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Como entrar na filosofia pela linguagem –

Verdade e Método no mundo

Ernildo Stein

I
Em geral, quando as pessoas começam a se envolver com a filosofia, elas vêm
com expectativas ou com questões determinadas de que gostariam de tratar por alguma
razão. Para isso encontram livros chamados de filosofia, professores que dão aulas de
filosofia, ou alguém com quem conversam sobre filosofia. Se nós fôssemos querer
descrever os diversos estados psicológicos que os interessados têm como motivação
para as suas escolhas e decisões, teríamos que alinhavar talvez uma agenda de
introdução à filosofia. Mas não é isso que se pretende tomar como questão a examinar.
Talvez pudéssemos dizer para tais pessoas que elas têm que alterar o seu modo como
vêem o mundo. Estaríamos então falando numa reeducação para encontrar condições
que satisfizessem nossa crença de que podemos aprender como deve ser a ordem das
coisas. Com isso estaríamos buscando uma nova relação com a nossa experiência
cotidiana, e teríamos que aprender com esse modo novo de ver que temos que por em
movimento uma forma particular de usar a linguagem para conhecer o que queremos
aprender como filosofia.
Certo é que, ao procurar como estudar filosofia, estamos diante de um novo jogo
de linguagem que exigirá de nós uma consistência de nossas frases com as quais
queremos fundamentar a experiência de nosso mundo particular. Um jogo, no entanto,
se organiza com algumas regras que nos dão confiança quando temos que decidir sobre
afirmações certas ou erradas. Já essa expectativa produz uma nova forma pela qual
expressamos o que percebemos ou sentimos. Mas, a introdução dessa nova forma, que
vai atingir a nossa linguagem sobre o mundo, põe-nos à disposição certos canais pelos
quais ajustamos o conteúdo do que falamos.
Estamos assim diante de uma proposta de troca de linguagem, que não se
introduz simplesmente por um estado de fluidez de nossos usos linguísticos, mas porque
acaba se impondo a coexistência de duas linguagens. As coisas que dizemos em

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filosofia podem até ser referidas com a linguagem que impera na planície do nosso
cotidiano, mas somos reconhecidos como alguém que fala filosoficamente quando
passamos a falar num outro registro, constituído por aquilo que foi dito antes. Ele é o
que marca propriamente a linguagem filosófica. Ela é introduzida não simplesmente
porque queremos mudar de fala, mas porque a usamos para dar consistência a novas
certezas expressas de outra forma.
A pergunta que surge facilmente ao propormos o que dissemos irá se impor
como consequência: será que com essa nova consistência com que falamos das coisas
no mundo e de nossa experiência, depende simplesmente da estruturação de nossos
estados mentais agora, separados da forma instintiva ou biológica de ser do homem ou
das aprendizagens sociais porque ele passou? Não creio que se trate, na filosofia, de
podermos mudar as formas biológicas ou de prática social, pois a linguagem nova que
passamos a utilizar para falar de nossas experiências é resultado de uma escolha e de
uma construção. Reorganizamos a linguagem e, com isso, ela se torna filosófica,
porque, com ela, atingimos uma nova consistência para fundamentarmos nossas
crenças.
Surpreendo-me às vezes pensando que aquele que procura a filosofia termina
encontrando uma forma de dizer que inverte o modo comum de entender. Talvez por
isso Hegel fale que a filosofia representa o mundo invertido para o entendimento
comum. Não sei se essa metáfora não sugere uma mudança por demais drástica para
falarmos da filosofia ou, ao menos, para dela podermos fazer uma descrição com os
recursos de que hoje dispomos para identificar o modo filosófico de pensarmos. Não me
interessa propriamente entrar aqui na discussão da exatidão e clareza das formas lógicas
e linguísticas. Simplesmente quero saber se quando alguém fala sobre suas crenças, seu
modo de ver o mundo, com linguagem filosófica, ele entrou num universo em que a
linguagem funciona de modo diferente da linguagem comum, ou se essa linguagem
apenas trabalha com um repertório de conceitos novos. É claro, é possível cobrar desse
novo discurso comportamentos novos com relação à exatidão lógica e linguística.
É verdade que a filosofia tem seus caminhos próprios de aprendizagem e
iniciação. Por isso, ela se alimenta particularmente dos textos da história da filosofia e
trabalha com problemas que muito raramente não apareceram na tradição filosófica.
Nesse exercício de interpretação, realiza-se a incorporação da linguagem, dos conceitos
e dos modos de argumentar. Muitas vezes pensamos que se exigem novas atitudes para
entrar na filosofia, e que, portanto, ocupar-se com ela implica comportamentos

