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APRESENTAÇÃO
Companheiras e companheiros Sem Terra,

As reflexões presentes neste caderno são resultado do de-


bate coletivo de nossa militância, realizado no Seminário
Nacional Reforma Agrária Popular e Novas Relações Huma-
nas, que aconteceu entre os dias 21 e 22 de outubro de 2021.

Partimos da compreensão de que para avançarmos na


construção da Reforma Agrária Popular é necessário nos
desafiarmos a forjar novas relações entre os seres huma-
nos e com a natureza. Assim, nos desafiamos a olhar a fun-
do como a violência inerente ao capital incide no cotidia-
no de nossas áreas de acampamento e assentamento e
nas relações como um todo, inclusive entre a militância, no
nosso processo de luta por Terra, Reforma Agrária e Trans-
formação Social.

O patriarcado pode ser resumido como a dominação masculina, ou seja, uma


organização social em que os homens têm poder sobre a vida das mulheres. O
patriarcado estrutura a ordem patriarcal de gênero, isto é, define um conjunto
de características como femininas (por exemplo: cuidado dos membros da fa-
mília, sensibilidade, fragilidade) e outro conjunto de características como mas-
culinas (por exemplo: liderança, força, insensibilidade), determinando o que é
tarefa da mulher e do homem na sociedade e na família. O patriarcado tam-
bém define a heterossexualidade (a relação afetiva e sexual entre pessoas do
sexo oposto) como única forma de sexualidade legítima, oprimindo, assim, as
pessoas que não se encaixam nessa norma (lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais). Além de definir como devem ser os homens e as mulheres, o
patriarcado estabelece o masculino como superior e o feminino como inferior.
A violência patriarcal é o instrumento utilizado para manter essa estrutura.

O racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como


fundamento. Sabemos que entre os seres humanos não.
Nosso projeto de Reforma Agrária Popular para se efetivar
exige territórios livres de toda e qualquer violência!

Sabemos que a superação de relações violentas, de do-


minação do outro e da natureza, somente se efetivará
quando levarmos a cabo a derrocada do capitalismo, do
patriarcado e do racismo. No entanto, esta derrocada impli-
ca em construirmos, desde já e desde os nossos territórios,
as condições (econômicas) e processos (políticos, culturais,
subjetivos) capazes de confrontar a tirania, alimentar a es-
perança coletiva e a capacidade de sonhar.

Não efetivaremos nosso projeto de Reforma Agrária Popu-


lar sem encararmos e darmos respostas concretas e cole-
tivas a esta questão.

Munidos desta síntese, desafiamos cada companheira e


companheiro, cada território e coletivo, cada instância a re-
alizar o debate sobre este tema, construindo uma cultura,
um compromisso político de enfrentamento permanente
às violências em nossos territórios e instâncias.

Esta é uma tarefa do conjunto da militância do MST. A con-


vocação é para que possamos revisitar criticamente nos-
sa organicidade, procedimentos e processos de formação,
mobilizados pela compressão de que não se produz uma
materialidade da vida saudável (um projeto popular de
emancipação), a partir de relações doentes.

O desafio está lançado!


É urgente e necessário para a construção do amanhecer!
Reflexões internas sobre a RAP
e a emancipação humana

Panorama da violência no Brasil

O fato de termos diversos


O capitalismo é a forma de coletivos debatendo os
organização da sociedade atu-
al. Ele se baseia na exploração elementos da emancipa-
de muitos para o lucro de pou- ção humana na Reforma
cos. É, portanto, um sistema Agrária Popular, nos mos-
extremamente desigual, onde
muitos não têm o que comer tra que temos que pensar
para que alguns poucos pos- as dimensões da vida em
sam acumular tanto dinheiro sua totalidade, inclusive
que seria impossível gastar em
muitas gerações. Para man- os elementos de violência
ter esse sistema econômico, o que são expressão des-
capitalismo articula uma for- ta relação intrínseca entre
ma de organização política e
cultural. Nesse sentido, o ca- exploração e dominação.
pitalismo estrutura todas as
relações sociais dos indivíduos A violência estrutura o ca-
– até o namoro, muitas vezes
é transformado em mercado- pitalismo e esse fato im-
ria. O capitalismo se combina plica a reprodução do ra-
ao patriarcado e ao racismo cismo e patriarcado nos
porque eles auxiliam na explo-
ração econômica e na domina- níveis estrutural, sociocul-
ção política dos trabalhadores tural, simbólico e físico. Por
e das trabalhadoras. sua natureza o capitalismo
é genocida, isso quer dizer

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que as massas sobrantes precisam ser suprimidas.

