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O pós-abolição – perspectivas dos libertos e projetos de Brasil.
Tema
1
Por representar uma categoria instrumental de análise, referente a um grupo socialmente construído,
reunindo uma grande diversidade cultural, assim como múltiplas tonalidades de cor e diferenciadas
características fenotípicas, a utilização dos termos negro(s) e negra(s) irá sempre se referir aos que,
desse modo, se auto definem, e/ou aos que assim são identificados pelos integrantes do “movimento
negro brasileiro”. Conceitualizar o grupo de forma absoluta, identificando de forma precisa as suas
características torna-se, portanto, uma tarefa efetivamente arriscada, principalmente no caso específico
da realidade brasileira, com tamanho grau de miscigenação, tanto étnica como cultural. A fronteira
entre “brancos” e “negros” no Brasil é bastante fluida, dependendo muitas vezes da região, da cultura
política e das características socioeconômicas. Geralmente, os identificados como negros são aqueles
que possuem uma afrodescendência explícita em sua aparência física, ao contrário, por exemplo, do
padrão norte-americano, mais firmemente focado na ascendência. Nos dois casos, portanto, muitos
mestiços são classificados como negros. (Ver, por exemplo, a classificação adotada pelo atual governo
(SEPIR), que reconhece como negros a soma de pretos e pardos computada pelo IBGE, e utiliza como
justificativa para tal metodologia, a semelhança identificada entre pretos e pardos a partir da
comparação dos índices socioeconômicos de ambos os grupos). Na PNAD realizada pelo IBGE, em 1976,
a categoria “cor” era registrada a partir da auto declaração do pesquisado, sem opções pré-
determinadas. Apareceram 136 definições diferentes, a maioria relacionada à cor, com derivações do
moreno.
1
seriam algumas das etapas essenciais na institucionalização de um determinado
movimento social 2.
A pesquisa realizada por mim durante o Doutorado teve como tema a análise
das estratégias, discursos e práticas de duas entidades do denominado “movimento
negro brasileiro” no período entre 1930 e 1950 – a Frente Negra Brasileira e o Teatro
Experimental do Negro. Paralelamente, buscou-se também articular essas ideias e
ações com os debates que versavam sobre as relações raciais e os projetos de Brasil
realizados por políticos e intelectuais.
Nas estratégias, discursos e práticas adotadas pelas lideranças da Frente Negra
Brasileira e do Teatro Experimental do Negro – expressas nos jornais e na produção
dos intelectuais – foi possível identificar não apenas as culturas históricas e políticas
dominantes naquele período, mas também as disputas ocorridas entre os diversos
projetos em um momento muito específico, caracterizado por um grande investimento
realizado pelo próprio Estado em consolidar uma determinada cultura política e
histórica nacionalista. 3 A pesquisa buscou analisar como essas lideranças negras
participavam desse processo. Como incorporavam, ou não, ou como dialogavam com a
cultura histórica nacional em seu projeto de valorização racial. No entanto, no
decorrer na pesquisa e, sobretudo ao seu final, novas questões surgiram.
Partindo do princípio no qual os valores e visões apresentados pelas lideranças
da Frente Negra foram construídos, sobretudo, durante a Primeira República, no
período imediatamente pós-abolicionista, a questão que se coloca é quais foram os
elementos responsáveis pela formação e consolidação dessas culturas históricas e
políticas? Para melhor compreender as escolhas feitas por essas lideranças, tornou-se
imprescindível lançar um olhar mais atento para as décadas anteriores. Quanto mais
se olhava para trás, características como o monarquismo, o anti-republicanismo, o
conservadorismo e o catolicismo de Arlindo Veiga dos Santos (presidente da Frente
2
Ver Gohn, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos.
São Paulo: Loyola, 2002.
3
Ver Gomes, Ângela de Casto. História e Historiadores. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
2
Negra e fundador do movimento Pátria-Nova 4) - que inicialmente causavam certa
estranheza - cada vez mais se tornavam menos excepcionais.
