasso. Um personagem
criado para incorporar as definições de “incel”. Keiko se afeiçoa a ele por pena e o
recebe em sua casa, mesmo Shihara sendo um lixo humano. Ele força Keiko a se
demitir da Konbini e a procurar um emprego melhor, e é na última cena do livro que eu
vi toda a genialidade da construção minimalista da história e dos personagens que a
formam.
Nela, Keiko entra em uma Konbini antes da sua entrevista de emprego. Lá, ela percebe
erros que não podiam ser cometidos no trabalho e começa a consertar tudo, sendo
elogiada por isso. Ela então percebe que faz parte da Konbini, como se fosse uma parte
de uma máquina muito maior que precisa dela para funcionar e vice-versa. Nesse
momento, Keiko se toca de que Shihara é um lixo e de que a única coisa que ela precisa
para viver é do seu emprego em uma Konbini.
Numa análise rasa, podemos dizer que Sayaka critica as pessoas que se entregam de
corpo e alma ao trabalho, sendo definidas por ele e apenas isso. Keiko por mais
interessante que seja parece um fantoche humano controlado pela Konbini, já que ela é
sua motivação de vida. Mas, se formos puxar isso para nossa realidade, podemos
interpretar o trabalho, a religião e outros fatores como sendo nossas konbinis. Há
sempre algo que toma nosso tempo e nos preenche por completos, quase que nos
definindo. E isso que Sayaka quer criticar, não apenas o trabalho quase escravo e a
pressão social de ser bem sucedido, mas tudo o que nos força a deixar de sermos
humanos para sermos funcionários ou religiosos ou qualquer outro tipo de “pele”.
Ao meu ver, a maior crítica escondida nas páginas de “Querida, Konbini” é o medo dos
riscos. Ficar em uma zona de conforto pode ser uma escolha óbvia para muita gente,
mas também pode ser o ponto final em uma história que poderia render muito mais. Ao
mesmo tempo que terminamos de ler a história de Keiko e ficamos felizes por ela ter
encontrado sua motivação de vida, há o gosto amargo de conhecer o potencial perdido
por causa da sua falta de coragem em se arriscar.
Mas ao criticarmos Keiko, viramos o outro lado da crítica de Sayaka, que são as pessoas
que continuam apoiando a roda da pressão social, que lentamente esmaga todos os que
não conseguem chegar do “lado de lá”. E talvez seja pela falta de respostas, pela
amplitude das críticas aos comportamentos humanos que “Querida, Konbini” seja tão
genial. Ele é a prova que um livro não precisa ser um calhamaço ou um épico para
mudar a vida de alguém. Ele só precisa impactar. E “Querida, Konbini” passou por mim
como um furacão desenfreado.

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