Mas ao falarmos em mas-


sa sobrante, a quem esta-
mos nos referindo? Quem
é a massa sobrante na so- Racismo Estrutural: isso por
ciedade brasileira e como que o racismo se dá em decorrên-
cia da própria estrutura social, ou
isso impacta nesses cor- seja, do modo “normal” com que
pos, considerando que o se constituem as relações políti-
racismo, o patriarcado, a cas, econômicas, jurídicas e até fa-
miliares, não sendo patologia so-
heteronormatividade são cial nem desarranjo institucional
estruturais das nossas re-
lações sociais? Quem são
os sujeitos da emancipa-
ção? Quem constrói
caminhos de resistência?

| Um causo do nosso dia a dia |

Dia de assembleia no acampamento, o povo vai se achegan-


do por todos os lados, tomando os espaços, tingindo tudo de
vermelho, foice e facão em riste, palavras de ordem aos ven-
tos. Cabe fazer uma bonita animação com os cantos de luta
do nosso povo. Ramona se oferece, lhe entregam o microfone
meio desconfiados e ela solta voz! A cantoria toma conta da
assembleia, todos estão animados com os informes, que indi-
cam a possibilidade de conquista. Finda a assembleia, Ramona
é chamada de canto pelo dirigente do acampamento que diz:
“você é um bom militante, todos veem que é comprometido, que
tem potencial... mas esse negócio de se vestir de mulher não é
postura de militante sério. Guarde isso pra dentro do teu barra-
co, pra tua intimidade, pega muito mal pra organização, é melhor
repensar tua vida, senão acaba expulso. Aviso porque me impor-
to contigo. Seja homem, José!” Ramona responde entre dentes,
enquanto dá as costas pra retornar ao barraco: “Ramona, meu
nome é Ramona” (Palavras Rebeldes)

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Estamos fazendo um grande esforço para diagnosticar em
que medida a violência, em suas várias manifestações, im-
possibilita a vida digna da classe trabalhadora geral, mas
principalmente de pessoas LGBT, crianças e adolescentes,
jovens, mulheres, negras e negros, que têm seus direitos
violados e sua dignidade ferida, inclusive no interior de
nosso Movimento.

O Brasil é o país que mais


mata pessoas LGBT no
mundo. Só em 2020, fo- Violência Estrutural: violência
ram 237 LGBT assassina- estrutural é um “prejuízo evitá-
vel das necessidades humanas
das, destes números, 161 fundamentais”. Por isso mesmo
eram travestis e transe- é uma grande causa de morte
xuais. A maioria dos cri- prematura e incapacidade desne-
cessária. Como estrutural afeta as
mes foi motivado pelo pessoas de maneiras diferentes
ódio, pela intolerância à
existência das LGBTs -
mortas por facadas, pau-
ladas, a tiro, sempre de
forma cruel. Um destes casos foi o de Lindolfo Kosmaski,
gay camponês que estudou na ELAA, participante das ati-
vidades de luta do MST/PR, e que foi assassinado no dia
01 de maio de 2021, em São João do Triunfo-PR, tendo seu
corpo queimado. Olhando para nossos assentamentos e
acampamentos e para o nosso cotidiano da militância é
importante perceber que muita coisa foi se transformando
desde a constituição do Coletivo LGBT Sem Terra, mas que
a LGBTfobia segue se expressando em nosso cotidiano,
naturalizada por muitos, propagada como reafirmação de
virilidade, determinando um modelo “aceitável” do que é
ser homem e mulher, impactando tanto na vida e subjetivi-
dade dos sujeitos, como também no cotidiano organizativo
do nosso Movimento.

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É necessário pensar também como estamos formando ‘os
novos homens e novas mulheres’ no processo de cuidado
com a infância em nossas áreas. Pois, em relação às crian-
ças e adolescentes a violência também tem se aprofundado.
Mesmo antes da pandemia, o Brasil já tinha 1,7 milhões de
crianças em situação de exploração de trabalho, nos colo-
cando a necessidade de refletir sobre como compreendemos
o trabalho em relação às crianças e adolescentes em nossos
territórios - ele é encarado como um princípio educativo, ou
um processo de exploração? Quantas vezes, a militância não
presencia uma criança assumindo responsabilidades, na casa,
na roça, que estão muito para além de sua idade?

Outra situação de enorme gravidade que enfrentamos em


nossos assentamentos e acampamentos é o casamento
infantil. O Brasil está na 5º posição no ranking mundial
no que se refere aos casamentos infantis. A estimativa é
de que aproximadamente 3 milhões de crianças e adoles-
centes vivam nessa situação, sendo a maioria esmagadora
de meninas. Nos nossos territórios é corriqueiro presen-
ciarmos meninas de 13, 14 anos se casando com homens
maiores de idade e até abandonado os estudos, com o
consentimento dos pais e da comunidade. E não são raros
os relatos de meninas que engravidaram com 10, 12 anos
e que tiveram que viver com o agressor, o que se confi-
gura como três violências para uma criança: o estupro, a
gravidez (crianças gestando crianças) e a oficialização da
violência pela família e pela comunidade.

Além da naturalização do casamento de meninas, o abuso e


violência sexual contra crianças são crimes silenciosos, que
levam as crianças a sofrerem sozinhas, considerando que: 1.
os casos em sua maioria acontecem na própria família, co-
metido por um padrasto, pai, tio, vizinhos, etc.; 2. as mães não
têm coragem de denunciar, pois muitas vezes também es-

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tão em condições de vulnerabilidade; 3. o abusador, muitas
vezes, é encoberto por ser pessoas de referências no local,
4. falta de prioridade nos espaços de direção para discutir o
assunto, sendo encarado como tema “delicado” ou “privado”;
5. as denúncias não são frequentes por medo de retaliação
vinda por parte do agressor e as autoridades exigem muitas
provas para que a denúncia se efetive.

