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Filosofia e Educação: forma de vida e orientação de mundo1

Claudio A. Dalbosco – UPF/CNPq

Introdução

No presente capítulo procuro pensar o aspecto formativo da filosofia da


educação como forma de reatualização de seu sentido no cenário educacional brasileiro
atual, marcado pela preocupação imediatista com a formação de professores. Considero
que tal preocupação insere-se no âmbito da profissionalização especializada, a qual
ocupa cada vez mais espaço na educação superior. A profissionalização especializada se
baseia no manuseio técnico do saber específico que constitui determinada área do
conhecimento humano e que está na base de uma ou mais profissões. O núcleo desta
formação especializada consiste em dotar o estudante (futuro profissional) de
competências e habilidades que o tornem competente para o seu exercício profissional.
Contraponho a tal profissionalização a noção de filosofia como forma de vida e a
educação como orientação de mundo. Forma de vida e orientação de mundo são duas
noções-chave que resultam do esforço de atualização do diálogo entre filosofia e
educação.

Desenvolvo minhas reflexões em três passos. No primeiro passo apresento breve


diagnóstico de época, investigando os motivos que justificam o enfraquecimento da
filosofia da educação no cenário educacional brasileiro, especialmente nos cursos de
formação de professores. Concentro-me em dois motivos, um de natureza externa,
relacionado à tendência mundial, mercantil e tecnicista, assumida pela educação
superior. O outro motivo, de natureza interna, está relacionado à redução progressiva da
pedagogia ao curso de formação de professores, cuja finalidade maior consiste em
capacitar os estudantes a dominar e manusear competências e habilidades.

No segundo passo, apoiando-me em Pierre Hadot e Michel Foucault, me ocupo


com a noção de filosofia como forma de vida. Embora existam diferenças visíveis e
pontuais no modo como estes dois autores interpretam a filosofia antiga 2, ambos
coincidem na ênfase que dão à noção de ascese, opondo-a à concepção de filosofia
1
Conferência proferida no V Congresso da Sociedade de Filosofia da Educação de Língua Portuguesa
(SOFELP), ocorrido na UNICAMP (Campinas/SP), no dia 28.08.2015.
2
Para uma reflexão atual no âmbito da filosofia da educação brasileira sobre as diferenças intelectuais
estes dois autores, ver Pedro Pagni (2016, p. 101-122).

1
como sistema. O núcleo da filosofia como forma de vida repousa, no contexto do
estoicismo da Era do Alto Império Romano, na transformação da noção de cuidado de si
em diferentes práticas de si ou exercícios permanentes que o sujeito precisa fazer sobre
si mesmo visando sua própria subjetivação ética. No curso ministrado por Foucault no
Collège de France em 1982, intitulado A Hermenêutica do sujeito, que é um dos textos
de minha referência de fundo aqui, o autor problematiza, primeiramente, o sentido do
cuidado de si no diálogo Alcibíades de Platão e, na sequência, o exercício de si em uma
variedade de autores e textos do estoicismo antigo, destacando-se entre eles as Carta a
Lucílio de Lúcio Aneu Sêneca. Portanto, cuidado de si e exercício de si são duas
noções-chave que abrangem séculos de reflexão e definem a filosofia como forma de
vida e a educação formadora como orientação de mundo.

Por fim, no terceiro e último passo, concentro-me na concepção de educação


como orientação de mundo. Este novo sentido de educação brota de seu diálogo com a
filosofia como forma de vida, herdando, principalmente de sua reinterpretação da noção
estoica de pertença cósmica, a preocupação com a formação humana. A retomada da
ideia de formação humana permite à educação transformada em pedagogia romper, na
atualidade, com a formação de professores restrita ao saber especializado, dominado
pela linguagem das competências e habilidades. Isso se torna possível porque na
tradição filosófico-pedagógica antiga a própria pedagogia, entendida como psicagogia,
não se ocupava exclusivamente com dotar os educandos de aptidões (competências e
habilidades) mas sim inseri-los em determinados exercícios práticos que
proporcionassem sua transformação enquanto sujeitos educacionais. Foi justamente isso
que procuramos investigar nos três primeiros capítulos do livro, nos quais
problematizamos o vínculo entre ascese, instructio e formação como preparação.

O ponto nuclear do presente capítulo, que cruza os três passos, consiste em


afirmar que a dimensão formativa da filosofia, que interessa propriamente à educação
transformada em pedagogia, repousa na noção de forma de vida alicerçada no exercício
de si (saber ascético), pois é com base em tal noção que a pedagogia pode se conceber
como orientadora de mundo, colocando à disposição do professor a noção de condução
espiritual de seus alunos. Ancorada no sentimento de pertença cósmica ou de cidadania
universal, a pedagogia, como orientação de mundo, pode inserir seu desafio de
formação de professores no domínio mais amplo da formação humana, isto é, para uma
ideia de educação voltada para o desenvolvimento de todas as capacidades humanas.

2
1. O enfraquecimento atual da filosofia da educação

A situação curricular atual dos cursos superiores de formação de professores – as


licenciaturas – caracteriza-se pela diminuição visível da presença da filosofia da
educação. Este fato constata-se também no próprio curso de pedagogia, um tradicional
aliado dos “fundamentos da educação” e, sobretudo, da filosofia da educação. Saber as
razões que explicam o enfraquecimento progressivo da filosofia da educação e qual a
importância deste acontecimento são questões que deveriam interessar não só os
diretamente atingidos pelas transformações acima referidas, senão também os
educadores em geral, sobretudo, aqueles que estão preocupados com o futuro da
formação abrangente das novas gerações. Não é que a filosofia da educação tenha o
poder reflexivo de oferecer sozinha o núcleo de uma educação abrangente, mas
dialogando com a tradição pode contribuir interdisciplinarmente para tornar vivos na
formação das novas gerações aspectos esquecidos da grande tradição humanista e pós-
humanista. De outra parte, a ausência visível da filosofia da educação também no
âmbito das pesquisas educacionais brasileiras, principalmente nas pesquisas voltadas à
formação de professores, é um dos principais fatores responsáveis pela fragilidade
teórica do campo educacional (DALBOSCO; MÜHL, 2020, p. 251-277).

No que se refere especificamente às razões que estão na base da redução


progressiva da presença da filosofia da educação na formação de professores, elas são
de dupla procedência, de ordem interna e externa. A ordem interna refere-se àquilo que
é de responsabilidade da própria filosofia da educação e de seus investigadores. Neste
âmbito há, primeiramente, o problema de constituição do campo da filosofia da
educação que, como saber de fronteira, transforma-se na maioria das vezes em um
território sem pátria, não sendo por isso reconhecido pela filosofia e nem pela própria
pedagogia.

Houve, neste contexto, por um lado, a dificuldade e lentidão da própria filosofia


da educação no sentido de mover-se do solo metafísico tradicional, ontoteológico 3, no
3
Entendo por ontoteológica a ampla tradição filosófica que caracteriza uma versão bem determinada da
metafísica ocidental. Tal tradição inicia, de maneira sistemática, com os Diálogos do Platão da
maturidade, especialmente com o Fedão e a República, passando pelos livros IX e XII da Metafísica de
Aristóteles e desembocando, na Filosofia medieval, em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Esta
tradição alcança se apogeu na modernidade, com Descartes, Kant e Hegel, chegando com força no mundo
contemporâneo, sobretudo, no caso brasileiro, na tradição neotomista. A grande viragem contra a ampla
tradição ontoteológica começa com Nietzsche e, acentuando-se em Heidegger, chega até nós por meio de
autores contemporâneos, como, especialmente, cada um a seu modo, Habermas e Foucault. Sobre a crítica
à tradição metafísica ontoteológica, na perspectiva da ontologia heideggeriana, ver o recente livro de

3
qual se encontrava, para novas formas de ontologia. Ao assumir tais formas a filosofia
da educação poderia então pensar o problema da formação humana de modo mais
atualizado, não mais prisioneira da metafísica substancialista antiga ou subjetivista
moderna.4 Por outro lado, quando a filosofia da educação, impulsionada por motivos de
pensamento pós-humanistas, decidiu abandonar a tradição ontoteológica, o fez em
muitos casos movida pelo adeus apressado à razão e, ao abrir mão do questionamento
sobre o papel dos fundamentos, renunciou também, equivocadamente, à pergunta pelo
sentido da ação humana e do próprio mundo.

