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Sobre o direito consuetudinário dos povos indígenas e

a transposição de barreiras em busca do reconhecimento Estatal1


Gustavo Hamilton de Sousa Menezes – UnB/FUNAI

Resumo

Minha comunicação junto ao GT 60 visa, primordialmente, refletir sobre as


estratégias dos povos indígenas para garantir a utilização de seus sistemas tradicionais
de direito no controle social e na resolução de conflitos internos às suas comunidades.
As dificuldades são muitas, uma vez que o direito consuetudinário é frequentemente
visto como algo menor ou inferior pelo meio jurídico, o qual privilegia a lei e a
codificação das normas em detrimento da tradição oral e dos costumes que caracterizam
as sociedades indígenas. Aqui, pretendo resgatar exemplos de povos indígenas que
buscaram a implementação de forças policiais próprias e de ambientes de reclusão
(cadeias), assim como instituíram regimentos internos escritos tipificando condutas
ilícitas e definindo punições, como estratégia política para serem reconhecidos pela
justiça nacional.
De maneira complementar, pretendo também refletir sobre a inabilidade do
Estado em promover o pluralismo jurídico, a partir do exemplo de duas políticas
públicas recentes que foram implantadas sem qualquer referência ou preocupação com
as especificidades indígenas; são elas a “Lei do desarmamento” ((Lei nº 10826 de 2003)
e a “Lei de crimes ambientais” (Lei 9605 de 1998). Como o estabelecimento dessas leis
não foi acompanhado de campanhas educativas dentro das terras indígenas, nem houve
o estabelecimento de um caminho burocrático mais simples para os índios, tais leis
resultam na frequente criminalização e mesmo aprisionamento dos indígenas que não se
adequaram a elas, assim como revelam que o tão esperado pluralismo jurídico brasileiro
continua a ser, em larga medida, uma proposição teórica que não se concretiza na
prática.

Palavras-chave: antropologia jurídica, direito consuetudinário, pluralismo jurídico

1
“Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.”

1
Um grande abismo entre a teoria e a prática

Quando promulgada, em 1988, a Constituição Federal trouxe grande esperança


de tempos melhores aos índios brasileiros, por superar o paradigma integracionista do
Estatuto do Índio, por reconhecer a capacidade civil dos índios e de suas comunidades, e
por assegurar-lhes o direito de manter a sua identidade cultural diferenciada,
reconhecendo permanentemente sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições e os direitos originários sobre as terras que ocupam.
Quando de sua promulgação houve – entre indígenas, indigenistas e
antropólogos, dentre outros – uma sensação de que tais direitos, uma vez cristalizados
na Carta Magna, estariam garantidos e que o papel dos órgãos estatais seria o de
paulatinamente se adequar ao conteúdo expresso na Constituição. Passados mais de 25
anos desde a assinatura da Constituição, os povos indígenas percebem que o Estado não
só não se adequou plenamente às diretrizes constitucionais, como as tentativas de
alteração Constitucional (através de Projetos de emendas constitucionais – PECs) têm se
multiplicado e ganho repercussão dentro do próprio governo, criando uma grave
instabilidade nos povos indígenas e nas ações indigenistas. O foco dessas ações “anti-
indígenas” é quase sempre o direito à demarcação de terras tradicionais; direito esse
ameaçado por PECs que visam alterar os procedimentos demarcatórios.
Outro campo onde as diretrizes legais sobre a questão indígena não são
plenamente seguidas é o campo da Justiça. O reconhecimento constitucional de que os
povos indígenas têm organizações sociais próprias, somado ao conteúdo da Convenção
169 da OIT (artigos 8º, 9º e 10), deveria ter norteado uma política diferenciada em
relação à Justiça, especialmente no que diz respeito à aplicação, por parte dos povos
indígenas, de seus sistemas tradicionais de direito para a resolução de conflitos.
Contudo, os povos indígenas quase nunca encontram uma atmosfera propícia no sistema
jurídico nacional para desenvolver suas sensibilidades jurídicas. Assim, iniciativas
como as guardas indígenas Ticuna ou Pataxó, são frequentemente deslegitimadas pelo
poder público, que não reluta em considerá-las “milícias” ilegais.
Baseado na minha experiência como antropólogo atuante na Procuradoria
Especializada Federal junto à FUNAI, responsável pela elaboração de laudos
antropológicos em situações onde índios são réus em processos criminais, sustento que
o preconceito em relação aos índios e a ignorância em relação às leis indigenistas