No Brasil, que tem o racismo estrutural como regulador


das relações sociais, nos deparamos com violência extre-
ma contra os corpos negros, e as imagens de uma arma
letal apontada por um policial para a cabeça de uma crian-
ça além de outras situações como esta são constantes. A
desigualdade abismal presente nos dados é assustadora e
em vários indicadores sociais população.

Neste aspecto, em relação a população prisional brasileira,


duas em cada três pessoas presas, são negras, desse total,
37.380 são mulheres. O Brasil está em quinto lugar na lista
dos 20 países com maior população prisional feminina do
mundo, 50% das mulheres têm de 18 a 29 anos;

Em 2019, negros e negras representaram 77% das vítimas


de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil
habitantes de 29,2. Comparativamente, entre pessoas não
negras a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa
que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes su-
perior àquela de uma pessoa não negra. Em outras pala-
vras, no último ano, a taxa de violência letal contra pessoas
negras foi 162% maior que entre não negras.

Da mesma forma, as mulheres negras representaram 66,0%


do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa
de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em compara-
ção a taxa de 2,5 para mulheres não negras. No Brasil uma

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mulher é estuprada a cada 11 minutos e 51% das vítimas de
violência sexual são mulheres negras. (Atlas da Violência/
IPEA, 2021). Construir infográfico

Existem 116,8 milhões de brasileiros/as em insegurança ali-


mentar; dessas, 19,1 milhões em insegurança alimentar gra-
ve. A maioria das pessoas atingidas são pretas ou pardas
(inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contex-
to da Pandemia da Covid-19 no Brasil - Realizado em 2020)

Umas das razões para o aumento dessa desigualdade es-


tão relacionadas com o desmonte de políticas públicas em

andamento que impacta diretamente na piora das condi-


ções de vida do povo negro no campo e na cidade. No cam-
po ações como o marco temporal, a PL490 que libera ter-
ras indígenas para exploração do agronegócio, mineração e
hidrelétricas e o leilão de parques e áreas de preservação
para o capital, áreas como territórios quilombolas, entre

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outras ações tem trazido consequências graves para a so-
brevivência do nosso povo.

Como o racismo tem sido debatido em nossa organização?


Quais as formas que ele tem se reproduzido? Quais as re-
construções estão sendo colocadas em prática na constru-
ção da reforma agrária popular? Qual a função do racismo
na manutenção dos latifúndios?

Como o racismo é replicável nas relações sociais em todas


suas esferas, se coloca como urgente o debate acerca das
questões étnico-raciais na nossa organização, o fato de
apontarmos na nossa gênese a perspectiva da emancipa-
ção humana e implica pensar como tratamos o racismo em
nossa organização, considerando que a maioria da nossa
base é negra e que boa parte das lutas que nos forjaram
tinham esse componente.

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Poderíamos seguir elencando muitas outras expressões
da violência em nossos assentamentos e acampamentos,
como a violência contra as mulheres, o abandono de idosas
e idosos, a exposição de crianças e jovens (principalmente
negros) à violência letal, o aumento alarmante de número
de suicídios entre a juventude. Sabemos que a pandemia
contribuiu para o aprofundamento desta realidade e cabe
a nós o compromisso de revertê-la.

A violência estrutural
e projeto de poder

A violência estrutural é um fenômeno social e histórico,


que não está associado somente ao crime, revelando es-
truturas sociais de dominação que se expressa na contradi-
ção entre aqueles que querem manter privilégios e os que
resistem à opressão. Quando analisamos a violência estru-
tural é preciso que consideremos, fatores sociais, políticos
e econômicos, e por isso na atualidade devemos compre-
endê-la no contexto da crise do sistema capitalista.

Podemos falar em quatro expressões da violência:

Violência do capital

Revela as contradições no mundo do trabalho e com a na-


tureza. No mundo do trabalho foi se produzindo uma mas-
sa sobrante, ou seja, uma parte da classe trabalhadora é
desnecessária para a reprodução do capital. Por isso, esta
parte da população pode simplesmente morrer numa pan-
demia, de fome, de bala, envenenada, que não fará falta

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ao capitalismo. Fazer parte da massa sobrante nos colo-
ca num lugar de extrema exclusão social, vivenciada como
opressão de classe, acrescida a opressões específicas, ma-
nifestadas por nossa cor (racismo), gênero (patriarcado),
orientação sexual (LGBTfobia), idade (exploração infantil,
maus tratos a idosos), entre outras.

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Violência de Estado

Cada vez mais o Estado combina cooptação e repressão,


mas a repressão cresce de maneira impressionante, como,
por exemplo, o encarceramento em massa, a criminaliza-
ção de movimentos e lutas populares e a manifestação
corporativa das forças armadas, que se apresenta somente
como ameaça de violência.