Este duplo fator, o adeus apressado à razão e a recusa a qualquer pretensão de


fundamentação, jogou a filosofia da educação no terreno movediço do relativismo
radical, recusando-se a perguntar pelo sentido e validade da base normativa da teoria.
Ora, sem a pretensão normativa provinda em parte do diálogo crítico com a tradição, a
filosofia da educação enfraquece sua capacidade reflexiva, diluindo o próprio conceito
de formação em narrativas de histórias individuais de vida. Com isso, a própria noção
de formação é reduzida à pesquisa autobiográfica.5

Do ponto de vista externo, o enfraquecimento da filosofia da educação deve-se,


por um lado, à tendência mundial cada vez mais economicista e tecnicista assumida pela
educação superior no mundo contemporâneo, encurtando o espaço das humanidades nos
currículos universitários, inclusive, naqueles diretamente relacionados à formação de
professores.6 Por outro lado, este movimento mais amplo de mercantilização da
educação repercutiu, especificamente no âmbito da pedagogia, na sua diluição
progressiva, no caso brasileiro, em curso de formação de professores, o qual passou a
ser entendido, cada vez mais, na perspectiva didaticista de domínio de técnicas de
aprendizagem, dominadas pela linguagem das competências e habilidades. Neste
contexto, o professor passou a ser considerando como gestor de competências
distanciando-se daquela noção clássica de diretor espiritual (VEIGA-NETO, 2013,
p.51).

Ernildo Stein (2014).


4
No ensaio intitulado “Ontologia da formação pós-humanista em Heidegger e Foucault” empreendemos,
juntamente com Marcelo Doro, a tentativa de pensar a filosofia da educação em um horizonte pós-
humanista (DALBOSCO; DORO, 2019, p. 63-83).
5
O trabalho de H.-C. Koller (2014), na Alemanha, aponta exatamente para este problema. Inserindo-se na
tradição da pesquisa autobiográfica, Koller esforça-se para compreendê-la na perspectiva da formação
(Bildung) como processo, reinterpretando com isso a própria raiz clássica da Bildung.
6
Desenvolvemos e aprofundamos este diagnóstico em livro publicado recentemente (DALBOSCO,
2021).

4
A consequência disso é que a pergunta mais ampla pela formação do pedagogo
enquanto orientador de mundo e diretor espiritual reduziu-se a questão de como formar
professor para desenvolver em seus alunos competências e habilidades, certamente,
àquelas que são de maior interesse para o mercado de trabalho. O prejuízo disso à
pedagogia é imenso, pois fez com que ela perdesse, no bojo desta transformação, sua
dimensão prática, no sentido ético, de preocupação com a orientação de mundo tanto
dos professores em exercício como dos futuros docentes. Para poder inserir-se nesta
nova onda da formação de professores, boa parte da filosofia da educação que ainda
restou teve de abrir mão de sua perspectiva crítica, outrora diretamente relacionada à
pretensão de ser orientadora de mundo. Precisou assumir, no contexto atual, um novo
papel, a saber, de ser fonte legitimadora da formação de professores, oferecendo-lhe o
conteúdo condizente ao domínio das técnicas de aprendizagem. Esta redução da
pedagogia ao domínio de técnicas de aprendizagem ocorre, portanto, no contexto mais
amplo da própria redução da educação à aprendizagem e à linguagem das competências
e habilidades a ela subjacente (BIESTA, 2013 e 2021). A consequência disso é que de
diretor espiritual com o propósito de preparar os alunos para sua inserção crítica e
autônoma no mundo, o professor passa a ser um gestor de competências, principalmente
daquelas competências que interessam mais a determinadas profissões demandadas pelo
mercado de trabalho.

O contexto traçado acima em linhas gerais contribuiu para que a filosofia da


educação relegasse ao esquecimento sua pergunta originária, a saber, sobre o sentido da
formação humana expressada na pergunta pelo sentido da própria existência humana,
vendo com isso seu papel reduzido à linguagem das técnicas de aprendizagem que
dominam a questão da formação docente. Coloca-se, como desafio à filosofia da
educação, neste contexto, a reinterpretação do sentido originário tanto de filosofia como
de pedagogia, uma vez que tal sentido foi sufocado historicamente pela tendência
dominante da profissionalização especializada. Contudo, tal reinterpretação precisa
evitar um duplo risco: por um lado, de querer transpor as ideias antigas ao contexto
atual; por outro, buscar simplesmente invalidá-las com base exclusiva nas questões da
atualidade, provindas sobretudo do aligeiramento da formação segundo a perspectiva da
economia neoliberal. Portanto, a questão pertinente de uma filosofia da educação
atualizada pode ser formulada nos seguintes termos: em que sentido ainda é possível
pensá-la como forma de vida e como orientação de mundo? O que significa mais

5
propriamente forma de vida e orientação de mundo? O tratamento destas duas questões
remete ao diálogo com a tradição filosófico-pedagógica passada.

2. Filosofia como forma de vida

Considerando o diagnóstico feito brevemente acima, voltamo-nos agora ao


sentido da filosofia como forma de vida e, conectado com este tema, no tópico seguinte,
à noção de educação transformada em pedagogia como orientadora de mundo. Com
estes dois últimos passos de nossa reflexão pretendemos reforçar ainda mais o vínculo
estreito e cooriginário entre filosofia e educação, uma vez que o sentido de uma só se
deixa compreender pela sua relação com a outra. Pois, quando voltamos nosso olhar
para o contexto antigo, tanto na Paidéia grega como na Humanitas latina o vínculo entre
filosofia e pedagogia era muito estreito, podendo-se dizer que uma não existia sem a
outra. Neste sentido, é o vínculo estreito dado pelas noções de forma de vida e
orientação de mundo que possibilita pensar a formação humana como núcleo
constitutivo da filosofia da educação.

Na Antiguidade greco-latina, se encontra não só a noção de filosofia como saber


contemplativo, mas também como forma de vida. Pierre Hadot é um dos pensadores
atuais que melhor investigou esta temática, deixando clara a ideia do quão forte e
intensa era a noção de filosofia como forma de vida e o quanto ela se diferenciava da
filosofia como sistema ou como ensino doutrinário. Assim afirma o referido autor, em
um de seus textos: “A filosofia nos aparece então originalmente não já como elaboração
teórica, senão como método de formação de uma nova maneira de viver e perceber o
mundo, com o intento de transformá-lo” (HADOT, 2006, p. 56).

Esta breve citação contém vários aspectos relevantes à noção de filosofia como
forma de vida e, por isso, precisamos interpretá-la com mais detalhes. O primeiro
aspecto refere-se à distinção entre elaboração teórica e método de formação. Pierre
Hadot está refletindo, na altura do texto de onde extraímos a citação acima, exatamente
sobre o sentido formativo inerente às escolas filosóficas antigas, em oposição à
elaboração teórica de sistemas. Segundo ele, há nitidamente, tanto em Platão como em
Aristóteles, uma preocupação com o ensino, ou seja, com a introdução formativa do
estudante no pensamento filosófico. Esta preocupação formativa, de introduzir

6
adequada e progressivamente o aluno no estudo da filosofia acentua-se nas escolas
filosóficas posteriores, especialmente nas tradições epicuristas e estoicas. Ora, quando a
preocupação imediata é formativa, então a perspectiva metodológica também precisa ser
outra: “o método não consiste na exposição de um sistema, mas sim em oferecer
respostas concretas a questões concretas e bem delimitadas” (HADOT, 2006, p. 54).

