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ORGANICIDADE
Observando a experiência histórica dos partidos políticos do Brasil, a Teia dos Povos
viu muitos deles se reivindicarem como revolucionários e afirmarem que conseguiriam
organizar as classes trabalhadoras e os povos em uma grande luta. Bom, nenhum partido
conseguiu tamanha façanha. Vimos, pelo contrário, partidos ditos revolucionários, por
vezes, criticarem os movimentos sociais organizados existentes, não se aproximarem dos
povos originários e quilombolas, se afastarem da realidade dos territórios. Vimos, enfim,
esses partidos não serem capazes de construir boas relações com os povos.
Os projetos revolucionários desses companheiros trocavam o real e histórico (os
movimentos sociais autênticos dos povos) por um ideal de unidade que jamais vimos
acontecer nestas terras. Nós entendemos que as organizações, povos e movimentos sociais
não vão baixar suas bandeiras e se submeter aos ditames de um partido, e nós entendemos
as razões. São muitos anos entre cooptação, traições, violências sutis, racismo de gente
que vestiu as cores das lutas revolucionárias. A sabedoria de nossos povos está, portanto,
correta em manter suas bandeiras levantadas, mesmo com a sedução ininterrupta de
uma unidade capaz de vencer nossos inimigos. Contudo, não podemos ser nós a negar a
necessidade de construir uma unidade. O desafio histórico à nossa frente é muito maior
do que a capacidade de combate atual das organizações políticas dos povos do Brasil.
Apenas a unidade pode nos fazer avançar e impor importantes derrotas a nossos inimigos.
Por tudo isso, a Teia dos Povos se constituiu como uma articulação. A unidade que
queremos não é a da bandeira, da identidade política, mas a da ação. Se um povo indígena
desterritorializado retoma seu território ancestral a partir de uma reivindicação de
sobrevivência em meio às violências do mundo moderno, para nós, eles estão construindo
territórios que podem ser autônomos e capazes de gerar uma vida boa e digna para si.
Então, pensamos que a seu modo eles tomaram um meio de produção, porque a terra é
a vida em si, mas também é o que se convencionou nas esquerdas chamar de meio de
produção. Não importa aqui se eles seguem ou não uma tradição da esquerda europeia,
nos importa a ação. Da mesma forma, se uma organização preta organiza o povo da
periferia para fundar um quilombo e se livrar de toda violência, perseguição e extermínio
que o Estado comete contra eles na cidade, pensamos que estão construindo um território
que tem tudo para ser um espaço de combate ao racismo. Se estão tomando terra, então
estão enfrentando o latifúndio, que é o nosso inimigo mais antigo por aqui. É na ação
concreta que a unidade surge.
Nós nos organizamos de modo a entender como as decisões precisam ser tomadas
e em que rumo podemos avançar. A Teia dos Povos é composta, portanto, de territórios
organizados, por organizações políticas e pessoas desterritorializadas. Os territórios
organizados, chamamos de núcleos de base, e é deles que deve surgir a diretriz de ação,
pois é onde emerge a organização, a direção de luta. Os coletivos, organizações e pessoas
desterritorizalizadas, chamamos de Elos da Teia, pois são conectores que se ligam aos
Núcleos de Base. Os Elos não devem pautar a organização da luta, pois antes precisariam
cumprir a tarefa fundamental de se tornarem territórios organizados, mesmo na cidade.
Entendemos, portanto, que aqueles que organizaram seu território podem dirigir a luta
dos territórios; os demais devem seguir, dialogar e ajudar nessa tarefa. Isso não quer dizer
que pessoas dos Elos não tenham importância no processo organizacional das nossas
lutas. Os Elos são fundamentais e muitas caminhadas (táticas) e passos (tarefas) só serão
cumpridos graças à sua participação firme. Porém, aqui riscamos o chão para dizer que a
frente, a liderança, deve ser dos povos que se autogovernam e não dos intelectuais – estes
que estão sempre sedentos por serem lideranças. De novo: pensamos nós que quem já
organizou seu território é que pode dirigir quem ainda não se organizou. É do território
que emergem as lideranças capazes de organizar nossos povos.
A cooperação é o fundamento dessa aliança entre territórios organizados e
militância desterritorializada. É a partir dessa ideia que surge a organicidade da divisão
que nada mais é do que um coletivo composto de gente de núcleos e elos com uma função
específica. Temos, para fins de exemplo, a divisão de comunicação, que dá passos para
difundir nossos pensamentos, registrar parte de nossas memórias e articular a luta com
povos e movimentos que ainda estão longe de nossa palavra.