Violência nas relações sociais

Uma sociedade cada vez mais pautada pela crise do capital


vai transpor para as relações sociais toda esta violência. No
entanto, não estamos todos no mesmo barco. Mesmo nós,
como classe trabalhadora, sofremos a violência de formas
distintas por ocuparmos lugares sociais diversos. Para com-
preender em profundidade a violência, temos que olhar a par-
tir daquilo que conforma os sujeitos em sua diversidade, pois
sofremos a violência de forma diferentes por sermos mulhe-
res, negros e negras, LGBT, crianças ou idosos, pessoas com
deficiência, povos de terreiros, indígenas, ciganos, imigrantes
– estes são os principais atingidos e, no último período, há um
aumento gritante da violência sobre estas pessoas.

Violência nas formas de representação política

As formas de representação política do capital recrudes-


ceram e os atores deste processo são a direita e a extrema
direita, como defensores dos interesses da classe domi-
nante. Na atualidade, convivemos no Brasil com um projeto
com duas faces – o ultraliberalismo e fundamentalismo -
que estão relacionados profundamente.

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Temos que olhar com
profundidade e preo- O fundamentalismo é a forma
cupação para esta for- de cimentar os valores ultra ne-
oliberais na sociedade, garantin-
ma política como está do que a implementação dessas
em pauta, articulada políticas tenha menos resistência
ao machismo, ao racis- e até mesmo apoio na classe da
trabalhadora. Baseado em doutri-
mo, a LGBTfobia e que na ou prática das religiões que in-
muitas vezes nós mes- terpretam de modo literal a bíblia.
mos colocamos para afirma ser essencial a obediência
excessiva e literal aos bíblicos
debaixo do tapete, ao conservadores.
tratamos como perfu-
maria, como cortina de
fumaça. Ao encararmos
assim, deixamos de
desvendar como estes elementos estão articulados num
projeto em que Bolsonaro é apenas um personagem mal
acabado, mas que segue sem ele.

O último período nos ensinou muitas coisas para a luta dos


trabalhadores e trabalhadoras. O fenômeno histórico no
qual estamos inseridos não se resume a Bolsonaro, pois
trata de como as elites buscam gerir a barbárie, a partir da
sua ótica. Os organizadores da morte se nutrem do fun-
damentalismo, se alimentam do racismo, do patriarcado,
do conservadorismo, para seguir aprofundando a domina-
ção e a exploração capitalista. Por isso, a luta contra este
conjunto de opressões não é uma luta secundária, é uma
luta estrutural, que nos impõe muito mais desafios. A clas-
se dominante tem projetado poderosas estratégias e me-
canismos de acesso à classe trabalhadora, de disputa de
hegemonia. Nesse sentido, é decisivo, é fundamental co-
locarmos as relações humanas no centro de nosso debate
contra-hegemônico.

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***

O movimento e sua tarefa histórica


de emancipação

Somos um movimento a que interessa a emancipação.


A nós não basta a conquista da terra, o rompimento das
cercas do latifúndio… em nossa gênese anunciamos a ne-
cessidade da emancipação integral dos seres humanos,
presente em nossa construção histórica e em nossa prá-
xis. Construir nosso projeto de Reforma Agrária Popular,
numa perspectiva política emancipatória, foi se comple-
xificando ao longo do tempo, tanto pela complexificação
da própria classe trabalhadora, como pelo contexto de
profunda degradação humana em que estamos vivendo.
Nesse sentido, precisamos aprofundar nossa perspectiva
de emancipação, trabalhando de forma mais radical nos-
sa concepção de protagonismo político, reconhecendo
que o sujeito Sem Terra, os sujeitos da classe trabalhadora
são sujeitos diversos, plurais, não homogêneos. Enxergar a
classe trabalhadora, não como um bloco homogêneo, mas
no movimento das contradições sociais que formam os su-
jeitos da classe, e aprofundar nossa compreensão sobre
como a violência incide de formas distinta sobre esses di-
ferentes sujeitos, é desafio fundamental para avançarmos
na construção de um projeto de Reforma Agrária Popular
numa perspectiva emancipadora.  

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No que avançamos com a formulação da Reforma
Agrária Popular em nosso Programa Agrário

Reconstruímos diariamente, através da luta, o papel da


Reforma Agrária Popular. E isso se dá no fazimento e no
debate da produção de alimentos, da cooperação e da so-
berania alimentar, que nos permitiu reafirmar que demo-
cratizar a terra significa enfrentar o desemprego estrutural
no campo e na cidade e enfrentar a fome; aprofundarmos
também nossa concepção de agroecologia, compreenden-
do que produzir alimentos saudáveis, de forma cooperada,
deve significar cuidar dos bens comuns da natureza.

Essa construção nos colocou novas reflexões e deman-


das, assim, temos avaliado que, para que a Reforma Agrá-
ria Popular se efetive, nossos territórios devem ser tam-
bém espaços onde se constrói as novas relações humanas,
emancipadas. Este deve ser um processo construído inten-
cionalmente, deve ser compreendido ideologicamente e
internalizado em nossa organicidade, vinculada às forças
vivas, ao dia a dia de nossas famílias.

