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A TEIA DOS POVOS

A tarefa de destruir o capitalismo, o racismo e o patriarcado ainda está por se


realizar. Nossa sociedade segue numa violenta crise capitalista, cada dia mais excluindo
os povos da possibilidade de viver, seja pela superexploração, seja porque agora atacam
ainda mais rios, florestas, serras e mares, nos tirando a vida em sua forma natureza. Não
acreditamos mais na possibilidade de solucionar o problema dos povos, combater a miséria,
a desigualdade e as violências por meio das engrenagens do Estado burguês. Vimos as
esquerdas se iludirem com o poder e, em seguida, aliarem-se com os poderosos, com os
inimigos, como o latifúndio. Não tardou para o povo ser vítima da pretensa esquerda e
seus grandes projetos de aliança com os ricos. Estamos falando de povos que perderam
seus rios por hidroelétricas, por mineradoras, por empreendimentos do agronegócio que
usaram toda a água para irrigar seus bolsos. Mas também estamos falando de povos que
estão sofrendo genocídio por arma de fogo nas periferias. Então, tomar o Estado pela
via, pelas regras que os brancos burgueses criaram não nos interessa.
Também não acreditamos que haverá um pacto democrático e popular para
assegurar direitos fundamentais para a classe trabalhadora. Esse pacto é uma cilada.
Uma conciliação de classes com os ricos visa calar a boca da revolta. Essa paz é a
harmonia da produção capitalista, não é a paz dos povos. Essa falsa paz não nos interessa.
Como dizemos, quem muito merenda não janta. Não queremos merendas, migalhas dos
governantes. Onde quer que esse projeto tenha logrado algum êxito inicial, logo depois
foi golpeado pelos seus próprios aliados de cima com humilhação para as esquerdas. Foi
assim no Paraguai, no Equador, no Brasil e na Bolívia – será assim no México também.
Acreditamos que já basta! Que nosso caminho, portanto, é por meio da autonomia e da
construção de territórios gerando poder desde baixo, com a tomada de meios de produção.
É sobre essa grande jornada que queremos falar.
Nossa jornada, nossa grande luta, é contra o racismo, o capitalismo e o
patriarcado. Todos os nossos caminhos, elencados aqui, são para que triunfemos na
derrota da branquitude colonial, das classes dominantes e da subjugação das mulheres
pelos homens. Para isso, permita-nos explicar a diferença entre jornada e caminhada. O
que chamamos de jornada é o devir mais amplo, o grande projeto, o objetivo mais amplo.
As caminhadas são as etapas necessárias para percorrer essa jornada. Há ainda os passos,
que são as tarefas necessárias para lograr êxito em cada caminhada. A jornada é o esforço
de manter em nosso horizonte que tudo que fazemos, fazemos para que triunfem os povos
e se libertem das amarras raciais, do capital e do gênero. Então, isso é o que chamaríamos
de “estratégico” anos atrás. Mas falamos jornada para que as pessoas entendam que,
mesmo quando estamos fazendo um mutirão para dar a manutenção numa agrofloresta,
estamos lutando contra o capitalismo e o faremos de modo a avançarmos no combate
ao racismo e ao machismo. Então, é isso: não se pode perder a dimensão de que há uma
grande luta, uma revolução que trilhamos num ritmo muito próprio de nossos povos.
Quando falamos em caminhada, estamos falando em uma etapa da jornada. Não
é possível guerrear sem armas, como também é impossível viver no chão sem água. Para
que a jornada triunfe, precisaremos construir caminhadas que estabeleçam as estruturas
e os pilares de nossa nova morada, da grande luta que é a própria jornada. Assim, para
que exista a jornada, precisamos produzir muito alimento, vencer a fome, pois, no último
século, a fome tem sido a condição de chantagem neste país para que os povos não enfrentem
seus algozes. Desse modo, construir soberania alimentar é uma caminhada, sem a qual
nossa jornada poderá ficar comprometida; sem a qual todo projeto emancipatório pode
ser assediado pelos poderes para se desmobilizar. Além desta, existem muitas outras
caminhadas para que construamos a jornada. Acreditamos que, para ter êxito em nossa
jornada, será necessário caminhar fazendo alianças, construindo soberanias (alimentar,
energética, pedagógica…), fomentando a liderança das mulheres, comunicando etc. Por
isso, são muitas as caminhadas.
Cada caminhada apruma o rumo dentro da jornada, conta com passos que são
as tarefas a cumprir na curta duração, na pequena temporalidade. Então, vejam, se lhes
falamos que soberania alimentar rompe com a chantagem da fome e nos torna mais altivos
e fortes na luta contra o capitalismo, há que se cumprirem alguns passos, como fazer
um banco de sementes, organizar a produção de existência, criar sistemas agroflorestais,
construir reservas de alimento para a luta etc. São passos dentro da caminhada. É assim
que pensamos, então.
As pessoas de esquerda acham que o grande esforço delas é para superar o
capitalismo, o racismo e o machismo e ficam na internet e nas reuniões de suas organizações
fazendo grandes discursos – muitas vezes, elas falam para si mesmas. Sempre haverá
alguém dizendo que fulano acha que está lutando, mas não está; que beltrano militante só
está colaborando com o sistema; que sicrano se acha revolucionário, mas na verdade é só
gogó, é só de boca. Vejam, nós não lutamos diretamente contra o capitalismo, o racismo
ou o machismo em suas formas abstratas. Da mesma forma, é um erro se esforçar tanto
na jornada, pois ela é muito impalpável, dado o seu arco longevo. Por isso, não é na
jornada que devemos colocar nossos esforços. Nossos inimigos são muito materiais.
Então, acreditamos que o nosso esforço maior deve estar na construção das caminhadas
(intermediárias), realizando os passos da luta, as tarefas, no cotidiano. É isso, em outras
palavras, a ideia de ação comunitária que nossos irmãos e nossas irmãs pretas têm nos
ensinado. É ali, na ação concreta no bairro, na horta comunitária, no trabalho com os
irmãos no cárcere, na escola criada para meninas pretas e meninos pretos se fortalecerem
no enfrentamento ao racismo; é ali que você, de fato, faz o combate racial.
Sem entender isso, é difícil avançar, pois ficaremos na radicalidade de boca. Serão
horas e horas jogadas ao vento, porque as palavras são jogadas ao vento se não há ação. É
isso que colegas marxistas chamam de práxis. Estas palavras jogadas fora nos atrapalham.
Muitas vezes, as pessoas que se apaixonam por essas palavras se frustram ao conhecer
a (ausência de) prática desses faladores e, com isso, acreditam que as ideias são ruins,
falsas. Então, não queremos radicalidade de boca, queremos uma radicalidade poderosa,
vinda da terra, com raízes verdadeiras em nossos povos, com disposição para o combate.
E, para isso, não há dúvida, é preciso organização.