Por fim, a organização precisa ir se descentralizando. Ou seja, construindo
regionais que deem conta das reuniões dos territórios que estão mais próximos. Isso
porque entendemos que os conflitos, a rede de apoio, a logística para produção e outras
questões têm sua própria espacialidade. Então, tão logo se multiplique o número de
territórios em uma dada região, há que se constituir uma regional própria da Teia, de
modo a se organizar e fazer suas reflexões, sempre compartilhando-as com as demais,
alinhavando os principais debates, produzindo consensos com outras regionais. A
produção de consenso deve ser uma prioridade absoluta, porque queremos andar juntos,
lutar em uma grande aliança. Então, é fundamental ter muita paciência e cuidado ao
tomar decisões e sem consenso, pois elas podem fazer parar o processo de tecitura de
alianças para a ação.
Aqui, é importante dizer que cada acampamento, assentamento, aldeia, comunidade
e organização territorializada precisa construir suas relações de aliança de modo a ter
Elos da Teia próximos e disponíveis para apoiar as lutas, cumprir tarefas específicas e
fortalecer as lutas pelos territórios. Não há luta que prescinda de ajuda. Ninguém é tão
autossuficiente em sua luta a ponto de não ter que contar com alianças e militância que
se engaje na sua obra, ainda que não a coordene. Por isso, é importante trazer para perto
coletivos agroecológicos, organizações de estudantes, professores universitários, grupos
de pesquisa, associações, institutos de pesquisa e coletivos políticos que possam cumprir
tarefas específicas junto aos povos. É assim que tecemos a teia e ampliamos a nossa
capacidade de ação.
Nós possuímos uma carta de orientação interna que nos ajuda nessa construção.
O pouco que podemos dizer é que as reuniões são convocadas para definir os rumos em
cada caminhada e para distribuir as tarefas (passos) que cada comunidade, organização
e movimento devem cumprir.
Para nós, a organização interna de cada movimento, povo, organização ou território
é um debate que compete às pessoas que ali se organizam. Podemos falar de concepções
e práticas que consideramos virtuosas, porém não queremos, de modo nenhum, pautar
o processo organizativo interno de quem anda conosco. Há que respeitar as diferenças
que são ideológicas, de tradição de luta e, por vezes, de ancestralidade. Assim, um
terreiro possui uma liderança referendada espiritualmente e não por uma assembleia. Há
comunidades em que a linhagem ancestral tem mantido um predomínio nas lideranças.
Outras definiram politicamente que o comando é de mulheres. Tem quem eleja a sua
liderança, tem outros lugares onde são os mais velhos que definem isso. Do mesmo modo,
a forma de divisão das tarefas internas muda de comunidade a comunidade.
Há, contudo, questões que precisamos enfrentar, como o vício de impor
exclusivamente às companheiras as tarefas domésticas, bem como o excesso de falatório
e autoritarismo dos homens nas reuniões e atividades coletivas, por exemplo. Essas
questões estão enraizadas em nossos territórios e são como pragas que herdamos do
colonizador. Há quem defenda atacá-las com herbicidas potentes. Nós temos escolhido a
agroecologia e controlamos uma praga com o cuidado da terra (situação) e o bom consórcio
entre plantas (outras práticas). São essas as ações capazes de ir revitalizando o espaço
outrora infestado. Então, há que transformar radicalmente essas más condutas, aprumar
os homens em seus territórios e organizações, para que tenham, concretamente, atitudes
mais condizentes com a grande luta contra o patriarcado. Contudo, também aqui há que
ter respeito pelas diferentes formas e ritmos com que cada povo, território, comunidade e
organização vai produzindo essa revolução.
Vocês precisam entender isso. É muito sério. Há organizações que já resolveram
suas questões raciais porque se fundaram no debate racial e estão há muitos anos pautando-
os de dentro para fora. Porém, há outras ainda engatinhando nessa questão. Da mesma
forma, há coletivos feministas que possuem excelente acúmulo no debate de gênero, mas
há comunidades, Núcleos de Base e organizações onde ainda impera o machismo. E todos
nós temos que superar todas as violências, mas não a superaremos de uma vez só e nem
por decreto. Como um riacho que se forma junto a uma fonte, cresce e corre para chegar
ao mar, nós não começamos grandes, profundos e caudalosos como vemos na foz. Nós
começamos pequenos, finos e rasos. Mas ali adiante outro rio (outra luta) se incorpora ao
nosso rio (nossa luta) e nos fortalece, e nossas águas ficam mais fundas. Depois de muitos
afluentes irem se incorporando à nossa luta, então, na foz, somos um rio forte, poderoso,
que, por vezes, consegue fazer efeito até nas marés. E nós queremos ser o mar porque o
mar é poderoso, é onde todos os rios (lutas) se encontram. É assim que vamos ganhando
profundidade até sermos mar de luta.