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atravessam as fronteiras da sociedade e contaminam também os servidores da justiça
(juízes, delegados, policiais, etc.) que tomam decisões frequentemente orientadas por
suas próprias idiossincrasias.
Uma das interpretações mais comuns e equivocadas desses servidores da justiça
é em relação ao escopo da autonomia cultural garantida por lei aos índios. Muitos
delegados e policiais mostram o entendimento de que os indígenas teriam sim certa
autonomia cultural, porém, interpretam que tal autonomia estaria restrita ao interior da
Terra Indígena. Assim, há casos de condutas indígenas que são “toleradas” pelas forças
policiais quando são praticadas no interior das Terras Indígenas, mas que são reprimidas
por essa mesma força, se praticadas fora das Terras Indígenas, principalmente em
contexto urbano. Nota-se que as forças policiais – mesmo aquelas que atuam no entorno
ou nas proximidades de Terras Indígenas – não têm um treinamento específico sobre a
questão indígena, demonstram desconhecer profundamente a legislação indigenista e
estão prontos a criminalizar práticas culturais que, segundo esta mesma legislação,
deveriam ser admitidas.
Um caso por mim acompanhado que demonstra essa perspectiva ocorreu com
um indígena do povo Apinajé que foi preso na cidade de Tocantinópolis, estado do
Tocantins, por estar de posse de um ramo de 55g de Cannabis Sativa. Ele foi preso em
flagrante quando oferecia a planta para outro indígena com quem encontrou na cidade,
pois sabia que a sogra deste é diabética e faz uso medicinal de Cannabis Sativa.
A prisão em flagrante ocorreu em dezembro de 2012 e foi convertida em prisão
preventiva pelo Juiz de Direito da Vara Criminal da Comarca de Tocantinópolis – TO.
Contra essa prisão, foi apresentado pedido de Habeas Corpus pela Defensoria Pública
Estadual perante o Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Tal pedido foi
indeferido, inicialmente, e o indígena passou cerca de um mês em uma cadeia pública
superlotada, com estrutura precária e os mais baixos padrões de higiene. Em sua
explicação para a manutenção da prisão preventiva, o juiz de tal Comarca afirmou que
“o índio, como todo e qualquer cidadão, tem o dever de se submeter ao ordenamento
jurídico.” Assim, atualmente, este indígena Apinajé responde na justiça à acusação de
“trafico de entorpecente” (artigo 33 da Lei nº 11343/2006), crime cuja pena mínima é
de três anos de reclusão, mais pagamento de multa.
É importante destacar que o plantio e o uso medicinal da planta Cannabis Sativa
estão incorporados à tradição Apinajé – assim como à de outros povos indígenas
brasileiros, como os Kraho e os Guajajara, por exemplo – sendo consideradas atividades