Trata-se, aqui, não de buscar o princípio de fundamentação última que possa


esclarecer “aquilo que é enquanto é”, busca na qual o pensamento está envolto consigo
mesmo, de um aneira especulativa, sem necessariamente exigir a relação do pensador
com os outros. Porém, quando se trata de introduzir o iniciante na atividade do
pensamento, o filósofo educador experiente encontra o “jeito pedagógico” para fazê-lo.
O filósofo precisa até mesmo simular ironicamente, como faz Sócrates, para atingir a
profundidade de algo que não pode ser justificado pelo apelo imediato ao ato de dar
razões, que emana do saber contemplativo. Em síntese, quando se trata da formação
filosófica inicial, Sócrates mostra que o mestre precisa revelar-se inferior ao que ele
realmente é e, descendo ao nível de seu discípulo, simular dar-lhe razão para poder
chegar até ele, ouvir sua fala e iniciar o processo formativo de trabalho sobre o conteúdo
da fala revelada pelo seu discípulo. Ou, como faz Sêneca em relação a Lucílio, na
própria esteira socrática, o apelo a metáforas torna-se decisivo para tratar de questões
filosóficas referidas ao sentido da existência humana ou ao problema da morte e sobre o
papel que a natureza ou o cosmos desempenham na busca por tal sentido. Sendo assim,
como vimos no segundo capítulo, a metáfora desempenha, como no caso da armadura,
uma dimensão formativa e esclarecedora importante.

O que se tem em mente aqui, do ponto de vista formativo, é que o mestre precisa
percorrer ele mesmo todo o caminho pedagógico com seu discípulo, fazendo concessões
momentâneas para poder dar um passo adiante no processo formativo de ambos. No
caso de Sócrates, como sabemos, o diálogo na forma de pergunta é que se torna a força
motriz do caminho formativo percorrido em parceria estreita pelo mestre com seus
discípulos. Sócrates tem clareza, neste sentido, do caráter de abertura que é inerente à
pergunta franca e honesta, pois ela conduz à escuta silenciosa como condição do
reconhecimento recíproco entre mestre e discípulo, entre educador e educando. Ouvindo
atentamente um ao outro, educador e educando abrem-se ao sentido provocador inerente
ao diálogo e, ao fazer isso, transformam-se mutuamente. Plenamente inserido nesta
tradição, Sêneca transforma a parresía socrática em libertas, pois enquanto mestre

7
pedagogo está convicto de que é sua fala franca - sem a artificialidade da retórica -, que
lhe dará a força educativa para inserir progressivamente seu discípulo no universo das
questões filosóficas.

O segundo aspecto da passagem acima citada refere-se à ideia de que, sendo um


método de formação, a filosofia conduz a uma nova maneira de ver o mundo. Em que
consiste esta nova maneira de ver o mundo? Certamente não é mais aquela vinculada às
crenças seguras e dogmáticas que o discípulo traz consigo ao travar relação com seu
mestre. Aqui se mostra justamente a primeira e indispensável tarefa da filosofia como
formação de uma nova maneira de pensar, a saber, de colocar em xeque, questionando,
a ignorância dogmática inerente à doxa ou, denominada mais tarde, já no contexto
latino, de stultitia,7que caracteriza a maneira inicial de pensar do discípulo e de todo o
ser humano em geral. A nova maneira de pensar propiciada pela formação filosófica
caracteriza-se então pelo ver e julgar vagarosos e pelo agir prudente, visando o bem, e
não mais movida pelo espontaneísmo da consciência dogmática que conduz ao
imediatismo da ação deixando-se orientar por evidencias não questionadas. Filosofia
como forma de vida implica. Formativamente, significa o autoexame permanente das
evidências imediatas tomadas como certas pela consciência estulta.

Neste contexto, como enfrentar a ignorância dogmática inerente à doxa ou à


stultitia é um problema pedagógico de primeira grandeza, ou seja, é a questão
educacional por excelência. A filosofia da educação não pode se constituir como forma
de vida e como orientação de mundo sem enfrentar satisfatoriamente o problema da
doxa ou da stultitia, porque seu vínculo com a formação humana exige o trabalho de si
sobre si mesmo que todo o ser humano precisa realizar, desde a fase inicial de sua vida,
a qual está marcada nitidamente pela forma ingênua e dogmática de pensamento. É
preciso considerar que a doxa ou a stultitia não é algo exclusivo somente do educando,
pois constitui em grau diferenciado também a concepção de mundo do próprio
educador. Ou seja, em certo sentido, todo o ser humano carrega consigo sua doxa ou
stultitia, pois ela representa, do ponto de vista formativo, o “ainda não” que cada ser
humano, como um ser inacabado, traz consigo, em sua história, ou seja, em sua
trajetória de vida. Certamente, é a consciência deste aspecto inacabado inerente à

7
Sobre o problema da estultícia como núcleo da condição humana e o papel formativo do mestre, ver o
capítulo (...) deste livro.

8
condição humana que faz Sócrates adotar a posição humilde diante do saber e do
próprio mundo e que faz Sêneca recusar firmemente o título de sábio.

Por fim, o terceiro e último aspecto da passagem acima se refere à transformação


do mundo. Ao método de formação não importa apenas proporcionar uma nova maneira
de ver o mundo, mas sim e talvez mais decisivamente de transformá-lo. O que significa
propriamente transformar o mundo? Esta questão entrelaça-se com o sentido da própria
transformação filosófica e, como decorrência, com a transformação do si mesmo, do
sujeito envolvido na transformação filosófica. Com isso está envolto com a questão
psicagógica da formação humana, precisamos tratar com mais cuidado do difícil
problema da transformação filosófica do si mesmo.

O esclarecimento passa, primeiramente, pela problematização da própria noção


de mundo. Tal noção não pode ser referida especificamente nem só ao mundo físico,
constituído pelos objetos de nossas percepções sensíveis, e nem só ao mundo social,
formado pelos costumes, regras e leis. No sentido hermenêutico, 8 que pressupomos aqui
e que tem origem precisamente na tradição antiga, mundo é tudo aquilo que é
construído e significado simbolicamente pelo ser humano, na companhia com os outros
em um ambiente social, cultural e natural. Precisamente, mundo é o horizonte de sentido
que brota da abertura da pergunta inerente à condição humana. Tem a ver, portanto,
com a abertura de sentido criada e recriada pela força inquiridora da condição humana,
possibilitando emergir, pelo diálogo vivo, formas próprias, inusitadas e específicas de
vida. Esta noção hermenêutica de mundo pressupõe a noção antiga de ordenação das
coisas e da possiblidade humana de encontrar o seu lugar nesta ordem cósmica.
Pressupõe aquele espanto ou assombro originário que moveu e direcionou tudo em seu
início, permitindo assinalar a tensão inesgotável entre mito e logos.

Considerando isso, voltamo-nos ao sentido da transformação filosófica. Neste


contexto, cabe referir outra citação de Pierre Hadot:

Frente a todas estas formas, a conversão filosófica implica separação e


ruptura com respeito ao cotidiano, ao familiar, a esta atitude falsamente
“natural” do sentido comum. Significa uma espécie de retorno ao original, à
autenticidade, à interioridade, à essencialidade. Pressupõe um absoluto

8
Refiro-me aqui especificamente à hermenêutica gadameriana. Sobre a relação da hermenêutica filosófica
de Hans-Georg Gadamer e a educação ver Hans-Georg Flickinger, (2014, p. 65-126). Sobretudo em seu
texto O caráter oculto da saúde, Gadamer deixa claro o quanto o pensamento antigo influencia seu
tratamento de questões filosóficas essenciais (GADAMER, 2006).

9
recomeçar, um novo ponto de partida que transmuta o passado e o porvir
(HADOT, 2006, p. 187; grifos nossos).