A luta do território pesqueiro nos ensina os respeitos e reverências com o mar e
sua gente. A luta contra o racismo do terreiro nos ensina os respeitos e reverências aos
nkisis, voduns e orixás. A luta dos povos originários em defesa da natureza nos ensina
que não há divisão entre nós humanos e o que chamamos de bioma – e para muitos
povos entre nós, a natureza e os seus encantados. E assim por diante. São pouquíssimas
as organizações que nascem prontas para todos esses aprendizados. Nós teremos que ir
aprendendo na medida em que convivemos e lutamos juntos. Há que ter certa paciência
nessa dimensão de nossa jornada.
Isto significa, por outro lado, que precisamos aprofundar nossos conhecimentos
nas diferenças que existem dentro de nossa Grande Aliança Preta, Indígena e Popular.
A sedução da simplificação pode levar muitas pessoas a quererem colocar a todos nós
numa chave interpretativa de classe. Compreendemos, mas existem razões para não
estarmos falando de classe apenas. Ao longo do século XX, a identidade de classe
carregada pelos partidos de esquerda tentou dar conta das nossas diferenças criando
uma homogeneização enquanto diziam estar produzindo hegemonia na classe. Ou, em
outras palavras, dizendo que estavam no processo de organização e inspiração dos povos,
mas estavam também tomando-os com a mesma régua, com a mesma forma, tentando
encaixá-los em um espaço onde eles não cabiam. Assim, muitas organizações de esquerda
puderam ser racistas e desrespeitosas com a espiritualidade dos povos, por exemplo.
Nós, por outro lado, entendemos que é fundamental ter conhecimento qualitativo sobre
nossas diferenças, pois entendemos que essa grande aliança é heterogênea e não possui
qualquer razão para se tornar uma identidade monolítica. Nós queremos unidade na ação,
na prática, na construção da superação de nossos inimigos, não na estética, na forma de
nos organizar, de falar, de vestir.
Aprofundar o conhecimento sobre nossas diferenças ajudará a nos respeitarmos
mais e a agir melhor. Por exemplo, quando nossas companheiras e companheiros
fundamentados no evangelho conseguem entender a espiritualidade do terreiro e rompem
com os preconceitos construídos historicamente pelo racismo. De igual forma, quando as
matrizes de organicidade dos povos e organizações vão se tornando compreensíveis para
os demais, isso favorece o aprendizado e o respeito de todos para com todos. Enfim, a
tarefa de construir territórios livres precisa de gente consciente e que não se sinta seduzida
a dominar seus companheiros e aliados.
SENTIDO DE TERRA E TERRITÓRIO
Sendo uma articulação que luta por Terra e Território, é evidente que a Teia dos
Povos busca a democratização das terras de nosso país. Mas, temos que olhar isso de
uma forma mais precisa, para não haver confusões e percepções que não nos têm ajudado
tanto. Quando falávamos em reforma agrária, estávamos demandando do Estado que
concedesse terra para que pudéssemos trabalhar nela e viver do que ela nos dá. Porém,
reconhecemos que o Estado brasileiro é um dos grandes inimigos que temos nesta grande
jornada de luta contra o racismo, o patriarcado e o capitalismo. Então, não tem que
reformar, no sentido de ajustar, de melhorar. O que urge é a democratização do acesso às
terras. E esse debate precisa ser feito de modo a tomar certa distância da noção de terra
como mercadoria, como uma propriedade que pode ser vendida, comprada, ou mesmo
concedida, dada.
A crise estrutural do capitalismo que vivemos agora é profunda em nossa
sociedade. Um bicho acuado e temendo a morte fica mais valente, tentará se defender de
forma mais agressiva. E é isso que estamos vendo com estes saques à Mãe Terra. Eles
precisam destruir mais rapidamente as águas, as matas, os mangues, as serras e tudo que
é vivo, porque, a cada dia que passa, suas taxas de lucro caem, e precisam produzir mais
e vender mais, para fazer a felicidade dos acionistas. Não há como tornar isso sustentável.
O lucro deles é a destruição rápida e veloz de nossos territórios, de nossos biomas. A
resposta para isso está em ocuparmos a terra com formas de uso e geração de riquezas
que respeitem o ciclo da vida da natureza.
Defendemos, assim, que os princípios desta nossa Jornada são a terra e o território.
Para vencermos, nosso fundamento são as águas, as sementes e a soberania alimentar.
