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JUSTIÇA FEDERAL

5ª SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE MATO GROSSO DO SUL


1ª VARA FEDERAL DE PONTA PORÃ

LAUDO ANTROPOLÓGICO DO ÍNDIO ESTEFANO ORTIZ BENITEZ


RÉU NA AÇÃO PENAL
Nº. 0000559-42.2012.403.6005

ANTONIO HILARIO AGUILERA URQUIZA

PONTA PORÃ, NOVEMBRO DE 2012.


SUMÁRIO

Lista de Abreviações 03

INTRODUÇÃO 04

1. Histórico dos trabalhos e procedimentos científicos 06

2. Quesitos do Juízo 11

Referências bibliográficas 27

Anexos 29

2
LISTA DE ABREVIAÇÕES

ABA – Associação Brasileira de Antropologia


AGU – Advocacia Geral da União
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
DOF – Departamento de Operações de Fronteira
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
MPF – Ministério Público Federal
OIT – Organização Internacional do Trabalho
ONG – Organização Não-Governamental
PGF – Procuradoria Geral Federal
PHAC – Penitenciária Harry Amorim Costa
PM – Polícia Militar
SPI – Serviço de Proteção do Índio
UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

3
INTRODUÇÃO

Este estudo antropológico apresenta os resultados da perícia solicitada pela


Justiça Federal de Ponta Porã / MS, tendo como objetivo central responder aos quesitos
apresentados pelo Ministério Público Federal – Procuradoria da Justiça de Ponta Porã e
da FUNAI, a qual foi realizada pelo antropólogo Antonio Hilario Aguilera Urquiza –
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Seu objeto consiste em responder aos quesitos, a partir da abordagem da


ciência antropológica, na tentativa de oferecer respostas às dúvidas jurídicas
formuladas, a partir da ação penal contra Estefano Ortiz Benitez, considerado, nos
autos, como sendo indígena e, com direitos garantidos no ordenamento jurídico por
apresentar certas especificidades culturais, as quais serão motivos de discussão no
presente relatório.

Os quesitos são respondidos, a partir da perícia realizada, considerando sua


relevância e pertinência antropológicas, de acordo justamente com o que preconiza os
fundamentos e limites teóricos da disciplina, com o objetivo de elucidar elementos de
cunho étnico e sociocultural que, por ventura, tenham influenciado no desenrolar das
ações preconizadas nos autos.

Como veremos adiante, o acusado é considerado indígena, em base à


própria fundamentação teórica apresentada pela antropologia, a partir do processo de
auto declaração ou auto identificação, quando o indivíduo de determinado grupo étnico
se declara pertencente ao mesmo e é reconhecido pelo seu grupo de origem como tal.

4
O que procuramos salientar, neste caso, foram os modos particulares e até
que ponto, o fato de pertencer a um universo sociocultural específico e diverso daquele
hegemônico na sociedade nacional, embora em contato com o contexto regional, tenha
corroborado para compreender sua participação nos fatos que levaram à sua prisão.

Dessa forma, o presente laudo antropológico procurará responder, se o réu é


realmente indígena e, em caso afirmativo, até que ponto vai seu envolvimento com a
aldeia de origem e com a sociedade regional e nacional. Até que ponto, sendo indígena,
teria ou não consciência da ilicitude dos próprios atos e, em se confirmando a noção e
consciência da ilicitude dos próprios atos, se caberia (no caso de ser pertencente a um
grupo étnico específico), formas alternativas de pena, conforme consta já, no
ordenamento jurídico nacional e internacional, quando desses casos.

Foto 01 – O réu na Penitenciária Harry Amorim Costa

Fonte: Equipe da Perícia Antropológica (29/10/2012)

5
I

HISTÓRICO DOS TRABALHOS E PROCEDIMENTOS CIENTÍFICOS

A presente perícia antropológica foi realizada em cumprimento ao Mandado


de Intimação Criminal intimação nº 09/2012-SCAD-RÉU PRESO para realizar laudo
antropológico em ESTEFANO ORTIZ BENITEZ, o qual é réu na ação penal
0000559-42.2012.403.6005 que lhe move o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 1ª
Vara Federal de Dourados, 2ª Subseção Judiciária de Mato Grosso do Sul, com o
propósito de averiguar o grau de integração à sociedade, bem como da consciência da
ilicitude da conduta do denunciado.

A primeira etapa das atividades restringiu-se ao contato com o tema da


intimação da perícia, algumas leituras subsidiárias e a organização das tarefas que
deveriam ser desenvolvidas pela equipe composta pelo perito, auxiliares e assistente
técnico: calendário de viagens, infraestrutura, contatos no Presídio Masculino de
Amambai/MS, entre outros.

Foto 02 – Equipe da Perícia Antropológica na PHAC

Fonte: Equipe da Perícia Antropológica; 29/10/2012;

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A segunda etapa das atividades, referente ao trabalho de campo foi realizada
durante os dias 29 e 30/10/2012, ocasião em que o perito e o assistente técnico do MPF
(Ministério Público Federal), antropólogo, Marcos Homero Ferreira Lima (Analista
Pericial em Antropologia do MPF – Dourados) entraram em contato com o índio da
etnia Kaiowá ESTEFANO ORTIZ BENITEZ e com sua comunidade de origem:
Aldeia Bororó (agente indígena de saúde, diretora da escola e família). Por ocasião da
visita ao presídio e à aldeia estiveram presentes três auxiliares, duas estudantes de
Ciências Sociais (UFMS) e uma pesquisadora da juventude kaiowá: Tânia Milene
Nugoli, Sonia Lucas Rocha e Kristina Kroyer, respectivamente; na visita à Aldeia
Bororó, contamos com o auxilio de agentes indígenas de saúde (AIS) para a localização
da casa da família do detento, tendo em vista sua difícil localização.

Após as atividades de campo, deu-se a terceira etapa dos trabalhos, referente


à compilação e sistematização dos dados, confrontação de informações, com a
finalidade de elaboração do relatório final da perícia, solicitado pela Exma. Sra. Juíza da
1ª Vara Federal de Ponta Porã/MS.