Deste modo, encontra-se resumido, nas palavras deste autor, o núcleo da


transformação filosófica, que acontece, na antiguidade, em sua forma mais usual, como
conversão.9 Ora, a conversão implica sempre a passagem de um estado para outro, a
saída de uma condição inicial para ingressar numa outra condição, bem diferente da
anterior. No âmbito do processo formativo, o estado inicial é a condição natural do
senso comum e o ponto de partida da ação filosófica consiste em como trabalhar com
esta condição. Este “como trabalhar” resume o aspecto propriamente formativo da
filosofia, ou seja, é a questão pedagógica da filosofia. Torna-se importante, quando está
em jogo a questão formativa da filosofia, não a exposição sistemática de um ponto ou
problema da doutrina, mas sim o trabalho formativo a ser feito com o iniciante à
filosofia. O passo seguinte, decisivo, defendido por Hadot, consiste no retorno à
interioridade, implicando tal retorno no recomeço permanente. Portanto, a conversão
filosófica possui três momentos inseparáveis e insubstituíveis: ruptura com o sentido
comum naturalizado; retorno à interioridade e; por fim, o recomeço permanente. A
ausência de um destes aspectos certamente compromete a transformação filosófica e,
por conseguinte, a própria dimensão formativa da filosofia.

Em síntese, cabe ressaltar que a transformação da filosofia como conversão


contém algo nuclear à formação humana: para que ocorra educação, para que aconteça o
processo formativo, é preciso que o sujeito pedagógico saia bem diferente do que era,
quando iniciou a relação pedagógica. Se não ocorrer esta transformação em cada um e
se cada um não se dispor a transformar a si mesmo, não ocorre processo formativo. Ora,
é precisamente isso que está na origem da Bildung moderna, esta tradição grega, como
Paidéia, ou seja, como Selbstbildung. Neste contexto, toda a Paidéia é, ao mesmo
tempo, autoformação e isso significa dizer que se o educando não se dispor a se

9
Michel Foucault se ocupou com o tema da conversão em A Hermenêutica do Sujeito, inclusive fazendo
referência explicita a Pierre Hadot, na primeira hora da aula de 10 de fevereiro de 1982 (FOUCAULT,
2004, p. 265). Na referida aula, a qual ele dedica para tratar especificamente da conversão, concebe-a
como “um processo longo e contínuo que, melhor do que trans-subjetivação, eu chamaria de auto-
subjetivação” (ibidem, p. 263). Diferenciando a conversão estoica da epistrophé platônica e da metánoia
cristã, Foucault a define como um processo que “conduz a nos deslocarmos do que não depende de nós ao
que depende de nós” (ibidem, p. 258). Trata-se do regresso a si mesmo, da busca pelo “guia interior” e da
construção da “cidadela interior”. Portanto, segundo Foucault, a conversão estoica é um processo de auto-
subjetivação que exige do sujeito um trabalho permanente de si sobre si mesmo, visando à sua
transformação. Sobre isso, ver também o primeiro capítulo do presente livro.

10
transformar e o educador não estender a mão amiga para ajudá-lo e, com isso,
transformar-se a si mesmo, não há educação. Portanto, educação, em seu sentido mais
profundo, mais genuíno da expressão, é formação como autoformação e
autodeterminação (BIERI, 2012). Este significado de formação como autoformação que
atravessa séculos e irriga as mais diferentes teorias educacionais tem origem na
Antiguidade, na tradição greco-romana do cuidado de si e do exercício de si,
encontrando na conversão greco-latina sua expressão mais significativa.

Este sentido da transformação filosófica está imbricado com o sentido da


transformação do si mesmo. Mas, perguntamo-nos, o que significa e como acontece a
transformação do si mesmo? Alcança-se, com este questionamento, o núcleo decisivo
da filosofia como forma de vida: ela só faz sentido enquanto transformação do si
mesmo (do sujeito) e tal transformação depende da presença do outro. Além de Pierre
Hadot, também Michel Foucault, em seus últimos cursos ministrados no Collège de
France, considera a transformação do si mesmo como decisivo à concepção de filosofia
como forma de vida. Em A hermenêutica do sujeito ele investiga como o cuidado de si
constitui o núcleo do pensamento socrático. Foucault mostra, ao mesmo tempo, as
profundas transformações que o cuidado de si sofre no desenvolvimento filosófico
posterior, sobretudo, no âmbito do estoicismo romano da Era imperial. Na verdade, é
este desenvolvimento posterior que lhe interessa, pois acredita encontrar aí um modo
singular dos exercícios de si (das práticas de si) que é nuclear e atual para pensar o
problema da formação ética do sujeito. Nas noções de cuidado de si e exercício de si se
entrecruzam – e esta é nossa hipótese no presente capítulo - a filosofia como forma de
vida e a pedagogia como orientação de mundo, permitindo derivar deste cruzamento a
ideia de formação humana como autotransformação dos sujeitos envolvidos no processo
educativo. Portanto, tanto em Sócrates como em Sêneca, tomados como dois modelos
paradigmáticos de mestre, encontra-se uma ideia de formação como exigência ética de
transformação do si mesmo (sujeito), concebida como condição indispensável para que
ocorra educação em seu sentido abrangente, que possa provocar o desenvolvimento de
todas as capacidades humanas.

O que gostaríamos de enfatizar, no momento, é que para estes dois autores, tanto
para Hadot como Foucault, a filosofia como transformação do mundo implica sempre

11
uma ascese, ou seja, o exercício de si sobre si mesmo. 10 No contexto da filosofia antiga,
tanto socrática como estoica, os mais diferentes exercícios espirituais (Hadot) como as
mais diferentes tecnologias do si (Foucault), pressupõem em seu conjunto o regresso de
si a si mesmo e o trabalho vagaroso, exigente, que o sujeito precisa fazer consigo
mesmo. Neste contexto, não há qualquer transformação possível do mundo sem que este
si mesmo coloque-se na situação de ação e busque compreender-se como um sujeito de
ação, dispondo-se antes de tudo a transformar a si mesmo. O exemplo modelar desta
forma de exercício é encontrado por estes dois autores na tradição greco-romana,
especialmente no estoicismo antigo, no caso de Foucault, especialmente no estoicismo
senequiano.

O que está em jogo aqui, sendo decisivo à filosofia como forma de vida, é a
ideia de que nem todas as coisas podem ser resolvidas no âmbito do logos discursivo
(apofântico), considerado como logos proposicional. Ao contrário, quando se trata de
assuntos humanos, e a formação humana é o assunto humano por excelência, a maioria
das coisas se põe no terreno da ação, entendida como práxis específica, que além de ser
diferente do logos proposicional, não pode ser inteiramente apanhada por ele. Trata-se,
portanto, de um logos específico – conforme os logoi práticos, tratados no primeiro
capítulo deste livro - que tem a ver com um sentido específico de verdade, verdade
como retidão ou veracidade, que considera o sujeito em sua ação, tendo que colocar-se
ele próprio na situação. Ora, é este sentido genuíno de práxis humana, que está no
núcleo da ideia de formação humana, que, segundo pensamos, vem representado pela
noção de ascese como prática de si, que caracteriza a filosofia enquanto forma de vida.

Precisamente neste ponto é que se encontra então o núcleo constitutivo da


filosofia como forma de vida: preocupar-se com o mundo só faz sentido e só ganha
força, do ponto de vista formativo, se o si mesmo se convencer de que precisa ocupar-
se primeiramente consigo, precisa exercitar-se a si mesmo, isto é, precisa cultivar a si
mesmo. Mas, este ocupar-se consigo mesmo não pode ocorrer sem a presença do outro.
Por isso, o cuidado de si implica, do ponto de vista ético, levar a sério o outro. Ora, é
10
Este ponto comum entre os dois autores, ou seja, da filosofia como forma de vida ancorada no saber
ascético, no exercício de si, não encobre as profundas divergências filosóficas entre eles. Enquanto
Foucault concebe a ascese estoica dos dois primeiros séculos da nossa era como singular tanto em relação
ao período antigo anterior como ao período cristão posterior, Hadot tende a ver mais como uma
continuidade entre estes diferentes momentos históricos. O próprio Hadot, em um ensaio posterior à
morte de Foucault, traça as principais diferenças de seu pensamento em relação a Foucault (HADOT,
2006, p. 251-256). Sobre a ascese filosófica no sentido especificamente foucaultiano, ver a o primeiro
capítulo deste livro.