Só assim conseguiremos a autonomia. Todos estão interligados. A autonomia se faz com
as coisas simples. Então, temos que aprender e viver como a floresta, ela é um sistema
em que todos os seres vivos temos tudo em abundância. Por isso, temos que construir
os Sistemas Agroflorestais, temos que produzir o nosso alimento, temos que deixar uma
parte para os outros seres que vivem nesse sistema, temos que fazer a oferenda para
nossa mãe terra. É dela que recebemos e é para ela que temos que devolver. Precisamos
construir nossa morada confortável para nosso descanso, do corpo e alma. Desse modo,
nós desenvolvemos projetos para a área de um hectare de Sistemas Agroflorestais para
quem se interessa em seguir nesse passo. Essa área pode ser individual ou coletiva para
ser referência para que todos tomem como exemplo e sigam adiante. Podemos te enviar a
proposta, mas lembre-se, não é cópia, é uma simples ideia, pois os biomas são diferentes
uns dos outros. O Bioma Mata Atlântica encontra-se com o Bioma Amazônico, mas
cada um tem suas singularidades. O Bioma Caatinga tem semelhanças com o Bioma
Cerrado, mas eles também têm suas diferenças. No Bioma Mata Atlântica e no Bioma
Amazônico temos abundância de chuvas, mas, no Bioma Caatinga, há pouca chuva. O
Bioma Cerrado, um dos mais antigos do país, também tem suas diferenças. Cada um
desses Biomas também tem culturas específicas. Por isso, é preciso entender e respeitar
essas diferenças e aprender com cada localidade, com cada cultura da localidade. Então,
nossa ideia não é formular um modelo para ser aplicado em todos os lugares, é uma
referência para que possamos nos basear e seguir a caminhada.
Os povos originários falam Mãe Terra (Pachamama, para os povos andinos) por
muitas razões. Aprendemos que, sendo uma mãe, não devemos dividi-la, dando a cabeça
para um filho, o estômago para outro e um pé para outro. Ela só existe em sua unidade
e em sua unicidade. E é por isso que passamos de uma luta para obter um pedação
de terra para a concepção de lutar para construir um território. Porque uma coisa é
você ter um lote de 10 hectares de terra, outra coisa é você viver em um território com
matas, lajedos, rios, lagos etc. Quando pensamos território, não estamos falando de um
quadrado ou de uma demarcação com determinado aspecto. Estamos falando de um
lugar cheio de símbolos de pertencimento alicerçados na abundância da vida. É o que
chamamos de para além da cerca. Então, não basta que alguém conceda terra como hoje
fazem mediante a distribuição de títulos individuais, que depois serão comprados pelo
agronegócio, para depois essa terra se converter em máquina de destruição de vidas.
O que queremos são territórios, lugares com vida, com comunidade, onde rios, matas,
animais, poços, nascentes, tudo possa ser respeitado e cuidado. Se continuarmos a lutar
a partir das cercas, elas seguirão nos separando, nos dividindo; são elas que permitem
que alguém degrade o rio em um canto e que as demais pessoas que não o fazem sejam
impactadas pela destruição desse mesmo rio em outro lugar.
Com isso, não estamos falando que o Estado que aí está não deva fazer reforma
agrária. Pela própria concepção burguesa de formação de nação, a reforma agrária seria
necessária, e foi realizada em grande parte dos países. Nos EUA, por exemplo, a reforma
agrária foi feita em cima do genocídio dos povos originários. Todos os países mais ricos
do mundo, em algum momento, reformaram a questão fundiária para que houvesse maior
produção. Essas lógicas burguesas não alcançam as elites brasileiras porque aqui não se
formou propriamente uma nação, mas sim uma engenharia de extração de lucros para
remessas para o estrangeiro. Nós não somos dotados de uma elite nacional que lute pela
nação, mas de elites contra seu povo, operando o Estado – de natureza completamente
burguesa – para nos fazer trabalhar ao máximo pelo menor custo e nos tirar toda a terra
que conquistaram. Por isso, afirmamos que a reforma agrária em si sempre será uma pauta
fundamentalmente contrária ao interesse das elites. Por isso, veio o golpe de 1964. E, por
isso, dizemos que os governos progressistas se renderam às elites que os golpearam, ao
não tratarem a questão fundiária com a devida deferência.
Nossa perspectiva não é demandar ao Estado a concessão de lotes de terra. É
fundamental que o próprio povo conquiste as terras porque é da luta que nasce todo
o simbolismo que transformará a terra em território. E, como temos consciência que
muita terra também foi desterritorializada pela devastação do agronegócio, mineração
etc., sabemos que teremos um trabalho de cuidado para torná-la um território novamente.
Estamos falando de transformar pastos em florestas, fazer brotar água onde estava seco,
fazer os rios correrem por onde as represas os proibiram de passar. A luta é grande, mas,
se dermos espaço para a vida, a natureza se encarregará de cumprir boa parte dessa tarefa.