Procedimentos Científicos da perícia – algumas reflexões


Durante quase 500 anos o Estado Brasileiro tratou o indígena como um
sujeito transitório, ou seja, como alguém que estava fadado a desaparecer ou inserir-se
na cultura regional, tornando-se caboclo (ou bugre, ou tantos outros nomes populares).
No entanto, desde a Constituição de 1988, este mesmo Estado brasileiro reconhece os
direitos deste “outro” indígena, que detém formas de compreensão e critérios de
comportamento e julgamento diferenciados da imagem monocultural hegemônica que
até então se consolidara como modelo para o reconhecimento do sujeito de direitos.
Sabemos, por sua vez, que esse princípio pluralista, no entanto, só adquire efetividade
se, na prática, o sistema jurídico (administrativo e judicial) se tornar, ele próprio,
intercultural – aberto à compreensão da ampla gama de sentidos conferidos à realidade
pelas pessoas que compõem a diversidade sociocultural que nos é constitutiva enquanto
nação1. O Estado, ele mesmo e suas respectivas instituições, na execução de políticas

1
Cf. AMORIM, Elaine (et. al.) A Ética na pesquisa antropológica no campo social. In:
http://6ccr.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/documentos-e-
publicacoes/docs_artigos/artigo_A_etica_na_pesquisa_antropologica_no_campo%20pericial.pdf.;
acessado em 05 de outubro de 2012.

7
públicas necessitam levar em conta que seguimentos nacionais vivem sob outros
paradigmas culturais, oriundos de outra lógica, que não a nossa, hegemônica,
denominada, aqui no âmbito deste trabalho, de eurocêntrica, ou ocidental.
Um dos recursos que tem sido utilizado para a concretização destes avanços
no ordenamento jurídico é, justamente, a realização da perícia antropológica em certos
processos que envolvem a afirmação de direitos socioculturais. O objetivo, para tanto,
segundo os mesmos autores (AMORIM, 2010) é trazer para o bojo das ações do Estado
perspectivas não hegemônicas, diferentes das comumentes adotadas, na tentativa de
arejar e dilatar o alcance das decisões do poder público em favor da consolidação de
direitos diferenciados. Pode-se acrescentar que é na tentativa, também, de evitar que
decisões relativas às vidas de pessoas e grupos étnicos e sociais minoritários, ocorram
baseadas em uma visão etnocêntrica, que toma apenas as suas próprias categorias de
compreensão do mundo como parâmetro de consideração e julgamento. Assim como a
saúde e a educação preconizam relações diferenciadas com os povos indígenas, também
a administração da justiça deve ser diferenciada, no mínimo sensível às diferenças.
A partir desta reflexão, podemos constatar que desde a promulgação da
Constituição de 1988, estabeleceu-se um profícuo debate entre a antropologia e o campo
do direito, a partir do qual toda uma literatura foi construída, com o objetivo central de
gerar subsídios consistentes na defesa dos direitos constitucionais das minorias
socioculturais, seja de indivíduos ou grupos sociais. Dito de outra forma, a atividade
pericial em antropologia tem por finalidade subsidiar, por meio da produção de
conhecimento especializado acerca de certos grupos minoritários, a formação da
convicção dos responsáveis pela garantia do cumprimento da lei, neste caso, no âmbito
judicial. A importância desse trabalho está na sua capacidade de revelar, por meio da
etnografia, os fundamentos necessários à consolidação de direitos coletivos sociais,
culturais e étnicos. É para fazer essa diferença que a pesquisa antropológica se torna
presente (Cf. AMORIM, 2012).
Nesse exercício profissional, a pesquisa em antropologia insere-se num
campo interdisciplinar e é constituída pelo diálogo entre saberes distintos (a exemplo da
antropologia e do direito), emoldurados pelo marco da legalidade constitucional. Neste
sentido, podemos afirmar que em consideração aos fundamentos da ciência
antropológica devemos trabalhar com contextos históricos específicos e socioculturais e
não apenas com indivíduos, ainda que neste caso, o sujeito da perícia seja um réu. Para
8
tanto, além da visita ao réu no Presídio Harry Amorim Costa (PHAC), onde foi
realizada seção de entrevista gravada e filmada, a partir de roteiro previamente
preparado, na sequência, foi realizada a continuidade dos trabalhos periciais, com a
respectiva visita à família do réu, localizada a aldeia Bororó, município de Dourados,
MS, com o objetivo de colher dados através de pesquisa de campo (entrevistas,
observação, visita à escola, técnicas de grupo focal), para confirmar informações
detalhadas a respeito de sua origem étnica, trajetória e seu pertencimento à rede de
parentesco: família nuclear, família extensa, entre outros.
É importante destacar que todos estes procedimentos científicos que devem
fundamentar a perícia situam-se no campo das ciências sociais, sobretudo na área da
antropologia social, e devem ser aplicados de forma interdisciplinar, com
imparcialidade, buscando responder aos quesitos citados através da utilização do
trabalho de campo (prática etnográfica e de procedimentos da história oral, história da
vida e entrevistas diversas), além da leitura e análise de documentos contidos nos Autos.
A prática antropológica do trabalho de campo, por meio da qual o
antropólogo olha e escuta a fim de apreender a organização nativa foi sistematizada no
Brasil, por Roberto Cardoso de Oliveira (2000)2, em suas três importantes situações:
olhar, ouvir e escrever. Segundo este autor, o olhar é o primeiro exercício do
antropólogo, e deve ser direcionado pelas teorias já produzidas sobre o tema abordado,
sendo o exercício de “olhar” seguido pelo de “ouvir”. Através do trabalho de campo
torna-se possível estabelecer uma relação de interação e diálogo, que possibilita melhor
interação com o grupo. Neste sentido:
Ao trocarem ideias e informações entre si, etnólogo e nativo,
ambos igualmente guindados a interlocutores, abrem-se a um
diálogo, em tudo e por tudo superior, metodologicamente
falando, à antiga relação pesquisador/pesquisado. O ouvir ganha
em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única,
em outra de mão dupla, portanto, uma verdadeira interação.
(OLIVEIRA, 2000, p. 24)

Certamente que no contexto de uma perícia, torna-se imperativo que a


pesquisa etnográfica (trabalho de campo) seja realizada por experts da área
antropológica, que possuam reconhecida competência científica e amplo conhecimento

2
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O trabalho do antropólogo. 2ª ed. São Paulo: UNESP, 2000.
9
a respeito da etnia em questão, cujas investigações devem ser direcionadas para a busca
de respostas seguras aos quesitos apresentados pelo Juízo e pelas partes.
Paralelamente, também foi utilizado o método da história de vida e com ele
analisado a memória genealógica do réu, assim como de outros membros da sua família,
os quais colaboraram com os trabalhos periciais. Por meio de entrevistas individuais e
coletivas, registradas em filmadora e em diários de campo, foi levantada e analisada a
história de vida do réu e a memória genealógica de outras pessoas. Dados como local de
nascimento, filiação, formação, grupos de referência, tipos de vínculos do grupo,
precedentes, grau de compreensão e inserção junto às instituições da sociedade
nacional, dentre outros, trouxeram importantes subsídios para o entendimento da
situação passada e atual do réu no contexto étnico local.