O surgimento de uma frente política voltada para defender os interesses dos
“negros” ocorre paralelamente ao incentivo, desenvolvimento e fortalecimento de
laços de identificação e solidariedade, ou seja, à afirmação e consolidação de uma
identidade negra. A consciência e identificação de uma "causa" específica dos
“negros”, essencial à organização do “movimento negro”, depende e subordina-se à
própria formação e consolidação de um grupo que se identifique e se reconheça como
“negro”. Da mesma forma, seguindo uma via de mão-dupla, o processo de afirmação
desse grupo avança quanto maior for a identificação e o reconhecimento dessa
suposta "causa negra". Com a abolição da escravidão e a proclamação da República,
essa dinâmica de conscientização e reconhecimento - tanto do grupo “negro”, como
de uma "causa negra” – torna-se mais viável.
Portanto, a reflexão sobre a organização do “movimento negro” na República
brasileira nos leva, inevitavelmente, para as últimas décadas do século XIX e primeiras
décadas do século XX. Não há como compreendermos as diretrizes das primeiras
instituições e grupos organizados sem lançarmos um olhar mais atento à forma como
se estruturou o processo abolicionista e a proclamação da república no país.
Poderíamos, é claro, buscar até mesmo no período colonial indícios, pistas e sinais
desse movimento. Certamente encontraríamos. Mas, infelizmente (ou felizmente),
precisamos limitar o nosso campo de estudo para torná-lo possível. As mudanças mais
significativas ocorreram a partir da década de 1870, momento no qual se intensifica o
debate, o direcionamento e a execução de ações que conduziram a nação para um
novo momento de sua história.
A Abolição e a proclamação da República são eventos que, no caso brasileiro,
estão completamente interligados. Ocorridas quase simultaneamente, promoveram
uma mudança significativa para toda a sociedade, afetando de forma mais intensa
determinados segmentos. Em um curto prazo de um ano e meio, entre maio de 1888
e novembro de 1889, categorias que antes segmentavam a “população de cor”,
4
O patrianovismo era um movimento católico, nacionalista, antiesquerdista, antiliberal, autoritário e
visceralmente anti-republicano, na medida em que defendia o retorno da Monarquia no Brasil.
3
formada por indivíduos de cor preta ou parda, deixaram de existir. Ser escravo, liberto
ou livre fazia muita diferença nas relações econômicas, sociais e, é claro, na própria
cidadania política. Especialmente nas áreas urbanas, mesmo ainda no período
escravista, o “negro brasileiro” não podia ser facilmente definido como um grupo. A
complexidade das relações sociais durante a escravidão, sobretudo nas áreas urbanas
após a década de 1870, dificultava muito a definição de categorias sociais com
fronteiras claramente demarcadas. Todavia, ao menos no âmbito formal, a partir de
1888 e 1889 essas divisões deixaram de existir. Mas teriam desaparecido também no
cotidiano dessa população? Monarquia, República, escravidão e Abolição eram
caracterizadas e valorizadas da mesma forma entre a “população de cor”,
independente de terem sido livres, libertos ou escravos? Os libertos, durante a
permanência da escravidão, podem ser equiparados aos libertos da lei Áurea? Uma
possível identidade escrava e/ou liberta teria se convertido automaticamente em uma
identidade negra?
4
questões como as de trabalho, raça, família, gênero, moradia e lazer como parte de
um tempo novo? De que maneira essas expectativas, construídas nos anos iniciais da
república brasileira, influenciaram os discursos e as práticas das lideranças do
“movimento negro” na primeira metade do século XX?
5
Sobre o processo abolicionista ver: Bethell, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-
Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura;
São Paulo: Ed. da USP, 1976 e Moraes, Evaristo de. A campanha abolicionista (1879-1888). Brasília: Ed.
UNB, 1986. 2º edição. (1º edição:1924), entre outros.
6
Apud Bethell, Leslie. Op.Cit.
5
grandes problemas. Portanto, a questão que se coloca é qual deve ser a gênese do
problema: o tráfico ou a própria escravidão? As leis anti-tráfico e as pressões inglesas
podem ter surtido algum efeito, mas, concretamente, pouco modificaram a realidade
escravista. Em 1850, Euzébio de Queiroz, preocupado, sobretudo, com a perda
completa da soberania brasileira no assunto em questão e com o desequilíbrio
populacional (decorrente da maior presença de afrodescendentes em comparação
com os brancos), apresenta um projeto de lei de extinção do tráfico. O governo
brasileiro passa realmente a se esforçar para coibir o tráfico de escravos.