ORGANICIDADE

Observando a experiência histórica dos partidos políticos do Brasil, a Teia dos Povos
viu muitos deles se reivindicarem como revolucionários e afirmarem que conseguiriam
organizar as classes trabalhadoras e os povos em uma grande luta. Bom, nenhum partido
conseguiu tamanha façanha. Vimos, pelo contrário, partidos ditos revolucionários, por
vezes, criticarem os movimentos sociais organizados existentes, não se aproximarem dos
povos originários e quilombolas, se afastarem da realidade dos territórios. Vimos, enfim,
esses partidos não serem capazes de construir boas relações com os povos.
Os projetos revolucionários desses companheiros trocavam o real e histórico (os
movimentos sociais autênticos dos povos) por um ideal de unidade que jamais vimos
acontecer nestas terras. Nós entendemos que as organizações, povos e movimentos sociais
não vão baixar suas bandeiras e se submeter aos ditames de um partido, e nós entendemos
as razões. São muitos anos entre cooptação, traições, violências sutis, racismo de gente
que vestiu as cores das lutas revolucionárias. A sabedoria de nossos povos está, portanto,
correta em manter suas bandeiras levantadas, mesmo com a sedução ininterrupta de
uma unidade capaz de vencer nossos inimigos. Contudo, não podemos ser nós a negar a
necessidade de construir uma unidade. O desafio histórico à nossa frente é muito maior
do que a capacidade de combate atual das organizações políticas dos povos do Brasil.
Apenas a unidade pode nos fazer avançar e impor importantes derrotas a nossos inimigos.
Por tudo isso, a Teia dos Povos se constituiu como uma articulação. A unidade que
queremos não é a da bandeira, da identidade política, mas a da ação. Se um povo indígena
desterritorializado retoma seu território ancestral a partir de uma reivindicação de
sobrevivência em meio às violências do mundo moderno, para nós, eles estão construindo
territórios que podem ser autônomos e capazes de gerar uma vida boa e digna para si.
Então, pensamos que a seu modo eles tomaram um meio de produção, porque a terra é
a vida em si, mas também é o que se convencionou nas esquerdas chamar de meio de
produção. Não importa aqui se eles seguem ou não uma tradição da esquerda europeia,
nos importa a ação. Da mesma forma, se uma organização preta organiza o povo da
periferia para fundar um quilombo e se livrar de toda violência, perseguição e extermínio
que o Estado comete contra eles na cidade, pensamos que estão construindo um território
que tem tudo para ser um espaço de combate ao racismo. Se estão tomando terra, então
estão enfrentando o latifúndio, que é o nosso inimigo mais antigo por aqui. É na ação
concreta que a unidade surge.
Nós nos organizamos de modo a entender como as decisões precisam ser tomadas
e em que rumo podemos avançar. A Teia dos Povos é composta, portanto, de territórios
organizados, por organizações políticas e pessoas desterritorializadas. Os territórios
organizados, chamamos de núcleos de base, e é deles que deve surgir a diretriz de ação,
pois é onde emerge a organização, a direção de luta. Os coletivos, organizações e pessoas
desterritorizalizadas, chamamos de Elos da Teia, pois são conectores que se ligam aos
Núcleos de Base. Os Elos não devem pautar a organização da luta, pois antes precisariam
cumprir a tarefa fundamental de se tornarem territórios organizados, mesmo na cidade.
Entendemos, portanto, que aqueles que organizaram seu território podem dirigir a luta
dos territórios; os demais devem seguir, dialogar e ajudar nessa tarefa. Isso não quer dizer
que pessoas dos Elos não tenham importância no processo organizacional das nossas
lutas. Os Elos são fundamentais e muitas caminhadas (táticas) e passos (tarefas) só serão
cumpridos graças à sua participação firme. Porém, aqui riscamos o chão para dizer que a
frente, a liderança, deve ser dos povos que se autogovernam e não dos intelectuais – estes
que estão sempre sedentos por serem lideranças. De novo: pensamos nós que quem já
organizou seu território é que pode dirigir quem ainda não se organizou. É do território
que emergem as lideranças capazes de organizar nossos povos.
A cooperação é o fundamento dessa aliança entre territórios organizados e
militância desterritorializada. É a partir dessa ideia que surge a organicidade da divisão
que nada mais é do que um coletivo composto de gente de núcleos e elos com uma função
específica. Temos, para fins de exemplo, a divisão de comunicação, que dá passos para
difundir nossos pensamentos, registrar parte de nossas memórias e articular a luta com
povos e movimentos que ainda estão longe de nossa palavra.
Por fim, a organização precisa ir se descentralizando. Ou seja, construindo
regionais que deem conta das reuniões dos territórios que estão mais próximos. Isso
porque entendemos que os conflitos, a rede de apoio, a logística para produção e outras
questões têm sua própria espacialidade. Então, tão logo se multiplique o número de
territórios em uma dada região, há que se constituir uma regional própria da Teia, de
modo a se organizar e fazer suas reflexões, sempre compartilhando-as com as demais,
alinhavando os principais debates, produzindo consensos com outras regionais. A
produção de consenso deve ser uma prioridade absoluta, porque queremos andar juntos,
lutar em uma grande aliança. Então, é fundamental ter muita paciência e cuidado ao
tomar decisões e sem consenso, pois elas podem fazer parar o processo de tecitura de
alianças para a ação.
Aqui, é importante dizer que cada acampamento, assentamento, aldeia, comunidade
e organização territorializada precisa construir suas relações de aliança de modo a ter
Elos da Teia próximos e disponíveis para apoiar as lutas, cumprir tarefas específicas e
fortalecer as lutas pelos territórios. Não há luta que prescinda de ajuda. Ninguém é tão
autossuficiente em sua luta a ponto de não ter que contar com alianças e militância que
se engaje na sua obra, ainda que não a coordene. Por isso, é importante trazer para perto
coletivos agroecológicos, organizações de estudantes, professores universitários, grupos
de pesquisa, associações, institutos de pesquisa e coletivos políticos que possam cumprir
tarefas específicas junto aos povos. É assim que tecemos a teia e ampliamos a nossa
capacidade de ação.
Nós possuímos uma carta de orientação interna que nos ajuda nessa construção.
O pouco que podemos dizer é que as reuniões são convocadas para definir os rumos em
cada caminhada e para distribuir as tarefas (passos) que cada comunidade, organização
e movimento devem cumprir.
Para nós, a organização interna de cada movimento, povo, organização ou território
é um debate que compete às pessoas que ali se organizam. Podemos falar de concepções
e práticas que consideramos virtuosas, porém não queremos, de modo nenhum, pautar
o processo organizativo interno de quem anda conosco. Há que respeitar as diferenças
que são ideológicas, de tradição de luta e, por vezes, de ancestralidade. Assim, um
terreiro possui uma liderança referendada espiritualmente e não por uma assembleia. Há
comunidades em que a linhagem ancestral tem mantido um predomínio nas lideranças.
Outras definiram politicamente que o comando é de mulheres. Tem quem eleja a sua
liderança, tem outros lugares onde são os mais velhos que definem isso. Do mesmo modo,
a forma de divisão das tarefas internas muda de comunidade a comunidade.
Há, contudo, questões que precisamos enfrentar, como o vício de impor
exclusivamente às companheiras as tarefas domésticas, bem como o excesso de falatório
e autoritarismo dos homens nas reuniões e atividades coletivas, por exemplo. Essas
questões estão enraizadas em nossos territórios e são como pragas que herdamos do
colonizador. Há quem defenda atacá-las com herbicidas potentes. Nós temos escolhido a
agroecologia e controlamos uma praga com o cuidado da terra (situação) e o bom consórcio
entre plantas (outras práticas). São essas as ações capazes de ir revitalizando o espaço
outrora infestado. Então, há que transformar radicalmente essas más condutas, aprumar
os homens em seus territórios e organizações, para que tenham, concretamente, atitudes
mais condizentes com a grande luta contra o patriarcado. Contudo, também aqui há que
ter respeito pelas diferentes formas e ritmos com que cada povo, território, comunidade e
organização vai produzindo essa revolução.
Vocês precisam entender isso. É muito sério. Há organizações que já resolveram
suas questões raciais porque se fundaram no debate racial e estão há muitos anos pautando-
os de dentro para fora. Porém, há outras ainda engatinhando nessa questão. Da mesma
forma, há coletivos feministas que possuem excelente acúmulo no debate de gênero, mas
há comunidades, Núcleos de Base e organizações onde ainda impera o machismo. E todos
nós temos que superar todas as violências, mas não a superaremos de uma vez só e nem
por decreto. Como um riacho que se forma junto a uma fonte, cresce e corre para chegar
ao mar, nós não começamos grandes, profundos e caudalosos como vemos na foz. Nós
começamos pequenos, finos e rasos. Mas ali adiante outro rio (outra luta) se incorpora ao
nosso rio (nossa luta) e nos fortalece, e nossas águas ficam mais fundas. Depois de muitos
afluentes irem se incorporando à nossa luta, então, na foz, somos um rio forte, poderoso,
que, por vezes, consegue fazer efeito até nas marés. E nós queremos ser o mar porque o
mar é poderoso, é onde todos os rios (lutas) se encontram. É assim que vamos ganhando
profundidade até sermos mar de luta.
A luta do território pesqueiro nos ensina os respeitos e reverências com o mar e
sua gente. A luta contra o racismo do terreiro nos ensina os respeitos e reverências aos
nkisis, voduns e orixás. A luta dos povos originários em defesa da natureza nos ensina
que não há divisão entre nós humanos e o que chamamos de bioma – e para muitos
povos entre nós, a natureza e os seus encantados. E assim por diante. São pouquíssimas
as organizações que nascem prontas para todos esses aprendizados. Nós teremos que ir
aprendendo na medida em que convivemos e lutamos juntos. Há que ter certa paciência
nessa dimensão de nossa jornada.
Isto significa, por outro lado, que precisamos aprofundar nossos conhecimentos
nas diferenças que existem dentro de nossa Grande Aliança Preta, Indígena e Popular.
A sedução da simplificação pode levar muitas pessoas a quererem colocar a todos nós
numa chave interpretativa de classe. Compreendemos, mas existem razões para não
estarmos falando de classe apenas. Ao longo do século XX, a identidade de classe
carregada pelos partidos de esquerda tentou dar conta das nossas diferenças criando
uma homogeneização enquanto diziam estar produzindo hegemonia na classe. Ou, em
outras palavras, dizendo que estavam no processo de organização e inspiração dos povos,
mas estavam também tomando-os com a mesma régua, com a mesma forma, tentando
encaixá-los em um espaço onde eles não cabiam. Assim, muitas organizações de esquerda
puderam ser racistas e desrespeitosas com a espiritualidade dos povos, por exemplo.
Nós, por outro lado, entendemos que é fundamental ter conhecimento qualitativo sobre
nossas diferenças, pois entendemos que essa grande aliança é heterogênea e não possui
qualquer razão para se tornar uma identidade monolítica. Nós queremos unidade na ação,
na prática, na construção da superação de nossos inimigos, não na estética, na forma de
nos organizar, de falar, de vestir.
Aprofundar o conhecimento sobre nossas diferenças ajudará a nos respeitarmos
mais e a agir melhor. Por exemplo, quando nossas companheiras e companheiros
fundamentados no evangelho conseguem entender a espiritualidade do terreiro e rompem
com os preconceitos construídos historicamente pelo racismo. De igual forma, quando as
matrizes de organicidade dos povos e organizações vão se tornando compreensíveis para
os demais, isso favorece o aprendizado e o respeito de todos para com todos. Enfim, a
tarefa de construir territórios livres precisa de gente consciente e que não se sinta seduzida
a dominar seus companheiros e aliados.
SENTIDO DE TERRA E TERRITÓRIO

General Bayma Denys: O povo de vocês gostaria de informações sobre


como cultivar a TERRA?
Davi Kopenawa: Não. O que eu desejo é a demarcação de nosso
TERRITÓRIO.
Davi Kopenawa, “A queda do céu”, p. 35.