Assim como qualquer um de nós consegue identificar, ex-


plicar, denunciar e lutar contra a propriedade privada, con-
tra a divisão de classes, contra o modelo do agronegócio,
também devemos ser capazes, enquanto sujeitos coletivos,
de fazê-lo em relação ao patriarcado e ao racismo, com o
entendimento de que eles são estruturantes do capitalismo
brasileiro. Se uma das contribuições do nosso Movimento
foi popularizar, a partir da luta, o que é a questão agrária,
então está colocado para nós também o desafio de popu-
larizar, aprofundar nossa compreensão do que é e quais são
os impactos do patriarcado e do racismo no campo.

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Isso nos coloca diante do fato de que a construção da Re-
forma Agrária Popular não está acabada, portanto, é neces-
sário e fundamental, que tenhamos um olhar crítico, orga-
nizado para o nosso Programa Agrário e nos perguntarmos:
no que ainda precisamos avançar frente ao que já construí-
mos? O que precisamos rever e que, inclusive, hoje nos limi-
ta, porque como fruto de processos dialéticos, precisam ser
superados. Este não é um debate teórico, abstrato, é um de-
bate que tem de estar vinculado diretamente ao nosso ser
Sem Terra, enquanto sujeitos individuais e sujeitos coletivos.

Por isso, nos perguntamos:

a. Qual é o papel da classe trabalhadora nesse momento,


nessa quadra histórica de crise estrutural do capital e de
aprofundamento do fundamentalismo?
b. Como nos organizamos diante da barbárie?
c. Qual é o papel do nosso Movimento Sem Terra?
d. Como pautamos o tema do enfrentamento à violência
como centralidade na nossa estratégia política?

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Nossos desafios

Para que nosso projeto de Reforma Agrária Popular se efe-


tive, é necessário que o tema do enfrentamento à violência
assuma centralidade em nossa estratégia política. O que
coloca para nós alguns desafios, que devem ser encarados
pelo conjunto de nossa organização, da base à militância.

<< Revisão de nosso Programa Agrário

O Programa Agrário do MST, lançado em 2013 em nosso


VI Congresso Nacional, é fruto de uma construção coletiva,
que sintetiza o projeto de reforma agrária que defendemos
para a sociedade brasileira: a Reforma Agrária Popular. Mais
do que um documento com elementos teóricos, ele traduz
a prática concreta da luta de classes construída no dia a dia
nos nossos territórios e na sociedade em geral, apontan-
do caminhos para a implantação de nosso projeto. Trata-
-se então de um programa em movimento, que seguirá em
permanente construção, sendo atualizado de acordo com
os rumos de nossas lutas, conquistas e também pelos de-
safios que se impõe pelas contradições do capitalismo.

Neste ano de 2022, estamos nos desafiando a atualizar


nosso Programa Agrário, mobilizando a companheirada a
refletir sobre quais são os elementos que precisam ser re-
visados, incorporados e até superados de nossas reflexões.
Uma das sínteses a que chegamos no último período é de
que “não se produz alimentos saudáveis, através de relações
doentes, violentas”, ou seja, que nosso projeto de Reforma
Agrária Popular só vai se materializar através da construção

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de novas relações com a natureza e entre os seres huma-
nos. Nesse sentido, temos que projetar como redirecionar
a nossa ação política para fazer o enfrentamento às vio-
lências, enquanto organização, em nossos territórios mas
também nos espaços de militância.

Nossa leitura da crise estrutural capitalista deve incorpo-


rar de forma definitiva a centralidade do patriarcado e do
racismo neste projeto de poder. Em países de capitalismo
periférico, como o Brasil, a violência do capital se poten-
cializa ainda mais, atando um nó de três pontas entre a
estrutura de classe, o patriarcado e o racismo. Sem com-
preender como estas estruturas operam de forma simbi-
ótica, alimentando uma a outra ao longo de nossa histó-
ria, não poderemos compreender a totalidade da luta de
classe no Brasil.

Isso nos leva a apontar


Epistemologia eurocêntrica para a necessidade de fa-
zermos uma revisão em
Epistemologia se refere a um
ramo da filosofia que se ocupa do nossas bases teóricas,
conhecimento científico, é o es- questionando a episte-
tudo do saber, definindo o que é mologia eurocêntrica que
ou não uma verdade comprovada
cientificamente. tradicionalmente domina
as formulações e leituras
Eurocentrismo é um termo usa- da realidade da esquerda
do para designar uma visão cen-
trada na superioridade da visão brasileira, fazendo relei-
europeia sobre as outras visões turas e atualizações dos
de mundo, em que a beleza, o co- clássicos e incorporando
nhecimento, as tradições, os va-
lores, a espiritualidade, os costu- leituras que são funda-
mes têm como única referência o mentais para repensar-
modelo branco, europeu, cristão, mos alguns processos
ocidental.
que forjaram a nossa
construção sociocultural,

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nossa subjetividade. Legado deixado por Lélia Gonzalez,
Clóvis Moura, Beatriz Nascimento e Carolina Maria de Je-
sus, por exemplo, mas pouco referenciados em nosso re-
pertório formativo. Faz-se necessário, aliás, conjugar arte e
política, para compreendermos nossa totalidade.  