Foto 03 – Entrevista na PHAC (29/10/2012)

Fonte: Equipe da Perícia Antropológica; 29/10/2012;

10
II

QUESITOS DO MPF / Procuradoria da República em Ponta Porã

2.1 O RÉU É ÍNDIO? EXPLICAR.


Sim. O réu é índio, da etnia Kaiowá, apesar da sociedade envolvente, desconhecedora
das teorias antropológicas contemporâneas e, com base no senso comum, comumente
ter enfatizado que os índios não sejam mais autênticos, pois estão em vias de integração
à sociedade nacional, ou já totalmente integrados, como é o caso de alguns grupos de
Kaiowá e Guarani que frequentam a cidade de Dourados, ou que trabalham em serviços
braçais na redondeza, como nas usinas de álcool e açúcar. Trata-se de pressuposto
epistemológico das chamadas “teorias do contato” anteriores aos anos de 1960, a partir
de quando foi reformulado, inicialmente por Roberto Cardoso de Oliveira, antropólogo
brasileiro e, pelo antropólogo norueguês Fredrik Barth, vertente antropológica mais
conhecida atualmente, como “teorias da etnicidade”3. Estas teorias, baseadas
especialmente em Fredrik Barth, mundialmente reconhecidas e respeitadas, defendem
que a identidade não é algo dado, com o qual se nasce e, muito menos, algo fixo, ou
seja, simplesmente um conjunto de traços externos (características físicas) e práticas
culturais “congeladas” no tempo. A identidade é dinâmica e relacional, pode adaptar-se
e ser ressignificada, conforme a situação histórica.
Dessa forma, compreende-se as dificuldades da sociedade, em geral, e dos operadores
do direito, em particular, ante a presença das teorias da assimilação, integração e
aculturação dos índios, como consta, ainda, oficialmente, na Lei nº 6.001/1973,
conhecida como Estatuto do Índio, ainda não reformulado como Lei Complementar
pelo Congresso Nacional, uma vez que está totalmente em desacordo com o novo
ordenamento jurídico estabelecido pela Constituição Federal de 1988.
No Art. Nº 4 do Estatuto do Índio de 1973 ainda é possível ler o seguinte:
Art. 4º Os índios são considerados:

3
Vide: (A) BARTH, Fredrik. (Ed.). Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture
difference. Bergen/Oslo, Universitetsforlaget; London, George Allen & Unwin, 1969.
(B) BARTH, Fredrik (Comp.) Los grupos étnicos y sus fronteras. La organización social de las
diferencias culturales. Introducción. FEC, México D.F., 1976.
(C) BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In POUTIGNAT, P. & STREIFF-FENART, J.
Teorias da etnicidade. Trad. de Élcio Fernandes. São Paulo, UNESP, pp. 185-227. 1998.
(D) PACHECO DE OLIVEIRA, João. Ensaios em antropologia histórica. Prefácio de Roberto C. de
Oliveira. Rio de Janeiro, UFRJ. 1999.
11
I – Isolados – Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se
possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com
elementos da comunhão nacional;
II – Em vias de integração – Quando, em contato intermitente ou
permanente com grupos estranhos, conservem menor ou maior parte das
condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de
existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão
necessitando cada vez mais para o próprio sustento;
III – Integrados – Quando incorporados à comunhão nacional e
reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem
usos, costumes e tradições característicos da sua cultura4.

Estas concepções foram totalmente superadas, não apenas teoricamente, no âmbito da


antropologia e das ciências sociais, como no âmbito jurídico internacional (Convenção
OIT nº 169 / 1989; Declaração Universal dos Povos Indígenas / 2007; ambas ratificadas
pelo governo brasileiro) e nacional, com a Constituição Federal de 1988, em seu artigo
número 231, que reza o seguinte:
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Outro importante elemento de especificidade cultural, segundo relatos de cronistas do


passado e pesquisadores atuais, seria a história das Reduções levadas a cabo pelos
Jesuítas no Período Colonial, entre o povo Guarani, na região central da Bacia Platina,
onde atualmente se conformam os estados nacionais de Brasil, Argentina e Paraguai. Os
Guarani, seguindo o “modelo jesuítico”, não foram “parceiros” no projeto de expansão
colonial na América do Sul e particularmente no Brasil, ao contrário de outros povos,
como o povo Terena, que colaborou com a expansão colonial nesta região, inclusive na
construção da rede telegráfica, na guerra da Tríplice Aliança (conhecida como Guerra
do Paraguai) e, inclusive, nas tentativas de “amansar outras tribos da região”, tendo em
vista seu “papel inovador que poderiam representar dada a singularidade de seu
desenvolvimento cultural” (CARVALHO, 1979, p. 75).
Dessa forma, podemos perceber que o povo Guarani representou, no passado e continua
a representar, no senso comum, o papel do índio “bugre”, ou seja, aquele que não
consegue adaptar-se com facilidade aos códigos da sociedade ocidental. Talvez por este
motivo, muitos dizem que aqueles que estão próximos à cidade, ou trabalham nas
fazendas, são bugres – nem índios, nem civilizados.

4
MAGALHÃES, Edvard D. (Org.). 2003. Legislação Indigenista Brasileira e Normas Correlatas. 2ª ed.
revista e atualizada. Brasília, CGDOC/FUNAI, p.49.
12
Podemos afirmar, que de certa forma, a proximidade das áreas de mata, a vida religiosa
e a organização social das parentelas, parece ser o modo privilegiado pelo qual o povo
Kaiowá se reconhece como grupo étnico diferenciado. Estas práticas mudam
rapidamente nos últimos anos, tendo em vista a situação de confinamento, ou seja uma
grande concentração populacional em uma ínfima porção de terra, incapaz de favorecer
a reprodução física e cultural deste povo.
Dessa forma, e neste contexto, independente do grau de interação com a chamada
“coletividade nacional”, além de fazer parte efetivamente de uma sociedade com certo
grau de distintividade (língua, costumes e tradições), o réu se autodesigna como índio
KAIOWÁ e, ao mesmo tempo, é plenamente reconhecido pela sua comunidade
como tal, seja por sua família, ou mesmo por outras pessoas da Aldeia Bororó,
conforme constatado no trabalho de campo.