Sendo uma articulação que luta por Terra e Território, é evidente que a Teia dos
Povos busca a democratização das terras de nosso país. Mas, temos que olhar isso de
uma forma mais precisa, para não haver confusões e percepções que não nos têm ajudado
tanto. Quando falávamos em reforma agrária, estávamos demandando do Estado que
concedesse terra para que pudéssemos trabalhar nela e viver do que ela nos dá. Porém,
reconhecemos que o Estado brasileiro é um dos grandes inimigos que temos nesta grande
jornada de luta contra o racismo, o patriarcado e o capitalismo. Então, não tem que
reformar, no sentido de ajustar, de melhorar. O que urge é a democratização do acesso às
terras. E esse debate precisa ser feito de modo a tomar certa distância da noção de terra
como mercadoria, como uma propriedade que pode ser vendida, comprada, ou mesmo
concedida, dada.
A crise estrutural do capitalismo que vivemos agora é profunda em nossa
sociedade. Um bicho acuado e temendo a morte fica mais valente, tentará se defender de
forma mais agressiva. E é isso que estamos vendo com estes saques à Mãe Terra. Eles
precisam destruir mais rapidamente as águas, as matas, os mangues, as serras e tudo que
é vivo, porque, a cada dia que passa, suas taxas de lucro caem, e precisam produzir mais
e vender mais, para fazer a felicidade dos acionistas. Não há como tornar isso sustentável.
O lucro deles é a destruição rápida e veloz de nossos territórios, de nossos biomas. A
resposta para isso está em ocuparmos a terra com formas de uso e geração de riquezas
que respeitem o ciclo da vida da natureza.
Defendemos, assim, que os princípios desta nossa Jornada são a terra e o território.
Para vencermos, nosso fundamento são as águas, as sementes e a soberania alimentar.
Só assim conseguiremos a autonomia. Todos estão interligados. A autonomia se faz com
as coisas simples. Então, temos que aprender e viver como a floresta, ela é um sistema
em que todos os seres vivos temos tudo em abundância. Por isso, temos que construir
os Sistemas Agroflorestais, temos que produzir o nosso alimento, temos que deixar uma
parte para os outros seres que vivem nesse sistema, temos que fazer a oferenda para
nossa mãe terra. É dela que recebemos e é para ela que temos que devolver. Precisamos
construir nossa morada confortável para nosso descanso, do corpo e alma. Desse modo,
nós desenvolvemos projetos para a área de um hectare de Sistemas Agroflorestais para
quem se interessa em seguir nesse passo. Essa área pode ser individual ou coletiva para
ser referência para que todos tomem como exemplo e sigam adiante. Podemos te enviar a
proposta, mas lembre-se, não é cópia, é uma simples ideia, pois os biomas são diferentes
uns dos outros. O Bioma Mata Atlântica encontra-se com o Bioma Amazônico, mas
cada um tem suas singularidades. O Bioma Caatinga tem semelhanças com o Bioma
Cerrado, mas eles também têm suas diferenças. No Bioma Mata Atlântica e no Bioma
Amazônico temos abundância de chuvas, mas, no Bioma Caatinga, há pouca chuva. O
Bioma Cerrado, um dos mais antigos do país, também tem suas diferenças. Cada um
desses Biomas também tem culturas específicas. Por isso, é preciso entender e respeitar
essas diferenças e aprender com cada localidade, com cada cultura da localidade. Então,
nossa ideia não é formular um modelo para ser aplicado em todos os lugares, é uma
referência para que possamos nos basear e seguir a caminhada.
Os povos originários falam Mãe Terra (Pachamama, para os povos andinos) por
muitas razões. Aprendemos que, sendo uma mãe, não devemos dividi-la, dando a cabeça
para um filho, o estômago para outro e um pé para outro. Ela só existe em sua unidade
e em sua unicidade. E é por isso que passamos de uma luta para obter um pedação
de terra para a concepção de lutar para construir um território. Porque uma coisa é
você ter um lote de 10 hectares de terra, outra coisa é você viver em um território com
matas, lajedos, rios, lagos etc. Quando pensamos território, não estamos falando de um
quadrado ou de uma demarcação com determinado aspecto. Estamos falando de um
lugar cheio de símbolos de pertencimento alicerçados na abundância da vida. É o que
chamamos de para além da cerca. Então, não basta que alguém conceda terra como hoje
fazem mediante a distribuição de títulos individuais, que depois serão comprados pelo
agronegócio, para depois essa terra se converter em máquina de destruição de vidas.
O que queremos são territórios, lugares com vida, com comunidade, onde rios, matas,
animais, poços, nascentes, tudo possa ser respeitado e cuidado. Se continuarmos a lutar
a partir das cercas, elas seguirão nos separando, nos dividindo; são elas que permitem
que alguém degrade o rio em um canto e que as demais pessoas que não o fazem sejam
impactadas pela destruição desse mesmo rio em outro lugar.
Com isso, não estamos falando que o Estado que aí está não deva fazer reforma
agrária. Pela própria concepção burguesa de formação de nação, a reforma agrária seria
necessária, e foi realizada em grande parte dos países. Nos EUA, por exemplo, a reforma
agrária foi feita em cima do genocídio dos povos originários. Todos os países mais ricos
do mundo, em algum momento, reformaram a questão fundiária para que houvesse maior
produção. Essas lógicas burguesas não alcançam as elites brasileiras porque aqui não se
formou propriamente uma nação, mas sim uma engenharia de extração de lucros para
remessas para o estrangeiro. Nós não somos dotados de uma elite nacional que lute pela
nação, mas de elites contra seu povo, operando o Estado – de natureza completamente
burguesa – para nos fazer trabalhar ao máximo pelo menor custo e nos tirar toda a terra
que conquistaram. Por isso, afirmamos que a reforma agrária em si sempre será uma pauta
fundamentalmente contrária ao interesse das elites. Por isso, veio o golpe de 1964. E, por
isso, dizemos que os governos progressistas se renderam às elites que os golpearam, ao
não tratarem a questão fundiária com a devida deferência.
Nossa perspectiva não é demandar ao Estado a concessão de lotes de terra. É
fundamental que o próprio povo conquiste as terras porque é da luta que nasce todo
o simbolismo que transformará a terra em território. E, como temos consciência que
muita terra também foi desterritorializada pela devastação do agronegócio, mineração
etc., sabemos que teremos um trabalho de cuidado para torná-la um território novamente.
Estamos falando de transformar pastos em florestas, fazer brotar água onde estava seco,
fazer os rios correrem por onde as represas os proibiram de passar. A luta é grande, mas,
se dermos espaço para a vida, a natureza se encarregará de cumprir boa parte dessa tarefa.
Tratamos o território como diz o poeta: como princípio, fim e meio. Princípio
porque toda nossa ancestralidade estava alicerçada na terra. Somos filhos e filhas de
povos que viviam em comunidades com a conexão espiritual com as plantas, lagos,
marés, etc. Então, seguimos uma tradição histórica no Brasil, que combate o latifúndio
a partir de alianças comunitárias para tomar território. Estamos falando das alianças dos
Tamoios a Canudos, passando pela experiência poderosíssima e longeva de Palmares. O
princípio é, portanto, a terra, a luta por se manter nela ou retornar para ela. O fim, nosso
objetivo final, é o território descolonizado do capitalismo, do racismo e do patriarcado.
Ou seja, a superação dessas formas de dominação violentas a que fomos submetidos até
agora. E o meio para conseguir obter essa vitória está nos próprios territórios, produzindo
alimentos, nos dando autonomia, organizando as pessoas e protegendo a vida, pois, se
não tomarmos os territórios agora, talvez não exista vida para disputar no futuro.
Assim, precisamos entender a importância da Terra e do Território para formar
militância, desde já construindo autonomia, não deixando para buscar a liberdade apenas
depois de triunfarmos sobre o capitalismo. É o trabalho na terra que nos vestirá, construirá
nossas casas e nos dará condições de nos alimentar. É uma tarefa revolucionária, e
sabemos disso porque hoje o trabalhador brasileiro depende da agricultura familiar para
se alimentar. Mais de 70% da comida que chega ao prato do trabalhador é fruto dos nossos
povos. Não é fácil sustentar cidades cada vez maiores e campos cada vez mais atacados
pelo agronegócio. Precisamos entender a importância e valorizar o trabalho no campo,
mesmo quando cumprimos nossos passos (tarefa) nesta caminhada na cidade e longe
da produção alimentar. As pessoas da cidade precisam entender o quanto dependem da
terra. Se hoje estão bebendo água com agrotóxico na cidade, essa é uma luta que só se
vence na terra, no campo. A cidade precisa, portanto, colaborar firmemente.
Autonomia é algo difícil e pesado. É sempre mais fácil culpar alguém pelos nossos
fracassos e insucessos. Então, se nós não seguimos tomando terra e formando territórios,
podemos falar que a culpa é do partido A ou do partido B. Nós falharemos em muitos
momentos de nossa jornada, mas precisaremos aprender e reinventar nossas práticas.
Não estamos falando nada novo, estamos falando do que os povos têm feito ao logo de
séculos neste cativeiro chamado Brasil. Mas, chamamos atenção para como o peso da
autonomia recai sobre nossa capacidade de trabalhar e manter a aliança. O trabalho é
o que irá gerar nossas riquezas, nossa comida, nossas vestimentas e moradias. Aqui,
nos afastamos de uma certa ilusão de que a terra por si só gera riqueza. Pois, de fato, é
possível que a natureza gere riqueza, mas, se não laboramos para incrementar, estamos
apenas tomando e não devolvendo nada a ela. E a riqueza que precisamos para enfrentar
nossos inimigos é muita. Não dá para contar com o acaso. Por isso, há que trabalhar. E há
ainda que trabalhar para manter a aliança. Com os olhos na jornada e com as mãos nas
pequenas tarefas (passos) é possível não nos afastarmos dos conflitos de ordem ideológica
e de concepções sobre posturas políticas. Só há vitória na grande aliança. É por isso que
precisamos dar atenção especial às caminhadas.
AUTONOMIA, CAMINHADAS E PASSOS