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normais entre eles, não havendo qualquer sanção interna para aqueles que plantam,
consomem e até vendem esta planta. Entre os Apinajé, a Cannabis Sativa não tem status
de droga ilícita e é comercializada entre seus membros por valores muito baixos,
semelhantes a outras plantas que eles também cultivam, como abóbora e mandioca. O
ramo que o indígena Apinajé possuía quando foi preso em Tocantinópolis, por exemplo,
foi por ele adquirido de outro indígena, na aldeia Palmeira, em troca de uma barra de
sabão e um pedaço de carne. E, quanto ele se encontrou na cidade com outro morador
da Terra Indígena, o valor atribuído ao ramo de Cannabis Sativa foi de, apenas, R$ 5,00
(cerca de 2 dólares) demonstrando não haver nesta transação qualquer agregação
financeira típica dos produtos ilícitos. Um fato que contribuiu para a manutenção da
prisão do indígena foi a não aceitação pela polícia do critério de auto-identificação para
reconhecê-lo como indígena e coube à FUNAI enviar documentos à polícia
confirmando a identidade do indígena, assim como o uso tradicional de Cannabis Sativa
pelos Apinajé. Mas as autoridades policiais insistiram que tais documentos não
alterariam de imediato a situação do acusado, uma vez que seria avaliado pelo juiz se o
indígena seria ou não “aculturado”.
Os membros mais idosos das aldeias Apinajé afirmam que nenhum Apinajé
jamais foi preso em razão de possuir plantas Cannabis. Confirmam também que o
plantio e o uso medicinal de tal planta é uma prática já antiga, presente desde o tempo
dos “avós dos avós”, ou seja, há várias gerações. Alguns autores acreditam que a
entrada dessa planta na região se deu através do rio Tocantins, onde as primeiras
expedições colonizadoras ocorreram há vários séculos, período em que esta planta se
disseminou pela região nordeste do Brasil, vinda junto com africanos trazidos ao Brasil
como força escrava (Gontiès & Araújo, 2003; Macrae & Simões, 2000).
Para se compreender a visão de mundo dos Apinajé sobre a pertinência e a
licitude do uso da planta Cannabis Sativa, é importante que se entendam os principais
elementos de sua cosmologia, suas concepções dos seres que habitam o universo e da
relação que se estabelecem entre eles. Dentre os autores que se dedicaram ao estudo dos
vários componentes da cultura Apinajé, foi Giraldin (2000, 2001) quem mais se
aprofundou no estudo das relações que se estabelecem entre humanos, animais e
plantas, e como elas se tornam compreensíveis quando relacionadas às noções de
doença, cura, morte e vida post-mortem. Segundo Giraldin, a lógica Apinaje para a cura
está ligada à sua lógica da interpretação do mundo material como consistindo de
matérias que possuem um duplo, uma imagem, um karõ, como dizem em sua língua

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materna (família linguística Jê, subgrupo Timbira ocidental). Para contrapor-se à ação
de um karõ que ataca o corpo de alguém, recorre-se à ação de um princípio oposto, e
mais potente, que possa neutralizá-lo. Este princípio é o kanê, o qual é originário, quase
exclusivamente, do reino vegetal. Para todo tipo de indisposição física, encontra-se
entre os vegetais um kanê (ibid:).
A partir dessa lógica, os Apinajé apontam a Cannabis Sativa como benéfica no
tratamento de vários males, como febre, dor de barriga, “barriga inchada” (verminose),
diabetes e derrame. O tratamento ocorre principalmente com a ingestão do chá das
folhas de Cannabis Sativa, mas há também aqueles que fumam a planta. O plantio da
Cannabis Sativa nas aldeias não é feito de forma escondida, mas junto a plantas caseiras
como coentro, gengibre e salsinha, que são plantadas em pequenas porções junto às
casas, e não nas roças mais distantes, onde se planta alimentos em maior quantidade,
como mandioca e feijão. Não há entre os Apinajé, por exemplo, a noção de que essa
planta não é endêmica. Para eles, a Cannabis Sativa é mais uma das plantas da região,
cujos princípios ativos (e o espírito/elemento karõ) devem ser conhecidos e aplicados na
sua medicina tradicional.
Existe, entre os Apinajé, um certo entendimento de que a Cannabis Sativa tem
seu uso e plantio proibido para as pessoas não-índias. Contudo, conhecedores de sua
condição de indígena, eles têm noção de que a Constituição Federal de 1988 os protege
e reconhece. Assim eles interpretam que dentro da Terra Indígena as regras são ditadas
por eles próprios e que, fora dela, sua autonomia é reduzida. Contudo, nem sempre é
possível ao índio ter uma conduta dentro da aldeia e outra fora dela. Ao fazer uma
negociação na cidade com um morador de outra aldeia Apinajé, o indígena estava
conversando na sua língua materna e não enxergou sua conduta como algo ilícito. Mas o
poder público, muitas vezes, acredita que as tradições do indígena devam ser confinadas
ao interior da Terra Indígena, em uma interpretação conflitante com o que estabelece a
Constituição de 1988 e com o que interpretam juristas com maior conhecimento sobre o
assunto. Veja-se, por exemplo, o que afirma René Ariel Dotti, Professor Titular de
Direito Penal da Universidade Federal do Paraná:
“Fica a advertência de que, mesmo totalmente integrado à
sociedade nacional e à sua cultura, da cidade ou do campo, o indígena ainda
conserva raízes que não podem ser renegadas. Há influências grupais que
estabelecem, no seu próprio âmbito de civilização e cultura, a noção de licitude
ou ilicitude da conduta. Assim, um índio Guajajara, descendente desta etnia que

