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CONTEMPORÂNEA
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“A contestação da noção de gênero é, na prática, uma recusa ao reconhecimento da diversidade e da
pluralidade nas sociedades. Trata-se, ainda, de uma investida contra um pilar (sempre incompleto e frágil,
é certo) das democracias, que é a laicidade do Estado” (BIROLI, 2018, p. 130).
construída discursivamente (inclusive com a divulgação em massa de fake news) como
uma ameaça potencial às famílias brasileiras “tradicionais” (CORRÊA; KALIL, 2020).2
Essa “caça às bruxas” foi crescendo ao longo da candidatura de Bolsonaro,
sendo forjado um “pânico moral”3 em torno da ideologia do gênero 4 a ponto de
assegurar que mulheres de classe média, classe média alta, integrantes da elite, mães ou
não, católicas, evangélicas ou cristãs em geral se identificassem com a fala então
propagada e contribuíssem para eleger o atual Presidente (CORRÊA; KALIL, 2020).
Isso se traduziu em estabilização da heteronormatividade que para preservar a
concepção moderna de família carrega consigo a justificativa de idealiza-la e impor
critérios de exclusão (BIROLI, 2018, p. 122).
Aliado a isso, se depara com um cenário de escandalosa desigualdade social e
se verificam diversos desdobramentos dentre os quais se destaca o distanciamento de
uma “situação de igualdade entre homens e mulheres, seja ela pensada como igualdade
de oportunidades, de acesso a recursos, de bem-estar ou de realização” (BIROLI, 2013,
p. 28). E mais do que isso reveste-se de legalidade uma igualdade de gênero apenas
formal (tratamento idêntico perante a lei), porém que mascara a falta de igualdade
material (real ou substancial ou que se concretiza). Além disso, naturaliza a
disseminação desse distorcido protagonismo feminino em resposta às transformações
que a família brasileira vivencia a partir de mudanças provocadas pelo próprio
comportamento das mulheres.
Exemplificativamente algumas intelectuais que se dedicam à pesquisa voltada
para feminismo e gênero têm sido alvo de intimidações públicas, como o que aconteceu
2
“Esas fechas corresponden a una serie de eventos relevantes: en 2014 y 2015, disputas públicas acerca
de la política de educación y, en la secuencia, movilizaciones, eventos y protestas en torno de la cuestión
de la “ideología de género”. En el 2017, como veremos a continuación, toman cuerpo y tamaño y se
realizan movilizaciones públicas contra la “ideología de género” en eventos que ya son capítulos de la
precampaña del entonces candidato Jair Bolsonaro. Los picos siguientes, por su parte, ya reflejan el uso
de plataformas digitales antigénero en la campaña electoral por la presidencia de la República. El
momento de la toma de posesión de Jair Bolsonaro, cuando este cita nominalmente a su proyecto de
gobierno con el combate a la “ideología de género” como una de sus prioridades, es uno de los momentos
de mayor pico de las búsquedas por el término (CORRÊA; KALIL, 2020, p. 75-76).
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“O conceito reflete um contexto marcado por medo e pressão por mudança social, no qual ‘o que se
teme é uma suposta ameaça à ordem social ou a uma concepção idealizada de parte dela, ou seja,
instituições históricas e variáveis, mas que detém um status valorizado como a família ou o casamento’
(MISKOLCI, 2007, p. 112). Para o autor, o que caracteriza o pânico moral é o fato de a preocupação e
reação serem desproporcionais ao perigo real”. (SANTOS, 2020, p. 71).
4
“la “ideología de género” se ha movilizado para expressar un amplio espectro de acusaciones que van
desde la pedofilia hasta críticas a la educación en sexualidad en las escuelas a una fuerte asociación entre
“anticomunismo” y “anti ideologia de género” (CORRÊA; KALIL, 2020, p. 87).
com a vinda de Judith Butler ao Brasil em 2018, além de brasileiras (Débora Diniz e
Tatiana Lionço) que mobilizam esforços nas discussões envolvendo direitos LGBT e
aborto (SANTOS, 2020):
Indiscutivelmente essa é a uma estratégia que vem sendo utilizada pela política
de maneira eficaz para provocar divergências entre as próprias mulheres cujas
convicções as fazem acreditar que devem permanecer alheias aos debates sociopolíticos.