12
tarefa da filosofia, mas agora já como pedagogia formativa ou como educação
formadora, criar as condições intelectuais e desenvolver a postura formativa adequada
para que o si mesmo sinta-se desafiado, na condição de educando, a assumir a
responsabilidade do exercício de si, considerando que tal exercício o leva a tomar a
sério a si mesmo, o outro e próprio mundo do qual faz parte. Isso remete, então, à noção
de pedagogia como orientação de mundo.

A noção de pedagogia como orientação de mundo pressupõe que os dois


aspectos subjacentes à exposição abreviada da filosofia como forma de vida sejam
devidamente justificados: primeiro, que o si mesmo implica sempre a presença do outro;
segundo, que o retorno a si mesmo é impulsionado pela questão do bom governo da
polis, no caso socrático, e pela pertença à ordem das coisas (razão universal), no caso do
estoicismo romano. Ou seja, está subjacente a estas duas ideias que o retorno a si
mesmo não deve ser visto como uma fuga do mundo na perspectiva da opção egoísta ou
solipsista de si. Trata-se, portanto, do retorno a si mediado pela presença do outro e
movido pela força inspiradora do olhar abrangente.

No caso socrático, como nos mostrou Foucault (2004) por meio da interpretação
do Alcibíades de Platão, o querer governar os outros remete imediatamente ao
questionamento sobre quem é o si mesmo (auto to autò) que pretende exercer tal
governo. Quando o jovem aristocrata Alcibíades, que leva o nome do próprio Diálogo
de Platão, procura Sócrates para que este lhe prepare na arte de governar a cidade, ele o
faz orientado pela simples vontade de dominar os outros, de exercer o poder dominador
sobre os outros. Portanto, Alcibíades apresenta-se com o sentido comum naturalizado da
aristocracia ateniense da época, de simplesmente querer dominar os outros. O trabalho
formativo de Sócrates, que é desde o início um trabalho ético e político, incide
imediatamente no questionamento sobre a vontade de domínio inerente ao apelo de
Alcibíades, pondo a pergunta fundamental: “governar ou bem governar os outros?” Tal
pergunta, como se pode observar, na sequência do Diálogo, desconcerta Alcibíades,
arrancando-o do solo naturalizado de seu sentido convencional da política, com sua
respectiva noção de exercício do poder como forma de dominação dos outros. É o
questionamento ético do mestre que faz Alcibíades perceber as limitações do sentido
comum naturalizado de sua concepção política: da posição adequada da pergunta pelo
bom governo de si mesmo depende a possibilidade do querer governar bem os outros.
Brota daí, deste questionamento ético sobre sua própria ação de governo a possibilidade

13
da vivência cooperativa e solidária, indispensável para dar vínculo ao viver junto na
polis.

Do ponto de vista textual, há uma passagem de A hermenêutica do sujeito, na


primeira hora da Aula de 17 de janeiro de 1982, portanto, quase ao final do curso, na
qual Foucault resume sua ideia básica sobre o processo formativo de Alcibíades -,
dizendo que o ocupar-se consigo mesmo significa, ao mesmo tempo, ocupar-se com sua
alma (interioridade). Assim afirma Foucault (2004, p. 507): “Lembremos que neste
diálogo, no Alcibíades, o que estava em questão, aquilo a que estava consagrado todo o
diálogo, - pelo menos toda a sua segunda metade -, era a questão da epiméleia heautoû
(do cuidado de si)”. Portanto, quando o tema é o governo de si como forma de
preparação ética para o governo da cidade, e não meramente da vontade de dominação,
a centralidade recai sobre o cuidado de si e não mais sobre o conhecimento de si. Isso
marca, claramente, a passagem da dimensão epistemológica (logos epistêmico) para a
dimensão ética (logos prático), do falar neutro e distanciado para o falar de dentro,
comprometido, considerando a finalidade inerente à própria ação. Na continuidade da
mesma passagem, continua afirmando Foucault: “Sócrates tinha convencido Alcibíades,
se ele quisesse efetivamente honrar a sua ambição política – a saber, governar seus
concidadãos e rivalizar tanto com os espartanos quanto com o rei da Pérsia -, deveria
primeiramente prestar um pouco de atenção a si mesmo, ocupar-se consigo mesmo,
cuidar de si mesmo”. Contudo, o ocupar-se consigo mesmo, o cuidar de si mesmo, tem
a ver, como vimos nos dois primeiros capítulos deste livro, com o retornar a si mesmo,
com a fuga para o intimo de sua interioridade, visando formar o domínio de si mesmo.
Por isso, não é uma fuga para o solipsismo, mas sim para o diálogo consigo mesmo, o
qual implica, como vimos, o diálogo com o outro, que no contexto formativo clássico,
greco-latino, implica sempre a companhia orientadora do mestre amigo.

A posição do questionamento ético leva então do desejo movido pelo sentido


comum “naturalizado” do exercício de poder, entendido como simples vontade de
dominação, para o cuidado ético consigo mesmo, considerando-o como base nuclear do
querer governar bem os outros. Neste caso, já está explicita a presença do outro na
vontade de governar de Alcibíades, mas trata-se ainda de uma presença como simples
objeto de seu desejo, ou seja, atrelada à sua pura vontade ambiciosa de dominação dos
outros. O questionamento de Sócrates provoca o retorno ético de Alcibíades a si mesmo,
exigindo que rompa com seu sentido comum naturalizado de política, ou seja, exigindo

14
que a presença do outro não mais se coloque na perspectiva instrumental, como simples
objeto de dominação. Em síntese, evidencia-se como ponto nuclear, na preocupação
formativa de Sócrates, a importância do retorno dialógico meditativo para si mesmo
como condição da formação ética de si mesmo e dos outros.

Portanto, Foucault nos mostra que na formação de Alcibíades, pelo trabalho


ético pedagógico de Sócrates, ocorre um movimento tripartite: inicia-se com a presença
instrumentalizada do outro, passando-se pelo questionamento sobre o cuidado autêntico
de si, culminando, finalmente, na nova presença do outro, agora tomada a luz do si
mesmo ético, ou seja, do si mesmo que vê no outro uma fonte de reconhecimento
recíproco. O importante, para o tema em questão, é que o si mesmo, em qualquer uma
destas etapas, só pode se constituir pela presença irrecusável do outro. É justamente esta
presença do outro que justifica o papel e a importância do mestre na ideia de formação
humana tanto em Sócrates como também em Sêneca, mas de um mestre que se coloca
na condição de ser educado pela própria exigência de seu formar parresiástico. Pois, sua
postura formativa baseada na parresía exige dele que se coloque na situação formativa,
concebendo-se ele próprio como sujeito em formação.

No caso do estoicismo romano, encontra-se nele, de maneira mais clara do que


no pensamento socrático anterior, a noção de pertença cósmica como extraordinária
força mediadora do cuidado autêntico de si consigo mesmo e com o outro. Torna-se
importante, na arquitetônica tripartite do pensamento estoico, entre lógica, ética e física,
o estudo da física (contemplação da natureza) na formação autêntica do si mesmo. A
força normativa da contemplação da natureza - que pode aparecer como um escândalo
aos olhos do homem contemporâneo, herdeiro da especialização fragmentada da ciência
moderna e de sua obsessão pelo método experimental -, era algo inerente à formação
moral do homem antigo. Como o núcleo de tal formação repousa na transformação que
o si mesmo precisa sofrer, o ponto de partida consiste na luta contra a escravidão que
ele mesmo se auto impõe. Portanto, a busca pela liberdade consiste, antes de tudo, na
resistência à servidão de si mesmo, destacando-se o papel imprescindível que a
natureza, que o agir de acordo com a natureza desempenha. Este é, reconhecidamente,
um tema típico de duas obras de Sêneca, das Questões naturais e das Cartas a Lucílio.

