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Abstract This article, driving from Anthropolo- Resumo Este artigo pretende, a partir da Antro-
gy, presents ethnographic data elaborated in Gua- pologia, apresentar dados etnográficos construídos
riroba, a neighborhood in the capital of Brazil. no bairro da Guariroba/DF. Entre 2008 e 2014,
Between 2008 and 2014, dwellers, usually in their moradores, em geral sexagenários, migrantes e de
sixties, migrants and blue-collar workers, shared classe popular, compartilharam suas percepções
their perceptions on what they called high blood sobre o que chamavam de pressão alta e proble-
pressure and pressure problems, how they felt, ma de pressão, como os sentiam, explicavam e
explained and treated them. A very significant tratavam. A relação estreita e significativa entre
relation between pressure and nerves was clearly a pressão e os nervos surgiu claramente e ajuda a
stated and helps clarify health professionals and balizar a dificuldade que os profissionais de saúde
also researchers in dealing with cardiovascular di- e os pesquisadores da área têm em considerar essa
seases. I suggest this relation can improve clinical relação. Sugiro que considerar essa relação tanto
and pharmaceutical practice and also the scienti- aprimorará a prática clínica e farmacêutica quan-
fic results on hypertension. Knowing the percep- to os resultados científicos sobre a hipertensão ar-
tions from first person perspective, from those who terial. Conhecer as percepções em primeira pessoa,
live with long and chronic illnesses, is a relevant de quem experiencia adoecimentos prolongados
measure to strategically modulate actions of pre- e crônicos, é uma medida relevante para modu-
vention and care. lar mais estrategicamente as ações de prevenção
Key words Pressure problem, Nerves, Brazil, e cuidado.
Anthropology. Palavras-chave Problema de pressão, Nervoso,
Distrito Federal, Antropologia
1
Departamento de
Antropologia, Universidade
de Brasília. Campus
Darci Ribeiro, Cidade
Universitária. 70910-900
Brasília DF Brasil.
fleischer.soraya@gmail.com
2618
Fleischer S
Car18 também encontraram. Muito mais presente Explicações para o problema de pressão
foi a relação do problema com sua faceta sinto-
mática do que com a silenciosa. Como já comentado, as primeiras sensações
Havia os exames clínicos e laboratoriais para corporais amenas ou críticas levaram à consta-
definir um problema de pressão. Mas, em casa, tação do “problema de pressão”. Quer dizer, as
essas pessoas também realizavam “testes”, como crises, mais ou menos intensas, foram lidas e tra-
chamavam, para descobrir se a dor de cabeça duzidas em vários espaços, a começar pela casa,
estaria relacionada ao problema de pressão. Um passando pela família extensa e por vezes pela
dos testes era consumir alimentos proibidos. vizinhança até chegar às consultas de rotina (gi-
Dona Carolina lembrou, “Hoje, se eu como uma necologia, pré ou pós-natal, nutrição etc.) ou nas
comida com sal na hora do almoço, logo depois ambulâncias do SAMU e nas alas de emergência.
eu já estou passando mal”. Quando já estivessem Mas as pessoas foram além, explicando-me as ra-
fazendo tratamento, outro teste era pular o medi- zões dessas sensações e crises. Nessa seção, gos-
camento, passar um ou mais dias sem tomá-lo17. taria de explorar essas explicações que ajudam a
A dor de cabeça e/ou um número alto no visor entender os problemas de pressão e, mais do que
do esfigmomanômetro eram formas de constatar isso, a trajetória biográfica dentro da qual esse
que o teste havia funcionado. A medição, nesse problema faz sentido aparecer.
sentido, era entendida como uma comprovação Para começar, várias mulheres associaram
do que havia sido percebido a nível corporal. o início de seu “problema de pressão” a eventos
As aferições ganhavam um protagonismo reprodutivos como a gravidez, o aborto ou a
importante na interpretação das sensações cor- menopausa. Outros relatos também trouxeram
porais de mal-estar. A maioria das pessoas que a consanguinidade como explicação4. Dois dos
conheci ao longo desses anos contava com es- irmãos do Seu Felipe eram “hipertensos”. Ele
figmomanômetros em casa e realizava aferições concluiu: “Se você tem alguém na família, você
várias vezes ao dia, por diferentes motivos6. Os tem que se cuidar. Se não se cuidar, você também
equipamentos e seus números seguiam ajudando desenvolve o problema”. Em Salvador/BA, Trad
a conferir sentido onde não havia, sobretudo às et al.23 notaram entre seus entrevistados que “a
pessoas ditas assintomáticas. Mais disponíveis e HAS é reconhecida, nesse grupo, como uma do-
acessíveis do que as autoridades médicas, os apa- ença da família devido ao número de membros
relhos se popularizavam como fonte explicativa portadores e por ter acometido diferentes gera-
para diferentes mal-estares, distúrbios, sobres- ções” (ênfase minha). A expressão “da família”,
saltos, não só dos problemas da pressão (idem). em vez de “de família”, é muito eloquente porque
Contudo, com o tempo e a convivência com os deixa mais claro ainda, a meu ver, que esse pro-
“problemas de pressão”, as pessoas iam se auto- blema é percebido como específico e pronun-
nomizando dos números, aparelhos e opiniões ciado, sobretudo naquela família. Esse quadro
técnicas. Atentavam progressivamente aos sinto- se estendeu, em alguns relatos, para identificar a
mas e sensações, como se o corpo se transformas- linhagem feminina da interlocutora como defini-
se, pouco a pouco, numa espécie de “esfigmoma- dora das formas (capacidade, duração, momento
nômetro natural”. Ao se sentirem mal, talvez não na vida) de engravidar, segurar a barriga, perder,
conseguissem precisar se estavam “15 por 10” ou parir, quarentar, menopausar e, eventualmente, o
“16 por 10”, mas sabiam estar alta a pressão. Uma efeito dessas fases reprodutivas sobre a pressão.
