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30 DE JUNHO DE 2020

teoria da reprodução social e opressão a LGBTQIAPs

foto de Markus Spiske no Unsplash


Maíra “Mee” Silva[1]

Questões da população LGBTQIAP têm vindo com mais frequência à tona nos
diversos âmbitos da sociedade e em diversos países do mundo. No nosso país,
a precarização da existência dessa população é principalmente notória entre
travestis, transexuais e mulheres transgêneras. O que também leva nossa
atenção ao fator de raça e deslocamentos populacionais, já que a maior parte
desse grupo é de pessoas não brancas que migram de rincões menos
urbanizados para os centros urbanos.
Movimentos sociais aqui e em outras partes do mundo fizeram louváveis
avanços em termos de direitos e mentalidades nas décadas recentes. Mas, em
alguns países, a não heterocisgeneridade ainda é punível com a pena de morte.
Naqueles em que há direitos conquistados, estes necessitam de
aprimoramentos e, como a história recente dolorosamente nos prova, direitos
conquistados não são direitos garantidos, e mentalidades estão em constante
disputa.
Em tempos de crise do capitalismo, esses direitos e as concepções sobre esses
grupos estão entre os primeiros a serem golpeados. Os motivos para isso
podem ser muito bem observados pelas análises da Teoria da Reprodução
Social.
A Teoria da Reprodução Social (TRS) – que pode ser, de maneira mais completa,
chamada de Teoria da Reprodução Social da Força de Trabalho – é uma teoria
feminista marxista. Seu foco principal é a contradição entre duas necessidades
que o modo de produção capitalista tem para manter suas taxas de lucro. Uma,
a de que a classe trabalhadora seja reproduzida geracional e socialmente em
número e qualidade adequados para a sua exploração no trabalho dito
produtivo, assalariado. A outra, a de que o Capital pague nada ou muito pouco
por essa reprodução.[2]
A reprodução social da força de trabalho propriamente dita são todos os
trabalhos envolvidos em fazer a manutenção da vida (alimentação, cuidados
com a saúde, educação, socialização, descanso etc.) dos atuais trabalhadores
para que retornem ao trabalho a cada dia e produzam da mesma maneira que
no dia anterior, dos futuros trabalhadores (bebês e crianças), das pessoas que
já não integram mais a força de trabalho (idosas e idosos), das que não poderão
integrar (doentes crônicos, alguns casos de pessoas com deficiência) e dos
desempregados.[3]
No âmbito da primeira necessidade mencionada, a classe trabalhadora precisa
ser reproduzida quantitativamente e qualitativamente. Para a manutenção da
acumulação do capital, é necessário que a classe trabalhadora seja
extremamente numerosa a ponto de haver um excedente populacional. Não
obstante a ideia de excedente populacional estar vinculada a restrições criadas
pelo próprio modo de produção à disponibilidade de vagas de trabalho
assalariado, ainda existe a necessidade de que essa população se reproduza em
quantidade numerosa especialmente para causar contração nos salários.
Mas como nascem novas trabalhadoras e trabalhadores? O expediente é todo
deixado à sorte da classe e ao sabor do acaso por Marx n’O
Capital,[4] brevemente resgatado por Engels em A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado e mais bem desdobrado por autoras da TRS.
Sim, seres humanos são, antes como hoje, reproduzidos geracionalmente
através de um ato entre dois indivíduos de conformações biológicas diferentes
entre si. Porém, a forma, contexto e organizações sociais como isso ocorre, as
que são socialmente aceitas e as que são tabus, são características de cada
momento histórico.[5]
No nosso caso, sob o modo de produção capitalista, vivemos sob um regime de
heterossexualidade e monogamia compulsórias com formação de famílias
nucleares. Utilizaremos, aqui, a ideia de heterocismononormatividade ou
heterocismonogamia compulsória.
O fato de que a classe trabalhadora é geracionalmente reproduzida através de
relações cis-héteras poderia parecer argumento suficiente para que seja do
interesse do Capital coibir todas as manifestações e práticas que saem dos
estereótipos e papéis de gênero. Mas a reprodução da força de trabalho ainda
tem um aspecto qualitativo.
Na maneira histórica como se desenvolveu esse modo de produção, todos os
trabalhos da reprodução social estão a cargo das mulheres (alguns
inalienavelmente como gestação e amamentação) tanto quando são realizados
não remuneradamente dentro do lar quanto quando são socializados e
realizados de forma remunerada, haja visto o número preponderante de
mulheres na educação infantil, enfermagem, cuidado de idosos e emprego