Certamente, podemos reconhecer que a lei de 1871 trouxe, além das mudanças
reais, mudanças simbólicas importantes. Mais do que eliminar o último modo legal de
realimentação da escravidão, simbolicamente, a lei enfraqueceu uma das bases de
sustentação do escravismo brasileiro, a política de domínio direta entre senhor e
escravo. Sidney Challoub revela o quanto da vontade dos escravos passou a se fazer
presente nas transações comerciais a partir desse período 7. Grande parte dessa força
residia em mudanças trazidas com a lei. Até 1871, a revogação da alforria era legal e
poderia ser feita unilateralmente e considerando apenas o desejo do senhor, o que em
muitos casos mantinha certa subserviência, fidelidade e até mesmo prestação de
serviços. Do mesmo modo, foi com a lei que o pecúlio do escravo tornou-se legal e os
senhores passaram a ser obrigados a libertar seus escravos mediante indenização. Os
valores dessas indenizações, inclusive, passaram a ser determinados a partir de um
arbitramento que incluía representantes de ambas as partes, e um terceiro, caso não
houvesse consenso.
O que a pesquisa de Challoub nos revela é que longe de serem meros espelhos
de representações senhorias, parte significativa dos escravos e dos libertos das
7
Challoub, Sidney. Visões da Liberdade – Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
6
principais áreas urbanas estava mesmo preocupada e envolvida em uma negociação
constante, buscando estratégias de liberdade e, de certo modo, de cidadania na
sociedade em que viviam 8. A descrição dos processos analisados pelo autor afasta
esses pretos e pardos da imagem apresentada por Perdigão Malheiros, em 1860 e, em
parte, corroborada por outros autores cem anos depois9. Incapazes de ações
autônomas, de produzirem valores e normas próprias, vendo-se qual o vê seus
opressores, sem consciência de si, embrutecidos em seus espíritos... Essas são algumas
paráfrases retiradas de abolicionistas como Malheiros e o próprio Rui Barbosa e
recuperadas na década de 1960 por autores como Fernando Henrique e Jacob
Gorender 10.
8
Além da obra de Challoub, ver também Grinberg, Keila. Liberata, a lei da ambiguidade. As ações de
liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
9
Malheiro. Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis: Vozes, 1976.
10
Cardoso, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade
escravocrata do Rio Grande do Sul. 2º edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; Gorender, Jacob. O
escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.
7
que seriam dos quilombos abolicionistas, como por exemplo, os quilombos de
Jabaquara e do Leblon, sem o apoio de comerciantes, políticos e intelectuais
abolicionistas11?
Enfim, o processo abolicionista no Brasil foi longo e, por isso mesmo, complexo.
Nas décadas iniciais a dinâmica esteve concentrada nos debates governamentais, nos
tratados e leis que pouco modificaram o cotidiano da população escrava. A mudança
mais significativa, com a intensificação do movimento abolicionista e a ampliação da
participação de livres, libertos e escravos nesse processo, ocorre a partir da década de
1870, sobretudo na década de 1880. Essa cumplicidade social em torno do tema da
abolição, envolvendo diferentes segmentos da sociedade, torna o processo
irreversível. A solidariedade entre os fazendeiros, inclusive, foi abalada com a
contratação de ex-escravos libertados pelos abolicionistas. A própria posição da Coroa,
direta ou indiretamente, encorajava as ações abolicionistas com a concessão de títulos
nobiliárquicos, arrecadação de fundos e manifestações pessoais de apoio, como as
diversas ações públicas da Princesa Isabel 12.
11
Silva, Eduardo. As Camélias do Leblon e a abolição da escravatura. Uma investigação de história
cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
12
Idem. Ver também O lado rebelde da princesa Isabel. Revista Nossa História. Ano 3, número 31, maio
de 2006. (O texto analisa uma carta, de agosto de 1889, na qual a princesa defende a indenização dos
ex-escravos).
13
Ver Silva, Eduardo. Barões e Escravidão: três gerações de fazendeiros e a crise da estrutura escravista.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
14
Ver Challoub, Sidney. Op. Cit.