Nossa formação, enquanto povo brasileiro, é atravessada


pela violência, sentimos isso na carne durante toda a nossa
existência, na nossa experiência cotidiana, estando presente
em nossa memória recente. Mas também estão em nossa
memória, de nossas ancestralidades, os processos de luta e
resistência, que sistematicamente a “história oficial” tentou
apagar. Por isso, uma revisão histórica, que permita elaborar
a violência e trazer presente a resistência popular é funda-
mental para podermos vislumbrar novos horizontes.

Este processo implica, também, em complexificar nossa


compreensão acerca da classe trabalhadora, fortalecen-
do os elos históricos entre a luta pela terra realizada pelo
MST e a luta da população negra e dos povos originários.
Um elo histórico construído pela resistência - a resistência
dos povos negros e indígenas, compreendida enquanto re-
sistência ativa, de povos que lutam cotidianamente, desde
1500, para permanecerem vivos. O desemprego em massa,
a precarização do trabalho e a consolidação de uma massa
sobrante na cidade e no campo, também devem reorientar
nosso trabalho de base com o povo pobre, impulsionando
novas formas de organização e luta da classe trabalhadora.
Mariátegui nos ensina que o socialismo na América Latina
não pode ser uma cópia, mas sim uma construção heroica
dos povos. Por isso, nosso Programa Agrário precisa apon-
tar novos roteiros de luta e perspectivas de futuro, incluin-
do a construção de novas relações humanas, que não pode
ser incorporada como uma leitura setorial, no item do Se-
tor de Gênero, do Grupo de Estudos de Terra, Raça e Clas-

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se ou Coletivo LGBT, mas deve compor estruturalmente o
nosso Programa.

<< Formação política e formação da consciência em massa

Temos que fortalecer a intencionalidade política do en-


frentamento às violências, onde a formação pode cumprir
um papel fundamental. Precisamos avançar na formação
política e ideológica sobre as opressões estruturais e a
perspectiva revolucionária para superá-las, compreenden-
do que estas opressões estão colocadas para o conjunto
da classe e que, portanto, estão no nosso meio.

Para pensarmos um processo de formação nessa perspec-


tiva, precisamos seguir aprofundando a compreensão de
que as vidas, os corpos femininos, negros, pobres, LGBT são
marcados historicamente por processos de subordinação,
de violência, de opressão, de preconceito que potenciali-
zam ainda mais a exploração capitalista e a dominação. E
estes corpos somos nós, essa é a nossa base social Sem
Terra acampada e assentada, essa é a classe trabalhadora.
Não podemos compreender essa realidade como se ela
estivesse externa a nós, por isso precisamos:

organizar seminários sobre o tema nos estados, regiões e


espaços de direção;

fortalecer o debate da temática em nossos cursos de for-


mação político-ideológica;

construir programas para debater o tema nas escolas, co-


operativas e demais espaços organizativos dos territórios;

organizar estudos com a militância para que possamos re-


pensar e reconstruir instrumentos de trabalho de base, de

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mobilização popular e de formação;

construir uma cultura política de enfrentamento permanen-


te às violências desde a perspectiva da educação popular;

<< Sair da teoria à prática

A formação da consciência precisa da vivência de proces-


sos emancipatórios. Portanto, nossas construções devem
ser traduzidas no comportamento de nossos/as dirigentes/
as, na nossa militância, no cotidiano da articulação política,
no cotidiano da nossa ação interna junto a nossa organiza-
ção e, inclusive, no cotidiano privado. Isso exige o esforço
constante e permanente de combater as opressões no in-
terior do nosso Movimento, desde nossos acampamentos
e assentamentos até nossas instâncias.

A articulação entre exploração e um conjunto de opres-


sões é uma característica estruturante do sistema de do-
minação capitalista, mas também se reproduz nas formas
de relações sociais, mediadas por privilégios. Tendo isso em
conta, para avançarmos nesse debate, no enfrentamento
às violências e na construção de novas relações humanas
precisamos compreender que estes lugares de privilégio
existem também em nosso Movimento.

Para que avancemos na participação política efetiva de


todes, uma participação coletiva e igualitária, precisamos
compreender como estes privilégios operam e como as
opressões atuam na diversidade de sujeitos que compõem
nossa base social e a própria classe trabalhadora. Ser ho-
mem, branco, hétorossexual, por exemplo, nos coloca em
um lugar de privilégio, um lugar de poder, que a depender
de nossa práxis pode legitimar ou reforçar um conjunto de

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opressões que o sujeito LGBT, negro/a, mulher lida em seu
cotidiano, inclusive no interior de nossa organização.

| Um causo nosso do dia a dia |

Carlos e Helena formavam um casal daqueles que inspirava. Começa-


ram a namorar ainda no Ensino Médio e superaram a distância do tem-
po comunidade, ele no Sul e ela no Nordeste, para se casarem, quando
entraram juntos no curso de Agronomia, poucos anos depois. No fim
do terceiro semestre Helena engravidou, o que fez com que ela tivesse
que trancar dois períodos. A gravidez, o bebê pequeno tornaram a vida
acadêmica difícil e ela só se formou com a turma seguinte. Depois de
formados, morando no assentamento, contribuíam com a cooperati-
va, dando assessoria técnica aos assentados e assentadas no campo
da agroecologia. A vida era boa. Helena, militante dedicada, se dividia
entre as tarefas na cooperativa e as tarefas da casa, do cuidado com
o filho, enquanto Carlos, sempre muito responsável, dividia seu tempo
entre a assessoria, sua própria roça e, sobrando um tempinho, ajudava
em casa também.