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tem como tradição cultural o uso da maconha em determinados rituais, não deve
ser tratado como qualquer outro usuário da mesma droga pelo fato de falar
português e morar na cidade.” (2010: 73).
Entendendo a necessidade de se tratar diferenciadamente índios cujas culturas
preveem o uso tradicional de substâncias entorpecentes, assim se pronunciou Maria
Lúcia Karam, Juíza de direito aposentada, ex-juíza auditora da Justiça Militar Federal:
“O proibicionismo em matéria de drogas diretamente atinge povos
indígenas latino-americanos, fundamentando a criminalização de condutas
relacionadas à produção, à distribuição e ao consumo de substâncias psicoativas
e matérias-prima para sua produção, inseridas em suas tradições, praticadas
desde tempos imemoriais, vinculadas à sua própria subsitência.” (2010: 142).
Refletindo, principalmente, sobre a folha de coca, mas sublinhando que suas
análises se estendem também à planta Cannabis, a autora prossegue:
“A folha de coca, como também acontece em outras comunidades
indígenas latino-americanas com derivados da cannabis, tem sido um
componente fundamental da cultura, da medicina, da culinária e das próprias
religiões professadas por povos andinos, sendo considerada uma planta sagrada
para os que a cultivam e a utilizam desde tempos imemoriais, planta que,
conforme tradição, pertencia aos deuses e teria sido presenteada por
Pachamamam, a Mãe Terra, às nações Aymara e Quéchua” (ibid: 148)
Esse, no entanto, não é um entendimento corrente entre os operadores de direito
que, na maioria das vezes, negam direitos diferenciados aos indígenas ao concluir, a
partir de elementos aleatórios e superficiais, que o indígena é integrado. Em um caso em
que um indígena Guajajara foi preso por tráfico ilícito de entorpecentes, por exemplo, a
acusação considerou como item relevante para se identificar que o indígena era
integrado – e que o laudo antropológico era desnecessário – fato de ele ter “habilidade
para conduzir motocicleta”.
No entanto, a pesquisa de campo demonstra que o fato dos Apinajé possuírem
documentos, lidarem com dinheiro e com tecnologia não garante sua plena introjeção
das leis da sociedade envolvente. A falta de traquejo com as regras comerciais, por
exemplo, tem feito dos Apinajé (assim como de outros povos indígenas) vítimas fáceis
de comerciantes inescrupulosos. O abuso mais frequente sofrido pelos Apinajé é em
relação aos cartões de aposentadoria e “bolsa família”, benefícios em dinheiro que
podem ser sacados mensalmente em bancos através de cartões magnéticos. Acontece