8
lado, grande parte dos abolicionistas que auxiliavam direta e indiretamente esses
escravos e libertos eram republicanos.
Seria possível traçar uma linha conectando D. Obá (que já se dizia porta-voz dos
povos d´África), a Guarda-Negra e o monarquismo de Arlindo Veiga dos Santos, líder
da Frente Negra Brasileira 16? O conservadorismo, o anti-liberalismo e o anti-
republicanismo desses líderes e/ou dessas organizações podem ser compreendidos
considerando a especificidade do processo abolicionista e republicano brasileiro? Do
mesmo modo, a militância abolicionista de muitos republicanos pode ter influenciado
outros grupos, como aqueles que formaram o jornal Clarín d´Alvorada, em 1924 e a
Legião Negra, em 1932 17? Não se trata de analisar como de fato ocorreram esses
processos, mas como eles foram vistos por esses ex-escravos, por descendentes de
escravos e por intelectuais diretamente envolvidos nessa dinâmica. Sejamos mais
precisos: quem eram os integrantes da Guarda-Negra? Súditos, bestializados ou
cidadãos negros? Foram manipulados ou não? De que maneira a ação de monarquistas
e republicanos foi responsável pela formação do grupo? Por que, em 1930, grande
parte da liderança das organizações formada por pretos e pardos ainda estava
descrente com a República? Como foi essa experiência republicana inicial para eles?
15
Sobre a Guarda Negra ver: Gomes, Flávio dos Santos. No meio das águas turvas (racismo e cidadania
no alvorecer da República: a Guarda-Negra na Corte – 1888-1889) In: Estudos Afro-Asiáticos, Rio de
Janeiro (21):75-96, dezembro, 1991; Orico, Osvaldo. O tigre da Abolição. Rio de Janeiro: Companhia
Editona Nacional, 1931; Soares, Carlos Eugênio Líbano. A negrada instituição: os capoeiras na Corte
Imperial, 1850-1890. Rio de Janeiro: Acces,1999.
16
Sobre D. Obá ver SIlva, Eduardo. Dom Obá II d´África, o príncipe do povo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997. Sobre a Frente Negra Brasileira ver: Lannes, Laiana. Entre a miscigenação e a
multirracialização: brasileiros negros ou negros brasileiros? Os desafios do movimento negro brasileiro
no período de valorização nacionalista (FNB e TEN- 1930-1950) Tese de Doutorado. Niterói, UFF, 2008;
Domingues, Petrônio José. A Insurgência do Ébano: A História da Frente Negra Brasileira. Tese de
Doutorado. São Paulo: FFLCH, USP, 2005 e OLIVEIRA, André Cortes. Quem é a Gente Negra Nacional?
Frente Negra Brasileira e a Voz da Raça (1933-1937) Dissertação de Mestrado. São Paulo: UNICAMP,
2006.
17
A Legião Negra foi formada por dissidentes da FNB durante a Revolução Constitucionalista. Enquanto
a FNB apoiava Vargas, a Legião Negra lutou ao lado dos paulistas.
9
parte significativa dos fazendeiros do interior passam a apoiar abertamente a
República, sobretudo, após a abolição da escravidão. A Guarda-Negra surge nesse
período. As poucas e esparsas informações disponíveis indicam o mês de julho de
1888, em comemoração à lei do ventre-livre. A associação teria surgido por incentivo
de José do Patrocínio e o presidente honorário seria o Conselheiro João Alfredo
Correia de Oliveira, acusado pelos republicanos de financiar a organização para seus
propósitos políticos de manutenção da monarquia 18.
Na edição de julho de 1888, o jornal Cidade do Rio publica o que pode ser
considerado o documento de criação da Guarda Negra da Redentora. A associação
teria a finalidade de opor resistência material a qualquer movimento revolucionário
que hostilizasse a instituição que acabara de libertar o país. Dela, apenas poderiam
fazer parte os libertos que ser comprometessem a obedecer aos mandatos de uma
diretoria eleita. Além disso, apenas poderiam se associar aqueles que considerassem o
13 de maio um acontecimento digno de admiração geral, e não motivo de guerra. O
documento publicado também solicitava o apoio da Confederação Abolicionista, da
18
O ministério João Alfredo foi o penúltimo antes da República, foi substituído, em julho de 1889, pelo
gabinete ministerial chefiado pelo Visconde de Ouro Preto.