doméstico entre outros. Setores esses que também carregam forte marca racial
e migrante.
São trabalhos pesados que consomem muito tempo e têm uma justificativa
perfeitamente capitalista para terem ficado majoritariamente a cargo da
unidade familiar sendo realizados não remuneradamente dentro do lar. Não
foram socializados para serem oferecidos gratuitamente pelo Estado porque
nenhum Estado teria condições financeiras de arcar com todo ele. Também se
o setor privado tivesse que assalariar toda a classe trabalhadora o suficiente
para que pudessem consumir esse trabalho na forma de serviços pagos, não
haveria lucro possível para os empregadores.
Em suma, nem o setor público nem o setor privado, separadamente ou em
conjunto, têm condições de pagar pela reprodução social da força de trabalho
no modo de produção capitalista.
Para que esse trabalho continue sendo realizado de forma gratuita para o
Capital, existe muita necessidade de reforço de estereótipo e papéis de gênero
e da família nuclear heterocismonogâmica. Isso vai de encontro à possibilidade
do livre desenvolvimento de orientações sexuais que não a hétero, de
identidades de gênero que não a cis, da intersexualidade e da assexualidade.
É justo reconhecer que parte da reprodução social foi sendo historicamente
socializada. Hoje podemos contar, em alguns países, com hospitais e escolas
públicos e gratuitos, por exemplo. Já lavanderias e restaurantes são casos
históricos muito mais raros. O quanto da reprodução social está disponível de
forma pública e gratuita e as formas em que isso se dá são sempre resultado da
luta de classes em cada local e tempo histórico. No entanto, também devemos
destacar que essas são sempre as primeiras estruturas a serem atingidas em
momentos de crise do Capital.
Se consideramos que o salário é pago à trabalhadora e trabalhador para que
realizem em seu âmbito privado a reprodução social de si e de sua família,
outro recurso do modo de produção capitalista para coibir as sexualidades não
normativas é através da desvalorização dos grupos populacionais contidos na
sigla LGBTQIAP contraindo seus salários, assim como ocorre com outros
grupos, como mulheres, pessoas negras, com deficiência, idosas, imigrantes
etc. Todo o cenário fica evidentemente agravado quando um indivíduo
combina mais de uma dessas características.
Mais extremo do que isso é o que ocorre em geral com travestis e mulheres
transexuais e transgêneras. Anteriormente falamos sobre a formação de um
exército industrial de reserva (EIR) através de restrições criadas pelo próprio
modo de produção à disponibilidade de vagas de trabalho assalariado (a saber,
aumento do grau de exploração, mecanização etc.). Agora devemos voltar os
olhos para outra forma de criação de EIR: quando se impossibilita que uma
categoria tenha acesso ao trabalho assalariado, como é o caso desse grupo
populacional. Relegada a trabalhos informais (predominantemente a
prostituição), acabam compondo um EIR que é facilmente mobilizado para
setores como telemarketing, por exemplo, quando a indústria passa por
períodos de depressão e pretende empregar mão de obra ainda mais barata.
A Teoria da Reprodução Social nos oferece uma nova lente para analisarmos a
opressão à população LGBTQIAP sob uma perspectiva mais totalizante,
compreendendo a precarização de suas existências a partir da sua relação
como grupo com a produção e reprodução dentro do capitalismo. Essa análise
vai para além da ideia de que a vulnerabilização dessas pessoas parte de mero
preconceito ou julgamentos morais. Sob essa perspectiva, podemos falar sobre
uma dupla origem da opressão: uma histórica e uma que se renova a cada dia,
movida pelas necessidades cotidianas da acumulação do capital. Isso nos
permite compreender a relação entre opressão e exploração no modo de
produção capitalista como uma unidade dialética.
[1] Maíra “Mee” Silva é marxista, feminista, lésbica, estudante da Teoria da
Reprodução Social, atuante no movimento social.
[2] ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo
para os 99%: Um Manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
[3] BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social?. Outubro
Revista, n. 32, 4 set. 2019. Disponível em: http://outubrorevista.com.br/wp-
content/uploads/2019/09/04_Bhattacharya.pdf. Acesso em: 27 jun. 2020.
[4] MARX, Karl. O Capital: Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 647.
[5] VOGEL, Lise. Marxism and the Oppression of Women: Toward a Unitary
Theory. Chicago: Haymarket, 2013. p. 150.

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