Nossos povos, organizações, movimentos, territórios só podem se manter unidos


na prática. Apenas se estiverem realizando a construção de um outro mundo, será possível
manter a aliança. Todo palavrório a mais sem a construção real é perdição, desorientação.
É por esta razão que as Caminhadas são fundamentais, pois elas articulam os passos
(tarefas, ações práticas) com a jornada (o horizonte estratégico do combate ao racismo,
capitalismo e ao patriarcado).
Não existe um número específico de Caminhadas e tampouco queremos aqui
esgotar a imaginação e a criatividade revolucionária das companheiras e dos companheiros.
Apenas compartilhamos o que nossa capacidade inventiva e interpretativa foi capaz
de fazer até o momento. Para nós, estas são as caminhadas fundamentais para pôr em
movimento a marcha que derrotará nossos inimigos:
1. A autonomia e as Soberanias
2. A Política de Cuidado com os Nossos
3. A Rede e a Frente de Mulheres
4. A Construção da Aliança
5. A Ancestralidade
6. A Luta contra o Imperialismo
Apesar dos números, aí não existe um etapismo. Cada território e cada Elo da
Teia deverá interpretar sua própria realidade para propor suas urgências de atuação.
Haverá territórios onde a questão do machismo urge para poder melhorar as condições
de organização, então será preciso dar foco nesse debate. Em outro lugar, pode ser que
falte apoio para desenvolver sua autonomia, então é preciso lançar luz sobre uma boa
política de alianças na região. O importante é perceber como a construção de nossa
grande Jornada passa necessariamente por muitos Caminhos. Falaremos sobre eles ao
longo dos próximos capítulos.
Nós temos falado muito de autonomia. Entendemos que houve uma relação não
sadia entre muitos movimentos, territórios e o Estado. Quase sempre, essa relação foi
operacionalizada por um partido e seus interesses em concordância com os interesses
dos poderosos. Então, quando falamos em autonomia, estamos dizendo que é preciso
diminuir nossas demandas ao Estado, aos políticos e às classes dominantes. Isto não quer
dizer nos afastarmos completamente de dialogar com este Estado violento que aí está. A
luta real, a vida real, demanda que nós conversemos com o Estado e com os políticos,
mas sempre lembrando que este diálogo é com luta e enfrentamento frente ao Estado.
Há que retornar à boa prática de negociar com o facão na mesa e com as foices batendo
ao fundo.
Contudo, quanto menos precisarmos do Estado, mais autonomia para gerir nossa
vida e nosso território teremos. Nós sabemos que, quando um grupo sem-teto ocupa um
prédio ou um terreno, a primeira coisa que o Estado faz é impedir o acesso à água e à
energia. E ter água é condição para manter uma ocupação sem-teto e garantir moradia.
Eles nos atacam em nossas dificuldades. Quantas ocupações de terra vimos serem
derrotadas porque não havia alimento suficiente para aguentar os despejos ou o tempo de
produzir naquela terra? Então, autonomia é sobre isso.
Quando falamos em territórios autônomos, não estamos falando que aquele
espaço produz 100% dos bens necessários para manter a vida ali. Ainda que experiências
assim existam, em um mundo cada dia mais dinâmico e conectado, entendemos que
autonomia é ter as condições de acessar bens provenientes do trabalho realizado em outros
territórios, mas a partir de uma rede de atuação conjunta. Para consolidar essa autonomia,
muitas soberanias serão necessárias. Mesmo que não a tenhamos por completo, ou seja,
ainda que dependamos aqui e acolá do Estado e do mercado, precisamos ir avançando e
conquistando essas soberanias por meio de nosso trabalho coletivo.
Há um último aspecto que nos interessa sobre a autonomia que é o orgulho de ser
dono de sua própria trajetória de vida. Durante os governos ditos progressistas, a pauta
de aquisição de direitos construiu o que deveria ser uma agenda positiva de um Estado
inclusivo. O conjunto de políticas públicas que buscou dar ao povo mais pobre acesso
a bens como energia elétrica, alimentação, universidade, crédito etc. fez muitos de nós
acreditar que as conquistas de direitos seguiriam avançando, a ponto de transformar esse
Estado em algo que não fosse racista, excludente. O que essa crença ignorou é que a gênese
do próprio Estado brasileiro é o escravismo. Mesmo após as (fajutas) independência e
abolição, cada elemento fundamental da República seguiu ancorado na violência contra
os povos. E isso, enquanto uma estrutura, não se reforma. É possível reformar portas,
uma parede, o telhado, um problema de encanamento... Mas, e a estrutura de uma casa?
Não estamos falando de uma fratura, mas de uma estrutura que nos direciona para o
caminho errado, que opera contra nossa libertação.
Com isso, estamos dizendo que ter autonomia é entender que o Estado é racista,
patriarcal e é burguês. Qualquer processo de inclusão não transformará seu fundamento,
mas certamente afastará o povo de sua real dignidade, que se expressa na face erguida de
quem não precisa pedir nada a ninguém. Essa falsa inclusão também afasta uma parcela
do povo de uma reflexão verdadeiramente crítica e rebelde. Sim, as políticas públicas
cativam os de baixo em um conformismo mediante a dependência do Estado – diríamos
mais, a uma dependência de governos ditos progressistas. Como nossos mais velhos falam,
quem muito merenda não almoça. Eles podem nos dar políticas inclusivas (merenda), mas
não nos darão sustância (almoço). E essa dependência é um dos maiores entraves nossos
para a luta rebelde atualmente. A cada prenúncio de um governo progressista ou de uma
novidade eleitoral da esquerda, renovam-se esperanças que não tardam a se mostrar
ilusões que nos afastam das conquistas concretas no campo da terra e do território.
A outra face dessa moeda é o atrelamento político das organizações de esquerda a
partidos associados aos governos progressistas. A chantagem política ganha outros ares
aqui, pois a camaradagem dos partidos eventualmente apoia o movimento social e a
luta política, mas só enquanto nossas demandas não contrariam os interesses dos seus
verdadeiros aliados: latifúndios e bancos. Então, para termos condições econômicas de
bancar nossa própria luta, precisamos ir nos desamarrando, nos afastando desse circuito
nefasto de apoio e cooptação.
A partir daqui, vamos apresentar algumas soberanias que julgamos fundamentais
para nossa grande luta. Tratam-se de Caminhadas rumo à autonomia.
CONSTRUINDO A ALIANÇA PRETA, INDÍGENA E
POPULAR