19
O Cidade do Rio era dirigido por José do Patrocínio.
20
Cidade do Rio, 03/01/1889. In: Gomes, Flávio dos Santos. Op. Cit.
21
Idem.
10
imprensa e de todos os libertos do interior, para que só trabalhassem nas fazendas dos
senhores que não jurassem guerrear o Terceiro Reinado.
Mas, na versão de Patrocínio, a Guarda não deveria ser confundida com o grupo
responsável pela confusão. Ao contrário, a associação seria formada por um grupo
representativo e organizado da massa de libertos e que teria direito a participação
política. Clarindo de Almeida, identificado como líder da organização, publica artigo no
jornal Cidade do Rio desresponsabilizando a Guarda que, segundo ele, não atacaria os
republicanos, na medida em que eles foram importantes aliados na luta abolicionista.
O argumento apresentado por Clarindo de Almeida nos revela que a associação direta
entre escravismo e republicanismo não era realizada nem mesmo pelos monarquistas
integrantes da Guarda Negra, que reconheciam a importância de muitos republicanos
na luta abolicionista. Mas, por outro lado, décadas depois, por ocasião da Revolução
de 1930, a liderança da Frente Negra ainda associavam os líderes políticos da Primeira
República com os grandes cafeicultores escravocratas que deveriam ser retirados do
poder.
22
Ver Gomes, Flávio dos Santos. Op.Cit.
11
Conde estava articulando o terceiro reinado, Silva Jardim estava articulando a
proclamação da República. Um grupo de oitenta estudantes de medicina foi
recepcionar Silva Jardim e tiveram a iniciativa de substituir a bandeira do Império pela
bandeira republicana. Inicia-se então a confusão, com vaias, destruição da bandeira e
“vivas” ao Império 23. A banda de música, contratada para animar a chegada dos
republicanos, deu o primeiro sinal de ataque: - “Venham matar Silva Jardim”. Para os
republicanos, mais uma vez, tratava-se de uma ação da Guarda-Negra, arquitetada
pela Coroa e o partido Conservador. Uma ação de pretos, monarquistas e pobres
contra republicanos civilizados de boa família. O mais exaltado de todos era um
conhecido capoeira baiano, o Macaco Beleza, mulato liberto acusado pelos estudantes
de medicina de liderar uma “malta de homens de cor, sujos, descalços e ferozes
defensores da monarquia” 24.
23
Ver Albuquerque, Wlamyra R. de. O Jogo da dissimulação. Abolição em cidadania negra no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
24
Ídem.
25
Ibidem.
26
Ver Rio, João do. A Alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007
12
No Rio, em Salvador e em outros lugares onde ocorreram manifestações
monarquistas, organizadas por pretos e pardos, as análises dos republicanos eram
sempre as mesmas. Em alguns casos, não apenas a escravidão era responsabilizada
pelo suposto servilismo dos ex-escravos, mas a própria herança genética, a raça
africana, tenderia à idolatria áulica. O próprio João do Rio teria feito uso dessa
interpretação 27. Segundo o cronista:
27
Ídem.
28
Ibidem. Págs. 190 e 191.
29
Sobre as queixas dos grupos populares ver: Silva, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra,1988.
30
Ver, Rio, João do. Op. Cit. Pag. 193.
13
Em que medida, depois da Lei Áurea, os projetos de Brasil moldados por
intelectuais e dirigentes políticos se relacionaram com as ações e lutas dos antigos
escravos? Em que medida as teorias racistas31, a “objetivação do mestiço” 32 e as
primeiras propostas modernistas foram incorporadas pela população de cor? Como
eles articularam as suas memórias com os novos projetos que estavam em voga
naquele momento?
31
Sobre as teorias racistas ver: Schwarcz, Lilia M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das
letras, 1995 e Skidmore, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
32
Ver Stolze, Ivana. O Brasil mestiço: discurso e pratica sobre relações raciais na passagem do século XIX
para o seculo XX .Dissertação (Mestrado) – PUC- Rio, 1994
14
brasileiro? Como o brasileiro “negro” passou a fazer parte dessa história no pós-
abolição?