Até que aparece um convite incrível, estavam procurando um militante


para passar um ano na China, se qualificando a partir de uma experi-
ência única de tecnologia em produção de alimentos agroecológicos
na agricultura familiar. A direção do estado estava indicando que justa-
mente alguém da cooperativa pudesse ir e o ponto é discutido na reu-
nião. Helena e Carlos têm a mesma formação e experiência e ambos
teriam condições de assumir a tarefa, mas seu filho já tem 6 anos, está
em idade escolar e só havia uma vaga. Apenas um dos dois poderia ir...

No debate do nome ficou claro quem iria. Helena não pode simples-
mente largar marido e filho e se mudar para outro país - mesmo que
fosse por um ano, mesmo que organizasse os cuidados com o filho
com sua família que está no Nordeste - que tipo de mãe, de esposa
ela seria se fosse? Assim, automaticamente, ela abre mão de ter uma
experiência tão instigante e formadora como essa, pois é incogitável
que fosse ela e não ele. Teve medo do que a sociedade, a comunidade,
a militância pensariam dela.

Já Carlos, poderia ir sossegado. Sua condição de homem confere a ele


seu passaporte. Boa viagem, companheiro!

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Construir uma práxis revolucionária das novas relações humanas, as-
sumindo o enfrentamento à violência como central, é um caminho de
superação dialética da violência estrutural. Estas são questões a serem
enfrentadas coletivamente como um combate direto, na vivência das re-
lações cotidianas, mas também pelo anúncio, pela projeção de quais são
as novas relações que nós queremos construir. Essa bonita capacidade de
utopia, construída no cotidiano pelo MST, é decisiva para um processo de
transformação de nossas relações e deve estar pautada nas dimensões
educacional, produtiva, formativa, cultural, organizativa e das lutas.

Nossa organicidade deve ser constantemente tensionada, desde a


base até as instâncias de direção, para que os seres humanos possam
ser integralmente humanos, em todas as dimensões de sua vida e não
apenas em espaços cativos, conquistados duramente. Vale ainda rea-
firmar que as novas relações humanas são a base da nova prática pro-
dutiva e reprodutiva em nossos territórios, pois nunca é demais repetir
que não é possível produzir agroecologicamente, através de relações
doentes, pautadas pela violência.

Identificar as violências >>

Precisamos identificar as formas que a violência estrutural


assume no conjunto da sociedade, mas também no nosso
meio, mas, para isso, nós precisamos também nos identificar
como sujeitos, somos mulheres, LGBT, negras/os, crianças,
idosos/os. Esse olhar atento deve ser socializado e deve ser
uma prática militante, uma prática política e, portanto, nós
devemos perseguir enquanto prática militante a capacidade
de identificação da violência nas suas várias dimensões, a
violência física, moral, sexual, política, psicologia e econô-
mica. Este não é um processo simples, não será o indivíduo
privilegiado que irá iniciá-lo, mas deve ser assumido como
um processo coletivo e permanente, considerando, inclusi-
ve, que todos nós, mesmo quem detém o privilégio, somos
seres cindidos/as por essas violências.

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Acolher aquelas e aqueles que sofrem a violência >>

Nós somos uma organização de acolhimento, nós nos cons-


truímos no acolhimento da classe trabalhadora destroçada
pela barbárie. Negar a possibilidade de acolhida seria repro-
duzirmos a barbárie. Mas o acolhimento deve ser intencio-
nal, precisamos também criar os mecanismos de acolhida,
numa perspectiva de emancipação, numa perspectiva trans-
formadora também de quem pratica a violência.

Um causo nosso do dia-a-dia

Quando saiu de casa, um tornado parecia atordoar a cabeça. A confu-


são de sentimentos, a raiva, a dor e principalmente o medo: “que eu vou
fazer da minha vida agora?” era um eco em meio ao choro. O ímpeto
de voltar atrás, de pedir desculpas a Raimundo e voltar a vida de antes
pareceu razoável diante de um futuro nebuloso. Quando chegou na
casa de Lia, desabou.

Lia conhecia o sofrimento da companheira de tempos. Desde o primei-


ro contato de Ana, acionou profissionais da psicologia, jurídico e bus-
cou saber mais da casa de apoio na região, que infelizmente era quase
inacessível para mulheres do campo. Ana não foi a primeira vítima de
violência, mas seu caso, tão perto da militância, tão perto do mundo
que às vezes encaravam como perfeito, fez quebrar em Lia e nas outras
um sentimento de refúgio que achavam ser possível na Reforma Agrá-
ria Popular. Era... ou seria, mas ainda havia muito a se fazer.