Mais do que isso, a ideia é que a atuação dessas fique limitada à família como o espaço
privado por excelência em que podem exercer seu protagonismo com autoridade,
deixando os demais espaços, tidos como públicos, aos homens, garantindo assim que a
dominação masculina mantenha sua suposta hegemonia5.
Nesse aspecto, nem ao longe se pode generalizar esse posicionamento feminino
ou condena-lo. Isto porque as mulheres também transitam no âmbito público, tanto
quanto no âmbito privado. Contudo, o que muda é a intensidade com que isso acontece
a partir da ilusão de que a família e o âmbito doméstico coincidem com o espaço
privado e se mostram mais propícios à concretização das habilidades artificialmente
atribuídas ao gênero feminino por um ininterrupto processo de reprodução social
arraigado de modo profundo e secular na sociedade brasileira.6
5
“A masculinidade hegemônica se distinguiu de outras masculinidades, especialmente das
masculinidades subordinadas. A masculinidade hegemônica não se assumiu normal num sentido
estatístico; apenas uma minoria dos homens talvez a adote. Mas certamente ela é normativa. Ela incorpora
a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação
a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens” (CONNELL, Robert W
.; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245).
6
“A posição de classe e o pertencimento étnico ou de raça, o pertencimento a comunidades de cultura e
religiosas correspondem, por exemplo, a vivências distintas da dualidade entre o público e o privado e das
restrições que podem representar. A categoria mulheres, abstratamente, diz pouco sobre as formas de
desigualdade de gênero porque elas não afetam do mesmo modo, e na mesma medida, todas as mulheres”
(BIROLI, 2013, p. 35-36).
Esse é um ponto crucial de reflexão quanto ao protagonismo das mulheres.
Para contrariar – e quem sabe superar - essa polarização entre o público e o privado e o
masculino e o feminino, é preciso se desvencilhar da noção de que a família se reduz à
vida doméstica e considera-la também como pertencente ao espaço público por duas
razões. Primeiramente pelo fato de o Estado responsabilizar os arranjos familiares pelo
cumprimento de inúmeras obrigações e interferir se for necessário para que estas sejam
observadas. Além disso, porque a família se faz presente nos mais diversos espaços
sociais, transformando a sociedade e sendo por esta transformada:
Em outras palavras, é preciso reconhecer que há uma linha muito tênue entre o
trânsito da entidade familiar pelas esferas pública e privada. Todavia, se faz necessária a
advertência de que “é de uma perspectiva masculina e heterossexual que família e
maternidade podem ser idealizadas e mesmo santificadas, enquanto continuam sendo
definidas de um modo que onera as mulheres e as torna vulneráveis” (BIROLI, 2018, p.
95).
Ao que tudo indica esse é o protagonismo que preconiza o governo federal cuja
atuação é favorecida com a cumplicidade de um significativo e heterogêneo grupo de
mulheres que compartilha desse pensamento, em que se passa a impressão de
emancipação e autonomia da mulher enquanto a mantém refém da divisão sexual do
trabalho, originada pelo dualismo público e privado tão conveniente aos interesses
liberais e capitalistas que permeiam a realidade contemporânea brasileira. Ou seja,
prega-se que o protagonismo feminino é admitido predominantemente no viés privado,
aconselhando-se que seja exercido seguindo o modelo de família patriarcal, e apenas de
maneira secundária e enfraquecida é tolerado na seara pública.
Por outro lado, essa postura nem ao longe é unânime nos universos feminino e
masculino. Existe todo um movimento em direção à tomada de consciência quanto a
essa postura ambígua de protagonismo das mulheres na família brasileira
contemporânea. Ao que parece, é essa tendência que favorece o exercício de mudar o
olhar e mais do que isso despertar a vontade de promover transformações sociais
originadas por uma reconstrução do significado de ser mulher na realidade hodierna
brasileira. Até porque nada justifica que a mulher permaneça com sua atuação restrita ao
âmbito doméstico enquanto o androcentrismo é admitido e perpetuado em todos os
demais espaços sociais (LIMA, 2016). E é exatamente esse inconformismo que propicia
a releitura do protagonismo feminino no sentido de admitir que a autonomia, a liberdade
e a independência femininas exigem que se ultrapasse e muito o espaço doméstico tido
como privado.