2.2 EM CASO AFIRMATIVO, QUAIS AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE


A ORGANIZAÇÃO SOCIAL, OS COSTUMES, AS LÍNGUAS, AS
CRENÇAS E AS TRADIÇÕES DO GRUPO/ETNIA DO RÉU INDÍGENA, SE
COMPARADAS À DA COLETIVIDADE NACIONAL ENVOLVENTE?

O réu nasceu e foi criado na Aldeia Bororó, pertencente à etnia kaiowá, cujo
território (Aldeia Jaguapiru e Bororó) foi demarcado há quase 100 anos pelo então
Serviço de Proteção ao Índio (SPI). O povo Kaiowá, também conhecido historicamente
no Paraguai como PAI TAVITERÃ, constitui uma sociedade indígena cujo idioma
nativo está filiado à família linguística Tupi-Guarani, a qual, por sua vez, está vinculada
ao tronco linguístico identificado como Tupi (RODRIGUES, 1986; URBAN, 1992;
MONSERRAT, 1994). Os habitantes da Aldeia Bororó, em particular a família do
réu, são falantes da língua guarani como língua materna, assim como também se
utilizam da língua portuguesa, como segunda língua, para o trato com pessoas de fora
da comunidade.
O povo Guarani habitava este extenso território séculos anteriores à chegada dos
colonizadores, como atestam vários trabalhos acadêmicos de arqueólogos e historiados
do período colonial. Os estudos mais especializados de etno-história registram que os
Kaiowá, no período anterior à chegada das frentes agropastoris, radicavam suas
comunidades em determinados espaços situados ao longo de rios, córregos e nascentes,

13
em uma faixa de terras que se estendia por mais de 100 quilômetros de cada lado da
fronteira do Brasil com o Paraguai. Esta faixa tinha como limite natural aproximado, o
rio Apa e a Serra de Maracaju ao norte e o rio Paraná ao sul, conforme mapa abaixo.
O território tradicional kaiowá correspondia, do lado brasileiro, a diversos pontos da
serra de Maracaju. Nestes pontos a população Kaiowá radicava suas parentelas ou
grupos locais, cujas aglomerações territorializada eram e seguem sendo por eles
denominadas de tekoha.
Mapa 01 – Território Tradicional Kaiowá / Pai-Tavyterã

Fonte: GRUMBERG (Coord.) “Mapa Guarani”, 2008, p. 07.

O tekoha5 tinha tamanho variável e sua extensão dependia do número de parentelas que
reunia, conforme explicado pela antropóloga Branislava Susnik (1979-1980), uma das
precursoras em pesquisas etnológicas e etno-históricas na região platina, autora de
centenas de publicações, dentre as quais o conhecido livro Los aborígenes del
Paraguay II. Etnohistoria de los Guaraníes. Epoca colonial.