Estendendo a mão para a mulher acocorada na porta ainda, sua voz


quase canta: “Venha, minha irmã, essa casa é sua e nossas mãos são
para acolher.” Levantadas, elas seguiriam dando mãos umas às outras,
puxariam os camaradas junto, mas enfrentariam coletivamente ou não
seria possível superar.

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<< Enfrentar as violências

Não adianta apenas identificar as violências, ou encará-las


numa perspectiva punitivista. A potência do enfrentamento
que defendemos assume uma perspectiva revolucionária.
Ela está justamente no entendimento de que isso se colo-
ca como um compromisso de que nós não toleramos mais
a violência. Isso não significa que ela simplesmente vai de-
saparecer do nosso meio, pois não se trata apenas de um
ato de vontade, mas que temos convicção política de que
para a construção da Reforma Agrária Popular o enfrenta-
mento dessas opressões se faz imprescindível, que isso faz
parte do nosso ser Sem Terra.
A primeira forma de enfrentamento parece óbvia e sim-
ples, mas é justamente uma das mais difíceis: expormos as
situações de violências nos nossos orgânicos. Nós temos a
tarefa de tirá-las do âmbito privado, tirá-las de dentro do
barraco, do lote, do armário, da madrugada, onde aconte-
cem muitas dessas violências, e temos que trazê-las para o
debate coletivo. Não estamos querendo com isso queimar
companheiros, formar juízes/as e sim construir processos.
Não queremos construir tribunais, queremos construir es-
paços coletivos de transformação.

Um causo nosso do dia-a-dia

A igreja, a polícia e a vizinhança já haviam identificado a situação de


cárcere privado que a jovem vivia. “Não é possível fazer muita coisa, é
um problema de família” disseram eles. A verdade é que já haviam per-
dido a capacidade humana de indignação. Mas nem todos se renderam
à anestesia social.w

Um pouco de persistência e astúcia, combinados com a mobilização


da comunidade em torno e enfim a casa deixa de ser um cativeiro. A
menina e suas pelúcias ainda cheia de marcas de uma vida em solidão,
abuso e sem carinho, agora conhece formas de afeto. Um longo cami-
nho se abre para enfrentar as privações que passou.

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Construir um programa de transição >>

Uma questão que tem aparecido em muitos debates, prin-


cipalmente nos últimos anos, é a criação de protocolos.
Nós devemos conversar sobre isso, sobre quais são os pro-
tocolos necessários para enfrentar a violência, pois eles se
descolam do “caso a caso”, ajudando a internalizar e nor-
malizar dentro de nossa organização as formas de enfren-
tamento. Um protocolo construído não como burocracia,
mas como uma metodologia internalizada e legitimada
coletivamente de como enfrentar a violência no acampa-
mento, no assentamento, nas instâncias.

Nesse sentido, se faz necessário estabelecer um conjunto


de normas e condutas do que fazer e como agir quando a
violência acontece. Quando não fazemos nada, porque não
temos como agir, isso acaba com nossa condição de mili-
tantes, com a nossa condição humana. Temos que avançar
nessa construção, mas não de cima para baixo, como impo-
sição. Um protocolo precisa ser discutido, debatido, com-
preendido como fundamental desde os nossos territórios.
Este se apresenta como um grande desafio, pois precisa-
mos considerar que estamos muito fragilizados na nossa
organicidade nos territórios para avançar no enfrentamento
às violências. No entanto, avançar na construção do proje-
to de Reforma Agrária Popular, necessariamente significa
avançar na nossa organicidade nos territórios, impulsionan-
do formas de convivência entres os seres humanos e com
a natureza que reflitam o projeto que estamos construindo.

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Questões para o debate

Como o enfrentamento à violência pode ser incorporado à


organicidade de nossos territórios e aos espaços de direção?

O que compreendemos enquanto formação emancipada


em nossos territórios?

Que experiências estamos desenvolvendo para acolhida e


enfrentamento à violência?

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Era o último dia da reunião. Na noite anterior teve uma
cultural para celebrar o reencontro da militância depois
de tanto tempo em isolamento social. As cadeiras vão
sendo ocupadas e a reunião está para começar, mas
lá de trás se ouve um burburinho que parte de uma
rodinha que tem no centro uma companheira. Ela está
visivelmente nervosa.

O som das palavras ecoa um pouco abafado, chaman-


do a atenção de quem passa pelo grupo.

– Tentou me agarrar na saída do banheiro...


– Você tem certeza? Vai ver foi um esbarrão...
– Falou um monte de besteira quando eu recusei.
– Que estranha essa história...
- Não é do tipo dele uma atitude dessas...
– Acho que a gente deve colocar o que aconteceu aqui
na reunião, isso é inadmissível!
– Que é isso, companheiras? Não é pra tanto.
- Ele deve ter bebido um pouco a mais e fez besteira...
– É, acontece, não deve ter tido intenção...
– Bora pra reunião, compas, que tá ficando tarde e
ainda temos muitos pontos.
– Isso, depois a gente chama ele pra conversar. Beleza?

O burburinho cessa, todos tomam seus lugares e a reu-


nião tem início. Nunca se teve notícias se a conversa foi
feita, ou não.

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