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que tais cartões, que deveriam ficar em posse de seus beneficiários, são retidos pelos
comerciantes locais, que se apoderam dos cartões e impõem aos indígenas uma
“escravidão financeira”. Tal prática é conhecida como “máfia dos cartões”, esquema
detalhado em uma matéria jornalística:
“O comerciante vende a prazo para o indígena, mas retém o
cartão dele e no dia do pagamento do benefício o próprio comerciante ou
um funcionário do estabelecimento vai até o caixa eletrônico e faz o
saque da conta do indígena. Em outras situações há denúncias de que no
dia de receber o pagamento os comerciantes levam grupos de indígenas
para o interior dos bancos para sacarem o benefício. O dinheiro recebido
serve para quitar a dívida junto ao comércio, que abre novo ‘crédito’ para
as compras do mês seguinte.
A prática, realizada sem nenhuma fiscalização, abre margem para
verdadeiros ‘roubos’, já que alguns indígenas não sabem quais foram os
valores sacados e se estas quantias são, de fato, o que eles tinham
consumido nos estabelecimentos.
De acordo ainda com as lideranças, a retenção do cartão, por parte
de comerciantes, gera o que eles chamam de ‘escravidão financeira’ do
indígena, já que ele sempre vai permanecer endividado naquele
estabelecimento e consequentemente perde a liberdade de procurar
atendimento em outras mercearias e buscar melhores preços.” (Araújo,
2013)
Percebe-se, portanto, que, em matéria de transações comerciais (lícitas e ilícitas)
as comunidades indígenas são a parte mais frágil e vulnerável na sua relação com os
comerciantes, necessitando, primordialmente, de assistência e proteção, e não de
criminalização e penalidades.

Criminalizando o direito consuetudinário

Práticas destinadas a produzir uma invisibilização étnica dentro das estruturas


estatais foram bem apontadas pelo Miller (2003), de forma ampla, e por Silva, de forma
específica para o Brasil (2013). O que se observa é que, no caso brasileiro, apesar das
leis garantirem um tratamento diferenciado para os indígenas, a implementação dessas
garantias é sempre problemática, pela tendência que têm os órgãos de justiça em

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universalizar políticas sem refletir sobre sua aplicação junto às populações indígenas.
Assim, o tão esperado pluralismo jurídico brasileiro – que só poderia ser efetivamente
estabelecido a partir do reconhecimento do direito consuetudinário dos povos indígenas
– continua a ser, em larga medida, uma proposição teórica que não se concretiza na
prática.
Um exemplo disso é nova lei do desarmamento (Lei nº 10826 de 22 de
dezembro de 2003). Em vigor desde 2004, esta lei dispõe sobre o registro, a posse e a
comercialização de armas de fogo e munição. Segundo tal lei, somente poderão
portar armas de fogo os responsáveis pela garantia da segurança pública, os integrantes
das Forças Armadas, policiais civis, policiais militares, policiais federais e policiais
rodoviários federais, agentes de inteligência, auditores fiscais e os agentes de segurança
privada quando em serviço. Essa lei não faz qualquer referência à população indígena,
mencionando apenas que, dentre os civis que poderão requerer o porte, estão os
“residentes em áreas rurais”. Para esses, o porte poderá ser requerido por aqueles que
comprovem a necessidade do uso das armas, tenham mais de 25 anos e anexem uma
série de documentos ao requerimento (documentação de identificação pessoal,
comprovante de residência em área rural, atestado de bons antecedentes).
Contudo, o estabelecimento de todas essas regras não foi acompanhado de
campanhas educativas dentro das terras indígenas, nem houve o estabelecimento de um
caminho burocrático mais simples para os índios. Como resultado, os índios continuam
portando e fazendo uso de armas de fogo dentro das Terras Indígena, sendo
frequentemente criminalizados e mesmo presos por manterem essa prática. Sabe-se, no
entanto, que as armas de fogo chegaram a muitos povos indígenas justamente através
dos agentes do Estado (SPI e Funai), de missionários e até de antropólogos,
disseminando-se rapidamente (sendo um dos bens de troca mais valorizados) e
substituindo as armas tradicionais de caça em grande parte das terras indígenas, sendo
também incorporadas à mitologia de vários povos, como a dos Kraho e dos Canela
(Carneiro da Cunha, 1992: 19). Em resumo, com o novo estatuto do desarmamento,
diminuiu a tolerância das forças de segurança em relação à posse e ao uso de armas de
fogo por indígenas e, sem uma política diferenciada que contemple as especificidades
históricas e culturais dos índios, o resultado tem sido a frequente criminalização e
punição de membros dessas comunidades.
Acompanhei diversos processos criminais em que indígenas foram presos dentro
de Terras Indígenas demarcadas por portarem as armas de fogo que usam,