Nosso caminho é longevo nestas terras. Temos dito que o que estamos fazendo
agora, com a Teia dos Povos, não é algo novo. De fato, se olharmos com atenção à história,
a aliança de povos para lutar contra a colonização é uma regra que podemos ver, pelo
menos, de Palmares até Canudos. Nosso sentido de articulação e organização é, portanto,
mais ligado à concepção de aliança de povos do que à ideia de um partido de indivíduos.
Vamos avançar primeiro nessa reflexão para poder entender o que já aprendemos do
processo de construção dessa aliança.
Até o surgimento do movimento anarquista em finais do século XIX no Brasil,
influenciado pela migração europeia que vinha substituir o trabalho preto, as grandes
lutas nesse imenso continente que chamamos de país eram lutas de povos e de alianças
entre povos. Houve um embrião dessa luta no surgimento do PCB, na década de 1920. Os
comunistas tentaram atrair (Caboclo) Marcelino Tupinambá para a luta revolucionária, da
mesma forma que tentaram com o Capitão Virgulino Ferreira (o Lampião). Ou seja, até
esse início de movimento comunista no país, atrair lideranças de povos e de organizações
parecia um caminho potencial para o partido e seu projeto de revolução. Contudo, o que
vemos no século XX, como regra mais geral, é a noção do partido como a organização
que produziria a grande luta. Essa organização se constitui por uma soma de indivíduos
conscientes assim agrupados em uma unidade política. A partir, e sob orientação do
partido, outras unidades menores seriam construídas, como sindicatos, associações de
bairro e etc. Não há qualquer erro nesse caminho. Acreditamos fundamentalmente que,
em muitos lugares, as conquistas alcançadas pelas lutas revolucionárias do século XX
informam o caráter vitorioso desse projeto. Contudo, nós hoje nos perguntamos, olhando
para a história do Brasil, se nossos insucessos devem-se apenas aos erros cometidos pelas
direções dos partidos ao interpretar o país e seu povo, ou também aos erros de condução
da luta. Acreditamos que esse questionamento é um peso muito grande para as costas de
uma brava gente que deu sua vida em grandes lutas aqui travadas. Então, pensamos que
é preciso compreender melhor alguns aspectos relevantes de nossa formação histórica e
da relação dos povos com as lutas.
Não é nossa pretensão fazer um grande percurso pela história do Brasil, apenas
ativar algumas reminiscências. Vamos começar por Palmares. Em nossa história, essa é,
talvez, a experiência mais conhecida de território que foi criado autônomo e rebelde, além
de uma das mais longevas. Palmares durou mais de um século. Em realidade, a
experiência palmarina deveria ter mais estatura na reflexão da esquerda, pois
enfrentou as potências mundiais de seu tempo (Portugal e Holanda) e as venceu muitas
vezes. Palmares ainda durou mais do que experiências revolucionárias como a União
Soviética. Mas, o que era Palmares, afinal? Era uma federação de quilombos, tais como
Subupira, Dambrabanga, Macaco, Osengo, dentre outros. Ali, juntavam-se, aos pretos
fugidos da colonização, indígenas com quem compartilhavam saberes e com os quais
teciam alianças e casamentos. Essa federação era heterogênea e, reunidos ali, segundo
relatos, encontravam-se também judeus e muçulmanos. Ou seja, ali estavam os perseguidos
pela Igreja, pelo Estado e pelo latifúndio. E, claro, o comando era preto, ou seja, de quem
representava as maiorias.
Palmares, então, articulava uma aliança de comunidades a uma adesão de indivíduos
perseguidos, mas a partir do território. Ou seja, a adesão ao movimento não dependia
da adesão à causa de liberdade dos povos de origem Banto, responsáveis primeiros por
erguerem aquela grande luta. Não se tratou, portanto, da lógica da congregação em torno
de uma ideologia (liberdade); a adesão era a partir da terra. E mesmo os aliados externos,
as pessoas que comercializavam, indo e voltando dos territórios, a relação se dava com
quem ajudava na teritorialização. Em certo sentido, são esses os princípios de nosso
projeto: Terra e Território. Ou seja, aqui pensamos em organicidades centradas na terra
e por meio dela.
Em todo o processo colonial, muitas foram as experiências de organizar resistência
por meio de federações ou alianças entre comunidades. Falamos aqui, sobretudo, de
experiências indígenas. Podemos citar a Confederação dos Tamoios, ainda no primeiro
século da invasão, ou a aliança dos Guarani das Missões, no que foi chamado de Guerras
Guaraníticas no terceiro século após a invasão. Desta última, há um relato que tem muito
para nos ensinar e onde podemos conhecer as palavras de Sepé Tiaraju, liderança indígena
da Missão de São Miguel. Letrados pelos jesuítas, os Guarani começaram uma grande
guerra contra a entrega de suas terras para os portugueses, que se intensificou durante
o processo de perseguição pombalina – o poder colonial invejava a fartura e riqueza
daquelas comunidades indígenas. Quando Sepé Tiaraju foi morto, em 1753, uma carta
endereçada ao governador de Buenos Aires foi encontrada e nela pode-se ler:

E com tudo isso nos dizeis que deixemos as nossas terras, nossos ervais, nossas fazendas,
enfim todo o nosso território. Essa ordem não é de Deus, senão do demônio; nosso Deys
sempre anda pelo caminho de Deus e não do demônio. (…) E assim não o cremos nunca,
quando dizei vós – ‘índios, dai vossas terras e o quanto tendes aos portugueses’. Não o
cremos nunca e não há de ser assim. Só se por acaso quiserem comprá-las com o sangue: nós,
todos os índios, as havemos de comprar [com nosso sangue]. (PREZIA, Benedito. História
da Resistência Indígena: 500 anos de luta. São Paulo: Expressão Popular, 2017).

