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PENSANDO A PARTIR DOS RUÍDOS DA PRÁTICA EXPERTA: uma etnografia

da política do licenciamento ambiental da usina hidrelétrica Belo Monte.

Rafael Gomes de Sousa da Costa


Doutorando em Antropologia UFMG

Introdução: ruídos de máquina.

A política do licenciamento ambiental de um megaempreendimento funciona


como o subterfúgio de um modo de governo que tem os seus procedimentos e suas
decisões modeladas pela economia, e não o contrário. Nessa conjuntura, todo o
conhecimento produzido pelos experts desse campo parece conformar-se,
exclusivamente, ao processo de obtenção das licenças ambientais. Onde pouco importaria
a construção de uma base empírica confiável sobre os impactos socioambientais de um
megaempreendimento e que pudesse fundamentar o debate público em torno da sua
viabilidade socioambiental, apenas o cumprimento de procedimentos tecnocráticos que,
na prática, garantiriam os resultados das políticas de crescimento nacionais.
Isso posiciona a execução prática – técnica, política e ética – da expertise aplicada
ao licenciamento ambiental no campo de uma finitude, onde as pessoas operadoras dessas
instâncias, na impossibilidade de evadir os limites impostos por suas gramáticas
operacionais, as reproduziriam de modo automático, numa atitude pouco reflexiva sobre
aquilo que lhes foi dado como condição histórica da sua existência profissional.1 Daí que
a redução metafórica dos experts ambientais à forma da “engrenagem de uma máquina”
guarda certo sentido parcial. Pois, se os meios que eles/as possuem no decorrer de suas
atividades não oferecem a opção de conter os efeitos destrutivos do capitalismo, apenas
seguir o seu fluxo independentemente da realidade que se passa diante de seus olhos, a
disposição desses indivíduos ao redor de uma regularidade material e política não faz
mais que os reduzir a um objeto passivo de reprodução da vida social.
Contudo, a operação de uma máquina não se dá sem percalços. Contratempos,
incidentes, falhas são sempre verificadas e, se tais desordens não são conhecidas pelos
meios formais a expertise ambiental, elas não deixam de ser vividas via processos mais
íntimos ou informais da existência coletiva e/ou individual. Enfim, uma máquina não

1 Em referência não à Resolução CONAMA Nº 001, de 23 de janeiro de 1986, que estabelece os procedimentos de
avaliação de impacto ambiental de atividades modificadoras do meio ambiente, mas aos vários códigos de ética que
guiam as práticas dos experts que se engajam nesse campo: como, por exemplo, o código de ética do Sociólogo que,
entre as finalidades primordiais da categoria, estabelece “a proteção do bem-estar dos indivíduos com quem os
sociólogos trabalham”; ou o código de ética dos Biólogos que, entre seus princípios fundamentais, institui o “respeito
à vida, em todas as suas formas e manifestações”; ou ainda o código de ética dos Geólogos, que estabelece como
objetivo da profissão a promoção “[d]o bem social da humanidade e o profissional como o agente capaz de exercê-lo.”
1
funciona sem ruídos e, como diriam Deleuze e Guattari, “cada ruído de máquina se tornou
insuportável ao corpo sem órgãos” (2017: 21).
Este trabalho trata-se de uma etnografia da minha experiência como analista
ambiental em uma empresa privada durante a instalação da usina Belo Monte, no rio
Xingu, estado do Pará, região Norte do Brasil, entre 2010-2013. Na análise desse campo,
trago à tona, na esteira de Isabelle Stengers (2005), as causas que mobilizam os afetos e
os pensamentos no curso da prática da expertise ambiental de um megaempreendimento.
A partir daquilo que se poderia denominar como a “etnografia dos ruídos” – como
a etnografia das ordens culturais mais íntimas de uma instituição de elite experta, que se
desdobram de modo suplementar, intersticial e paralelo aos processos de auto-
representação formal, e que dizem respeito à tentativa simbólica de reduzir ou ampliar a
complexidade do mundo que os analistas poderosamente afetam – o que se busca é
identificar como estes profissionais gerenciam e conceituam a sua prática. Nessa análise,
interessa explorar as diferentes posições que o expert pode ocupar no interior do campo
discursivo da política do licenciamento ambiental que a etnografia permitiria revelar.

