ENSINO DE FILOSOFIA: DO CONCEITO À PROBLEMATIZAÇÃO-
DIALÓGICA FREIRIANA
AUTOR: Carlos Eduardo Pinheiro Brito
INSTITUIÇÃO: UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL – PPGE - EMAIL: pinheirobrito33@gmail.com
RESUMO
O presente texto visa apresentar uma comparação entre as formas e
pensamentos acerca do ensino de filosofia no ensino médio brasileiro. Fazendo incursão nos pensamentos de Hegel e Kant quanto a este assunto e refletindo sobre a proposta Oficina de Conceitos do brasileiro Silvio Gallo e o método dialógico-problematizador de Paulo Freire. De forma a refletir sobre a importancia deste ensino e seu método na relação ensino-aprendizagem/educador-educando quanto à construção da cidadania em nosso país.
PALAVRAS CHAVES: Ensino de filosofia, método Paulo Freire,
interdisciplinaridade, oficina de conceitos, papel do professor.
INTRODUÇÃO
Numa breve busca histórica pode-se observar que a filosofia surgiu
quando pensadores gregos admirados com a realidade e insatisfeitos com as respostas que lhes eram dadas pelas tradições começaram a perguntar, a raciocinar em busca de respostas que demonstrassem que o mundo e os seres humanos podem ser conhecidos pela razão humana, e esta mesma razão pode questionar e conhecer a si mesma. Este questionamento acerca da realidade nasceu junto com a cidade- estado grega, com o comércio e com a invenção da escrita. Assim, se pode inferir que a filosofia nasceu do diálogo entre os cidadãos gregos. Em outras palavras, da própria realidade vivida por estes pensadores. No Brasil o ensino de filosofia nas escolas não é constante, visto que, de acordo com o momento político ou a necessidade do país em ter mais mão-de- obra, como no período do império, a disciplina faz parte ou não dos curriculos escolares. Após o governo militar (1964-1985), houve uma significativa reação pela volta da filosofia ao currículo, tal reivindicação, aponta Martins (2000), juntamente com o fracasso do tecnicismo, verticalmente imposto pela lei 5.692/71, fez surgir, em 1982, a lei 7.044, que abriu novamente a possibilidade para a volta da filosofia nas escolas, segundo critérios delas próprias. Esta luta pelo retorno da disciplina aos bancos escolares foi vencida apenas em 2006 quando Conselho Nacional de Educação votou por sua inclusão nos curriculos escolares dos tres anos do ensino médio brasileiro e em 2008 foi tornado lei sob o número 11.684. No entanto, como modo de olhar o mundo que se diferencia das outras formas de conhecimento, ficam latentes dois desafios a serem encarados para o ensino de filosofia. Primeiro o de que a filosofia como forma de ver o mundo não se insere num sistema fechado como os sistemas das diferentes religiões, não há como considerá-la como um sistema de ideias prontas donde o individuo parte para inserir-se na sociedade em que vive, mas é uma forma de dialogar com o pensamento humano nas diversas fases da história, que se pode dizer, de forma dialética, visto que avança através do estudo dos diversos autores. É por isso que à Filosofia, muitas vezes, não importa tanto a resposta, mas muito mais a pergunta que se faz. Por outro lado, há de ser considerada, assim, outra dificuldade que é a do método para ensino da disciplina. Deve-se ensinar conteúdos filosóficos ou deve-se ensinar uma atividade mental e moral de se fazer filosofia? Como lidar didaticamente com a miríade de sistemas filosóficos, pensadores? No presente artigo, discute-se, as propostas de Kant e Hegel para o ensino de filosofia comparando a isto as propostas de Gallo, com sua oficina de conceitos, e o uso da metodologia dialógico-problematizadora de Paulo Freire para alcançar tal intento. Filosofia baseada em conteúdos, na construção de conceitos ou na reflexão para a práxis? Com base nestes dois desafios colocados de a construção do pensamento filosófico acontecer através da busca do pensamento dos grandes autores e por isso se fazer avançar e por outro lado o desafio da metodologia de ensino, podemos buscar em Kant e Hegel duas concepções do ensino de filosofia. No pensamento do filósofo de Königsberg, não se deve ensinar filosofia e sim a filosofar:
[...]Não é possível aprender qualquer filosofia; pois onde