Tratamos o território como diz o poeta: como princípio, fim e meio. Princípio
porque toda nossa ancestralidade estava alicerçada na terra. Somos filhos e filhas de
povos que viviam em comunidades com a conexão espiritual com as plantas, lagos,
marés, etc. Então, seguimos uma tradição histórica no Brasil, que combate o latifúndio
a partir de alianças comunitárias para tomar território. Estamos falando das alianças dos
Tamoios a Canudos, passando pela experiência poderosíssima e longeva de Palmares. O
princípio é, portanto, a terra, a luta por se manter nela ou retornar para ela. O fim, nosso
objetivo final, é o território descolonizado do capitalismo, do racismo e do patriarcado.
Ou seja, a superação dessas formas de dominação violentas a que fomos submetidos até
agora. E o meio para conseguir obter essa vitória está nos próprios territórios, produzindo
alimentos, nos dando autonomia, organizando as pessoas e protegendo a vida, pois, se
não tomarmos os territórios agora, talvez não exista vida para disputar no futuro.
Assim, precisamos entender a importância da Terra e do Território para formar
militância, desde já construindo autonomia, não deixando para buscar a liberdade apenas
depois de triunfarmos sobre o capitalismo. É o trabalho na terra que nos vestirá, construirá
nossas casas e nos dará condições de nos alimentar. É uma tarefa revolucionária, e
sabemos disso porque hoje o trabalhador brasileiro depende da agricultura familiar para
se alimentar. Mais de 70% da comida que chega ao prato do trabalhador é fruto dos nossos
povos. Não é fácil sustentar cidades cada vez maiores e campos cada vez mais atacados
pelo agronegócio. Precisamos entender a importância e valorizar o trabalho no campo,
mesmo quando cumprimos nossos passos (tarefa) nesta caminhada na cidade e longe
da produção alimentar. As pessoas da cidade precisam entender o quanto dependem da
terra. Se hoje estão bebendo água com agrotóxico na cidade, essa é uma luta que só se
vence na terra, no campo. A cidade precisa, portanto, colaborar firmemente.
Autonomia é algo difícil e pesado. É sempre mais fácil culpar alguém pelos nossos
fracassos e insucessos. Então, se nós não seguimos tomando terra e formando territórios,
podemos falar que a culpa é do partido A ou do partido B. Nós falharemos em muitos
momentos de nossa jornada, mas precisaremos aprender e reinventar nossas práticas.
Não estamos falando nada novo, estamos falando do que os povos têm feito ao logo de
séculos neste cativeiro chamado Brasil. Mas, chamamos atenção para como o peso da
autonomia recai sobre nossa capacidade de trabalhar e manter a aliança. O trabalho é
o que irá gerar nossas riquezas, nossa comida, nossas vestimentas e moradias. Aqui,
nos afastamos de uma certa ilusão de que a terra por si só gera riqueza. Pois, de fato, é
possível que a natureza gere riqueza, mas, se não laboramos para incrementar, estamos
apenas tomando e não devolvendo nada a ela. E a riqueza que precisamos para enfrentar
nossos inimigos é muita. Não dá para contar com o acaso. Por isso, há que trabalhar. E há
ainda que trabalhar para manter a aliança. Com os olhos na jornada e com as mãos nas
pequenas tarefas (passos) é possível não nos afastarmos dos conflitos de ordem ideológica
e de concepções sobre posturas políticas. Só há vitória na grande aliança. É por isso que
precisamos dar atenção especial às caminhadas.
AUTONOMIA, CAMINHADAS E PASSOS
Nosso caminho é longevo nestas terras. Temos dito que o que estamos fazendo
agora, com a Teia dos Povos, não é algo novo. De fato, se olharmos com atenção à história,
a aliança de povos para lutar contra a colonização é uma regra que podemos ver, pelo
menos, de Palmares até Canudos. Nosso sentido de articulação e organização é, portanto,
mais ligado à concepção de aliança de povos do que à ideia de um partido de indivíduos.
Vamos avançar primeiro nessa reflexão para poder entender o que já aprendemos do
processo de construção dessa aliança.
Até o surgimento do movimento anarquista em finais do século XIX no Brasil,
influenciado pela migração europeia que vinha substituir o trabalho preto, as grandes
lutas nesse imenso continente que chamamos de país eram lutas de povos e de alianças
entre povos. Houve um embrião dessa luta no surgimento do PCB, na década de 1920. Os
comunistas tentaram atrair (Caboclo) Marcelino Tupinambá para a luta revolucionária, da
mesma forma que tentaram com o Capitão Virgulino Ferreira (o Lampião). Ou seja, até
esse início de movimento comunista no país, atrair lideranças de povos e de organizações
parecia um caminho potencial para o partido e seu projeto de revolução. Contudo, o que
vemos no século XX, como regra mais geral, é a noção do partido como a organização
que produziria a grande luta. Essa organização se constitui por uma soma de indivíduos
conscientes assim agrupados em uma unidade política. A partir, e sob orientação do
partido, outras unidades menores seriam construídas, como sindicatos, associações de
bairro e etc. Não há qualquer erro nesse caminho. Acreditamos fundamentalmente que,
em muitos lugares, as conquistas alcançadas pelas lutas revolucionárias do século XX
informam o caráter vitorioso desse projeto. Contudo, nós hoje nos perguntamos, olhando
para a história do Brasil, se nossos insucessos devem-se apenas aos erros cometidos pelas
direções dos partidos ao interpretar o país e seu povo, ou também aos erros de condução
da luta. Acreditamos que esse questionamento é um peso muito grande para as costas de
uma brava gente que deu sua vida em grandes lutas aqui travadas. Então, pensamos que
é preciso compreender melhor alguns aspectos relevantes de nossa formação histórica e
da relação dos povos com as lutas.