Uma expertise indeterminada?

A imagem da expertise aplicada ao licenciamento ambiental ser uma atividade


tecnocrática, dirigida para a “viabilização sócio-política” de megaempreendimentos (tais
como Belo Monte), é uma representação difícil de se desvincular.2 Como demonstrou
Deborah Bronz (2016) em uma etnografia recente sobre os bastidores das práticas de
análise ambiental em uma empresa privada de consultoria no Brasil, o conhecimento
produzido por estes profissionais – mesmo que ancorado numa nova “ética empresarial”
orientada pela possibilidade de reduzir os efeitos sociais produzidos pelos
megaempreendimentos – está dirigido para a concessão das licenças ambientais. Uma
prática que transforma a expertise ambiental menos numa busca por “resultados efetivos”,
que a manufatura de uma papelada burocrática voltada para o preenchimento das
demandas legais e administrativas dos procedimentos do licenciamento ambiental.

2 A expressão “viabilização sociopolítica” é retirada aqui do relatório final do Grupo de Trabalho (GT) Belo Monte,
criado pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), em 1994, com o objetivo de atualizar e
complementar os estudos de viabilidade da usina, concluídos em 1989. Entre as recomendações do GT, expressas no
seu relatório final, publicado em 1995, estava a “elaboração e implantação simultânea de um programa de viabilização
sociopolítica do empreendimento e dos programas de atividades de engenharia e estudos ambientais” visando obter um
relacionamento com a sociedade em busca de participação e apoio (Eletrobrás 2009:30-32; ênfase minha). O Estudo
de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte, concluído em 2009, a despeito da legislação ambiental no Brasil, é
resultado desse processo de “viabilização sociopolítica” da usina, que até o início da década de 90 fora marcado por
grande contestação das comunidades locais, sobretudo as comunidades indígenas. Isto é, Belo Monte é um
empreendimento econômico do Estado brasileiro que só se tornou “viável” pelo trabalho interpretativo dos experts
ambientais organizados em torno das práticas da política do licenciamento ambiental.
2
Uma expressão dessa dinâmica se dá por meio do que Bronz denomina como a
“montagem da “cena participativa”” do licenciamento ambiental (ibid.). Onde o
conhecimento aplicado pelos experts em comunicação social, na sua responsabilidade em
criar canais de diálogo entre empreendedores e comunidades, não está preocupado em
pautar decisões socialmente informadas sobre o curso dos empreendimentos, mas em
“domesticar e estandardizar os conflitos” a partir de performances dramáticas e rituais,
materializados por meio de reuniões ou audiências públicas, por exemplo. Nesses
eventos, como demonstra a autora, apesar das populações serem convocadas a
“participar”, “comparecer” ou “tirar dúvidas” sobre a obra, muitos de suas questões ficam
sem resposta, seja pela falta de sistematização das demandas colocadas e retorno à
população ou pela ausência de embasamento técnico para responde-las por parte dos
profissionais ali presentes. Assim, a montagem da “cena participativa” de um
empreendimento no contexto do licenciamento ambiental atenderia mais ao cumprimento
de processos administrativos que a resolução das inquietações comunitárias.
Em texto recente, o antropólogo Jerome Whitington (2018), que estudou formas
de gerenciamento ambiental em uma empresa privada construtora de barragens em Laos
(Whitington, 2019), argumenta que a expertise demandada dos analistas ambientais
desses empreendimentos “não está preocupada com o conhecimento do mundo”, mas
“está focada numa performance de resultados” (2018, s/p). Na qual o objetivo principal
seria traçar as ameaças e oportunidades da construção de uma hidrelétrica, tais como a
evolução adversa da regulação ambiental ou a atuação de movimentos sociais, em