esta se encontra, quem a possui e segundo quais caracteristicas se pode reconhece-la? Só é possível aprender a filosofia, ou seja, exercitar o talento da razao, fazendo-o seguir os seus princípios universais em certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de investiar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou rejeitando-os... (KANT, 1980, p. 208-209)
Este excerto denota o racionalismo e otimismo kantianos, que pensa ser
o homem incompleto e por isso mesmo livre, ou seja, é ser que busca a perfectibilidade, por isso mesmo caminha para o melhor, para a busca da razão, de onde se denota que para isso se auto-forma insistindo que o homem deve “pensar por si mesmo”. Esse pensamento kantiano permite leques de inferência, a exemplo da improcedência de se fazer com que o aluno tenha simplesmente erudição ou que memorize conteúdos. Isto apenas tornaria o aluno dependente, pois esta não é a maneira correta de usar a razão. Quando o professor se deixa levar por este tipo de displicência, tem-se a indicação de que ele não pensa, não tem coragem de posicionar-se, permanece numa condição de absoluta menoridade; ele não pesquisa, não estuda e limita-se a passar esquemas prontos. É isto que Freire chama de educação bancária: Para o ‘educador-bancário’, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. (...) Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição... (...) A educação autêntica, repitamos, não se faz de ‘A’ para ‘B’ ou de ‘A’ sobre ‘B’, mas de ‘A’ com ‘B’, mediatizados pelo mundo. (FREIRE,1975:98) Mesmo considerando tudo isto, fica ainda uma questão, mais do que isto, um paradoxo: como aprender a pensar se o aluno ainda não possui conhecimentos suficientemente sólidos? Para Kant isto não é preocupação, visto que todo ser humano educador ou educando naturalmente é pré- condicionado a aprender. Ou seja, o ser humano atinge sua maturidade ou sua maioridade se ele conseguir pensar por si, colocar-se no lugar do outro e pensar de forma conseqüente. Este pressuposto pedagógico que vincula disciplina e conteúdos como ponto de partida para romper com o estado de inércia da primeira natureza — também entendido em Hegel como alienação — toma como palco de realização e aperfeiçoamento dos seres humanos, não tanto o indivíduo, mas a História. Hegel concorda com Kant de que a constituição humana acontece a partir de sua formação que tem seu sentido na perfectibilidade do gênero humano, no entanto, isto se insere numa totalidade maior que ora é o Estado, ora a sociedade civil, ora a própria história. Portanto, a ascensão cultural do espírito é resultado de um processo de formação com certo nível de complexidade. Consiste no esforço de elevar o indivíduo do em si, da imediatividade, para uma posição superior na qual ele possa identificar-se seu este outro que é a cultura. Transpondo esta situação para o ensino, para que isto seja possível, o educando tem de aprender os conteúdos filosóficos e não apenas a filosofar. O papel da Filosofia é pensar aquilo que é e também aquilo que deve ser. Isto só pode ser alcançado com o treinamento do próprio espírito, pelo ensino de línguas, da Filosofia; pela transmissão da cultura que começa na infância e que deve prosseguir na adolescencia fortemente ancorado no pressuposto da construção da cidadania no educando. Trata-se de formar um cidadão crítico, consciente de seus direitos e suas obrigações enquanto ser humano, mas que está vinculado a uma eticidade maior dada pelos compromissos que assume na sociedade/comunidade. A partir destas duas posições, em princípio contrárias, podemos visualizar o quão desafiador é o ensino de filosofia num país como o Brasil, dependente de políticas educacionais muitas vezes impostas por organismos internacionais como o Banco Mundial. Neste sentido, pode-se refletir acerca do objetivo da filosofia como disciplina no ensino médio e o método a ser usado que alcance este objetivo. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei 9394/96, é ampla ao definir o papel da filosofia no ensino médio, mas tem por dever suscitar o desejo de conhecimento capaz de integrar o homem, o mundo e a natureza num projeto de compreensão existencial e transformação consciente. Neste sentido, é necessário identificar o papel da filosofia no processo educacional o que significa não tratá-la apenas como mais uma disciplina, pura e tão somente, mas como uma prática reflexiva (práxis), que auxilie na descoberta da identidade do homem diante da natureza, na construção da liberdade e na transformação consciente da realidade. É evidente que tarefas tão árduas e complexas não são privilégios da filosofia isoladamente. Tal empreitada exige uma relação minimamente interdisciplinar, cabendo à filosofia uma tarefa definida entre as demais, igualmente definidas, porém unidas quanto aos objetivos centrais. Neste sentido, Silvio Gallo (2006) reflete acerca do ensino de filosofia propondo, a partir do pensamento de Deleuze e Guatari, a chamada Oficina de Conceitos, onde a filosofia é tomada como atividade de pensamento que consiste em criar conceitos. Onde a filosofia é tomada como atividade, como ato de pensamento. O que leva a ser determinante que não se ensine filosofia como apenas um conteúdo a ser transmitido, mas como experiência de vida. No entanto, trabalhar conceitos com as transposições para a realidade cotidiana que envolve os sujeitos do processo ensino-aprendizagem é mais que a opção por uma metodologia, implica em levar em conta as particularidades, a realidade vivida pelo discente e as múltiplas capacidades cognitivas. Mas como garantir que o trabalho de filosofia em sala de aula seja capaz de fazer com que o estudante alcance por si mesmo a criação dos conceitos? Novamente fundamentando-se em Deleuze e Guattari (1992), Gallo (2003, p. 3) explica que a experiência filosófica emprega-se de três características básicas: “o pensamento conceitual, o caráter dialógico e a crítica radical”. Entretanto a filosofia desempenha seu papel de filosofia quando exerce seu trabalho de criação de conceitos.
Se a filosofia consiste na atividade de criar conceitos, que
é isso então que ela cria? Podemos dizer que o conceito é uma forma eminentemente racional de equacionar um problema ou conjunto de problemas, exprimindo com isso uma visão coerente do vivido.
Sendo assim, o conceito não é abstrato nem transcendente, mas
imanente, uma vez que parte necessariamente de problemas experimentados, isto é, na medida em que não se cria conceito no vazio (GALLO, 2003, p. 3-4). Nesse sentido, a tarefa da filosofia na sala de aula deve lidar com os conceitos, mas não como se estes fosses “peças de museu” . Para Silvio Gallo (2003, p.4)
“aula de filosofia deve funcionar como uma oficina de
conceitos, um local onde os conceitos historicamente criados são experimentados, testados, desmontados, remontados, sempre frente aos nossos problemas vividos. E também um local onde se arrisque a criação de novos conceitos, por mais circunscritos e limitados que eles possam ser”.
Desta forma, na busca de espaço para a disciplina de filosofia e na
exigüidade de tempo para seu ensino e construção de conceitos, visto que os currículos estão ordenados de maneira a priorizar as disciplinas ditas exatas. Torna-se necessária a interdisciplinaridade. Onde, na construção do conceito se firma também a necessidade de refletir acerca da própria filosofia e das outras ciências, buscando refletir seus fundamentos e conceitos fundantes. Portanto, o ensino de filosofia, é necessariamente interdisciplinar, pois dialoga com as outras formas de conhecimento. O que, leva a pensar o ensino de filosofia também como diálogo entre educandos e entre estes e seus educadores. Portanto, pelo diálogo imprescindível filosofa-se e se conhece a cultura humana. Em outras palavras pode-se dizer que pelo diálogo há interação entre sujeitos-sociedade-conhecimentos. Ou seja, interdisciplinaridade exige atitude de abertura e responsabilidade. De forma que resgata a importância do “outro”, sem o qual não pode haver a troca mútua da evolução do pensamento e da linguagem, e amplia os horizontes dentro do processo sócio-histórico educacional, resgatando a importância do conhecimento das potencialidades, dos limites, das diferenças e do processo criativo de cada ciência, respeitando-se, assim, a relatividade entre elas. Há, pois, a transformação de um pensamento lógico formal em um pensamento dialético, porque não pressupõe a unificação de diferentes saberes, mas a construção incessante de relações entre os mesmos. Dentro desse âmbito de observação é cabível perceber que a prática da interdisciplinaridade está inteiramente relacionada à pesquisa, conforme podemos observar na seguinte citação: O professor, na perspectiva da