33
Torres, Alberto. A organização Nacional. P. 297
34
Carvalho, José Murilo. Os três povos da República. In: Carvalho, Maria Alice Resende de (org).
República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República, 2002.
15
Objetivos Gerais
Objetivos Específicos
Analisar crônicas e artigos publicados por João do Rio e Lima Barreto nos
primeiros anos do século XX. Refletir sobre as visões apresentadas por eles em
assuntos como: república, monarquia, cidadania, práticas culturais e situação sócio-
econômica envolvendo ex-escravos, pretos e pardos.
16
Hipóteses
17
Quadro Teórico-Metodológico
18
passado colocados em prática e como esses usos do passado contribuíram, ou não,
para a construção de uma identidade para o grupo, influenciando as suas estratégias
de ação.
Segundo Jacques Le Goff, a cultura histórica seria a “relação que uma
35
sociedade, na sua psicologia coletiva, mantém com o passado”. No entanto, o autor
reconhece que essa “mentalidade coletiva” é plural, ou seja, existe uma diversidade de
culturas históricas paralelas e concorrentes. Essa conclusão, todavia, não implica o não
reconhecimento e identificação de uma atitude dominante nesses grupos. Atitude esta
que, para conquistar e manter uma relativa hegemonia permanece em constante
disputa com outras. Enfim, a cultura histórica de um determinado grupo, o modo
como este entende e expressa aquilo que imagina ser e imagina representar é
resultado de um processo contínuo de embates entre diversos projetos e
possibilidades.
As culturas políticas, responsáveis em grande parte pela legitimação de regimes e
pela criação de identidades, buscam sempre a seleção e valorização de elementos
específicos do passado. Essa memória seletiva, essa leitura peculiar do passado,
aproxima uma dada cultura política a uma determinada cultura histórica. O modo
como uma sociedade e/ou alguns grupos específicos lidam com o passado, ou a
maneira pela qual fazem uso desse passado e escrevem sobre ele, valorizando alguns
pontos e submetendo ao esquecimento outros, nos ajudam a entender a produção e
disseminação de uma determinada cultura histórica. Portanto, a questão não é apenas
se essas escolhas representam fielmente o que ocorreu no passado, mas é também
tentar conferir sentido ao presente através da análise da utilização que foi feita de
elementos do passado.
De acordo Com Ângela de Castro Gomes, a cultura política nos permite entender
o comportamento político de atores sociais, individuais e coletivos. 36 Os sistemas de
práticas, valores e representações, que constituem as culturas políticas, utilizam-se de
culturas históricas, de leituras do passado determinadas e selecionadas não
35
Le Goff, Jacques. História e Memória. São Paulo: UNICAMP, 1990. p. 47-48.
36
Ver: Gomes, Ângela de Casto. Cultura Política e Cultura Histórica no Estado Novo. In: Abreu, Marta e
Gontijo, Rebeca (orgs). Cultura política e Leituras do Passado. Rio de Janeiro, 2007.
19
aleatoriamente. Mas, a emergência de uma cultura política e histórica hegemônica,
como já nos indicou Le Goff, não significa a ausência de outras tantas coexistindo
simultaneamente.
A memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente
importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua própria reconstrução. Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta
de negociações e transformações em relação ao outro. A construção de identidade é
um fenômeno que se produz em referência aos outros, aos critérios de aceitabilidade,
de admissibilidade e de credibilidade, que se realiza por meio de negociação direta ou
indireta com os outros 37. Memória e identidade, portanto, não devem ser entendidas
como inatas ou essências. Ao contrário, são valores permanentemente disputados.
Nas estratégias, discursos e práticas adotadas pelos ex-escravos e seus
descendentes, podemos identificar não apenas as culturas históricas e políticas
dominantes naquele período, mas também as disputas ocorridas entre os diversos
projetos em um momento muito peculiar da história nacional, sobretudo para esse
segmento da sociedade.
Revisitar o passado não pode estar desvinculado das exigências do presente e,
nesse sentido, sua compreensão é parte da inteligibilidade de uma cultura histórica
que aciona experiências, imagens e atores do passado para uma contemporaneidade
que busca nesse tempo que ficou para trás referências para imaginar o mundo em que
vive.