detrimento do conhecimento que pudesse oferecer uma análise amplificada dos impactos
ambientais, bem como uma melhor projeção de suas medidas de mitigação ambiental.
Segundo Whitington (2019), isso reduziria o conceito chave de “sustentabilidade”
ao domínio de um “enclave”, isto é, um repertório múltiplo de práticas que, estruturadas
sob as condições de investimento e governança do neoliberalismo, estão todas orientadas
para garantir os resultados das políticas de crescimento econômico nacionais (ibid.).
Nesse sentido, a expertise ambiental aplicada à política do licenciamento ambiental
reflete a temporalidade daquilo que a antropóloga Andréa Zhouri (2008) denominou
como o “paradigma da adequação ambiental”, um artifício evasivo orientado para a
viabilizar os megaempreendimentos, que um artefato científico de precauções e
advertências sobre as dimensões destrutivas do capitalismo moderno.
Entre os fundamentos deste paradigma está a aparição de um campo de produção
tecnocrático autônomo e restrito a um grupo particular, expresso na formação do ““perito
técnico” treinado na arte da “resolução de conflitos” e alocado nos departamentos e
3
secretarias ambientais das administrações públicas e privadas” (Zhouri et al., 2005: 17),
cuja “forma incorporada de habitus – espécie de “senso prático” ou sentido do jogo a
partir do qual os agentes classificam o mundo, organizam sua ação e definem as
estratégias mais eficientes –, só pode desenvolver pela exposição continuada do agente à
lógica inscrita nas práticas do campo” da adequação ambiental (Carneiro, 2005: 71).
Nesse sentido, o paradigma da adequação ambiental, na sua concepção
bourdieusiana, requer um olhar histórico, sociológico e antropológico das condições
sociais de sua reprodução. Pois é exatamente pela análise dos códigos e dos estilos de
vida apreciados por uma “classe” ou grupo particular numa determinada época o que
explicaria a sua constituição (cf. Bourdieu, 2007). Assim, poderíamos perceber que a
condição de trabalho dos experts ambientais compartilha um “modo de apropriação
legítima” do mundo cuja dinâmica tende à atitude habitual de conferir valor às coisas e
às pessoas a partir do “órgão de compreensão” tecnocrático da política do licenciamento
ambiental, que exclui qualquer reação que pudesse introduzir pretextos e interesses que
lhe seriam impróprios (tais como o horror, a angústia, o sentimento de fracasso ou de
estra vivendo uma catástrofe), as quais passam a ser tidas como ingênuas ou vulgares.
Nesse cenário, ao assumir a forma de um “estetismo” expresso no processo
tecnocrático da política de adequação ambiental, enraizado num ethos do distanciamento
eletivo às necessidades do mundo natural e social, que confere o primado da forma em
relação à função (ibid.), o expert ambiental parece se abster das suas responsabilidades e
obrigações técnicas, o que o afasta de qualquer proposição ética sobre a promoção do
bem-estar comum ou da defesa da vida (vide Nota 1 supra), levando-o ao limite daquilo
que Pierre Bourdieu denominou como a “denegação burguesa do mundo social” – isto é,
o “desloca[mento] [d]a ênfase da matéria para a maneira... por um expediente de
estilização que exige à forma e às formas que operem uma denegação da função” (ibid.).
Assim, as “identidades práticas” pelas quais os experts que trabalham no
desenvolvimento das faladas forças produtivas parecem se restringir a formas estáticas de
estratificação social que se desenvolveram a partir do processo de expansão do
capitalismo (Hardt; Negri, 2000 apud Stengers, 2005: 184). Afinal, se a história recente
do conhecimento especializado em meio ambiente aplicado em Belo Monte é a história
da sua “viabilização sócio-política” (vide Nota 2 supra) – um empreendimento que, em
si, nada mais é que o produto do avanço da fronteira hidrelétrica brasileira sobre a
Amazônia, uma região crescentemente pressionada por uma implacável economia