interdisciplinaridade, não é um mero repassador de conhecimentos, mas é reconstrutor juntamente com seus alunos; o professor é, conseqüentemente, um pesquisador que possibilita aos alunos, também, a prática da pesquisa. A problematização como metodologia para a reconstrução de construtos dá condições ao aluno de mover-se no âmbito das teorias, das diferentes áreas do saber, construindo a teia de relações que vai torná-lo autônomo diante da autoridade do saber. O professor pesquisador constitui-se, portanto, em agente necessário de uma formação calçada na interdisciplinaridade (Tomazetti, 1998, p. 13). Assim, em comparação com as palavras de Gallo, é possível citar também o pensamento de Paulo Freire e seu método dialógico- problematizador. Método este que parte de cinco passos que levam o educador e o educando a refletirem e buscarem transformar a própria realidade. Num certo sentido, um avanço à oficina de conceitos. O processo dialógico freiriano parte do pressuposto da investigação acerca do universo do aluno, onde, a partir deste, o aluno vai pesquisar e problematizar seu universo, buscando educar-se, conscientizar-se, desvelando o mundo e partindo para uma ação social, a práxis da transformação social. Não a transformação que apenas busca tomar lugar daqueles que oprimem, mas aquela que procura transformar a maneira como os homens se vêem. Nesse sentido, é possível dizer que pela problematização proposta por Paulo Freire é passo necessário o diálogo entre educador e educandos e estes. Assim, o professor realiza a transposição dos construtos/saberes e o aluno reconstrói e se apropria dos construtos/saberes de uma disciplina. Juntos, professor e aluno passam a estabelecer relações e construir redes de conhecimentos.
CONCLUSÃO
O ensino de filosofia, desta forma, é primordialmente dialógico e
interdisciplinar, não passa pela unificação dos conhecimentos e saberes, mas pela busca incessante de troca entre eles. É nessa construção do saber que a interdisciplinaridade se solidifica de fato, e não nos momentos posteriores, quando se buscam os saberes instituídos para organizá-los, promove, assim, interconexões entre os saberes, tanto entre professores e seus pares quanto entre professores e alunos, trabalhando o conhecimento de forma problematizadora e estabelecendo relações entre as diferentes ciências, o cotidiano escolar e a realidade social e histórica em que os sujeitos estão envolvidos. Assim, mesmo utilizando da Oficina de Conceitos dentro do olhar específico da construção do conhecimento filosófico o ensino de filosofia, para dialogar com outras disciplinas precisa utilizar-se também da metodologia dialógico-problematizadora e do diálogo entre os educandos para promover a ampliação da visão de mundo e construção do conhecimento, refazendo, criando e recriando o conhecimento (FREIRE, 1987:81) Portanto, o ensino da Filosofia, assim como de outras disciplinas, não podem e não devem ser reduzidos a um exercício de pensamento que se detém em estratégias de argumentação dissociadas de circunstâncias vividas pelo educando e de conjunturas históricas que ele enfrenta. O conteúdo de cada disciplina, ao ser ensinado, deve constituir em reflexão da e para a práxis, entendida aqui como o reconhecimento de que o poder representativo da razão e do pensamento são por demais limitados para esgotar a subjetividade, há um “para quê” em toda a representação, que corresponde a uma nova visão do sujeito pensante: subjetividade não se resume a pensar, mas à capacidade de dar concretude histórica aos projetos e às ações. O sujeito que pensa vai além, é um sujeito histórico. É cidadão. Conclui-se então que o uso do diálogo e da problematização é primordial no ensino de filosofia, como forma de refletir acerca da realidade, assim como os gregos faziam. Para isso, é preciso que se tenha o embasamento teórico apregoado por Hegel, como o ensinar a filosofar proposto por Kant e assim criar conceitos como diz Gallo. No entanto, este processo de filosofar do educador e do educando somente tem sentido quando a filosofia é transformada em realidade concreta, em possibilidade a ser atuada na vida de cada ser humano. Ou seja, quando se torna práxis de transformação e desvelamento da realidade, de construção da cidadania.
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