É preciso, portanto, demonstrar como a defesa do território como lugar onde se


gera vida e riqueza é um tema muito caro à gênese do combate racial realizado pela
colonização. A resistência, por sua parte, não dissociava o povo e o território, daí que, se
há que perder o território para uma força invasora, pouco vale sua própria vida. E é isso
que ele, Sepé Tiaraju, explica: “Vinte Aldeias nos juntamos para sair-lhes ao encontro e
com muita alegria nos entregaremos [pela morte], antes de entregar nossas terras”.
Essas vinte aldeias Guarani foram uma conquista de um trabalho de organização
do povo feito por gente da estatura de Sepé Tiaraju. Eles enviavam cartas para serem lidas
nas outras comunidades falando dos planos perversos dos portugueses e da necessidade
de fazer uma grande luta em defesa do território. Vejam, uma vez mais, que a aliança
se dá por comunidades, não pela adesão de indivíduos somados. As últimas palavras de
Sepé têm grande valor para nós. Pois a terra se defende com sangue, com a disposição
bravia de não aceitar viver sem seu território, sem seu lugar de vida, de memória, de
ancestralidade. São essas as duas lições que ficam, por ora, desse grande guerreiro
Guarani. A terceira lição é sobre a traição, mas falaremos à frente.
Então, assim como houve em Palmares, os Guarani das Missões construíram
uma federação de comunidades. É sobre isso que estamos falando na Teia dos Povos,
sobre construir uma aliança de povos, organizações e territórios, mas que sempre se
territorialize para enfrentar melhor a violência e os desafios postos para a nossa grande
luta. Outro aspecto da organização palmarina é a conexão preta e indígena. Essa é outra
dimensão importante, uma aliança entre os diferentes culturalmente, mas igualmente
alvos de perseguição colonial. Em 1765, há relato de portugueses que informam que os
Xavante capturaram escravizados perto de Pilar em Goiás, os levaram às suas aldeias e
“lhes fizeram muitos afagos e os casaram com as gentias, garantindo que todo preto que
quisesse passar para eles acharia nas suas aldeias o mesmo tratamento” (PREZIA, 2017).
Isso revoltou o poder colonial, que buscou, de todas as maneiras, retaliar os Xavante para
desestimular a fuga de africanos em direção às suas aldeias.
Os Tupinambás na Bahia possuem uma memória muito viva a esse respeito.
Informam que recebiam, alimentavam e protegiam os pretos escravizados em suas terras
e que assim construíram uma aliança espiritual, histórica, inquebrantável. Todo processo
rebelde popular do século XIX no Brasil teve essa dimensão. Se falamos da Cabanagem
no Pará, estamos falando de Sateré-Mawés, Muras, Mundurukus e outros povos indígenas
se aliando a pretos, cafuzos, arrendatários de terra e brancos pobres para lutar contra o
poder do latifúndio. As histórias que nos chegam da década de 1830 nos revelam que, no
Norte do país, os latifundiários foram colocados no tronco para receber a violência que
impunham aos pretos e indígenas.
Cinco anos depois, na Balaiada no Maranhão, vamos ver a aliança de povos se
repetir. Dessa vez, o povo Tabajara viajou do Ceará para se juntar com Preto Cosme
(quilombola) e os vaqueiros. É um ajuntamento de povo para parar a violência. E isso
vai se repetindo até Canudos na Bahia e o Contestado no Paraná e Santa Catarina. Em
Canudos, uma cidade rebelde foi erguida contra a República. A aliança contou com
os Kiriri de Mirandela e outros povos que fortaleceram a vida e a resistência daquele
pequeno oásis preto e indígena no sertão baiano.
Nós vamos ver aspectos dessas alianças nas lutas encabeçadas pelas elites também.
Seja na Independência da Bahia, em que a formação “tropa e povo” organizava, de um
lado, as milícias formais do Estado e, de outro, povos organizados – ambos atuavam
lado a lado na batalha. Essa história é tão forte que, no imaginário popular, os heróis da
independência da Bahia são os caboclos, ou seja, os indígenas. Nessa grande batalha, uma
vez mais, pretos e indígenas se organizaram para expulsar os portugueses. O problema aqui
reside no fato de a liderança dessa luta serem os brancos e, o que é pior, os latifundiários.
Então, a traição é o traço principal do fim daquele conflito: pretos que tiveram promessa
de liberdade não a obtiveram, e os indígenas não tiveram seus territórios respeitados.
Um pouco mais tarde, na luta por separação do Rio Grande do Sul, conhecida
por Guerra dos Farrapos, outra traição ficou muito conhecida. Os pretos escravizados
adentraram a luta contra o Império do Brasil e foram decisivos em importantes batalhas
para os farrapos. Contudo, no final da Guerra, latifundiários gaúchos e o Império
buscavam um acordo e, para eles, não era aceitável que pretos livres e instruídos em
guerra andassem pelo país. O acordo de paz entre os brancos resultou no Massacre de
Porongos, em que os Lanceiros Negros foram levados desarmados a uma localidade para
serem assassinados pelo Exército do Brasil.
Os exemplos de traição são abundantes em nossa história. O caso de Sepé Tiaraju
é emblemático. Seu território foi negociado e passado da Espanha para Portugal, mesmo
tendo defendido interesses da coroa espanhola quando esta lhe pediu ajuda. Ou seja, a
liderança dos brancos e o poder concentrado em suas mãos são desgraças em nossa
história. Então, queremos chamar atenção aqui para os riscos de ter as elites brancas
como frente, liderança em uma aliança como essa que propomos. E isso também vale para
intelectuais progressistas, revolucionários etc. No seio de nossa história, há um marcador
que nos faz ver bem as traições. O racismo dos brancos atrapalha a unidade dos povos.
Avancemos na história, vamos para a anistia à Ditadura Empresarial-Militar de
1964. Os presos políticos viviam nos mesmos presídios que presos comuns. Dividiram
celas, pátio etc. Enquanto os ditos presos políticos eram majoritariamente brancos, os
presos comuns eram pretos. Foram violentados pela mesma polícia ilegal que torturava,
sequestrava e assassinava. No entanto, os crimes contra a ordem foram considerados
passíveis de anistia. Já os crimes contra o patrimônio – e mesmo os casos em que se
roubou para sobreviver, por exemplo – foram deixados de fora. Os brancos saíram, e os
pretos permaneceram presos. Os libertos fizeram campanha de anistia para os presos
pretos? Eles construíram um movimento contra a situação do cárcere? Estamos falando,
assim, daquilo que já é um de nossos traços históricos: construir essas hierarquizações
raciais que acabam em uma traição. Por isso, é fundamental que a Aliança Preta, Indígena
e Popular não se permita ser apenas trampolim político para os intelectuais brancos
de sempre. Estamos falando claro: são os povos territorializados e racializados que
devem ser a frente, a voz, o comando dessa aliança. Como em Palmares, a aliança era
heterogênea, mas a liderança era dos Pretos (maioria), não de um branco pobre ou judeu
perseguido que vivia lá.
Esse é um aspecto fundamental e visa não apenas dar espaço de destaque para
os povos da terra, mas nos alerta para percebermos que há um acúmulo de experiências
alicerçadas em tradições, reflexões e sabedorias Pretas e Indígenas que precisam ser mais
escutadas no processo revolucionário. Chega de nos usar como bucha de canhão.
Retornemos, pois, à reflexão inicial. Há um projeto que captura indivíduos para
um grupamento organizado a partir de uma concepção ideológica. Há outra perspectiva
que busca se organizar desde as comunidades, povos e territórios. Ou seja, em vez de
ser uma soma de indivíduos conscientes, estamos falando de uma soma de comunidades
em luta. Não há dúvida de que a soma de indivíduos conscientes propicia uma seleção
que não contenha tantas diferenças ideológicas na organização e, sobretudo, dificulte ou
impeça indivíduos reacionários de participar. Já uma organicidade a partir dos territórios
pode conter muitas pessoas dentro de uma comunidade que não aceita a caminhada
revolucionária. Isso é normal. Nas revoluções atuais dos zapatistas no México, do PKK
no Curdistão e mesmo do levante Minga, que reúne indígenas, pretos e campesinos na
Colômbia, sempre haverá pessoas nas comunidades que não apoiam aquela movimentação
rebelde. Contudo, a decisão comunitária de assumir a luta revolucionária é acompanhada.
A construção da Aliança Preta, Indígena e Popular deve compreender essas
diferenças. Nosso caminho é a partir das comunidades, organizações, povos e territórios.
Entretanto, sabemos que, nesta caminhada, muita gente tem nos buscado para poder
ajudar, colaborar, militar conosco e, inclusive, morar em nossos territórios. Assim, há
que avançar ainda mais na organicidade para que as maiorias desorganizadas,
fragmentadas, isoladas e anônimas caibam na luta por Terra e Território. Nesse
sentido, é preciso focalizar a centralidade dos passos (tarefas) ligados à tomada de
terra e de produção em terras que já temos, porque essas são formas concretas de nos
aproximarmos, sobretudo, dos sujeitos mais vulneráveis nas grandes cidades: constituir
uma nova vida com terra, moradia e produção de riqueza pelo trabalho, que é muito
melhor que renda. Desse modo, enquanto vamos consolidando a aliança com os povos, há
que cuidar para integrar as pessoas desterritorializadas e sem organização que, por força
do capital, estão desabrigadas. Então, temos um duplo caminho.
Sem perder a crítica sobre uma organização que pauta ideologicamente sua
organicidade pela soma de indivíduos, nós precisamos dar destino aos errantes,
desterritorializados. Se essas pessoas não querem ou não precisam ocupar uma terra
e produzir um território a partir dali, por suas condições de vida individuais, então
é fundamental que essas pessoas se vinculem ao apoio organizado e orgânico às
comunidades, organizações, povos e territórios existentes. A partir dessa relação é
possível que alguns se tornem verdadeiramente orgânicos da coletividade para a qual
foram apenas para apoiar. Outros podem seguir como apoiadores, gente que constrói
a Teia à distância. Mas, é importante que as pessoas se conectem, se associem, criem
vínculos com organizações de base, com povos e territórios. O voluntarismo estimulado
pelas redes sociais é belo na imagem, mas possui contradições terríveis, fazendo nações
colonizadas caírem nas armadilhas do imperialismo, em face das guerras híbridas atuais
e da nossa falta de horizonte estratégico. Outra característica do voluntarismo é o fato
concreto de que ele não constitui um compromisso, um acordo de esforço pela causa.
E isso é terrível para as comunidades, pois não podem contar com o apoio em horas
decisivas, justo porque a pessoa não possui real fidelidade àquela causa.
No momento em que a palavra que emerge de nossa experiência de unidade
avança para regiões muito diferentes daquela onde surgiu, é fundamental que as pessoas
que chegam sempre pensem como construir uma rede desde o local em que estão.
Estamos orientando que essas pessoas se perguntem quais são as organizações políticas
com as quais podem se interessar em fazer uma luta por Terra e Território, quais são
as comunidades organizadas e preocupadas com o bioma, que coletivos e organizações
estão fazendo um verdadeiro trabalho comunitário, trabalho de base. E, a partir das
respostas a essas questões, dizemos que essas pessoas comecem um processo de costura
para formar uma pequena rede, uma pequena Teia, desde sua própria localidade. Essa
rede não precisa necessariamente se articular com a nossa Teia, tampouco a qualquer
outra articulação. O valor do encontro entre movimentos existe por si. Quanto mais