4
extrativista3 – a relação tácita que o expert estabelece com o modo de percepção
tecnocrático da adequação ambiental só pode ser definida em afinidade com a cultura que
ele privilegia, cujas condições materiais de existência garantem tanto a constituição,
quanto a implementação de suas formas distanciadas de produção de conhecimento.
Contudo, este texto se esquiva parcialmente da sensação de autoevidência desta
relação – de que a prática regular da expertise ambiental obedece a certos marcadores
privilegiados de classe social, expressos por meio de “disposições estéticas” que tendem
a denegar as propriedades sensíveis dos mundos natural e social. Não para negá-la! Mas
para (parafraseando Foucault, 1972: 25-6 e Stengers, 2005:186, 190) perturbar a
tranquilidade dentro da qual os regimes tecnocráticos operam e liberar as possibilidades
de problematização em ciências sociais mais além da verificação de amarras conceituais
incontornáveis ou da propensão para a submissão dos experts ambientais. Pois no curso
da prática desses profissionais podemos identificar não apenas as dimensões de
indiferença, complacência ou conivência com as formas correntes de poder, mas também
as dimensões de luta, de desespero, fracasso, hesitação e pânico que o capitalismo pode
emanar entre aqueles que vivem baixo suas condições de existência.
Nessa análise, a etnografia volta-se para a forma como os grupos humanos
reunidos em torno da expertise ambiental4 gerenciam e conceitualizam a sua relação com
os objetos e os artefatos da sua atividade profissional. Nessa abordagem, a observação
está dirigida para os espaços íntimos da vida social dos experts, o que tornaria possível
identificar como a sua prática se apoia menos em aspectos protocolares ou em auto-
representações formais, que num conjunto de mecanismos sociais mais cotidianos, os
quais podem ser registrados nos “mundos de sentido” cultivados por esses profissionais
mais além de modalidades de conhecimento estritamente instrumentais (Shore, 2010).
Nesse momento, podemos nos acercar daquilo que Holmes e Marcus (2006, 2008)
denominaram como as “culturas da expertise”, uma expressão utilizada para designar
aquilo que talvez seja um dos aspectos mais desvalorizados nos ambientes institucionais
ancorados pelo ethos tecnocrático e, contrariamente, mais valorado pelos etnógrafos, qual
seja, o conhecimento adquirido pela experiência. Nessa proposta, a questão que se coloca
é como “reativar a “experiência” (reclaim “experiense”) no curso de práticas expertas
aparentemente dominadas por modos de produção de conhecimento estatísticos. Nesse

3No caso Belo Monte, a associação entre a economia extrativista e a expansão da fronteira energética na Amazônia é
percebida na posse de 4,59% da concessionária responsável pela construção e operação da usina pela Vale, uma das
maiores mineradoras do mundo, cujo maior projeto de extração de ferro no Brasil está localizado, exatamente, no estado
do Pará. Tal parceria garante à corporação minerária o direito de obter 9% da energia produzida pela usina.
4
Privilegiadamente, os consultores ambientais em empresas privadas, mas poderíamos também incluir outros experts
da política do licenciamento ambiental de agências públicas, multilaterais e organizações não governamentais.
5
sentido, os autores propõem uma “refundação da etnografia” a fim de acessar outros tipos
de “pontos de vista nativos” dos experts, expressos naquilo que eles denominam como a
“dimensão para-etnográfica” dos domínios da expertise. Nas suas palavras:
a faculdade crítica de facto e autoconsciente que opera em qualquer domínio experto
como um modo de lidar com a contradição, a exceção, com fatos que são fugitivos,
e que sugere um campo social não alinhado às representações geradas pela aplicação
de modos dominantes de análise estatístico (2006: 236-7).
Assim, ao invés de perceber os domínios práticos da expertise como a
manifestação de processos autômatos de conhecimento, propensos a dissimular a ciência,
a política e a economia dos contextos propriamente particulares em que estão situados,
esses domínios passam a ser povoados por práticas propriamente intelectuais de sujeitos
reflexivos, as quais assumem “uma variedade de narrativas sobre suas circunstâncias
pessoais e as condições ambíguas que estruturam suas expectativas e sentimentos”
(Douglas; Holmes, 2008: 82). O que permitiria ao etnógrafo se acercar das próprias
dúvidas, incertezas e dilemas que a experiência cotidiana dos experts pode desencadear,
bem como “reintroduzir, no texto etnográfico, os “nativos” como interlocutores teóricos
de seus próprios universos sociais e culturais” (Abélès; Badaró, 2015: 110).
Destarte, a “dimensão para-etnográfica” dos domínios da expertise trataria dos
modos marginais de conhecimento, geralmente reprimidos, subordinados ou
considerados ilícitos que surgem no curso da prática dos experts nos mais variados
campos institucionais. Os quais estariam mais ancorados em modos de entendimento
intuitivos que em um ethos tecnocrático, evidenciando assim um caráter idiossincrático
do expert. Embora seja sempre o envolvimento ou as conexões críticas entre suas
intuições e os domínios conceituais mais formais de sua prática, que se desenrolam pelo
meio (par le milieu; Deleuze apud Stengers, 2005) dos ambientes que os experts habitam,
o que deve ser enfatizado na etnografia das culturas da expertise.
Contudo, como bem nos propõe Holmes e Marcus, a dimensão para-etnográfica
dos domínios da expertise trata-se de pensamentos ilícitos ou marginais que, raramente,
encontram apoio no campo conceitual apreciado pelo pensamento tecnocrático. Daí que
não podemos ignorar a “disposição estética” ou o “modo de apropriação legítima”
(Bourdieu, 2007) das instituições capitalistas, tais como os evidenciados pelo paradigma
da adequação ambiental. Nesse sentido, é preciso considerar que a visibilidade do modo
de compreensão “para-etnográfico” da expertise ambiental opera na dinâmica do ruído,
do sussurro, do murmúrio, enfim, na forma de um “devir-clandestino” (Deleuze; Guattari,
1996) que etnografia da vida cotidiana desses profissionais poderia revelar. Vejamos.