senhora, que cuidou dos pais com “problemas de Por outro lado, é bom lembrar que a recorrên-
pressão” e agora convivia com o irmão na mesma cia familiar do problema pode contribuir para
situação, explicou, “Quando meu irmão está com banalizar a causalidade e também o tratamento.
pressão alta, ele nem precisa olhar no aparelho. Por exemplo, um dos entrevistados de Castro e
Ele fica todo vermelho, tem coceira e fica nervo- Car18, numa amostra entre paulistanos, lembrou:
so, precisa tomar um banho frio, tomar um chá”. “Existe conhecimento do diagnóstico de hiper-
Sugiro que o problema de pressão, enquanto tensão arterial há quatro anos e o tratamento foi
sensação, índice numérico e, como mostrarei na iniciado há dois anos. Porque a família tudo tem
seção seguinte, como explicação, integre o elenco isso, não liguei”.
dos distúrbios físico-morais, tão bem discutidos Além disso, parece que o envelhecimento era
por Duarte22. Esse ponto será melhor discutido um fenômeno tido como produtor de debilidade
abaixo. a ponto de explicar o surgimento de vários pro-
blemas, dentre eles o de pressão3-5,11,23. Em geral,
ouvi acepções como a seguinte, quando Dona Ju-
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etc. Vivenciar intensamente o problema de pres- mas mentais e morais, num claro efeito encapsu-
são era, portanto, uma forma legítima e estraté- lante, contribuía para invisibilizar ou até banali-
gica para também atenuar toda uma outra gama zar os problemas dos nervos.
de problemas, corriqueiros e persistentes, como a A tendência era o sofrimento das emoções,
insônia, o nervoso, a angústia, a impaciência com dos nervos e até da mente serem classificados
vizinhos, parentes, colegas de trabalho, o pânico e como indicado por Canesqui4: “observa-se nas
medo urbano, por exemplo. Essas pessoas sabiam investigações feitas com pacientes cardíacos aten-
bem como eram escassas e rápidas as consultas didos em uma unidade de pronto-atendimento
do HIPERDIA, impedindo a disponibilidade do na cidade de São Paulo que, aos classificados
médico para uma escuta atenta e terapêutica. como ‘poliqueixosos’ pelos profissionais de saú-
Por isso, aproveitavam as consultas do “grupo de de, imputam-se ‘dores imaginárias’ ou ‘psicoló-
hipertensos”7 para também associar os proble- gicas’ e a busca frequente dos vários serviços de
mas do nervoso aos da pressão e logo sair dali saúde”. Muitos profissionais anedotizavam os
com prescrições de tranquilizantes, calmantes, problemas de nervos e desconsideravam os efei-
soníferos, etc.8. Havia uma clareza de como os tos desses problemas nos de pressão. Ao final das
problemas de pressão, sobretudo pela eficiente contas, observo, nem o problema dos nervos e,
legenda “hipertensão”, contavam com um amplo muito menos, o da pressão eram bem compreen-
aparato de políticas, serviços e direitos. Esse apa- didos e encaminhados. Ignorado pelas equipes de
rato era bem aproveitado para tentar controlar a saúde, era provável que o nervoso continuasse a
pressão, mas também todos os outros problemas manter a pressão elevada, preocupante e perigosa
que lhes afetavam. Ao encontrarem as políticas entre esses pioneiros moradores da Guariroba.
para as doenças crônicas, na figura da “hiperten- Nesse artigo, tratei de considerar dois con-
são” (e também da “diabetes”), as pessoas teriam juntos de interlocutores, aqueles que convivem
a chance de serem minimamente atendidas em e cuidam e aqueles que pesquisam os problemas
seus problemas de nervos, já que estes figuravam de pressão. Dada a quantidade de estudos sobre
como a principal explicação para o problema de as doenças hipertensivas, aqui representadas por
pressão. um pequeno conjunto eloquente, é possível pen-
Por outro lado, contudo, manter-se sob a sar que sejam fonte consultada pelos gestores e
guarida das doenças cardiovasculares significava, profissionais da atenção primária em saúde. Há
muitas vezes, que essas pessoas fossem privadas uma passagem gradativa dos resultados apon-
de passar ao plano dos especialistas e psicotera- tados pelos estudiosos da “hipertensão” para os
pias voltadas para os problemas da saúde men- consultórios ao redor do país. O que preocupa,
tal, dos quais, suspeito, de fato padeciam. Algu- portanto, é que a forma como os problemas de
mas das profissionais do centro de saúde que eu pressão eram percebidos pelos sujeitos que os vi-
frequentei por tantos anos reconheciam que os venciavam não coincidia com a chave interpreta-
“problemas de casa” acabavam elevando a pres- tiva utilizada pelos profissionais que os tratavam.