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prioritariamente, para caçar. Recentemente, um inquérito policial foi instaurado contra
três membros de uma comunidade indígena Guarani da reserva de Pinhalzinho, no
estado do Paraná, sob a mesma acusação. Segundo a lei 10.826/03 (Estatudo do
desarmamento) o porte de arma de fogo sem autorização pode acarretar prisão de dois a
quatro anos e multa.
Também do Paraná, estado da região sul do Brasil, vem outro exemplo da
criminalização de indígenas pelo porte de armas. Isso ocorreu com um cacique kaingang
que, pela posse de duas espingardas de caça, foi preso dentro da Terra Indígena São
Jerônimo e conduzido à delegacia do município de São Jerônimo da Serra, (Tavares,
2014). No centro-oeste do país, um cacique do povo Javaé foi detido na cidade de São
Miguel do Araguaia levando duas armas de caça para serem consertadas. Atualmente
ele responde a processo criminal.
Em casos dessa natureza, percebe-se toda a vulnerabilidade dos cidadãos
indígenas, que são inseridos com réus dentro da esfera judiciaria sem conhecer os
caminhos e os meandros da justiça nacional. Muitos deles têm a língua portuguesa
como segunda língua e têm uma alfabetização bastante precária. Assim, é comum que
eles contratem advogados para sua defesa e contraiam altas dívidas por não saberem que
há uma defensoria pública que realiza esse serviço gratuitamente. Há também casos em
que réus indígenas poderiam ser soltos mediante pagamento de multas ou fianças, mas
permanecem presos por não conseguirem arrecadar a soma exigida.
Mas, talvez, o mais impressionante exemplo das incongruências e contradições
nas políticas públicas que afetam os povos indígenas seja a frequente criminalização de
indígenas por crimes ambientais. O Brasil, buscando diminuir suas altas taxas de
desmatamento florestal e buscando frear a exploração indiscriminada dos seus recursos
naturais, vem adotando no século XXI uma legislação rigorosa de proteção ambiental.
Um dos principais alvos dessa proteção são as Unidades de Conservação e as Florestas
Nacionais. No entanto, muitos desses ambientes de proteção ambiental sobrepõem-se às
Terras Indígenas, gerando conflito de interpretação sobre o que é e o que não é
legalmente permitido aos índios fazer em relação ao manejo ambiental da terra aonde
vivem. Assim, em certas terras indígenas onde, de acordo com a Constituição Federal,
as comunidades indígenas deveriam ter o “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos
rios e dos lagos nelas existentes” (art. 231), membros das comunidades indígenas vêm
sendo criminalizados por atividades como caça de animais silvestres, derrubada de
árvores e queimadas na vegetação para abertura de roças. Sabe-se, no entanto, que as