5
Tekoha é a maneira como as comunidades Kaiowá se referem, em guarani, ao espaço ocupado por uma
determinada comunidade. Etimologicamente a palavra é composta pela fusão de teko + ha. Teko é o
sistema de valores éticos e morais que orientam a conduta social, ou seja, tudo o que se refere à natureza,
condição, temperamento e caráter do ser e proceder kaiowá. Ha, por sua vez, é o sufixo nominador que
indica a ação que se realiza. Assim, tekoha pode ser entendido como o lugar (território) onde uma
comunidade Kaiowá (grupo social composto por diversas parentelas) vive de acordo com sua organização
social e seu sistema cultural, isto é, segundo seus usos, costumes e tradições (EREMITES DE OLIVEIRA
& PEREIRA, 2009, p. 34).
14
Naquela época cada parentela dispunha de uma porção de terra de uso exclusivo para o
desenvolvimento de suas atividades produtivas e rituais. Era comum que os tekoha
também estivessem inseridos em redes de alianças mais amplas, de caráter político e,
principalmente, religioso, as quais os Kaiowá denominam pelo superlativo tekoha
guasu, literalmente, “tekoha grande”, chamado por Branislava Susnik de guára.
(EREMITES DE OLIVEIRA & PEREIRA, 2009, p. 104).
Com a demarcação das reservas no início do século XX, toda esta concepção e
cosmologia dos Kaiowá (modo de vida, tekoha) ficam comprometidas, tendo em vista e
exiguidade do território. Historicamente, em Mato Grosso do Sul as terras demarcadas
pelo SPI, entre 1915 e 1927, também passaram a ser denominadas de “reservas
indígenas”. Isto porque naquele momento não existia a preocupação em demarcar as
terras que os índios já vinham ocupando, haja vista que a legislação da época se
preocupava apenas em reservar algumas áreas para os índios. O critério principal para
reservar terras aos índios durante a ação do SPI (1910-1967) foi principalmente o
quesito de a área ser terra devoluta, ou seja, de não existir nenhum requerimento de
particular interessado nela. As comunidades indígenas que se encontrassem vivendo ao
entorno da área demarcada como reserva deveriam ser atraídas para aquele lugar.
Nas “reservas” destinadas aos Kaiowá em Mato Grosso do Sul, o órgão indigenista
oficial instituiu ainda o “Posto Indígena”, unidade administrativa dirigida pelo chefe do
posto, um funcionário do SPI designado a implantar, naquela área, uma nova forma
organizacional capaz de tornar viável a existência da população da recolhida na reserva.
Também era comum o “chefe de posto” nomear um “capitão” indígena, que funcionava
como seu ajudante de ordens, e também uma “guarda indígena” para manter a ordem
interna, sob a responsabilidade do “capitão”, mas da qual ele era o comandante máximo.
Na reserva a autoridade máxima era o chefe de posto, que detinha a prerrogativa de
substituir a liderança indígena sempre que julgasse necessário. Ele também interferia em
todos os assuntos internos da comunidade, decidindo sobre a conveniência ou não da
realização de festas, venda de madeira e contratos de trabalho para a prestação de
serviços aos proprietários rurais, além de planejar e organizar mutirões para atender as
necessidades produtivas do Posto Indígena (EREMITES DE OLIVEIRA & PEREIRA,
2009, p. 49).
Ainda em resposta ao quesito sobre “as principais diferenças entre a organização
social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições do grupo/etnia do réu
15
indígena, se comparadas à da coletividade nacional”, podemos afirmar que os Kaiowá
tradicionalmente viviam ao longo dos rios e nascentes, ocupando em caráter permanente
espaços delimitados para cada comunidade, como está descrito, entre outros, nos
trabalhos realizados por Egon Schaden (1974) [1962], Bartomeu Melià e o casal
Grunberg (Melià et. al. 1976: 192), Branislava Susnik (1979-1980), Levi Marques
Pereira (1999, 2004) e Fabio Mura (2006). Na bibliografia sobre os Kaiowá também há
registros de que, com certa frequência, pessoas, famílias e, esporadicamente, grupos de
famílias se deslocavam de um local para outro. Isso ocorria nos casos em que
casamentos reuniam parceiros matrimoniais de comunidades diferentes, ou ocorria a
constituição de alianças políticas entre famílias de parentes que passavam a ser
residentes para formar grupos políticos mais fortes.
Outro motivo para mudanças era a ocorrência de conflitos internos sem solução, o que
demandava a saída do grupo politicamente mais fraco. Eram comuns ainda as
comunidades se visitarem por ocasião de festividades ou cerimônias religiosas, nas
quais a presença dos convidados desempenhava papel primordial (cf. EREMITES DE
OLIVEIRA & PEREIRA, 2009, p. 54).
Entretanto, a chegada dos representantes das frentes de ocupação agropastoril no antigo
sul de Mato Grosso provocou uma transformação radical no modelo de assentamento
das comunidades Kaiowá. Além da disputa pelo espaço, a demografia das comunidades
também passou por profundas transformações. Em uma área de reserva atual, com mais
de cinco mil habitantes, torna-se quase impossível a lógica do afastar-se para evitar
maiores conflitos. Sendo assim, constatamos o acirramento dos conflitos e cada vez
maior fragmentação do tecido social no interior das grandes reservas, como é o caso da
aldeia Bororó.
Além dos deslocamentos provocados pela intensificação dos conflitos internos,
somaram-se os casos de comunidades que passaram a ser desalojadas das terras que
ocupavam, o que foi impetrado por particulares interessados em requerer e titular terras
na região.
Outro elemento importante de diferenciação cultural entre a comunidade do réu e a
chamada sociedade nacional é a questão religiosa e a visão de mundo. Os xamãs
Kaiowá acreditam que a existência de suas comunidades na terra depende da
manutenção do equilíbrio cósmico. Por este motivo, eles devem frequentemente rezar
para que esse equilíbrio seja mantido. Situações de conflito e violência, que impedem a
16
realização dos rituais religiosos, são interpretadas como prenúncios da destruição da
terra.
Na cosmologia dos Kaiowá e Guarani, em geral, a terra já foi destruída várias vezes em
tempos passados. Acreditam ainda que ela será destruída no futuro quantas vezes forem
necessárias para que a humanidade recomece sua jornada em um ambiente mais
propício para a realização de perfeito modo de ser, chamado teko marangatu. Eventos
históricos que desarmonizam as condições de vida, como doenças e mortes ocorridas
por causas desconhecidas, além da própria invasão de suas terras, são interpretados
como o prenúncio do cataclismo da terra e das populações humanas que nela vivem (cf.
EREMITES DE OLIVEIRA & PEREIRA, 2009, p. 68).
Ainda sobre o processo histórico de esbulho das terras indígenas no sul do então Estado
de Mato Grosso, podemos aludir que em fins da década de 1930, com o encerramento
dos contratos de arrendamento de terras que beneficiavam a Companhia Matte
Larangeiras, particulares de vários estados do Brasil chegaram à região com o intuito de
se fixarem como proprietários rurais.
Isto deu lugar a uma verdadeira corrida de pessoas interessadas em requerer e titular
terras na região. A legislação em vigor na época considerava as terras públicas como
devolutas, sendo postas à venda pelo departamento de terras do estado de Mato Grosso.
Dessa forma boa parte das terras onde estavam localizadas as comunidades Kaiowá foi
vendida a particulares e, dessa forma, muitas comunidades começam a receber pressões
de todo tipo para deixarem os espaços que estavam ocupando tradicionalmente, isto é,
seus territórios.
As comunidades Kaiowá ficaram alheias à partilha das terras consideradas devolutas.
Mesmo aquelas comunidades estabelecidas fora das reservas demarcadas pelo SPI, e
que já vivessem no local por várias décadas ou séculos, passaram a sofrer forte pressão
para se deslocarem para o interior daqueles aldeamentos oficiais. Nessa época se
instituiu uma espécie de consenso entre as diversas modalidades de agentes
representantes da sociedade regional (proprietários de terras, políticos, funcionários do
governo, missionários etc.), qual seja, o de que “lugar de índio é na reserva”. Aqueles
índios que viviam fora desses espaços “institucionais” estavam em situação irregular e
deveriam se recolher nas reservas onde receberiam a devida assistência do órgão
indigenista oficial e de missionários encarregados de civilizá-los, isto é, de torná-los
colonos cristãos integrados à sociedade nacional.
17
As reservas criadas pelo SPI passaram então a cumprir a função política de liberar as
terras para a especulação imobiliária e sua posterior ocupação agropecuária. Dessa
maneira a reserva se transformou em área de acomodação para a população de diversas
comunidades indígenas (cf. EREMITES DE OLIVEIRA & PEREIRA, 2009, p. 107).
Com efeito, o SPI, representante do Estado brasileiro, orientava sua ação indigenista a
partir do pressuposto de que a condição dos índios em geral e a dos Kaiowá, em
particular, enquanto população etnicamente diferenciada, seria transitória. Acreditava-
se, pois, que os indígenas, aos poucos, iriam se acomodando à economia regional e,
como incorporariam gradualmente as práticas culturais predominantes na sociedade
nacional, acabariam abandonando por completo os símbolos de distintividade próprios
de sua cultura. Seriam, dessa maneira, assimilados por completo à sociedade nacional,
isto é, deixariam de ser índios e passariam a ser não-índios, o que verdadeiramente não
aconteceu. Na perspectiva assimilacionista, então adotada naqueles tempos, não fazia
sentido demarcar áreas maiores que 3.600 hectares ou respeitar a organização social e as
formas de distribuição espacial das aldeias Kaiowá. O objetivo era outro e explicitava a
mentalidade da época: integrar os índios ao mundo dos “brancos”. Esta mesma
perspectiva assimilacionista esteve presente no espírito da legislação indigenista
brasileira até antes da promulgação da atual Constituição Federal, o que ocorreu em
1988 (Idem, 2009, p. 109).
Finalmente, podemos concluir este quesito afirmando que mesmo após mais de um
século de atuação indigenista oficial entre os Kaiowá demonstra que a assimilação não
ocorreu como antes se imaginava. As populações Kaiowá, como outras etnias que
vivem em diversas regiões do país, não se diluíram na população regional, mas
continuaram demonstrando grande disposição e vigor em suas culturas. Quanto a isso, a
Constituição Federal de 1988 reconheceu a falência do pressuposto assimilacionista e
alterou profundamente a perspectiva do indigenismo oficial, adotando o paradigma do
respeito e proteção oficial à diversidade cultural.
Mesmo com a atual influência de algumas igrejas, especialmente evangélicas entre os
povos indígenas, as bases de suas práticas culturais seguem atuais. Entende-se, dessa
forma, o substrato religioso cristão dessas comunidades indígenas, além de sua
identificação regional como índios agricultores, atividade ainda praticada pelas
famílias da Aldeia Bororó, assim como pela família do réu e por ele mesmo antes