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diferentes do cotidiano. Isso chega a nos levar muitas vezes a pensarmos que devemos
abandonar o cotidiano, e que é preciso introduzir-se numa esfera nova e superior,
quando, na verdade, mesmo que a filosofia lide com uma linguagem nova, ou com
problemas que não se resolvem com a linguagem do cotidiano, quem faz filosofia não
pode abandonar o compromisso com o senso comum e o enraizamento nas formas
socialmente aprendidas.
Diante dos comportamentos muito comuns de fazermos a iniciação na filosofia
com um autor, ou enclausurarmos o estudioso no universo linguístico e conceitual desse
autor, as observações feitas até agora levantam uma suspeita. Será que a forma de
aprender e incorporar a linguagem desse autor não termina representando um modo de
dizer que perde o contato com seu mundo e seu tempo? Podemos ainda perguntar se
com esse modo de proceder fica desestimulada a procura por outras formas de
linguagem e pela busca de renovação, através da familiaridade com o discurso de seu
tempo.
Não precisamos voltar a falar do outro nível que se introduz pela linguagem
filosófica diante da linguagem do senso comum. Poderíamos apenas lembrar que houve
em toda a história da filosofia sempre uma certa distinção entre duas linguagens. Foi, no
entanto, na filosofia moderna, com Kant, que essa tradição foi levada ao dualismo
transcendental entre formas apriori e experiência, que terminou impondo a incômoda
presença da tarefa de encontrarmos a passagem entre o sujeito e o mundo. Não se trata
aqui de nos envolvermos com esse problema, nem de incorporar essa espécie de teoria
dos dois mundos na análise filosófica. Mas é preciso perceber com clareza que ela
introduziu uma distinção que terminou sendo utilizada como modelo para a teoria do
conhecimento que predominou em grande parte da filosofia até hoje.
Começamos com alguém perguntando como pode entrar na filosofia, para, no
fundo, enfrentarmos a perplexidade diante do modo como os filósofos se devem
comportar hoje. Não estamos satisfeitos com a situação da filosofia em cujo âmbito a
maioria dos filósofos é representada por individualidades que se perderam na decifração
do mundo conceitual de uma obra e não conseguem encontrar um fio que os leve a
descobrir as formas de entrar nos processos de conhecimento que o rodeiam. O
isolamento, que assim prejudica a inovação na filosofia no diálogo com as ciências e
com a comunidade de pesquisa, tem também consequências sobre a própria pessoa do
que se ocupa com a filosofia. O estudioso poderá até envolver-se por etapas em novos
autores, mas o seu procedimento viciado pela análise interna de um texto, irá se repetir,