6
“Por água fria para o galo cozinhar”.

Em 23 de abril de 2012, eu, o gerente de meio ambiente e o coordenador de


socioeconomia da empresa de consultoria ambiental em que trabalhava participamos de
uma reunião em Altamira-PA com o mais alto escalão da concessionária de energia de
Belo Monte. Na ocasião, uma sala repleta de homens com cabeças brancas, integrantes
das diretorias administrativa-financeira e construtiva da usina, nos aguardava para
debatermos a pauta que nos havia sido apresentada, qual seja, o Sistema de Transposição
de Embarcações (STE) de Belo Monte: um dispositivo a ser instalado na altura do eixo
da barragem principal da hidrelétrica no rio Xingu, como medida mitigatória voltada para
a manutenção da navegação entre as localidades a montante e à jusante do barramento.
Como integrantes da equipe técnica responsável pelo mapeamento das condições
de navegabilidade e escoamento da produção das populações da Volta Grande,
esperávamos esclarecer eventuais dúvidas sobre os deslocamentos fluviais na região e
seus aspectos socioeconômicos associados, a fim de propormos eventuais ajustes no
projeto de engenharia do STE, bem como no seu funcionamento e plano de contingência.
Contudo, para a nossa surpresa, o alto escalão da concessionária, de posse dos
nossos relatórios técnicos,5 nos questionaram sobre a viabilidade de elaborarmos um
“plano B” para a acessibilidade das populações da Volta Grande, com o pretexto de que
o STE (naquela altura, um dispositivo ainda provisório) não ficaria concluído antes do
início das obras da usina no leito do rio Xingu, o que afetaria diretamente o livre fluxo
das embarcações nos trechos fluviais próximos ao barramento. Daí a proposição de um
“plano B” para a acessibilidade, que pudesse ser operacionalizado a partir da oferta de
transporte terrestre à população. Pois, naquele momento, considerava-se que a navegação
entre as localidades a jusante e a montante do barramento seria momentaneamente
suspendida até a construção do dispositivo de transposição de embarcações permanente.
O planejamento construtivo da usina Belo Monte previa a construção de dois
dispositivos para a transposição de embarcações, um dispositivo provisório e outro
permanente. O primeiro deveria ser implementado durante a primeira fase das obras civis
da usina (barragens, vertedouro, circuito de adução), em resposta ao barramento parcial
do rio Xingu a partir do lançamento das primeiras ensecadeiras.6 Considerando que, nessa

5 Um primeiro relatório técnico sobre as condições de navegabilidade e escoamento da produção das populações da
Volta Grande havia sido apresentado à concessionária e ao IBAMA em julho de 2011 O documento apresentava um
“amplo panorama das condições de navegação e dos tipos de embarcações que utilizavam o rio Xingu” à época, de
modo a subsidiar o detalhamento do projeto de engenharia do STE (Norte Energia, 2011: 10).
6 Ensecadeira é “anteparo provisório estabelecido num curso de água para pôr seco um ponto onde se pretende edificar”

in Dicionário Priberam. Disponível em: https://www.priberam.pt/dlpo/ensecadeira. Acesso em 20-04-2019.