Para deixar mais claro este papel ético-formativa que a relação do sujeito com a
natureza pode assumir, recorremos à segunda hora da Aula de 17 de fevereiro de 1982,

15
na qual Foucault dialoga de perto com os textos de Sêneca. Percorrendo conjunta e
contemplativamente a imensidão do mundo e admirando a beleza da natureza, fazemos
isso não para fugir de nós mesmos e do mundo, mas, ao contrário, para voltarmos a nós
mesmos: “Vemos que este grande percurso da natureza servirá, não para nos arrancar do
mundo, mas para nos permitir compreender a nós mesmos lá onde estamos”
(FOUCAULT, 2004, p. 338). Não se trata, portanto, como esclarece o autor na mesma
passagem, da fuga para um mundo de sombras e aparências, onde só habita a escuridão,
mas para o mundo onde há luz: “é para medir exatamente a existência perfeitamente real
que temos, mas que não passa de uma existência pontual”. Ou seja, contemplamos a
imensidão do mundo e admiramos a beleza variada das coisas da natureza para
descobrirmos nossa pequenez e nossas fragilidades diante da imensidão portentosa do
cosmos. Neste sentido, o saber da natureza nos liberta porque nos conduz à
contemplação de nós mesmos (contemplativo sui), auxiliando-nos para descobrir quem
somos e qual é o lugar que ocupamos na ordem das coisas. E, este duplo movimento, da
descoberta de si e do lugar que cada um ocupa no mundo, é decisivo para saber o que se
quer.

A ideia fundamental é, portanto, que a natureza desempenha um papel formativo


indispensável: contemplando a natureza e descobrindo os seus segredos, o si mesmo
descobre quem ele é e, com isso, é arrancado da servidão voluntária que se impôs a si
mesmo ou que lhe é imposto de fora, por outros seres humanos e pela ordem social.
Deste modo, contemplar a natureza, olhar concentradamente para o universo, auxilia o
si mesmo a desenvolver um ponto de vista que percorre todo o mundo e que não pode
ser um ponto de vista parcial, limitado, que foca num só ponto e julga tudo o mais
somente a partir deste único ponto. Portanto, a contemplação do conjunto da natureza, e
este é o aspecto mais importante, conduz a contemplação de si mesmo (contemplatio
sui), provocando a transformação de si mesmo e, com isso, abrindo-lhe as portas para
um olhar abrangente, que possa incluir outros pontos de vista, inclusive, pontos de vista
diferentes do seu.

É este percurso profundamente interligado da contemplação da natureza à


contemplação de si mesmo, exposto por Sêneca na carta 66 das Cartas a Lucílio, que
está na base da formação virtuosa da alma. Foucault, parafraseando tal carta, resume a
ideia do seguinte modo: “Portanto, a alma virtuosa [l’âme vertueuse] está em
comunicação com todo o universo, está atenta à contemplação de tudo [attentive à la

16
contemplation de tout] o que constitui os seus acontecimentos, atos, processos. Então,
‘ela se controla a si mesma tanto em suas ações quanto em seus pensamentos’
[´cogitationibus actionibus que intentus ex aequo’]” (FOUCAULT, 2004, p. 341; 2001,
p. 269; grifos nossos). Esclarece-se, com isso, que contemplar o universo em seus
acontecimentos é indispensável para que a alma possa dominar suas ações e
pensamentos. Com isso, podemos concluir, considerando o que foi exposto nos três
primeiros capítulos do livro, que o diálogo contemplativo com a natureza se torna uma
ascética formativa por excelência, ou seja, um exercício formativo genuíno de si, que
conduz ao domínio virtuoso de si.

Em Marco Aurélio, outro pensador estoico, o aspecto normativo da física


(contemplação da natureza) parece ficar ainda mais evidente. Ele concebe a filosofia
como forma de vida, sendo suas Meditações, como mostrou Pierre Hadot, nada mais do
que um guia espiritual baseado no pensamento estoico. Nas palavras de Hadot:
“Escrevendo suas Meditações, Marco Aurélio pratica, pois, exercícios espirituais
estoicos; quer dizer, que utiliza uma técnica, um procedimento – a escrita -, para
influenciar a si mesmo, para transformar seu discurso interior através da meditação dos
dogmas e das regras de vida do estoicismo” (HADOT, 2013, p. 113). Em síntese, em
Marco Aurélio, a filosofia assume a forma ascético-meditativa, mas trata-se de uma
meditação exercitada por meio da escrita. O exercício frequente da escrita possui o
objetivo maior de provocar a transformação do próprio sujeito escritor: enquanto
escreve, medita sobre quem ele próprio é, o que faz ou deixa de fazer e o que isso
significa para a relação que mantém consigo mesmo, com os outros e com o mundo.
Precisamente neste sentido é que a escrita se torna o modo ascético privilegiado, como
já vimos, porque enquanto exercício de si possibilita a criação de si, ou seja, a
autodescoberta de si mesmo.

Também Foucault retoma Marco Aurélio, na segunda hora da Aula de 27 de


janeiro de 1982, citando e analisando em detalhes uma longa carta escrita pelo filósofo
imperador a seu mestre Frontão. O pensador francês encontra nesta carta três formas
distintas de aplicação do exercício de si: a dietética, referida à saúde e aos detalhes do
regime alimentar e higiênico; a econômica, relacionada aos deveres familiares e
religiosos, nos quais aparece o modo de vida camponesa ancorado na prática do otium
cultivado e; por fim, a erótica, abrangendo elementos concernentes ao amor. Assim
resume Foucault (2004, p. 199) sua análise da referida carta: “O corpo, os familiares e a

17
casa, o amor. Dietética, econômica, erótica. Estes são os três grandes domínios em que
se atualiza, nesta época, a prática de si, incluindo, como vemos, uma perpétua remissão
de um ao outro”. Foucault (2004, p. 197) destaca ainda que Marco Aurélio, na carta
dirigida ao seu mestre (Frontão), faz um “relato bem meticuloso de um dia, desde o
momento do despertar até o do adormecer. É, em suma, o relato de si através do relato
do dia”.

Escrever sobre a rotina diária e como o sujeito organiza sua vida nesta rotina,
meditando sobre o espaço livre que lhe sobre e o que faz com este espaço livre, tudo
isso mostra, enfim, que a escrita sobre o dia-a-dia também pode ser o autorrelato de si,
no qual o sujeito se descobre a si mesmo. Tem-se, tanto em Hadot como em Foucault, o
destaque da escrita como forma genuína de exercício meditativo de si mesmo: quer seja
pelo diário ou pela carta, o sujeito se expõe a si mesmo, medita sobre si mesmo e,
buscando descobrir a si mesmo, alcança a transformação de si, cultivando sua
interioridade para poder viver melhor consigo mesmo e com os outros. Em síntese, a
escrita - bem como a escuta, a leitura e a meditação -, é um exercício genuíno de si, que
conduz ao domínio de si, o qual é condição indispensável para que o sujeito possa
enfrentar qualquer tipo de servidão, seja interna ou externa.

No caso específico de Marco Aurélio, cabe ainda perguntar em que sentido a


física torna-se uma fonte genuína para a meditação escrita enquanto exercício de
transformação de si? Ele, assim como Sêneca, possui clareza que é pela perspectiva da
natureza em sua dimensão cósmica que é preciso situar todas as coisas e
acontecimentos. Assim se expressa Marco Aurélio:

Um imenso e aberto campo se abrirá diante de ti, pois em virtude do


pensamento, podes abraçar a totalidade do universo e recorrer a sua
eternidade temporal, considerando a metamorfose de cada coisa individual, a
brevidade do momento que vai do nascimento à dissolução, da eternidade
que precede o nascimento, à eternidade que seguirá a sua dissolução
(AURÉLIO apud HADOT, 2006, p. 122 e 123).