Não é nossa pretensão fazer um grande percurso pela história do Brasil, apenas
ativar algumas reminiscências. Vamos começar por Palmares. Em nossa história, essa é,
talvez, a experiência mais conhecida de território que foi criado autônomo e rebelde, além
de uma das mais longevas. Palmares durou mais de um século. Em realidade, a
experiência palmarina deveria ter mais estatura na reflexão da esquerda, pois
enfrentou as potências mundiais de seu tempo (Portugal e Holanda) e as venceu muitas
vezes. Palmares ainda durou mais do que experiências revolucionárias como a União
Soviética. Mas, o que era Palmares, afinal? Era uma federação de quilombos, tais como
Subupira, Dambrabanga, Macaco, Osengo, dentre outros. Ali, juntavam-se, aos pretos
fugidos da colonização, indígenas com quem compartilhavam saberes e com os quais
teciam alianças e casamentos. Essa federação era heterogênea e, reunidos ali, segundo
relatos, encontravam-se também judeus e muçulmanos. Ou seja, ali estavam os perseguidos
pela Igreja, pelo Estado e pelo latifúndio. E, claro, o comando era preto, ou seja, de quem
representava as maiorias.
Palmares, então, articulava uma aliança de comunidades a uma adesão de indivíduos
perseguidos, mas a partir do território. Ou seja, a adesão ao movimento não dependia
da adesão à causa de liberdade dos povos de origem Banto, responsáveis primeiros por
erguerem aquela grande luta. Não se tratou, portanto, da lógica da congregação em torno
de uma ideologia (liberdade); a adesão era a partir da terra. E mesmo os aliados externos,
as pessoas que comercializavam, indo e voltando dos territórios, a relação se dava com
quem ajudava na teritorialização. Em certo sentido, são esses os princípios de nosso
projeto: Terra e Território. Ou seja, aqui pensamos em organicidades centradas na terra
e por meio dela.
Em todo o processo colonial, muitas foram as experiências de organizar resistência
por meio de federações ou alianças entre comunidades. Falamos aqui, sobretudo, de
experiências indígenas. Podemos citar a Confederação dos Tamoios, ainda no primeiro
século da invasão, ou a aliança dos Guarani das Missões, no que foi chamado de Guerras
Guaraníticas no terceiro século após a invasão. Desta última, há um relato que tem muito
para nos ensinar e onde podemos conhecer as palavras de Sepé Tiaraju, liderança indígena
da Missão de São Miguel. Letrados pelos jesuítas, os Guarani começaram uma grande
guerra contra a entrega de suas terras para os portugueses, que se intensificou durante
o processo de perseguição pombalina – o poder colonial invejava a fartura e riqueza
daquelas comunidades indígenas. Quando Sepé Tiaraju foi morto, em 1753, uma carta
endereçada ao governador de Buenos Aires foi encontrada e nela pode-se ler:
E com tudo isso nos dizeis que deixemos as nossas terras, nossos ervais, nossas fazendas,
enfim todo o nosso território. Essa ordem não é de Deus, senão do demônio; nosso Deys
sempre anda pelo caminho de Deus e não do demônio. (…) E assim não o cremos nunca,
quando dizei vós – ‘índios, dai vossas terras e o quanto tendes aos portugueses’. Não o
cremos nunca e não há de ser assim. Só se por acaso quiserem comprá-las com o sangue: nós,
todos os índios, as havemos de comprar [com nosso sangue]. (PREZIA, Benedito. História
da Resistência Indígena: 500 anos de luta. São Paulo: Expressão Popular, 2017).
Estas são as palavras de despedida de nossa reflexão. Que nossa palavra aqui
ajude a romper ilusões e colocar as pessoas em marcha rumo à vitória contra nossos
inimigos. Porém, não é possível sair da inércia enquanto as ilusões que nos colocaram
no comodismo estiverem vivas em nossos corações. Não é fácil abandonar uma crença
construída pelo Estado, pelas ideologias de direita, pelo conformismo do pensamento de
esquerda, ao longo de anos e anos. Não é fácil. Contudo, é necessário. E o convite a esse
rompimento são nossas últimas palavras neste livro.