são, mas esse reconhecimento não se convertia, Portanto, noto que desconsiderar a relação entre
na prática, em realmente considerar o nervoso o nervoso e a pressão pode gerar consequências
dentro dos serviços oferecidos aos “hipertensos” muito negativas. Esses usuários do SUS corriam
naquele centro de saúde. Nenhuma atividade era o risco de encontrar diálogos distanciados, auto-
oferecida além de consultas, aferições, informa- ritários e equivocados nos centros de saúde que
ções sobre alimentação, medicamentos e um gru- frequentavam, já que muito da pesquisa poderia
po de ginástica (protagonizado pelos pacientes e estar orientando a forma como a gestão, as con-
bastante deslegitimado pelos gestores locais26). sultas e a assistência farmacêutica são realizadas
Assim, a tendência a “hipertensivar” os proble- no país.
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Aproveito para agradecer aos estudantes que se 1. Firmo JOA, Lima-Costa MF, Uchoa E. Projeto Bam-
buí: maneiras de pensar e agir de idosos hiperten-
dispuseram a conhecer a Guariroba comigo, às
sos. Cad Saude Publica 2004 20(4):1029-1040.
senhoras e senhores que se mostraram interessa- 2. Fava SMCL, Zago MMF, Nogueira MS, Dazio
dos em um dedo de prosa, ao meu departamen- EMR. “Experiência da doença e do tratamento para a
to, ao Programa de Iniciação Científica de minha pessoa com hipertensão arterial sistêmica: um estudo
universidade, na forma de espaço institucional, etnográfico”. Rev. Lat-Am Enferm. 2013; 21(5):1022-
1029.
bolsas de estudos e oportunidades de pesquisa e
3. Canesqui AM. Estudo de caso sobre a experiência com
reflexão. Agradeço aos produtivos comentários a pressão alta. Physis 2013; 23(3):903-924.
que uma versão anterior desse texto recebeu em 4. Canesqui AM. Pressão alta no cotidiano: representações
eventos na Faculdade de Ciências Médicas (Uni- e experiências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2015.
camp) e no Mandacaru – Gênero, saúde e direitos 5. Nations M, Firmo JOA, Lima-Costa MF, Uchoa E.
Balking blood pressure control by older persons of
humanos (UFPB). Esse projeto foi aprovado por
Bambuí, Minas Gerais State, Brazilian ethno-epide-
um dos Comitês de ética de minha universidade. miological inquiry. Cad Saúde Publica 2011; 27(Supl.
3):s378-s389.
6. Fleischer S, Almeida N. A popularização de esfigmo-
manômetros e glicosímetros no bairro da Guariroba,
Ceilândia/DF. Soc. e Cultura 2013 16(1):183-193.
7. Fleischer S. O “grupo da pressão”: notas sobre as lógi-
cas do “controle” de doenças crônicas na Guariroba,
Ceilândia/DF. Amazônica Rev. de Antropologia 2013;
5(2):452-477.
8. Fleischer S. Uso e circulação de medicamentos em um
bairro popular urbano na Ceilândia, DF. Saúde Soc.
2012; 21(2):410-423.
9. Souza MLP, Garnelo L. É muito dificultoso!: Etnogra-
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diabetes na atenção básica, em Manaus, Amazonas,
Brasil. Cad Saude Publica 2008; 24(Supl. 1):s91-s99.
10. Canesqui AM. Estudos socioantropológicos sobre os
adoecidos crônicos. In: Canesqui AM. Olhares socio-
antropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo:
Hucitec, FAPESP; 2007. p. 19-51.
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Identidades localizadas de mulheres hipertensas na
favela da Mangueira. In: Leibing A, organizadora. Tec-
nologias do corpo: Uma antropologia das medicinas no
Brasil. Rio de Janeiro: Nau Editora; 2004. p. 277-299.
12. Maciel CLC. Hipertensão essencial: Emoção, doença e
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pologia Social; 1988.
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médicas: uma etnografia sobre hipertensão arterial
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terial sistêmica. Brasília: MS; 2013.
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bonança: Notas sobre experiências de cronicidade na
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2012:195-224.
17. Carvalho F, Telarolli Júnior R, Machado JCMS. Uma
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cepções sobre a hipertensão arterial. Cad Saude Publi-
ca 1998; 14(3):617-621.
18. Castro V, Car MR. O cotidiano da vida de hipertensos:
mudanças, restrições e reações. Rev. Esc. Enferm. 2000;
34(2):145-153.
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Fleischer S
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