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(Publicado originalmente no livro Sob o Signo das Bios: Vozes Críticas da Sociedade Civil, de Alejandra Ana Rotania e Jurema
Werneck [organização] – Rio de Janeiro: E-papers Serviços Editoriais, 2004. Volume 1: Reflexões no Brasil. 96 p.)
David Hathaway2
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Este trabalho é uma atualização de outro, originalmente elaborado com o gabinete da senadora Marina Silva, em
novembro de 2001, e a partir do qual foi publicada uma versão no livro Seria melhor mandar ladrilhar?, do
ISA/UnB.
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Economista, norte-americano residente desde 1979 no Brasil. Trabalha com ONGs brasileiras (IBASE, FASE, AS-
PTA, ISA) e desde 1981 em pesquisas e trabalhos educativos sobre assuntos ambientais como agrotóxicos,
biotecnologias, biodiversidade, recursos genéticos, direitos intelectuais comunitários e propriedade industrial
(patentes, cultivares). A partir da Conferência Mundial sobre Meio Ambiente (Eco-92) representou o Fórum
Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente e Desenvolvimento, por estas mesmas questões,
junto ao Congresso Nacional, Ministérios e instâncias de negociação internacional como a Convenção da
Biodiversidade e o Protocolo sobre a Biossegurança, além de articulações de ONGs sobre a revisão do acordo
TRIPs na OMC. Desde 1999 mora em Brasília.
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Mesmo sendo membro da CDB, no entanto, o Brasil ainda não tem uma legislação eficaz
sobre a exploração comercial de seus recursos genéticos. Por isso, a biopirataria também
representa o aproveitamento do vácuo legal nacional sobre o tema.
São muitas as maneiras que temos observado de biopirataria, Em algumas situações o
pesquisador/coletor se torna íntimo de uma comunidade tradicional, ganha sua confiança e acessa
conhecimentos preciosos sobre uso da fauna e da flora para fins diversos, especialmente
medicinal. A maioria dos casos de que se tem notícia se refere a roubos de recursos materiais
associados às informações culturais (ou “conhecimentos associados” aos recursos genéticos).
Fala-se também da biopirataria que utiliza pesquisadores locais bem intencionados e mal
informados (pouco mais do que “laranjas” de laboratórios industriais) necessitados de apoio para
seu trabalho em campo. Há ainda pesquisadores brasileiros ingênuos que oferecem suas coleções
de plantas, insetos, fungos etc., para instituições científicas no exterior, de onde acabam sendo
entregues a empresas que as usam para patentear – e monopolizar – remédios ou outros produtos
comerciais.
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Direitos dos índios sobre os seus conhecimentos
O art. 231 da Constituição Brasileira diz que:
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§10 - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§2° - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes.
Esse artigo portanto assegura direitos dos índios à sua terra e a tudo que nela há, bem
como ao reconhecimento de seus costumes e tradições, cabendo à União a sua proteção. Está
parado na Câmara dos Deputados, há 12 anos, outro projeto de lei, o “Estatuto das Sociedades
Indígenas”, sobre o qual nenhum governo consegue avançar. Isso também foi o caso com a
ratificação pelo Brasil da “Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”, que passou
anos sem tramitar no Senado Federal, mas que finalmente foi votada e ratificada em 2002, criando
ao menos uma base genérica para o respeito a direitos indígenas neste e em outros campos.
A Medida Provisória nº 2.186 assegura formalmente o direito das comunidades a
decidirem sobre o uso por cientistas ou empresas de seu conhecimento tradicional, de maneira que
o interessado no acesso precisa conseguir antes a “anuência” das comunidades. Entretanto, esse
termo anuência é vago e substitui o reconhecido conceito de “consentimento prévio informado (ou
fundamentado)”. Por outro lado, os direitos de comunidades tradicionais e locais não indígenas
(agrícolas, quilombolas, de pescadores etc.) ficam subordinados à possibilidade de o Conselho de
Gestão do Patrimônio Genético (o CGEN, que, como já vimos, não tem representação com voto
nem de índios e nem de outras comunidades) invocar o subjetivo critério de “relevante interesse
público”, para autorizar o acesso a seus conhecimentos sem consentimento, anuência ou sequer
uma consulta. Acrescente-se a isso a provisoriedade deste instrumento legal e a falta nele de
sanções penais contra o crime de biopirataria, entre outras limitações.
Portanto, com essas lacunas e a falta de uma legislação que regulamente os arts. 231 e o
225 (meio ambiente) da Constituição – este último em relação à biodiversidade e o acesso aos
recursos genéticos – pode-se dizer que as comunidades indígenas e outras ainda permanecem hoje
sujeitas à biopirataria.
produção de isomerase de glucose;
microrganismo de solo da Bristol Labs, patenteado para a produção do remédio
streptonigrin;
microrganismo de solo depositado pela Warner-Lambert/Parke Davis, patenteado para a
produção do complexo CL 1565 de antibióticos;
microrganismo de origem não identificada depositado pela Kaken Pharmaceuticals,
patenteado para a produção do remédio antitumoral heteroglycans.
O Viagra também tem seus concorrentes amazônicos, um deles já patenteado no Japão.
Trata-se da planta muirapuama (Ptychopetalum spp.), tida como afrodisíaca. A patente foi
solicitada no escritório nipônico de patentes em 20.7.1993 pela Taisho Pharmaceutical Co. Ltd., e
depois na Austrália, Canadá, Coréia, Estados Unidos e Comunidade Europeia (PCT Gazette, nº
4/1994, p. 1.600). No resumo do pedido por direitos monopólicos sobre sua suposta invenção, a
empresa afirma que:
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O muirapuama é a raiz de um arbusto da família Olacaceae, que cresce na bacia do rio
Amazonas, Brasil, cuja vegetação original inclui Ptychopetalum olacoídes, P. uncinatum e
Liriosma ovata. Seu extrato é conhecido de tempos antigos como tônico e afrodisíaco, mas
apresenta problemas de, por exemplo, baixa eficácia da droga. Agora, os inventores
atuais descobriram que o extrato contendo pelo menos 0,033% de beta-sitosterol,
preparado pela condensação de uma solução obtida pela maceração de uma droga crua
picada contendo muirapuama com 50-99% de etanol, tem efeitos tônicos e afrodisíacos
mais potentes do que aqueles dos extratos convencionais e extratos secos. Além disso,
constatou-se que drogas contendo o extrato são eficazes na prevenção ou tratamento da
impotência, subvirilidade e afins causadas por estresse.
A invenção? Simplesmente usar uma solução concentrada de álcool na produção dos
extratos. O efeito? Converter a empresa em dona do único processo eficaz para a produção do
extrato desta erva brasileira em escala industrial.
Referências bibliográficas
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