Questão nacional e questão racial no Brasil sempre estiveram interligadas, mas,
especialmente nesse momento, os debates e projetos eram muito mais férteis.
Estávamos em um período de reinvenção da nação, pela primeira vez sem a
escravidão, estrutura presente desde os anos inicias e determinante na formação do
Brasil. Paralelamente, iniciávamos uma forma de governo que tem como princípio
básico a igualdade e a participação da sociedade. As mudanças eram desafiadoras:
37
Ver Poutignat, Philippe e Fenart, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1997.
20
transformar escravos em livres, súditos em cidadãos. As propostas eram muitas. Quais
se tornariam hegemônicas?
Fontes
21
concentravam os debates mais contundentes sobre o republicanismo e a monarquia,
tendo como pano de fundo o papel político dos ex-escravos nesse novo momento.
As revistas Psit!!! e O Besouro eram publicadas pelo abolicionista português
Rafael Bordalo Pinheiro entre 1877 e 1879. Os periódicos, com grande teor crítico,
obtiveram a colaboração de José do Patrocínio e rivalizava com a Revista Illustrada.
Republicana e abolicionista, com fortes sátiras sobre os fatos políticos, a Revista
Illustrada foi editada por Ângelo Agostini entre 1876 e 1889, permanecendo em
circulação até 1898, sob direção de Pereira Neto. A revista O Malho, editada por
Crispim do Amaral, foi publicada entre 1902 e 1930, segue com as críticas sociais e
também possui a participação de Agostini. A linguagem humorística dessas revistas,
sobretudo através das charges, estabelecia um contato maior com a população pobre,
não instruída formalmente, formada em grande parte pelos ex-escravos e seus
descendentes.
As crônicas de João do Rio e Lima Barreto tratam do cotidiano dessa população
na cidade do Rio de Janeiro. Lima Barreto, assim como José do Patrocínio, possui uma
ligação direta com a escravidão. Seu pai, tipógrafo, nasceu escravo e sua mãe,
professora, era filha de escrava. Nascido em 1881, conviveu na infância com a
escravidão, estudou com a ajuda de seu padrinho, o Visconde de Outro Preto, e
assumiu posições muito críticas em relação à República. Em sua temática social,
privilegiava os pobres e marginais, assumindo uma postura militante. Colaborou com o
jornal Gazeta da Tarde após a saída de José do Patrocínio.
João do Rio é contemporâneo de Lima Barreto. Nasce no mesmo ano de 1881 e
morre um ano antes, em 1921. Suas crônicas estão voltadas para o povo das ruas.
Escreveu matérias de cunho antropológico e sociológico, como por exemplo, sobre os
cultos de origem africana na Pequena África. Identificado por alguns como amulatado,
tinha uma rixa com Lima Barreto. Entre 1903 e 1913, escreve para O Gazeta de
Notícias, que também teve a colaboração de José do Patrocínio no final da década de
1870.
Enfim, a variada seleção das fontes tem o objetivo principal de tentar encontrar
indícios, pistas e sinais dessa memória e cultura histórica dos pretos e pardos no pós-
abolição. Através da utilização do paradigma indiciário, esse amplo e aparentemente
22
disperso trabalho investigativo, busca encontrar as bases, as visões e as expectativas
38
de um grupo social em formação . Como a suposta identidade negra, atualmente
valorizada e estimulada pelo projeto multiculturalista, começou a se formar no pós-
abolição? Ou esse processo ainda não estava em curso na Primeira República? Havia
algum tipo de identificação entre pretos e pardos no pós-abolição? E entre libertos?
A escolha das fontes tenta abarcar um período que vai de fins da década de
1870 até a década de 1920, reunindo olhares diversos sobre questões comuns. Olhares
que se contestavam, mas não necessariamente se opunham. Olhares que faziam parte
desse mesmo universo e estavam em permanente diálogo e, como todos os diálogos,
favorecem a interpretação e compreensão desse novo tempo.
Fontes Impressas:
- PATROCÍNIO, José do. Campanha Abolicionista: coletânea de artigos. Rio de
Janeiro: Coleção Biblioteca Nacional, 1996.
- RIO, João do. A Alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007.
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