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Terras Indígenas são as áreas de maior conservação de todo o território nacional, com
taxas de desmatamento menores até dos que as próprias unidades de conservação (Lobo
da Costa, 2010: 109).
Acompanhei o caso de um índio Kaingang do estado de Santa Catariana que foi
abordado pela polícia ambiental dentro da terra indígena quando derrubava 0,4 hectares
de mata adjacente a sua roça para aumentar a área de plantio. Ele foi condenado pela
justiça, teve que pagar multa e realizar o reflorestamento da área. De acordo com a
divisão interna da Terra Indígena Xapecó, este indígena detinha direitos sobre três áreas
– de 18, 17 e 12 hectares – num total de 47 hectares. O local onde ocorreu a derrubada
de árvores (de 0,4 hectares) foi uma “curva” no limite da área de 12 hectares desse
indígena. Ele tentava transformar a curva em uma reta para facilitar o seu trabalho de
plantio e colheita. Quando lhe questionei se ele tinha noção de que esse ato poderia ser
ilícito de acordo com as leis nacionais, ele respondeu:
“Eu não sabia que era errado não. Achei que estando ali no meu sítio ensinando
o meu filho a trabalhar, eu não teria problema nenhum. Eu pensava: tô ensinando
o meu filho a trabalhar na lavoura. Porque eu posso não existir mais e eu quero
que ele saiba, né, plantar, colher a lavoura.”
Assim, o principal argumento desse Kaingang é de que ele desconhecia a ilegalidade de
se derrubar, em pequenas proporções, madeiras de área adjacente ao seu sítio, dentro da
Terra Indígena. Entre os indígenas isso ocorre, principalmente, não porque os réus
tenham completo desconhecimento das leis nacionais, mas porque a legislação
ambiental específica é complexa e, em certos pontos, ambígua, e jamais houve qualquer
formação ou capacitação dessas lideranças neste assunto.
Esse extremo “tecnicismo” da lei dos Crimes Ambientais é também criticado
pela pesquisadora Helena da Costa. Segundo ela:
“Até os técnicos enfrentam dificuldade para compreender e delimitar o
alcance destes tipos penais. Assim, eh razoável imaginar que os destinatários da
norma – tantos índios quanto não índios – não são por ela adequadamente
motivados a se comportar em conformidade com o direito, já que sequer
conseguem compreender qual conduta lhes é exigida. No caso especifico do
índio, essa dificuldade tende a aumentar a medida que sua cultura se distanciar
do conhecimento dos sistemas técnicos e procedimentos burocráticos
desenvolvidos pelos não índios para a proteção ambiental.”

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Vê-se, portanto, que o Estado – tão ausente junto aos povos indígenas no que diz
respeito a serviços essenciais de educação e saúde, por exemplo – chega frequentemente
a esses povos não por meio do diálogo, do respeito e da tolerância, como se esperaria de
um país que admite o pluralismo jurídico, mas por meio da força, da criminalização e da
intransigência. São algumas dessas contradições e incongruências na relação entre a
justiça e os povos indígenas que o antropólogo busca demonstrar sempre que atua como
perito na esfera judiciária.

Luz no final do túnel?

Apesar de todas as dificuldades que aqui apontamos no diálogo entre os povos


indígenas e a justiça criminal brasileira (e entre a antropologia e o direito), devemos
também reconhecer que há certos avanços nessa comunicação. Em um caso em que
atuei como perito – referente ao homicídio de um índio Kaingang por outro da mesma
aldeia – o juiz acompanhou a minha conclusão (baseada em deliberação da comunidade)
e sentenciou o réu a cumprir sua pena na aldeia de sua esposa (Reserva Indígena Barão
de Antonino) e não na mesma aldeia de onde a vítima era originária (Reserva Indígena
Apucaraninha), pois lá o réu corria reais riscos de sofrer vingança por parte dos parentes
mais próximos da vítima.
Outro bom exemplo de sensibilidade jurídica em relação ao direito
consuetudinário indígena é a recente decisão do Tribunal de Justiça do Estado de
Roraima que, em um caso de homicídio entre indígenas na comunidade Manoá, aceitou
a penalidade imposta pelo Conselho das Comunidades Indígenas, reconhecendo a
primazia do direito das próprias comunidades indígenas para julgar seus pares, e
declarando a ausência, nesse caso, do direito de punir estatal. Segundo o juiz de direito
que analisou o caso, Aluizio Ferreira Vieira, a sentença pronunciada será um fator de
fortalecimento dos usos, costumes e tradições indígenas. Nas palavras do juiz:
“muito maior que o reconhecimento do direito de punir seus pares, as
comunidades indígenas se sentirão muito mais fortalecidas em seus usos e
costumes, fator de integração e preservação de sua cultura, haja vista que o
Estado estará sinalizando o respeito ao seu modo de viver e lidar com as tensões
dentro da comunidade.”
Exemplos como esse insistem em nos manter otimistas, apesar de tudo.

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Serra, estado do Paraná, em face do Inquérito Policial nº 75/2011, Protocolo
nº08620.027629/2012-53. Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Brasília-DF,
2014.

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