18
da sua prisão. O pai é um reconhecido agricultor de hortaliças, particularmente, agrião,
cuja produção é vendida periodicamente no comércio local em Dourados/MS.
Assim, concluímos que estes elementos reforçam o grau de pertencimento do réu à seu
povo, sua história e suas práticas culturais.

2.3 QUAL O GRAU DE INTERAÇÃO DO RÉU COM A CULTURA


ENVOLVENTE?
Podemos afirmar, após ouvir o réu e elementos da sua família e parentes, que de
um ponto de vista socioantropológico, nos últimos anos, o réu manteve contatos
esporádicos com a chamada “sociedade nacional”, ou “cultura envolvente”,
sobretudo, se levarmos em conta a proximidade cada vez maior da cidade de Dourados
da Aldeia Jaguapiru e Bororó.
Estudou até a 7º série na aldeia, na escola Tengatuy Marangatu. Na verdade, estudou
desde pequeno na aldeia (diz que foi aluno no tempo do JOÃO MACHADO, um
professor muito conhecido na aldeia). Relata, ainda, que o pai bebia muita pinga e batia
para ele ir à escola. A mãe nunca bebeu. Estudou também na ESCOLA AURORA, na
cidade de Dourados, quando parou os estudos, na 7º série, pois não tinha dinheiro para
pagar as provas.
Apesar destes contatos, isto não significa, no entanto, voltando à nomenclatura
utilizada pelo Estatuto do Índio (Lei nº 6.001 / 1973) e, ultrapassada na antropologia
como ferramenta analítica, que ele esteja plenamente integrado à comunhão
nacional, inclusive porque, dentro da Aldeia Bororó, os índios conservam suas
tradições6, possuem organização social própria, com características próprias de
exercício do poder e, inclusive, com normas e sanções próprias deste grupo. Segundo
relatos na aldeia e do próprio pai do réu, quando alguém comete algum desmando
dentro da aldeia, o costume antigo era reunir o conselho da aldeia, junto com o capitão
(figura de liderança criada pelo antigo SPI) e, conforme o julgamento era aplicado uma

6
O acusado conserva parte significativa de seu modo de vida tradicional, quer dizer, de um modus
vivendi culturalmente dinâmico ao qual atribui o sentido de tradicional. O Conceito de “tradicional” de
que fala o Artigo 231, § 1°, da Constituição Federal, o qual tem a ver com aquilo que os indígenas dão
sentido de tradicional e não necessariamente àquilo que os não indígenas avaliam ser típico das culturas
indígenas. Dessa forma, cremos que a tradição é dinâmica e que, também ela, adapta-se às circunstâncias
e situações conjunturais de cada povo e cultura.
19
pena corretiva que iria desde a admoestação até, no caso da reincidência, ao castigo em
trabalhos forçados e humilhantes e, em último caso, a entrega para a polícia na cidade.
Por outro lado, no entanto, apesar de aparente relação com a sociedade envolvente,
pode-se dizer que os índios, em grande parte, não podem exercer a plena cidadania,
tendo em vista a ineficiência dos poderes constituídos na República em assegurar o
respeito e o cumprimento de seus direitos.
Quanto ao fato dos indígenas terem incorporado ou aceitado algumas práticas e modos
de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão
necessitando cada vez mais para o próprio sustento, não pode ser tomado como
indicativo de “perda cultural”, ou de serem “menos índios”, conceitos ainda vigentes no
senso comum. Os inevitáveis contatos interétnicos e as trocas culturais (uso de
tecnologias e equipamentos, sistemas de saúde, educação, moradia, etc.) são uma via de
mão dupla, de mútuas influências. Isto não significa que os indígenas deixarão de ser o
que são, isto é, que perderão sua distintividade étnica. Ademais, os elementos da cultura
nacional quando incorporados pelos grupos indígenas sofrem um contínuo processo de
ressignificação, de transformação e adaptação/tradução a uma lógica cultural específica.
Por este processo endógeno os elementos culturais exógenos passam a ter sentido de
tradicional entre os indígenas, visto que eles próprios assumiram o papel de principais
atores sociais, sujeitos históricos e protagonistas de sua história.

Foto 04 – Família do réu durante trabalho de campo

Fonte: Equipe da Perícia Antropológica; 29/10/2012;


20
No caso do réu, ao realizarmos o trabalho de campo, constatamos que sua família tem
moradia em uma das regiões de mais difícil acesso na aldeia Bororó, conforme mapa
abaixo. Trata-se de um conjunto de casas, que caracteriza uma ocupação de família
extensa, segundo forte tradição Kaiowá, totalmente afastada do restante da aldeia, talvez
demonstrando a opção deste grupo familiar de manter-se isolado o mais possível e,
assim, poder manter seus laços familiares e culturais de forma mais autônoma.
Portanto, o réu da etnia kaiowá, apesar de ter mantido, nos últimos anos, contatos
esporádicos com a chamada “sociedade nacional” ou “cultura envolvente”, dá
mostras de manter importantes elementos da sua tradição cultural, como a língua,
fortes relações de parentesco, costumes e tradições próprias de sua aldeia e seu
povo.