Deixar de ser juridicamente incapaz, ter direito ao voto, ser a mulher tratada
perante a lei de forma idêntica ao homem foram indiscutivelmente conquistas
importantes. Contudo, esses aspectos não são suficientes para evidenciar as
transformações significativas na família que tiveram origem, muitas vezes, na
insatisfação feminina com uma condição que lhe foi imposta e/ou na necessidade
iminente de romper com a situação até então vivenciada.
Ao sair do lar para ingressar no mercado de trabalho, ao ter o controle sobre a
sua fecundidade, ao ajudar no orçamento doméstico ou até mesmo mantê-lo sozinha, ao
ter a coragem de se divorciar, de criar e educar filhos sem a referência masculina e/ou
paterna, de empreender, de assumir altos cargos ou simplesmente de se recusar a ser
sustentada por um homem, ao romper com um círculo vicioso de submissão e de fazer
valer a sua voz não apenas dentro de casa mas em locais identificados como
pertencentes à esfera pública, quais sejam, universidades, empresas, organizações não
governamentais, igrejas e espaços culturais, a mulher forçou alterações ou teve que
fazer ajustes que foram remoldando os arranjos familiares.
Por óbvio, a animosidade que permeou e ainda permeia esse cenário se deve à
disputa de poder nas relações de gênero travadas em família e ao esmaecimento da
figura masculina patriarcal, que resistiu e ainda persiste apesar das tentativas de tornar
as relações familiares e domésticas mais democráticas. Inclusive, em diversas
circunstâncias, a mulher ao reivindicar a sua efetiva participação nas decisões foi
paulatinamente abrindo espaço para que os filhos também tivessem a oportunidade de
conjuntamente com os pais deliberarem sobre questões envolvendo a entidade familiar.
Por outro lado, o tensionamento entre a família patriarcal e a transição para a
família democrática ainda está muito longe de acabar. Isto porque não se resume a uma
“guerra entre sexos”, mas sim uma luta que se trava entre as próprias representantes do
gênero feminino que compartilham de valores patriarcais e contribuem para reproduzi-
lo. Talvez essa seja a ressignificação a ser atribuída ao protagonismo da mulher na
família, mas não no sentido de uma disputa hierarquizada e sim como a busca de
equilíbrio entre os gêneros dentro e fora do âmbito doméstico.
Mesmo assim é preciso cautela. Pensar na mulher como alguém que
desempenha diversos papéis na entidade familiar e considera-la como protagonista deste
nem ao longe deve ser um pretexto para responsabiliza-la por todas as circunstâncias
vivenciadas nesse peculiar agrupamento humano. Tão pouco se pretende disseminar um
discurso de ódio aos homens ou fazer generalizações precipitadas de que a
masculinidade sempre se desdobra em machismo. Por conseguinte, é ingênuo afirmar
que se identifica uma hegemonia masculina incontestável. A ideia é vislumbrar, sem
idealizar, a presença feminina como um potencial instrumento transformador e hábil a
amenizar e quiçá romper com o machismo visível e invisível que está impregnado na
sociedade brasileira contemporânea, tanto por homens quanto por mulheres:
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Tal fato renova nossa inspiração em discutir como os “inofensivos” estereótipos de “homem” e
“mulher” vigentes em nossa sociedade estão relacionados com a subalternização feminina, tanto na esfera
doméstica como no mercado de trabalho (PARIZOTO, 2019, p. 203-204).
diversidade cultural e multiplicidade de funções têm aptidão para reconsiderar as
dimensões do protagonismo de que são revestidas e transformar o seu entorno de modo
consciente e assertivo.