experiências compartilhadas e ações organizadas em conjunto, maiores as condições de
superação dos desafios nos territórios.
A nossa esperança é que, desses encontros, surja uma novidade histórica poderosa
que consiga desafiar o latifúndio e conquistar importantes vitórias no seio dos povos do
Brasil. Apesar de nos mantermos desconfiados do que se concebeu como vanguarda nos
partidos marxistas, acreditamos que redes de movimentos e territórios formarão uma
geração de lideranças de base com muito em comum, capazes de congregar e organizar
lutas nunca antes vistas neste país. Isto não é algo que se projete. É algo que se sonhe e
se cultive todos os dias.
A partir daqui vamos abordar os principais atributos de uma boa aliança a partir
da nossa experiência concreta e indicar alguns caminhos para a confecção dessa aliança
entre povos.
Do simples para o complexo, das similitudes às diferenças. Uma aliança não deve
começar pelas divergências entre as coletividades envolvidas. É preciso, portanto, começar
das dimensões mais singelas e banais da construção da amizade entre os povos. Então, se
já se sabe que uma determinada organização possui divergência ideológica com a outra,
mas habitam o curso do mesmo rio degradado, há que começar por este ponto. A falta
de água, devido ao assoreamento deste rio, é o que há de comum às duas organizações.
Atividades como a recuperação de áreas degradadas com plantios de mudas de espécies
nativas e SAF’s possuem um componente ideológico muito leve e não atrapalharão o
processo de diálogo entre organizações e/ou comunidades. Então, quando as diferenças
forem evidentes, é preciso escolher um passo (uma tarefa) que pode ser comum a ambos.
Há que evitar, portanto, a discórdia em matéria de política. Se uma organização
não vota, e a outra é ligada a um partido, esse é um tema que deve ser evitado na relação
de construção da aliança. Nós estamos muito atrasados na luta contra nossos inimigos
para que isso seja ponto de conflito. Devemos nos dar ao direito à desavença e à discórdia
apenas quando tivermos um grande triunfo sobre o latifúndio, o machismo e o racismo.
Antes disso, devemos manter o mantra malê: paz entre nós, guerra aos nossos senhores.
Então, sem criar espaço de conflito diante das posturas distintas quanto à eleição,
precisamos pensar qual passo (tarefa) podemos realizar nessa diferença. Fazer uma horta
periurbana para uma comunidade em situação de fome é possível? Arrecadar fundos
coletivamente para construir um viveiro de mudas num assentamento é possível? Ou seja,
realizem tarefas concretas para que a amizade surja.
Permita-nos uma anedota. Um anarquista leitor de Bakunin e um comunista leitor
de Lenin estavam na roça e tinham que levar bombonas cheias de biofertilizantes para um
SAF. Teriam de carregar mais de 100 kg por viagem, com um carrinho de mão e ao longo
de trecho de quase um quilômetro. Um carregava um trecho, e o outro segurava para
que a bombona não virasse. Depois revezavam. Bom, caso começassem uma discussão
sobre o Estado ou sobre a participação em eleições, o dissenso poderia atrapalhar a
tarefa. Sem realizá-la, poderiam ter problema na geração de riqueza naquele meio de
produção (terra). Então, ambos concordaram que, durante o percurso, não falariam de
suas discordâncias até que tivessem completado o intento. Mas, entre um papo e outro, as
diferenças apareciam. No meio de uma das viagens, a roda do carrinho de mão quebrou,
e quase todo o biofertilizante foi ao chão não fosse a atuação conjunta dos companheiros,
que seguraram juntos a bombona. Eles tiveram que seguir o resto do caminho carregando
o material pesado em suas próprias mãos. E o peso atrapalhava um pouco a falação,
que ia diminuindo conforme o cansaço crescia. Entre quedas, escorregões, cansaços,
resenhas – de que um ou outro não aguentou o peso –, ao final do trabalho, eles tinham
mais para contar aos demais sobre seus feitos do que sobre suas diferenças ideológicas.
E, quando o alimento chegar e der força e vida para as pessoas que têm fome, então a
unidade gerada pelo orgulho do trabalho coletivo será maior do que as diferenças entre
as organizações.
Pensemos num exemplo hipotético. Precisamos de 120 famílias para retomar um
latifúndio que não produz, que especula com aquela terra. Uma organização ligada a um
partido que disputa eleições como projeto estratégico reúne apenas 50 famílias. Porém, ali
bem próximo daquela terra, há um bairro cuja Associação de Moradores tem uma política
crítica aos partidos políticos. Essa organização conseguiria reunir mais 40 famílias para
apoiar a mobilização. Por fim, há um povo indígena cujo território está próximo a essa
fazenda, mas seu território já é insuficiente, pois a população cresceu sem novas terras e
há mais 30 famílias dispostas para a mobilização. Os indígenas estão pouco preocupados
com esses embates eleitorais. As três coletividades podem se dar o luxo de debater sobre
apoiar eleição ou usar a terra como aspecto mobilizador da eleição se, e somente se,
venceram o latifundiário que é quem hoje domina aquela terra. Uma vez vitoriosos frente
ao latifúndio, podem optar por criar núcleos diferentes de moradia, manter relações
apenas diplomáticas uns com os outros e seguirem na divergência. Contudo, frente ao
latifundiário, a prerrogativa é de unidade para vencer a luta. A nossa experiência nos tem
ensinado que, se vencermos, muitas de nossas diferenças já estarão harmonizadas por
meio da prática.
E, aqui, chegamos a uma parte muito importante do processo de confecção de
alianças. Primeiro, recordemos as três temporalidades da luta: a jornada, a caminhada e
os passos (ou tarefas). A jornada é o tempo longo, a pauta mais absoluta, porém genérica:
lutar contra o latifúndio, contra o racismo, o capitalismo e o machismo. Os acordos,
portanto, para o início da aliança se dão a partir desses termos. Se há consenso nessa luta,
então há uma possibilidade grande de sermos companheiros e companheiras. Os passos
são tarefas muito materializáveis, que possuem algum conteúdo ideológico, porém não ao
ponto de despertar tantas diferenças. Ou seja, há alguém contra a abertura de uma escola
para educar nosso povo? Há alguém contra recuperar as nascentes e plantar nas margens
do rio? Existe, no campo de luta da terra, quem discorde de capturarmos a água da
chuva e criarmos uma rede de sementes? Ou da necessidade de fazer uma ocupação para
garantir moradia? Ou fazer uma horta periurbana para alimentar os famintos da cidade?
Então, mesmo com divergências de caminhos ideológicos e de natureza organizacional,
observe bem, é possível cumprir algumas dessas tarefas sem despertar nossas desavenças.
Nosso maior problema reside na temporalidade dos caminhos, essa temporalidade dos
projetos, da perspectiva de orientação da luta. E é aqui que devemos evitar lançar foco.
Pois certamente há organizações que creem que desenvolver soberania pedagógica num
território não é uma questão urgente. Outros não veem por que gastar recursos produzindo
energia. Outros pensam que manifestações de rua são mais importantes do que retomar a
terra, na conjuntura em que estamos. É aqui que mora o perigo da discórdia.
Os caminhos são os projetos, os programas das organizações, e aí, de fato, cada
uma tem sua própria forma de pensar, de se organizar. E é por isso que devemos seguir os
caminhos sem amarras concretas, do ponto de vista metodológico. Sobretudo, devemos
respeitar os diferentes ritmos de luta nesse aspecto. Não é preciso brigar com quem não
quer meia com autonomia. Por enquanto, se estão no caminho de recuperar uma terra ou
de salvar um rio, ou mesmo de ocupar um prédio por moradia, essas são as prioridades.
Devemos nos unir a essas lutas respeitando que as companheiras e os companheiros
ainda não estão falando em autonomia. Se algum movimento pauta e reivindica o Estado
como sua principal forma de luta, exigindo política pública e outras demandas mais, não
temos que ter qualquer problema com isso se são irmãos e irmãs na hora de defender um
território, organizar manifestação contra o extermínio do povo preto etc. Mesmo que nós
vejamos contradições aí, não nos cabe ficar apontando ou endossando-as. E aqui vale
uma máxima popular: a cavalo dado não se olham os dentes. Ou seja, não devemos ser
nós a cobrar a melhor postura, a reflexão mais lúcida ou a combatividade mais radical
de quem está somando ao nosso lado em tantas lutas. Nesse caso, basta deixar claro que
nosso caminho é pela autonomia e que não se quer demandar de quem nos mata.
Por isso, dizemos que entender as nossas diferenças é importantíssimo na
caminhada. Essas diferenças são de muitas ordens, desde a cultural, a regional até a
ideológica. Nós precisamos ser antropólogos profundos de nosso próprio povo e
compreender essas diferenças para que elas não virem barreiras, mas oportunidades.
Ao falar “antropólogos profundos” queremos dizer que não se trata da antropologia
universitária e sua etnografia para brancos lerem o mundo, mas de uma antropologia feita
pelo próprio povo para compreender suas irmãs e seus irmãos desde baixo.
Por fim, há um aspecto também relevante. É preciso pensar em espaços específicos
de atuação política. Há territórios que, pela questão geracional ou pela tradição de luta, não
conseguem ajudar com pessoas na ocupação de novas terras. Tudo bem, não precisamos
atribuir a isso nenhum significado negativo. Esse território pode ser responsável por parte
da produção de alimentos para aqueles que vão ocupar. Há coletivos agroecológicos com
um perfil muito classe média, mas que detêm boa tecnologia agroecológica. Certamente,
talvez não tenham despertado ainda para qualquer conversa sobre autodefesa, mas
podem ser fundamentais para manter o povo numa terra degradada sem água ao
recuperar nascentes e plantar água. Há grupos feministas urbanos que, se chamados
para a produção de alimentos, seriam pouco potentes, mas possuem organização para
manifestações populares e difusão do pensamento absurdamente poderosas. Outro
exemplo para finalizar: um grupo de pesquisa universitário não pode ser chamado como
responsável pela autodefesa de um território, mas o território demanda ciência, técnica
e tecnologia para avançar na defesa do povo e do programa. Então, devemos chamar o
grupo de pesquisa às suas responsabilidades. Desse modo, devemos demandar de cada
um de acordo com suas capacidades.
Essas diferenças são nossa riqueza, são o maior patrimônio da Aliança Preta, Indígena
e Popular. Essas diferenças são tão abundantes que já nos deram presentes impagáveis. A
rede de sementes crioulas é fruto dessas diferenças. Alguns povos guardaram apenas 20
variedades de sementes, outros cuidaram apenas de 12, mas diferentes das 20 primeiras
mencionadas. Fomos construindo um acervo biodiverso graças às diferentes histórias
com o bioma e com as produções distintas. Uns pescam, outros plantam mandioca, outros
produzem roupas, já outros produzem livros. Não vê a semente da autonomia por meio
das trocas? Essas diferenças nos dão um repertório poderosíssimo de resistência também.
Uns estão muito avançados no debate sobre o racismo e nos ensinam, outras conhecem
as realidades mais profundas e cruéis da perseguição às trans e nos ensinam, já outras
aprenderam a cuidar do corpo a partir da biodiversidade e nos ensinam. As trocas em
meio a essa diversidade podem suprir nossas demandas e curar nossas feridas, sejam as
que carregamos em nossos corpos, em nossas relações ou em nossos territórios. Desse
modo, a cada um de acordo com suas necessidades.
POR FIM, ROMPER COM A ILUSÃO