Foto 05 – Mapa da Aldeia Bororó

Fonte: Equipe da Perícia Antropológica; 29/10/2012;

21
2.4 AO AGIR CONFORME NARRADO NA DENÚNCIA, O RÉU TINHA REAL
OU, AO MENOS, POTENCIAL CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE DE SUA
CONDUTA?

Sim. O réu, conforme narrado na denúncia, tinha potencial consciência da ilicitude


de sua conduta. No entanto, em entrevista para os peritos antropólogos, o réu foi
explícito em afirmar que desconhecia o teor da materialidade do ilícito, certo de que
seria apenas a compra de entorpecente para consumo pessoal. Não possuía consciência
do agravante referente à presença do sobrinho (menor) no ato de ir junto para comprar e
transportar o entorpecente, muito menos possuía consciência, segundo depoimento, de
que comprou a “droga” em região de fronteira e que, por tanto, seria caracterizado como
tráfico internacional de entorpecente.
Segundo narrativas ouvidas no trabalho de campo, constatou-se que o réu sempre
apresentou-se como pessoa “boa”, introvertido e de bom caráter, segundo fala textual do
seu pai: “um menino bom que sempre me ajudou no trabalho da roça”. Exploramos este
argumento no sentido de demonstrar que aos indígenas que transitam fora da aldeia, os
contatos e as redes de relação com parentes e, eventualmente, com o não índio, são
estratégias de sobrevivência, em meio a um contexto estranho e hostil.
Dessa forma, o pai acredita que foram algumas companhias de dentro da aldeia que
acabaram influenciando negativamente o seu filho. Tanto o pai como a mãe e a irmã,
disseram que desconheciam o fato de o réu ser usuário de entorpecente (maconha).
Após a prisão ficaram sabendo que ele era usuário, mas eles, não percebiam. Segundo o
pai, “ele fazia isso escondido, com medo do pai dele descobrir”.
Mesmo sabendo da ilicitude de sua conduta (comprar e transportar entorpecente,
caracteriza contrabando), mas, na dificuldade que possuem os indígenas em dizer não
aos que eles denominam caray (branco, não índio), o réu acabou aceitando tomar parte
na ação, o que poderíamos, aqui aferir certa ingenuidade, aceitar carona, comprar e
voltar com o entorpecente em uma bicicleta, juntamente com o sobrinho (menos).
Reafirmamos, pois, que o réu, conforme narrado na denúncia, tinha potencial
consciência da ilicitude de sua conduta, ainda que não tivesse completa consciência
das consequências e da gravidade do que estava fazendo (ele pensava que se
tratava apenas de compra de entorpecente para consumo próprio).

22
2.5 OS FATOS IMPUTADOS AO RÉU NA DENÚNCIA TAMBÉM SÃO
REPROVÁVEIS SEGUNDO OS VALORES DE SEU GRUPO/ETNIA? EM
QUE GRAU?

Por não se tratar de uma prática comum na sua aldeia de origem, os fatos imputados ao
réu na denúncia não seriam reprováveis da mesma maneira que em nossa
sociedade, tendo em vista os diferentes valores de seu grupo/etnia.
Na avaliação dos peritos, o grau de reprovação levaria em conta de forma contundente o
fato de o réu ter boa conduta e gozar de boa estima dentro da comunidade de sua aldeia.
Certamente o conselho de líderes iria reprovar os fatos em grau menos enfático, tendo
em vista estes atenuantes comportamentais e culturais.
A partir dos dados colhidos no trabalho de campo, foi possível constatar a consternação
e assombro de todos, em especial da própria família, ao narrarem como ficaram sabendo
dos fatos, que o réu havia viajado para a Cidade de Coronel Sapucaia, que estava preso
e, do envolvimento do réu com entorpecentes.
Quanto a estar acompanhado por seu sobrinho, menos de idade, trata-se de fato comum
no cotidiano da aldeia, a realização de tarefas e atividades em grupo. Desde o momento
da infância, as relações entre os membros da parentela (família extensa) são sempre
muito intensas, não sendo vista, neste caso, como tentativa de corromper o sobrinho,
mas sim, de pedir ajuda na forma de companhia.
Dentro deste contexto de ser um jovem tímido e trabalhador, de pacífica convivência na
comunidade, certamente que os fatos ocorridos seriam reprováveis pelos líderes da
aldeia, mas, com a devida atenção ao contexto e motivos que levaram um patrício a
cometer tal delito.

2.6 QUAIS AS PROVÁVEIS SANÇÕES QUE A COMUNIDADE INDÍGENA


APLICARIA AO RÉU, SEGUNDO OS SEUS COSTUMES E MÉTODOS
TRADICIONAIS, PARA REPRIMIR O FATO QUE LHE É IMPUTADO?

Conforme relatado anteriormente na resposta ao quesito 2.3, os Kaiowá da Aldeia


Bororó, possuem organização social própria, baseada na família extensa, com um líder
da parentela, geralmente o pai ou avô, sua língua de matriz TUPI-GUARANI, práticas
culturais e outros elementos que os diferenciam da chamada sociedade nacional.
23
Foto 06 – Família do réu no pátio da casa – Aldeia Bororó

Fonte: Equipe da Perícia Antropológica; 29/10/2012;


Destaca-se dentre estes elementos culturais, sua forma própria de organização social e
política, com características próprias de exercício do poder e, inclusive, com normas e
sanções próprias deste grupo, sistema desenvolvido e testado durante longos anos e
gerações, na arte de regular a própria convivência do grupo social.
Segundo relatos, quando alguém comete algum desmando dentro da aldeia, o costume é
reunir o conselho da comunidade, juntamente com o acusado e, segundo o grau do que
foi praticado, proceder ao julgamento. No julgamento, geralmente é aplicada uma pena
corretiva que vai desde a admoestação (pequenos delitos), até no caso da reincidência e
de graves delitos, ao castigo em trabalhos forçados e humilhantes e, em último caso, a
entrega para a polícia na cidade, ou mesmo a expulsão da aldeia (banimento), quando é
declaro que a pessoa é inimiga da comunidade e um perigo para a convivência e
estabilidade da mesma.