Portanto, paralelamente à hermeticidade que ronda os binários
masculino/feminino e público/privado, se mostra indispensável ter presente a lucidez de
que “no ‘modelo novo’ de família, as fronteiras de identidades entre os dois sexos são
fluidas e permeáveis, com possibilidades plurais de representação: mulher oficial de
forças armadas, homem dono-de-casa, mãe e pai solteiros [...]” (NEGREIROS; FERES-
CARNEIRO, 2004, p. 39). Em síntese: é inevitável admitir que os papéis a serem
desempenhados nos arranjos familiares estão, pouco a pouco, se flexibilizando.
Se depara, assim, com uma abertura que favorece uma postura feminina e
masculina de revisão incessante dos papéis então atribuídos a cada gênero, em especial
aqueles que, em razão de uma construção social, cultural e histórica, se naturalizaram
como pertencentes às mulheres. Dentre esses se encontram o cuidado de crianças,
doentes e idosos, os afazeres domésticos e a educação dos filhos, como exemplos de
atividades não remuneradas. Aliás, estas possibilitam subjugar as mulheres aos aspectos
menos valorizados socialmente pela esfera produtiva, eis que “sendo um sistema
essencialmente exploratório, o capitalismo vale-se da desvalorização das aptidões ditas
femininas para legitimar ideologicamente a exploração das mulheres” (PARIZOTO,
2019, p. 213).
E essa dupla exploração envolvendo as atividades domésticas não remuneradas
e a mão-de-obra barata e precarizada do gênero feminino, aliada a todo o cenário já
delineado, direciona a reflexão para a releitura do protagonismo das mulheres voltado à
família. Ao o que tudo indica há um certo comodismo e conveniência de alguns grupos
masculinos combinado com interesses capitalistas e neoliberais que atuam nos
bastidores da sociedade brasileira para frear os avanços até então obtidos, bem como
retomar a família patriarcal heterossexual enquanto modelo a ser seguido e tentar
revigorar a hegemonia androcêntrica. E pior, contando com a cumplicidade feminina
para alcançar tais objetivos.
Nessa toada, a família se torna o “álibi” perfeito para que a mulher, mesmo que
pouco a pouco, ao fazer valer sua “autoridade” no ambiente doméstico, vá introduzindo
ou ressignificando desde os pequenos gestos cotidianos, supostamente inofensivos até
atitudes decisivas para o arranjo familiar como um todo. No entanto, que essa postura
não fique restrita ao espaço eminentemente privado - reservado de forma proposital ao
gênero feminino -, mas também comece a difundir-se em outros espaços sociais nos
quais há uma crescente participação da mulher.
Convém ponderar, no entanto, que quanto mais desfavoráveis forem as
condições de vida da mulher maiores dificuldades serão encontradas tanto para
despertar ou reavivar essa consciência e depois então iniciar, retomar ou manter um
processo de transformação interior e exterior que consiga diminuir essa assimetria
abissal entre gêneros, considerada tão questionável e ao mesmo tempo tacitamente
consentida. Mas que consciência é essa? Hooks (2018) partindo da compreensão do
feminismo como “um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e
opressão” (HOOKS, 2018) explica com muita clareza que percepções são necessárias:
REFERÊNCIAS
LIMA, Francisco Jozivan Guedes de. A família como uma realização da eticidade
democrática segundo Honneth Para além do modelo androcêntrico e do naturalismo de
Hegel Civitas, Porto Alegre, v. 16, n. 3, p. 463-481, jul.-set. 2016.
PARIZOTO, Natália Regina. Menino veste azul, menina veste rosa? Violência e divisão
sexual do trabalho. Em pauta. Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Volume 17, n.º 43, Rio de Janeiro, 2019, p. 203-218.
Disponível em https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/
view/42544. Acesso em 29 ago. 2020.
SANTOS, Rayani Mariano dos. A mobilização de questões de gênero e sexualidade e o
fortalecimento da direita no Brasil. Agenda Política. Revista de Discentes de Ciência
Política da Universidade Federal de São Carlos Volume 8, Número 1, São Carlos, 2020,
50-77. Disponível em
https://www.agendapolitica.ufscar.br/index.php/agendapolitica/article/view/308/265.
Acesso 22 ago. 2020.