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caso não haja uma modificação nos modos de olhar a relação da filosofia com o mundo
do conhecimento em geral, e como ocupação intelectual que deve enraizar o
pesquisador teórico em seu tempo.
Permitam-me deslocar o foco mais especificamente para a produção de um livro
filosófico e o modo como devemos proceder para lhe fazer justiça no contexto que
desenvolvemos. Assim, seremos levados a perguntar pelo lugar de uma obra filosófica
em seu tempo. Esta questão será tanto mais simples de analisar, quanto mais nos
ativermos a alguns dos elementos que mostramos em nossa análise. Quando Hegel diz
que “a filosofia é seu tempo apanhado em pensamento”, ele fala do poder do
pensamento como lógos que atravessa o tempo, e o precede e acompanha. Não sei se a
filosofia chega propriamente tarde, no sentido em que comumente interpretamos Hegel.
Mas, não resta dúvida que a obra filosófica está mergulhada em seu tempo e, portanto,
ela surge num mundo que podemos de uma maneira simples definir como a cultura que
a rodeia.
Podemos distinguir dois tipos de obras que poderão servir como exemplo para
uma breve análise da inserção da filosofia em seu tempo. Elas devem ser compreendidas
como fazendo parte de uma renovação que se fez na filosofia do século XX, no
paradigma da fenomenologia hermenêutica. Fazemos essa escolha dentro desse
paradigma porque pensamos que ele se constitui numa mudança irrecusável da filosofia
do século XX, diante de outros modelos teóricos com que lidam diversos modos de
fazer filosofia. Também escolhemos esses dois tipos de obras porque pensamos que eles
representam para nós, no paradigma da tradição hermenêutica, formas de operar com a
filosofia que têm um modo próprio de inserir-se no seu mundo. De um lado, podemos
falar de obras filosóficas que partem de certos conceitos, que permitem uma
interpretação das formas como o ser humano se situa em seu mundo vivido. Podemos
lidar com categorias que pretendem abranger as formas de o ser humano estar situado na
história, determinado e, assim, limitado por dimensões que o precedem e acompanham,
e são marcados pela tradição, e compreendidos como historicidade que nunca se esgota
em seu sentido completo. Esses tipos de obras pretendem uma espécie de exposição de
uma dimensão omniabrangente, com a qual se pretende envolver todo tipo de operar
com a tradição que constitui nossa cultura como linguagem e texto. Assim, estaremos
sempre envolvidos numa atividade de compreensão que nos é trazida pelas diversas
formas de linguagem fixadas pela escrita ou pelas formas de transmissão virtual. É
certamente tarefa da filosofia dar conta, pela análise da consciência histórica e da

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história efetual, de um mundo que nos envolve e cuja transparência nunca alcançamos.
O outro tipo de obra que poderia ser pensada é aquela que opera com os dispositivos e
códigos de seu tempo, e procura inserir nele o ser humano como um modo de ser no
mundo, descrevendo-o em suas diversas formas de receber e ser esse mundo. É claro
que um tal tipo de obra tem presente as duas dimensões que o ser humano carrega como
formas de inserção. De um lado, aquilo que podemos chamar o mundo da cotidianidade
em sua forma de normalidade do senso comum, e a dimensão existencial que atravessa,
num outro nível, o raso do cotidiano como existência e modo compreensivo de ser no
mundo.
Ao realizarmos o caminho para a filosofia, tivemos como intenção fundamental
dois aspectos: de um lado, desconstruir as dimensões encobridoras que passam
desapercebidas pelo modo usual pelo qual se trabalham os textos de filosofia e sua
relação com a pesquisa em geral. De outro lado, estamos buscando formas de por em
movimento processos de inovação que poderão ser resultado tanto da atitude do filósofo
no seu modo de perceber o mundo, quanto dos modos com que trabalha, com sua
compreensão da filosofia, e sua relação com a comunidade científica. Não há dúvida
que estamos entrando numa era em que se exige uma nova plasticidade intelectual e
emocional dos que pretendem trabalhar com o pensamento filosófico. Mas isso não será
resultado de uma mera especulação interior. O que importa é a imersão numa atividade
de que admite ser permeada pela circulação do diálogo entre filosofia e ciência.

II
Vamos fazer um pequeno exercício que terá como finalidade encontrar um lugar
para a obra principal de Gadamer no mundo de 1960. A intenção com a qual iremos
trabalhar irá consistir numa espécie de desconstrução de Verdade e método,
pressupondo que somos capazes de identificar estruturas e níveis no texto, para levá-los
a serem ao mesmo tempo vistos como determinados a partir de elementos exteriores que
influenciavam Gadamer quando estava dando uma forma ao mesmo tempo abrangente e
situada desta obra.
Como filósofo dos anos cinquenta, e com uma idade que corria paralela ao
século XX, já que nascera em 1900, podemos pressupor que ele estivesse com boa
capacidade para utilizar os principais dispositivos filosóficos de seu tempo. Verdade e
método não é um texto que se reporta aos acontecimentos exteriores do mundo de 1960.