Sem desconsiderar as possíveis diferenças existentes entre Sêneca e Marco


Aurélio, ambos coincidem na posição de que há uma estreita relação entre a grandeza da
alma (virtude da alma) e a contemplação meditativa da natureza (cosmos). Do ponto de
vista educacional, isso significa dizer que a formação virtuosa da alma depende da
meditação permanente da natureza e, para os estoicos, não pode haver formação

18
autentica do si mesmo sem sua relação com a ordem das coisas. Em síntese, a escrita
meditativa sobre si mesmo, o relato de si no transcurso de um dia e a contemplação
desinteressada da natureza são exercícios de si (práticas de si) que conduzem ao
domínio de si. Em síntese, chegamos a conclusão de que não pode haver domínio de si
enkratéia) sem ascese, a qual precisa, por sua vez, da instructio, ou seja, da formação
concebida como preparação.

Procuramos expor acima alguns aspectos da filosofia como forma de vida, nos
baseando na interpretação que Hadot e Foucault fazem da tradição greco-romana,
optando por não tratar das possíveis diferenças existentes entre suas concepções de
filosofias; também não nos ocupamos com objeções que lhe são dirigidas sobre o modo
como interpretam tal tradição. Também optamos por não fazer, no tópico acima, como
não o faremos nos capítulos subsequentes do livro, a interpretação exegética meticulosa
do texto destes dois autores, retirando deles tão somente as ideias que nos interessam
para pensar o nexo entre ascese, instructio e formação como preparação. Contudo,
apesar destes limites, pensamos ter preparado minimamente as bases, com a exposição
do tópico acima, para tratar, na sequência, ainda neste capítulo, da noção de pedagogia
como orientação de mundo.

Pedagogia como orientação de mundo

Procuramos investigar, no tópico anterior, com referência a dois pensadores


atuais, Pierre Hadot e Michel Foucault, a noção de filosofia como forma de vida.
Deixamos claro que a ideia de filosofia implica três aspectos bem precisos: a) diz
respeito à contemplação na ação, a qual exige o cuidado permanente de si consigo
mesmo, orientado por diferentes exercícios espirituais; b) o cuidado de si ou o exercício
de si só podem ocorrer na presença do outro; c) a relação de si consigo mesmo e com o
outro acontece movida pelo sentimento de pertença ao mundo, ou seja, de pertença à
ordem das coisas: ninguém pode tornar-se sujeito sem a presença do outro e, a rigor,
ninguém consegue viver sozinho sem o sentimento de pertença ao mundo. Em síntese,
isso significa dizer que o sentimento de existência brota do cuidado de si mediante a
presença dos outros, ambos inseridos na ordem cósmica. Problematizar este vínculo
entre o si mesmo, o outro e o mundo é algo fundamental à ideia de formação humana e
que precisa ser descortinado a todo o ser humano desde sua mais tenra infância. Este
19
vínculo tripartite não era algo exclusivo da filosofia, pois abrangia também a pedagogia,
cujo conteúdo brotava de seu diálogo com a própria filosofia. De modo geral, quem
conduzia esta reflexão era o filósofo que já imprimia ele mesmo o tom formativo tanto
para sua conversação oral como para sua própria escrita.

É neste sentido, então, que os três aspectos acima referidos estão na base da
pedagogia como saber espiritual que problematiza a orientação de mundo das novas
gerações e define o trabalho de direção espiritual que as gerações mais velhas
desenvolvem em relação às gerações mais novas. Como orientação de mundo, esta
compreensão específica de pedagogia difere tanto daquela que é inerente à filosofia
enquanto saber contemplativo (metafísica), como desta outra definição contemporânea
de pedagogia compreendida tão somente enquanto formação docente reduzida à
linguagem das competências e habilidades (pedagogia profissionalizante). O que marca
sua diferença, decisivamente, em relação a estas duas outras concepções, de filosofia e
de pedagogia, é o fato de ela não mais ser derivada de um saber técnico especializado,
mas sim de uma sabedoria que investiga a imersão dos envolvidos no mundo prático,
constituído em seu tríplice significado, o si mesmo, os outros e sua pertença à ordem
cósmica. Trata-se, portanto, antes de tudo, de uma sabedoria prática que se constitui
como forma de vida exigente, ou seja, do exercício permanente de si sobre si mesmo na
companhia dos outros, visando a excelência nas ações. Ora, é precisamente enquanto
sabedoria prática que a pedagogia pode irmanar com a filosofia enquanto forma de vida
o mesmo terreno da práxis humana exteriorizada nas mais diferentes práticas de si.

Para esclarecer melhor este vínculo entre sabedoria prática e pedagogia


formadora, como orientação de mundo, que estamos postulando aqui, recorremos a uma
passagem da segunda hora da Aula de 10 de março de 1982, na qual Foucault trata,
especificamente, do saber parresiástico do mestre em relação ao discípulo, tomando as
Cartas a Lucílio de Sêneca como apoio textual principal. Após ter feito a reconstrução
detalhada do sentido da libertas (parresía) do mestre, tomando como referência a carta
75 das Cartas a Lucílio – vamos tratar especificamente da libertas do mestre nos
capítulos posteriores deste livro -, Foucault estabelece a distinção entre pedagogia como
formação profissional e a psicagogia como postura de mundo. Tal distinção possui uma
atualidade impressionante na medida em que permite compreender o dualismo que
marca o debate educacional contemporâneo entre pedagogia profissionalizante e
pedagogia formadora. Vejamos, primeiro, o que ele diz sobre pedagogia como dotadora

20
de aptidões: “Chamemos, se quisermos, ‘pedagógica’ a transmissão de uma verdade que
tem por função dotar um sujeito qualquer de aptidões, capacidades, saberes, etc., que ele
antes não possuía e que deverá possuir no final desta relação pedagógica”
(FOUCAULT, 2004, p. 493). O característico deste tipo de pedagogia é o saber
conteudístico, cuja forma básica é sua transmissão, visando dotar os sujeitos
educacionais (professores e alunos) do conhecimento que ainda não possuem. O foco
recai na transmissão do conhecimento, sendo que a postura formativa inerente à
construção do saber é quase irrelevante.

Contudo, tal postura é precisamente o interessa maior da psicagogia, a qual é


definida por Foucault, na continuidade da mesma passagem, como “transmissão de uma
verdade que não tem por função dotar o sujeito qualquer de aptidões, etc., mas
modificar o modo de ser do sujeito a quem nos endereçamos”. Enquanto na primeira a
verdade é estritamente disciplinar, que visa dotar o sujeito, por meio de conteúdos, de
competências e habilidades (aptidões), a verdade da pedagogia como psicagogia volta-
se para a postura do sujeito, isto é, para os exercícios de si (práticas de si) que provocam
sua própria transformação. É neste sentido psicagógico antigo, que a pedagogia se
transforma em orientação de mundo, porque ela toca na ação dos sujeitos educacionais
(professores e alunos), refletindo sobre a finalidade interna de suas ações, sobre o modo
como eles as executam. Como orientação de mundo, a pedagogia possui tarefa
formativa insubstituível, a saber, de provocar a autorreflexão dos próprios sujeitos
educacionais. E a pedagogia como orientação de mundo consegue fazê-lo por deter seu
foco nos diferentes exercícios de si, herdados de sua vinculação com a ascética
filosófica.

Este breve recurso à passagem da aula de Foucault nos auxilia para compreender
como a pedagogia se constitui a partir daquele núcleo tripartite acima referido: si
mesmo, o outro e o mundo. De seu vínculo com o si mesmo, primeiro aspecto acima
referido, brota a exigência de que a pedagogia pode ser um tipo de saber que provoca
nos envolvidos a postura ética de se considerar como parte da situação específica e no
acontecimento em questão, tendo que renunciar a atitude de sempre querer colocar-se
apenas de fora, com um ponto de vista neutro, indiferente e descompromissado. Pensada
nos trilhos do exercício de si, a pedagogia amplia-se para além de um saber meramente
cognitivo profissionalizante, incluindo em seu campo de abrangência a questão da
postura e da formação ética dos sujeitos educacionais. Neste âmbito, o sujeito

21
educacional é convidado a exercitar-se permanentemente a si mesmo por meio de
diferentes práticas de si, das quais a leitura e escrita constituem o núcleo do ócio
estudioso que está na origem da pedagogia enquanto skholé ou otium.