2.7 EM CASO DE CONDENAÇÃO DO RÉU E CONSIDERANDO AS


CARACTERÍSTICAS ECONÔMICAS, SOCIAIS E CULTURAIS DE SEU
GRUPO INDÍGENA, QUAIS AS ESPÉCIES DE PUNIÇÃO PREVISTAS EM
NOSSA LEGISLAÇÃO (ART. 5º, XLVI, DA CF/88; ARTS. 32 E SEGUINTES
DO CP; ARTS. 56 E 57 DA LEI Nº 6.001/73) AFIGURAR-SE-IAM MAIS
24
ADEQUADAS PARA EFEITO DE REPRESSÃO E PREVENÇÃO DO
DELITO?

Efetivamente o réu está detido a quase um ano, inicialmente no presídio masculino de


Amambai (para onde nossa equipe da perícia foi inicialmente) e, posteriormente, foi
removido para a PHAC. Está pagando pelo crime que cometeu, delito e culpa
reconhecidos em parte por ESTEFANO ORTIZ BENITEZ. Portanto, “o réu, de etnia
indígena KAIOWÁ”, tanto a partir da Constituição Federal, que preconiza o respeito às
particularidades culturais, quanto a partir dos artigos 56 e 57 da Lei nº 6.001/73
(Estatuto do Índio) que preconiza para no caso de o acusado ser condenado “por
infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o juiz atenderá também ao
grau de integração do silvícola”. Com efeito, o Parágrafo Único deste artigo estabelece
o seguinte:

As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em


regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão
federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do
condenado7.

Neste caso, a sugestão é que o réu, com as características já descritas anteriormente,


poderia receber outras formas de pena na própria aldeia, o que chamamos em nossa
sociedade de “penas alternativas” e continuaria sendo monitorado pelo conselho tribal e,
sobretudo, pela própria comunidade indígena, cuja autoridade parece ser seguida e
respeitada pelo réu.
Considerando o elevado número de índios confinados em penitenciárias existentes no
estado de Mato Grosso do Sul, estimado em mais de 100 indivíduos no ano de 2007, a
maior população indígena carcerária do país (a grande maioria sem a devida assistência
jurídica por parte da FUNAI)8, seria prudente e oportuno pensar a possibilidade de
haver uma penitenciária exclusiva para acomodar este contingente populacional, com
características culturais próprias.
Considerando, também, o Direito Internacional, cuja legislação se manifesta a este
respeito, como é o caso do Artigo nº 10 da Convenção OIT nº. 169, o qual trata
especificamente dos indígenas apenados:

7
MAGALHÃES, Edvard D. (Org.). Op cit., p. 59. 2003.
8
Carlos Macedo & Andréa Flores. Situação dos detentos indígenas no estado de Mato Grosso do Sul.
Brasília: CTI. 2008.
25
1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a
membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as
suas características econômicas, sociais e culturais.
2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o
encarceramento.

Finalmente, considerando os resultados do estudo intitulado Situação dos detentos


indígenas no estado de Mato Grosso do Sul, coordenado por Carlos Macedo & Andréa
Flores (2008), feito com a população indígena carcerária de Mato Grosso do Sul, os
pesquisadores constataram que a maioria dos índios apenados demonstrou desconhecer
“por completo a situação processual na qual estavam envolvidos e as próprias regras do
sistema prisional” (MACEDO & FLORES 2008: 29).
Desta forma, em caso de condenação do acusado, tendo em vista sua qualidade de
pessoa respeitada (ordeira e trabalhador) na comunidade indígena, o ideal seria
mantê-lo preso na própria aldeia Bororó, ou em outra aldeia próxima, como a
Aldeia Jaguapiru, fazendo com que exerça alguma atividade em prol da
comunidade (serviços comunitários).

2.8 OUTROS DADOS JULGADOS ÚTEIS

Em vários depoimentos foi constatado que uma das práticas laborais do réu era o
trabalho na roça com o pai e, o auxílio na comercialização do excedente, ou seja, um
tipo de elo constante com a cidade, o que favorece a desestabilização emocional destes
jovens indígenas. Neste caso, a cidade representa um polo muito forte de atração, em
especial no tocando ao mercado de consumo.

26
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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http://6ccr.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/documentos-e-
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limites da Terra Indígena Buriti, municípios de Sidrolândia e Dois Irmãos do
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27
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CUNHA, M. C. da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo,
Fapesp/Companhia das Letras/SMC, pp.86-102.

ANEXOS

01
Perguntas orientativas (entrevista com Estefano Ortiz Benitez):
1. Você é indígena, de qual povo/etnia?
2. Onde nasceu, em que aldeia? Fale de sua família e parentes e sobre sua infância.
Na aldeia Bororó.
3. O que você sabe da língua guarani e da organização social do seu povo?
4. Você mora fora da aldeia? Há quanto tempo você mora fora da aldeia onde vivem seus
parentes? Em que lugares você já morou?
5. Até que série vocês estudou? Estudou na aldeia e na cidade, ou somente na aldeia?
6. Com qual frequência você continua se relacionando com sua família e com sua aldeia?
7. Quando na aldeia você teve algum problema de “desvio de conduta”?
8. Você tem conta no banco, cartão de crédito, carro próprio, casa para morar na cidade?
9. Você é casado? Sua esposa é indígena? Tem filhos?
10. Que tipo de trabalhos tem desempenhado / profissão? Antes da sua prisão, que
trabalho fazia?
11. Fale sobre os fatos que antecederam sua prisão. Como conheceu os demais envolvidos
e como se deram os fatos de sua prisão?
12. Você sabia que estava fazendo contrabando de entorpecentes, e que se fosse pego
seria preso por crime, segundo as leis brasileiras?
13. O que levou você a tomar esta atitude de transportar esta quantidade de maconha?
14. Se fosse na aldeia e praticasse um ato parecido com este, o que acha que aconteceria
com você? Qual seria a punição?
15. Você acha que merece a punição da justiça?

Perguntas orientativas (entrevista com a família do Estefano Ortiz Benitez):


1. Vocês conhecem bem o Estefano Ortiz Benitez? Falem sobre ele e a vida que tinha na
aldeia.

2. Quanto tempo faz que ele mora na aldeia? Ele teve algum problema aqui na aldeia?

3. Ele continua na aldeia (voltando à aldeia para visitar) e tem contato com os parentes?

4. Caso ele tenha praticado algum crime, segundo as leis brasileiras, vocês acham que ele
deve ser punido segundo estas leis, ou deveria voltar para a aldeia para receber aqui
algum castigo?

Anexo 03 – FOTOS

28

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