Nossos companheiros e nossas companheiras de esquerda, de modo geral,
abandonaram a estratégia. Esqueceram-na guardada em livros empoeirados na estante e
em congressos lamuriosos que convocavam à marcha do socialismo apenas com a boca.
Depois da convocação, aqueles intelectuais e grandes lideranças saíam a beber e discutir
e vulgarizavam a luta revolucionária como um papo boêmio esquecido com a ressaca.
Abandonaram a estratégia e trataram as táticas como se fossem a política ampla e geral da
organização. Então, aquele aliado que deveria ser tático virou um aliado eterno – até a hora
da traição. Aquela ação social de mobilização para construir retomadas virou caridade. As
organizações foram abandonando a luta grande, esqueceram-se de convocar o povo para
a autodefesa, esqueceram que o agronegócio é o neto da escravocracia, esqueceram-se
do valor dos meios de produção para a libertação dos povos. Os governistas progressistas
comemoraram a Copa do Mundo no Brasil, Olimpíada no Brasil, e esses grandes eventos
marcaram a derrocada da esquerda no poder.
A esperança de resolver toda essa confusão por meio do voto é legítima. Afinal
de contas, quem não gostaria de um salvador para reorientar o país depois destes anos
ainda mais amargos? Porém, não podendo prever o futuro, o mínimo que podemos fazer
é olhar para trás e ver se houve governo no Brasil que tenha apoiado o povo em luta
por sua libertação. O que vimos foram sucessões de governos que sempre se aliaram ao
latifúndio, inimigo principal dos povos. Então, rompa com essa ilusão. Quem falou sobre
reforma agrária foi golpeado antes de conseguir realizá-la. Este é o país dos fazendeiros
e dos banqueiros. Nenhum poder institucional pode contrariar os interesses desses dois
grupos.
Quando paramos de falar de terra e território e passamos a reivindicar direitos e
políticas públicas, fazemos o jogo do capital e do racismo. Porque essa ideia de empoderar
os povos de forma simbólica é uma das mais profundas ilusões que nos impuseram. Que
empoderamento é esse em que o empoderado não consegue confrontar e virar nenhum
jogo político a favor dos seus iguais? Que empoderamento é esse que não ampliou a tomada
de meios de produção pelos empoderados? Então, nós dizemos que esse empoderamento
é bom para uma sociedade liberal. Mas, se nós concordamos que o racismo é estrutura
dessa sociedade, nós não temos que buscar fazer parte dessa máquina de exclusão, nós
temos que quebrá-la. Nossa tarefa histórica, então, é criar uma nova sociedade a partir
das ruínas da atual.
Dizemos que eles nos darão representatividade, mas não nos darão terra.
Repetimos: terra é poder. Se querem nos empoderar, nos deem terra. Mas a verdade
é que não nos darão, não sem muita luta, muita guerra. Com nosso trabalho na terra,
poderemos ser ricos. Não ricos como os desta sociedade que só o são porque há muitos
pobres trabalhando para eles. Falamos em riqueza enquanto abundância, enquanto ter
tudo de que precisamos a partir de nosso próprio trabalho. Ambiente protegido, mesa
farta, água suficiente, necessidades realizadas e, ainda, uma riqueza para construir
nossos sonhos. Porém, tudo isso não virá por meio do voto, elegendo gente do povo para
o Congresso. Ali há um esquema armado. Ou te deslegitimam, te acusam de roubo, te
isolam ou te matam. Não vamos por aí.
Ouvimos incessantes vezes Mestre Jorge Rasta lembrar Patrice Lumumba: “Entre
caça e caçador não existe diálogo. Quem aceita a verdade de seu algoz merece o destino
que tem”. São palavras que aprumam a crítica de nossas condutas. Palavras que aceitamos
colocar em nossos corações rebeldes.
Nosso caminho mira Terra e Território porque entendemos que esse povoamento
exacerbado das cidades é projeto do capitalismo e do racismo. Fica claro como os povos
marginalizados da cidade são cercados por uma violência policial intensa, uma pobreza
estrutural que os prende ao trabalho precário e uma intoxicação ideológica que os faz
crer que, se tiverem esforço pessoal, as coisas podem melhorar. Isso é um projeto. O
esvaziamento do campo tornou mais fácil a predação das riquezas pelos grandes
empreendimentos e a cooptação de lideranças de comunidades para aceitarem os impactos
ambientais e sociais. Enquanto fomos inundados de matérias jornalísticas falando da
precariedade da vida no campo, de novelas mostrando a melhoria de vida nas cidades
para as pessoas que vinham do interior, vimos um fluxo migratório aceitar a cidade
como opção e deixar terreno livre para uma ocupação acelerada do campo por uma elite
ávida por terra. O cerrado é prova concreta. Região de povos originários e quilombolas,
sempre teve uma presença forte de população não branca, mas se viu em poucas décadas
mudando a cor da paisagem e da cidade com uma nova colonização branca – só que agora
sulista. Aos povos que ali viviam, nenhuma assistência técnica para gerar mais renda no
campo, nenhum empréstimo com boas condições para que produzissem mais riquezas.