Do segundo aspecto, vinculado ao primeiro, nasce a postura ética do si mesmo


em relação à presença do outro. Um dos aspectos que Foucault mais insiste n’A
hermenêutica do sujeito é mostrar justamente a importância da presença do outro na
própria formação do si mesmo, sendo que este outro assume a forma paradigmática do
mestre. Deste modo, a relação mestre-discípulo se torna exemplar para pensar a
formação ética do sujeito e, por conseguinte, a própria formação humana. Neste âmbito,
a pedagogia tem a ver com a problematização das condições necessárias para que o
mestre possa exercer seu papel formativo e para que o discípulo, aprendendo com o
mestre, possa constituir-se como sujeito. É neste âmbito, como veremos, que a parresía
do lado do mestre e a escuta silenciosa ativa, do lado do discípulo, constituem o âmbito
de problematização do saber pedagógico. Como se pode observar, estamos muito longe
da concepção de pedagogia centrada no ensino das competências e habilidades voltadas
para o preparo de determinado exercício profissional. O fato decisivo é que tais questões
não se identificam tão somente com as exigências que emergem da escolha e exercício
de determinada profissão.

Neste sentido, como indica Hans-Georg Flickinger (2014, p. 97ss), o domínio e


manuseio do saber especializado, das técnicas e normas, são necessários, mas não
suficientes. Além do saber técnico especializado, o profissional precisa ancorar o
exercício de sua profissão naquele tipo de saber que é oriundo de uma longa experiência
vivida, espelhada no saber de experiência de seus próprios professores educadores. É
por isso que o diálogo crítico com a pedagogia enquanto sabedoria prática e a noção do
mestre parresiástico dela resultante pode auxiliar para problematizar o papel e a
importância do professor na atualidade, auxiliando na distinção daquilo que é
indispensável à sua tarefa formativa e aquilo que ele precisa aprender a dizer não, pois
não corresponde ao exercício de ser professor.

Têm-se, com isso, dois aspectos diretivos da pedagogia, que brotam de seu
vínculo com a sabedoria prática compreendida como exercício de si: a exigência de
colocar-se na situação, no sentido de que o sujeito precisa exercitar-se permanentemente
a si mesmo e a postura da inclusão ética do outro na própria ação. Neste contexto,

22
auxiliar para que educador e educando possam refletir sobre o significado ético de levar
o outro a sério, é um aspecto decisivo da noção de pedagogia como orientação de
mundo. Ora, é este questionamento sobre si mesmo e sua relação com o outro que leva a
pensar o sentido da própria profissão, uma vez que esta obviamente não se reduz ao
simples manuseio do saber técnico especializado. Também são estas duas referências
que auxiliam o profissional, no caso o pedagogo, a reconstruir sua experiência vivida
numa perspectiva ética e colocá-la na base do exercício de sua profissão.

Contudo, a noção de pedagogia como orientação de mundo deixa-se


compreender, de maneira ainda mais aprofundada, em analogia com o terceiro aspecto
acima aludido, isto é, com a noção estoica de pertença cósmica. Neste sentido, antes de
ser teoria dos saberes docentes especializados, a pedagogia é uma forma de vida que,
enquanto exercício de si sobre si mesmo, pergunta pelo sentido da existência humana e
do mundo como um todo, pensando os problemas da formação do si mesmo com
referência a tal pergunta. A noção de pertença cósmica propicia à pedagogia romper
com o exclusivismo do saber profissional especializado e provoca educador e educando
a construírem um olhar ampliado e abrangente sobre si mesmos e sobre o mundo. Ora, é
na noção estoica de pertença cósmica que se radica, como mostrou recentemente Martha
Nussbaum, o cosmo político (kosmupolitês) da cidadania universal e a concepção de
comunidade humana como fonte de nossas obrigações morais (NUSSBAUM, 2014, p.
12).

Este terceiro aspecto é indispensável aos dois anteriores, pois permite que o
saber prático baseado nas experiências vividas tanto do educador como do educando
seja reconstruído na perspectiva do olhar dirigido ao todo. Importa salientar que é esta
perspectiva universalista e cosmopolita pressuposta na noção de pertença cósmica que
permite romper com o aspecto dogmatizante do preconceito e com o provincianismo
egoísta, ambos inerentes à experiência marcante do sujeito neoliberal contemporâneo,
dominado pela perspectiva mercadológica da concorrência, eficiência e lucratividade.
Deste modo, referido ao sentimento de pertença cósmica, o saber prático vê-se
confrontado com sua própria perspectiva individualista, tendo que reconstruir suas
experiências vividas à luz da cidadania universal (cosmopolitismo político) e da

23
comunidade humana como fonte da dignidade humana, ambas (comunidade e
cidadania) alicerçadas no reconhecimento recíproco de iguais entre iguais.11

Há várias consequências pedagógicas inerentes a este sentimento de pertença


cósmica, ou seja, a este “olhar desde o topo”. Tal sentimento torna possível, como
atestou Pierre Hadot, que o ser humano volte a se situar diante da imensidão do
universo, tomando consciência daquilo que é, considerando a fragilidade e o
inacabamento que constituem sua própria condição. Mas, sobretudo, “tem o efeito de
permitir ao indivíduo ver as coisas desde uma perspectiva universal e depreender-se de
seu ponto de vista egoísta” (Hadot, 2009, p. 247). A pedagogia, neste contexto, pensada
como orientação de mundo, atribui um sentido ético à escolha da profissão, permitindo
ao profissional elevar-se acima de um projeto de vida individualista, calcado apenas nos
fins lucrativos que a escolha de uma determina profissão pode render. Deste modo, a
pedagogia como orientação de mundo torna-se base normativa importante para pensar
não só a formação do licenciado (futuro docente), mas também o problema da formação
profissional em geral. Em síntese, a formação pedagógica alicerçada na ideia de
orientação de mundo possui a tarefa de despertar em cada profissional especialista o
sentimento de um cidadão do mundo pertencente à comunidade humana.

Esta dimensão tripartite constitutiva da pedagogia como sabedoria prática


precisa ter seu início já na educação infantil, perfazendo a trajetória formativa do ser
humano ainda em seu início, enquanto criança. Por isso, é importante descortinar a
criança diferentes exercícios formativos que a façam perceber sua pertença à
humanidade e à ordem das coisas e que de modo algum é um ser isolado e sem contato
com as outras pessoas ou sem vínculo com o mundo. Pois a oportunidade de
experiências concretas de convivência solidária com os outros por meio de pequenos
gestos e o desenvolvimento da sensibilidade cósmica, ou seja, de que pertence a um
universo infinito, torna-a mais humilde e solidária. Pois, tais experiência, na medida em
que auxiliam no seu descentramento, propiciam a formação de um espírito mais
solidária e de interdependência humana.

Em conclusão, meu intento foi reconstruir algumas linhas gerais da noção de


filosofia como forma de vida e de pedagogia como orientação de mundo, ou seja, como

11
Ocupo-me com a questão do reconhecimento recíproco em sua versão moderna, tomando Rousseau
como referência, no livro Condição humana e educação do amor próprio em Jean-Jacques Rousseau
(DALBOSCO, 2016).

24
sabedoria prática. Penso que esta noção de filosofia é uma referência importante para
questionar a predominância atual da formação profissional especializada que toma conta
da educação formal. De outra parte, a noção de pedagogia como orientação de mundo
abre a perspectiva para pensar a formação docente muito além de um saber
especializado nos termos do manuseio de técnicas de aprendizagem. Neste contexto, a
filosofia da educação, compreendida como parte da sabedoria prática precisa dialogar
com a tradição filosófica e pedagógica passada, elaborando os recursos conceituais
necessários para pensar de maneira ampliada a formação profissional das novas
gerações. Com isso, a filosofia da educação chama para si a difícil tarefa de
proporcionar o diálogo crítico entre saber técnico especializado e formação humana,
sem ter que concebê-lo de maneira excludente, mas sim complementar.

Bibliografia

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