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É o que Heidegger faz diversas vezes até mesmo se reportando para falar do sinal ao
pisca-pisca de um automóvel. Mas esse filósofo desenvolve, em meio a vários textos
importantes que escrevia durante suas preleções, um tipo de pensamento que possui
como objeto o próprio mundo exterior elevado a uma categoria central utilizada para a
determinação do ser-aí.
Se fôssemos comparar os dois filósofos, no que se refere ao modo de ver a
filosofia e elaborar seus textos, Heidegger se liga de modo quase frenético aos eventos
que o rodeiam, e Ser e tempo torna-se um reflexo da ansiedade com que o autor vivia
sua vida e procurava salvar em seu escrito o espaço em que seu vivido se projetasse
num nível superior, que irá ser denominado de existencial, substituindo a duplicação
que a filosofia introduzira com o conceito de transcendental, sem contudo se
comprometer com ele. É por isso que Heidegger faz entrar em seu texto referências aos
dispositivos de seu tempo. O filósofo está obcecado pela tecnologia presente em
qualquer parte no cotidiano. Ela pode ser percebida sempre em dois níveis. Um deles se
dá no registro das coisas a serem ouvidas, sem que as separemos claramente. Mas pode
também receber um acento fortemente autêntico: “o que nós ouvimos primeiro nunca
são barulhos ou complexos sonoros, mas op rugido do vagão, a motocicleta. Ouvimos o
regimento em marcha, o vento do norte, o picapau, o fogo crepitando”.
Para Heidegger se trata de dar forma a um texto filosófico em que o dasein seja
redimido da indistinção que seria a queda no indeterminado e no inautêntico. É por isso
que, por uma espécie de fuga estética, ele situa as vivências, os sentimentos e o fluir do
cotidiano num nível que se converterá no espaço do filósofo. Mas essa espécie de
binarismo, entre autêntico e inautêntico, não é apenas um recurso de escrita, mas o
filósofo vê a si mesmo projetado no desafio de enfrentar, no dia a dia, os dois níveis, e
de julgar os outros como pessoas que, em geral sem consciência, atravessam essa forma
profunda de ambiguidade. Isso tem como consequência uma tensão produzida pela
escrita incorporada na postura do filósofo, que fará do ser diferente uma espécie de
autoobservação do seu modo de ser. É por isso que ele está ao mesmo tempo movendo-
se perdido no cotidiano e, contudo, com a sensação de estar fora e acima dele. Disso
resulta um discurso filosófico que tem uma espécie de seriedade mortal, e que destrói
qualquer tentativa de perturbá-lo com um senso de humor ou de ridículo. Estar em casa
é uma concretização do estar no mundo, e isto se torna um conceito sistemático. Por
isso sua linguagem, na dimensão social, se baseia no gosto por significados históricos e
explorações etimológicas. É claro que, de si, essa linguagem não representa maior

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precisão, mas ela reforça a intenção de que há dois níveis em desenvolvimento: o modo
de ser autêntico, e o outro, de ser inautêntico.
A linguagem do texto de Verdade e método se desenvolve como um discurso
erudito que quer apresentar um certo modo de pensar a totalidade das hermenêuticas de
seu tempo. Em Gadamer desaparece qualquer marca do discurso heideggeriano. É que
aqui estamos diante de uma obra que quer dar uma resposta teórica e, mesmo,
sistemática, ao problema geral da interpretação e da compreensão. Desse modo,
Gadamer não se situa no mundo dos anos sessenta, como Heidegger o fez ao incorporar
em Ser e tempo, dispositivos, códigos, paradoxos e estruturas concretas dos anos vinte.
Heidegger recomendaria que você se deve sentir em 1926, e ao suportar esse cotidiano
confuso mas inevitável, sobrepor-se a ele e aceitar dispositivos da época que entrem em
seu cotidiano, mas sejam elevados a um significado maior, que produzirá na linguagem
do livro um modo que se eleva para além disso que adere ao nosso modo de ser.
Gadamer pode trabalhar descolado dos dispositivos e dos códigos dos anos
sessenta, porque Verdade e método, desde sua intenção fundamental, traça um arco
compreensivo sobre o todo da história que fora objeto de análise das diversas
hermenêuticas vindas do Iluminismo e do Romantismo alemão. Mas ao final de
Verdade e método, não aprendemos nada com a história, apenas como encontrar uma
historicidade que determina toda a cultura e todo o vivido, e traça um arco desde um
antes irrecuperável por causa da facticidade, mas que pode ser pensado como uma
dimensão em que cada um se move e onde deve encontrar os recursos para sua
autocompreensão. Com Gadamer, não estou no mundo de 1960, mas faço parte da
história humana porque participo da historicidade do homem, que, caso não coincida
com a história do universo, ao menos se faz presente, de modo definitivo, desde o
primeiro momento em que o homo sapiens sapiens surgiu pela autocompreensão e
iniciou a sua história.
Leiamos a seguinte passagem de Hermenêutica em retrospectiva:

“Todos esses exemplos de uma ampliação da memória histórica giram em


torno do fato da tradição. O que é propriamente tradição? O que é legado? O
que significa ser entregue pela tradição? Uma informação? Não se trata aí
manifestamente de um mero prosseguimento da transmissão de uma
informação sobre algo que aconteceu ou da descoberta de seus rastros com
base em resíduos. Ao contrário, trata-se de monumentos. Um monumento é

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algo junto ao qual nos vemos diante da necessidade de pensar algo – e em
que devemos pensar. O monumento não é simplesmente apenas algo que
restou ou que permaneceu na memória. Aqui se insinua o fato de a unidade
da história do universo ser algo diverso de uma memória histórica e de sua
conservação. Quando olhamos retrospectivamente a partir da memória
histórica ou a partir de uma vaga idéia de como os monumentos despertam a
lembrança em nós, pensamos nesse caso, por exemplo, naquilo que significa
na história do universo o aparecimento do homo sapiens – com certeza
também pertence à história do universo saber quando surgiu pela primeira
vez a humanidade sobre esse planeta que denominamos Terra, e como a
espécie humana se desenvolveu – talvez até mesmo saber se e quando a
extinção dessa espécie pode ser esperada. O homem inscrever-se-ia, então,
como um fóssil padrão em uma parte da história do universo. Todavia, o
passado histórico que despertamos por meio de um pressentimento a partir
de monumentos e tradições visa algo diverso. A ‘história do mundo’ não é
uma fase na história do universo, mas tem em vista uma totalidade
própria”(Gadamer, 2009, p.226).

Heidegger não escreveria algo semelhante. E nem o poderia, pois está situado
em 1926, prisioneiro dos dispositivos, códigos e estruturas de um modo de ser no
mundo que elevou a um nível existencial com o dasein. Isso é analítica existencial,
quando o filósofo passa a descrever os modos de ser desse dasein. Com essa operação
fenomenológica, o filósofo reforça a dupla estrutura com que pretende atravessar a sua
obra. Gadamer não se compromete com esse tipo de envolvimento com os dispositivos
e códigos dos anos sessenta. Está ocupado com uma “totalidade própria”. Ela parece
muito maior do que simplesmente estar no mundo. Mas, na verdade, nada seria sem a
afirmação da existência em qualquer contexto social, seja da província, seja da cidade
grande, como ela é compreendida por Heidegger em Ser e tempo.Temos uma frase de
Heidegger citada por Sílvio Vietta em uma entrevista com Gadamer, e que esse
conhecia e repetia com humor: “Em Heidelberg está Gadamer, e crê poder solucionar
tudo com a hermenêutica”(Vietta, 2004, p.56). Descobrimos nesta afirmação, talvez a
estranheza de quem não compreendia o trabalho de urbanização da província
heideggeriana que Gadamer estava empreendendo.