Estas são as palavras de despedida de nossa reflexão. Que nossa palavra aqui
ajude a romper ilusões e colocar as pessoas em marcha rumo à vitória contra nossos
inimigos. Porém, não é possível sair da inércia enquanto as ilusões que nos colocaram
no comodismo estiverem vivas em nossos corações. Não é fácil abandonar uma crença
construída pelo Estado, pelas ideologias de direita, pelo conformismo do pensamento de
esquerda, ao longo de anos e anos. Não é fácil. Contudo, é necessário. E o convite a esse
rompimento são nossas últimas palavras neste livro.
Nossos companheiros e nossas companheiras de esquerda, de modo geral,
abandonaram a estratégia. Esqueceram-na guardada em livros empoeirados na estante e
em congressos lamuriosos que convocavam à marcha do socialismo apenas com a boca.
Depois da convocação, aqueles intelectuais e grandes lideranças saíam a beber e discutir
e vulgarizavam a luta revolucionária como um papo boêmio esquecido com a ressaca.
Abandonaram a estratégia e trataram as táticas como se fossem a política ampla e geral da
organização. Então, aquele aliado que deveria ser tático virou um aliado eterno – até a hora
da traição. Aquela ação social de mobilização para construir retomadas virou caridade. As
organizações foram abandonando a luta grande, esqueceram-se de convocar o povo para
a autodefesa, esqueceram que o agronegócio é o neto da escravocracia, esqueceram-se
do valor dos meios de produção para a libertação dos povos. Os governistas progressistas
comemoraram a Copa do Mundo no Brasil, Olimpíada no Brasil, e esses grandes eventos
marcaram a derrocada da esquerda no poder.
A esperança de resolver toda essa confusão por meio do voto é legítima. Afinal
de contas, quem não gostaria de um salvador para reorientar o país depois destes anos
ainda mais amargos? Porém, não podendo prever o futuro, o mínimo que podemos fazer
é olhar para trás e ver se houve governo no Brasil que tenha apoiado o povo em luta
por sua libertação. O que vimos foram sucessões de governos que sempre se aliaram ao
latifúndio, inimigo principal dos povos. Então, rompa com essa ilusão. Quem falou sobre
reforma agrária foi golpeado antes de conseguir realizá-la. Este é o país dos fazendeiros
e dos banqueiros. Nenhum poder institucional pode contrariar os interesses desses dois
grupos.
Quando paramos de falar de terra e território e passamos a reivindicar direitos e
políticas públicas, fazemos o jogo do capital e do racismo. Porque essa ideia de empoderar
os povos de forma simbólica é uma das mais profundas ilusões que nos impuseram. Que
empoderamento é esse em que o empoderado não consegue confrontar e virar nenhum
jogo político a favor dos seus iguais? Que empoderamento é esse que não ampliou a tomada
de meios de produção pelos empoderados? Então, nós dizemos que esse empoderamento
é bom para uma sociedade liberal. Mas, se nós concordamos que o racismo é estrutura
dessa sociedade, nós não temos que buscar fazer parte dessa máquina de exclusão, nós
temos que quebrá-la. Nossa tarefa histórica, então, é criar uma nova sociedade a partir
das ruínas da atual.
Dizemos que eles nos darão representatividade, mas não nos darão terra.
Repetimos: terra é poder. Se querem nos empoderar, nos deem terra. Mas a verdade
é que não nos darão, não sem muita luta, muita guerra. Com nosso trabalho na terra,
poderemos ser ricos. Não ricos como os desta sociedade que só o são porque há muitos
pobres trabalhando para eles. Falamos em riqueza enquanto abundância, enquanto ter
tudo de que precisamos a partir de nosso próprio trabalho. Ambiente protegido, mesa
farta, água suficiente, necessidades realizadas e, ainda, uma riqueza para construir
nossos sonhos. Porém, tudo isso não virá por meio do voto, elegendo gente do povo para
o Congresso. Ali há um esquema armado. Ou te deslegitimam, te acusam de roubo, te
isolam ou te matam. Não vamos por aí.
Ouvimos incessantes vezes Mestre Jorge Rasta lembrar Patrice Lumumba: “Entre
caça e caçador não existe diálogo. Quem aceita a verdade de seu algoz merece o destino
que tem”. São palavras que aprumam a crítica de nossas condutas. Palavras que aceitamos
colocar em nossos corações rebeldes.
Nosso caminho mira Terra e Território porque entendemos que esse povoamento
exacerbado das cidades é projeto do capitalismo e do racismo. Fica claro como os povos
marginalizados da cidade são cercados por uma violência policial intensa, uma pobreza
estrutural que os prende ao trabalho precário e uma intoxicação ideológica que os faz
crer que, se tiverem esforço pessoal, as coisas podem melhorar. Isso é um projeto. O
esvaziamento do campo tornou mais fácil a predação das riquezas pelos grandes
empreendimentos e a cooptação de lideranças de comunidades para aceitarem os impactos
ambientais e sociais. Enquanto fomos inundados de matérias jornalísticas falando da
precariedade da vida no campo, de novelas mostrando a melhoria de vida nas cidades
para as pessoas que vinham do interior, vimos um fluxo migratório aceitar a cidade
como opção e deixar terreno livre para uma ocupação acelerada do campo por uma elite
ávida por terra. O cerrado é prova concreta. Região de povos originários e quilombolas,
sempre teve uma presença forte de população não branca, mas se viu em poucas décadas
mudando a cor da paisagem e da cidade com uma nova colonização branca – só que agora
sulista. Aos povos que ali viviam, nenhuma assistência técnica para gerar mais renda no
campo, nenhum empréstimo com boas condições para que produzissem mais riquezas.
Aos novos colonos, parcerias internacionais, universidades na região e tudo mais.
Enquanto isso, a cidade seguiu mais preta, com um povo mais violentado pelas
forças do Estado e pelos conflitos causados pela economia das drogas ilegais. Sem
saídas autônomas, essas massas se submeteram e se submetem a toda sorte de racismo já
banalizado entre nós. O sonho do cooperativismo urbano passou, a economia solidária
não mudou qualquer estrutura do capital para esses bairros periféricos, essas cidades-
dormitórios. Então, pensamos que as saídas não estão dentro da dinâmica urbana, mas
desde a ocupação de terras na região periurbana para produção de alimentos – algo que
é realmente muito necessário em qualquer grande cidade – até a formação de novas
comunidades rebeldes em outros territórios como forma de dar condições de vida digna
a quem não tem casa, comida e renda nas metrópoles brasileiras.
Este é o nosso chamado: enfrentar nossos inimigos produzindo comunidades
com dignidade e que consigam, pela boa relação com a natureza, superar a relação de
submissão e desrespeito que o capitalismo impôs à Mãe Terra. É a luta por uma revolução
que não ignora que há que mudar agora – e não ao término da luta, num futuro incerto
– as condições de vida do povo. Uma revolução que não ignore as catástrofes ambiental
e climática que se anunciam como verdadeiro apocalipse entre desastres naturais e
pandemias.
Não há muitas formas de construir este chamado. A que encontramos na Teia
dos Povos foi por meio da construção de alianças entre os de baixo. Estamos falando às
companheiras e aos companheiros dos movimentos sociais, dos povos, das comunidades
que não é possível vencer, se cada um ficar enfrentando sozinho o megaempreendimento
que tira a paz e um pedaço do território; que não é possível vencermos se não sairmos da
posição da eterna defesa e passarmos para a condição de impor derrotas históricas a esses
inimigos. Estamos falando que, enquanto cada um defender apenas sua casa, o capital vai
vencer primeiro ali, depois acolá, e logo chegará na nossa. Eles têm recursos suficientes
para serem pacientes e falta de escrúpulos o bastante para assassinar, contaminar,
perseguir, difamar, criminalizar. Mas, é possível impormos uma grande derrota a todos
eles se a Aliança Preta, Indígena e Popular fizer os combates coletivamente e de maneira
estratégica.
A nossa vingança precisa ser coletiva. Chega de chorar cada um os nossos mortos
e fingir que está tudo bem ou que essa situação vai passar. Os mais velhos do que os
nossos mais velhos nos têm ensinado que este é o tempo da união, da grande luta. Há
uma guerra vindo ao nosso encontro, e nossos preparativos estão atrasados. A fome tem
chegado, e nossos estoques de comida não estão preparados. Aqui, já sentimos saudades
dos grandes encontros dos povos guerreiros e uma nostalgia de algo que não lembramos
se já vivemos: as falanges indígenas, pretas e populares marchando juntas e honrando
cada um dos nossos que tombaram em luta.
Nesta longa jornada, muitos estão alegando que já não têm forças, outros dizem
que só vão até a metade do caminho porque têm coisas a fazer depois, e outros ainda
nos dizem que já se contentam em estarem lutando, que não precisam vencer. Há muita
negação, reclame e desalento com a luta. É isso que ouvimos e com tudo isso seguimos
caminhando e argumentando aos companheiros, às companheiras, que tampouco sabemos
aonde vamos chegar. Em verdade, não sabemos o caminho ao certo. Mas, com tantos erros
cometidos antes, já sabemos para onde não ir. E nos perguntam, então, os incrédulos:
como será a vitória? Nós temos combatido todos estes anos em sucessivas pequenas
vitórias em nossos territórios, mas com um fracasso revolucionário cotidiano. Então, não
sabemos o gosto dessa vitória, seu cheiro, tampouco sua cor. Sabemos, entretanto, que,
ao final da jornada, aquelas e aqueles que seguirem estarão triunfantes e juntos. Uma
sociedade em que estejamos verdadeiramente juntos nos parece um bom destino. Talvez
a redenção dos nossos povos seja justamente isto: a aliança, a unidade dos povos em luta.

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