Aos novos colonos, parcerias internacionais, universidades na região e tudo mais.
Enquanto isso, a cidade seguiu mais preta, com um povo mais violentado pelas
forças do Estado e pelos conflitos causados pela economia das drogas ilegais. Sem
saídas autônomas, essas massas se submeteram e se submetem a toda sorte de racismo já
banalizado entre nós. O sonho do cooperativismo urbano passou, a economia solidária
não mudou qualquer estrutura do capital para esses bairros periféricos, essas cidades-
dormitórios. Então, pensamos que as saídas não estão dentro da dinâmica urbana, mas
desde a ocupação de terras na região periurbana para produção de alimentos – algo que
é realmente muito necessário em qualquer grande cidade – até a formação de novas
comunidades rebeldes em outros territórios como forma de dar condições de vida digna
a quem não tem casa, comida e renda nas metrópoles brasileiras.
Este é o nosso chamado: enfrentar nossos inimigos produzindo comunidades
com dignidade e que consigam, pela boa relação com a natureza, superar a relação de
submissão e desrespeito que o capitalismo impôs à Mãe Terra. É a luta por uma revolução
que não ignora que há que mudar agora – e não ao término da luta, num futuro incerto
– as condições de vida do povo. Uma revolução que não ignore as catástrofes ambiental
e climática que se anunciam como verdadeiro apocalipse entre desastres naturais e
pandemias.
Não há muitas formas de construir este chamado. A que encontramos na Teia
dos Povos foi por meio da construção de alianças entre os de baixo. Estamos falando às
companheiras e aos companheiros dos movimentos sociais, dos povos, das comunidades
que não é possível vencer, se cada um ficar enfrentando sozinho o megaempreendimento
que tira a paz e um pedaço do território; que não é possível vencermos se não sairmos da
posição da eterna defesa e passarmos para a condição de impor derrotas históricas a esses
inimigos. Estamos falando que, enquanto cada um defender apenas sua casa, o capital vai
vencer primeiro ali, depois acolá, e logo chegará na nossa. Eles têm recursos suficientes
para serem pacientes e falta de escrúpulos o bastante para assassinar, contaminar,
perseguir, difamar, criminalizar. Mas, é possível impormos uma grande derrota a todos
eles se a Aliança Preta, Indígena e Popular fizer os combates coletivamente e de maneira
estratégica.
A nossa vingança precisa ser coletiva. Chega de chorar cada um os nossos mortos
e fingir que está tudo bem ou que essa situação vai passar. Os mais velhos do que os
nossos mais velhos nos têm ensinado que este é o tempo da união, da grande luta. Há
uma guerra vindo ao nosso encontro, e nossos preparativos estão atrasados. A fome tem
chegado, e nossos estoques de comida não estão preparados. Aqui, já sentimos saudades
dos grandes encontros dos povos guerreiros e uma nostalgia de algo que não lembramos
se já vivemos: as falanges indígenas, pretas e populares marchando juntas e honrando
cada um dos nossos que tombaram em luta.
Nesta longa jornada, muitos estão alegando que já não têm forças, outros dizem
que só vão até a metade do caminho porque têm coisas a fazer depois, e outros ainda
nos dizem que já se contentam em estarem lutando, que não precisam vencer. Há muita
negação, reclame e desalento com a luta. É isso que ouvimos e com tudo isso seguimos
caminhando e argumentando aos companheiros, às companheiras, que tampouco sabemos
aonde vamos chegar. Em verdade, não sabemos o caminho ao certo. Mas, com tantos erros
cometidos antes, já sabemos para onde não ir. E nos perguntam, então, os incrédulos:
como será a vitória? Nós temos combatido todos estes anos em sucessivas pequenas
vitórias em nossos territórios, mas com um fracasso revolucionário cotidiano. Então, não
sabemos o gosto dessa vitória, seu cheiro, tampouco sua cor. Sabemos, entretanto, que,
ao final da jornada, aquelas e aqueles que seguirem estarão triunfantes e juntos. Uma
sociedade em que estejamos verdadeiramente juntos nos parece um bom destino. Talvez
a redenção dos nossos povos seja justamente isto: a aliança, a unidade dos povos em luta.