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A ironia dessa frase revela como Heidegger se imaginava distante da tarefa de
Gadamer em Verdade e método. Na verdade, há uma distância entre aquilo que se
resume no que foi citado acima e o projeto que Heidegger empreendeu em Ser e tempo.
Trata-se de uma coincidentia oppositorum, de uma oposição complementar, entre o
trabalho de escrever constantemente acuado pelo espírito de seu tempo e um texto que
fala da história e da interpretação de um modo que caberia em diversas situações
históricas contemporâneas, renovando a questão da hermenêutica. Gadamer está nos
anos sessenta como um pensador em busca de uma grande síntese que abranja todos os
projetos interpretativos da hermenêutica, para lhes dar uma espécie de fio condutor que
permita apanhá-los como um todo através da historicidade da compreensão. Mas com
isso ele sobrepaira ao mundo concreto em que se dá o ser humano, olhando para o
horizonte da tradição que o envolve. Heidegger, no entanto, em seu estilo quase
patético, convoca o ser humano dos anos vinte para reconhecer-se em sua
temporalidade, e perceber seu estar no mundo como o compromisso com os eventos que
o constituem através de seus dispositivos de inovação, que passam a ser as instâncias
principais que movem o cotidiano do grande mundo da técnica e do progresso. É nesse
mundo que Heidegger procura pensar os códigos imperantes e dar-lhes uma
profundidade insuspeita, através da explicitação de um novo modo de ser da linguagem.
Converter isso em filosofia foi a tentativa de Ser e tempo. Em Gadamer nada temos dos
dispositivos e dos códigos dos anos cinquenta. Pois é levado por uma inclinação
filosófica de caráter descritivo e interpretativo, que quer retomar e pensar, em maior
amplitude, os esforços da hermenêutica que o precederam.
Com essa aproximação do movimento fundamental de Ser e tempo e Verdade e
método, começou a aparecer o Gadamer que propriamente queremos enfrentar. Qual o
alcance desse livro que aparentemente se tornou tão imprescindível nos meios
acadêmicos do Ocidente? Gadamer explicitou efetivamente uma forma universal de
compreensão dos processos culturais. Essa forma acompanha toda a nossa atividade de
explicitação no universo das ciências e da cultura. Trata-se da historicização do sentido
dos processos culturais e de nossa ligação com eles e, para isso, Gadamer desenhou-nos
um panorama no qual é reconhecido um acontecer da tradição e afirmada a
impossibilidade de tornarmos transparentes todos os nossos pré-conceitos. Com isso, o
filósofo convida para um reconhecimento da finitude de nossa relação com a cultura, e,
ao mesmo tempo, mostra que o diálogo fundado no modelo da pergunta e resposta é o

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que move o processo da compreensão, sustentado por um modo de acontecer no espaço
da pré-compreensão.
Somos capazes de realizar, através de nosso esforço intelectual, aquilo que
Gadamer nos mostra como uma forma de acontecer da verdade na arte, na história e na
linguagem, que faz dela uma forma nova no universo das verdades com que se ocupam
as epistemologias e as teorias das ciências? Se esse modo de olhar nos revela, de um
lado, os determinismos da cultura e do mundo vivido, põe-nos, por outro lado, à
disposição recursos para esgarçá-los e torná-los menos excludentes. Que se esconderá,
atrás desse holismo hermenêutico, daquilo que poderia sugerir a cultura mundo no
nivelamento das culturas na era da globalização?
Não temos em Verdade e método uma teoria do diálogo das culturas. Ele nos
traz mais uma forma universal de operar o compreender de toda a comunicação e
interpretação que permanece uma metateoria e não considera os confrontos, os conflitos
e as dificuldades trazidas pelo encontro das culturas na era do multiculturalismo. É
nesse sentido que afirmo que a obra de Gadamer não nos imerge no mundo dos anos
cinquenta, bem como não pode ser visto como uma superteoria capaz de dar conta dos
dispositivos que dominam nosso tempo, dos códigos que predominam nas diversas
sociedades, e, sobretudo, não nos mune com uma sensibilidade para o colapso e o
surgimento de novos códigos que comandam essa conturbada passagem para o século
XXI. Temos, no entanto, em Verdade e método, determinadas estruturas descritas como
experiência hermenêutica, consciência histórica, ação da história efetual, tradição e pré-
conceitos, que podem nos revelar certos pontos de coagulação de nosso estar no mundo
de 2011. Mas, Gadamer, talvez, esteja distante daquilo que comanda os confrontos, os
conflitos, os choques e as violências entre as culturas na era da globalização. Mas, isso
está envolvido naquilo que acontece para além do que pensamos e queremos.
Se, ao lermos Ser e tempo, fomos proibidos de olhá-lo como uma antropologia
filosófica, será que ao lermos Verdade e método podemos encontrar na obra traços
fundamentais de uma antropologia da cultura? Numa antropologia da cultura temos
como objeto numerosas camadas para descrever estruturas culturais que dificilmente
podem ser inteiramente separadas da sociologia, da história, da política, da psicologia e
outros campos das ciências. O que de tudo isso poderia estar escondido no projeto da
hermenêutica filosófica? Poderíamos usar, para esclarecer isso, a divisão que Clifford
Geertz faz entre dois tipos de antropologia que emergem, de uma ou de outra forma,
entre os etnólogos: estar aqui e estar lá. O estar aqui representa a atividade descritiva

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de tudo aquilo que foi apontado do que se viu lá. Isso poderia ser resumido na expressão
“ficção realista” como representando, na imaginação, através do texto, pessoas reais, em
lugares reais e em épocas reais. Enquanto o estar lá descreve as experiências vividas
nos lugares em que as pessoas trabalham com grupos humanos ou culturas locais, com
as formas que nelas tomou o sentido.
Com Verdade e método sempre estamos aqui. Há na paisagem da hermenêutica
filosófica um movimento que nos situa diante de textos, de culturas e de mundos
vividos que podem ser interpretados, ainda que não esgotados em seu significado e
sentido. Mas, será que não há um problema em obras como Verdade e método, para lhes
reconhecermos o lugar em que podem operar sem levantar falsas expectativas? É claro
que a busca do sentido e um tipo de interpretação da cultura como tal também opera na
antropologia cultural. Mas, tudo isso está implícito em um projeto como Verdade e
método, que pretende ser uma metainterpretação, uma hermenêutica sobre a
hermenêutica, e, por isso, não entra no mundo dos antropólogos.
Procuramos uma delimitação dos enraizamentos que podem ter obras filosóficas
com temas e dispositivos de uma época para lhe compreender certos códigos
predominantes, a crise desses códigos e a percepção das estruturas que pareciam
sustentá-los. Filosofia e trabalho com materiais filosóficos implica numa afirmação da
existência, numa forma de ser, de habitar o mundo com formas de escolhas e decisões.
A Filosofia deveria reagir aos desafios de seu tempo, não apenas “apanhando-o em
pensamento”, porque assim sempre chegaria tarde, mas deveria ser capaz de reagir
diante das revoluções dentro da cultura, como, por exemplo, diante da expansão de
novas formas de convívio, da instituição de novas tecnologias, da criação de novos
padrões de coordenação do tempo na esfera cotidiana. Concluimos com Heidegger: “Ao
analisar a historicidade do dasein, procuramos mostrar que este ente é temporal, não
porque ele resiste à história, mas, ao contrário, ele existe historicamente e só pode
existir porque é temporal na própria base do seu ser” (Sein und Zeit, p.384).
Por outro lado, nossa tentativa de situar Verdade e método revelou-nos um outro
modo de operar com a filosofia. Trata-se de um conduzir o pensamento num caminho
que já apareceu de uma forma muito mais radical no idealismo alemão. Trata-se da
tentativa de representar o esforço do pensamento como a possibilidade de abranger o
todo da obra e da história humanas. Se em Hegel isso aconteceu numa grande hipótese
de como se fosse possível apanhar num todo forma e conteúdo, numa identidade final da
razão absoluta, em Gadamer, a hermenêutica filosófica se torna menos totalitária (A.

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De Waelhens) após a crise e o fim das filosofias da subjetividade e do absoluto, e a
incorporação da idéia da finitude da hermenêutica enfrentando a questão da tradição e
da historicidade. Desse modo, na direção contrária de Hegel, se empreende expor a
existencialidade e a facticidade que nunca se suprime na subjetividade. Somos, segundo
a idéia central de Gadamer, antecipados em todo o nosso esforço de racionalidade, por
uma historicidade, e nunca pode ser recuperada numa transparência. Assim, Gadamer
envolve o todo do movimento da história e da cultura humanas numa dimensão que
sempre as determina como um acontecer da tradição, e sempre as abrange numa
compreensão prévia que pode ser determinada como a historicidade do mundo vivido. A
obra de Gadamer, portanto, faz parte de um outro tipo de análise filosófica, que não
mergulha no mundo, mas o envolve no todo de uma hermenêutica filosófica que
abrange, de modo envolvente, toda a interpretação da cultura. Com Gadamer estamos
situados diante da tarefa de compreender aquilo que se desenvolve como um único
grande texto cuja compreensão jamais podemos esgotar. É para isso que ele desenvolve
os mecanismos centrais de Verdade e método.
Dos dois modos de operar com as obras filosóficas Ser e tempo e Verdade e
método, temos diante de nós duas formas de conceber a filosofia, no horizonte da
fenomenologia. Ser e tempo se desenvolve a partir da filosofia hermenêutica, e Verdade
e método, a partir da hermenêutica filosófica.

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