7
fase da obra, o barramento parcial do rio bloquearia o fluxo fluvial nos canais de
escoamento da margem esquerda do Xingu, uma alternativa para a transposição do único
canal ainda aberto no rio, na sua margem direita, deveria ser pensada (ver Anexo I). Uma
vez que a centralização de toda a vazão neste canal inviabilizaria a navegação no local,
em decorrência do aumento da velocidade das águas no trecho fluvial, principalmente no
período de cheia. Daí a necessidade do funcionamento do STE provisório.
A proposta do alto escalão da concessionária era totalmente descabida e, apesar
da oposição técnica dos profissionais da consultoria ambiental em evidenciar a
inadequação daquela proposição, fazendo com que o alto escalão da usina se redimisse
do seu absurdo, ela repercutiu em mim como um soco no estômago. Afinal, a proposição
de um “Plano B” para a acessibilidade das populações da Volta Grande, além de ser
totalmente ignorante ao que havia sido apontado nas nossas pesquisas – as quais
identificavam uma infinidade de deslocamentos fluviais na região, que poderia ser
registrada na média diária “de pelo menos 44 passagens de embarcações pelo local do
barramento” (Norte Energia, 2011: 102) –, também contrariava uma condicionante
específica do licenciamento ambiental que, naquela altura, previa a aprovação do projeto
básico de engenharia do STE provisório pelos órgãos ambientais (Ibama, 2011).
Ademais, a proposição do alto escalão da concessionária banalizava todo o
trabalho técnico da expertise ambiental. Pois, parecia que todo o esforço, meu e de meus
colegas, para compor o quadro socioeconômico da navegação da Volta Grande e assim
orientar as medidas que pudessem “mantê-lo” após o início das obras de Belo Monte,
poderia ser descartado pelo capricho ganancioso dos responsáveis por construir a
hidrelétrica. Afinal, suspender a instalação do dispositivo provisório de transposição de
embarcações representava não só a redução dos custos de instalação da usina, mas
também a redução de riscos de o empreendimento não cumprir com os prazos acordados
com seus investidores para concessão de energia elétrica, o que resultaria na aplicação de
multas milionárias à concessionária, pois, naquele momento, incomodava a possibilidade
da instalação do STE dilatar o cronograma previsto da obra.
Contudo, apesar de todo o abatimento com relação às posições distanciadas e à
disciplina corporativa dos cabeças brancas da concessionária – as quais favoreciam o
relacionamento e prestação de contas com os investidores e acionistas em detrimento das
populações atingidas pelos grandes empreendimentos –, aquela reunião revelava também
que as determinações arbitrárias da temporalidade abstrata e imaterial da mercadoria
poderiam ser atravessadas por uma dimensão sensível da expertise ambiental, na sua
busca por uma forma de expressão para as práticas de navegação da Volta Grande.
8
Isto é, ao conter o absurdo da diretoria construtiva e administrativa da
concessionária a partir de um estudo técnico – que envolvia a interlocução com mais de
400 (quatrocentos) navegantes da Volta Grande (Norte Energia, 2011); ao forçar os
diretores a “prestarem atenção” à realidade em que eles estavam inseridos e assim
conectá-los às consequências da suspensão do projeto construtivo do dispositivo
provisório de transposição de embarcações. Os experts ambientais, de certo modo,
retiravam os funcionários das diretorias administrativas e financeiras do lugar estéril ou
fantasmagórico que eles ocupavam, de modo a reintegrá-los, pelo menos naquele instante,
ao espaço social mais concreto da política do licenciamento ambiental (Figura 1).
Nesse sentido, dado a campo de interação e disputas que marca o interior da
prática da política do licenciamento ambiental (cf. Viglio et al., 2018), o trabalho dos
experts ambientais não se restringe à satisfação das ordens correntes de poder, mas busca,
dentro das suas possibilidades, manifestar as suas posições a partir daquilo que se conhece
sobre os efeitos socioambientais de um empreendimento. Assim, a expertise ambiental
não tem nada a ver com a reprodução de uma crença pessoal, que poderia ser resumida
na sua fé religiosa de que é possível conter os impactos sociais do capitalismo (cf. Bronz,
2016: 43). Afinal, a manifestação dos analistas ambientais em torno da decisão sobre o
dispositivo provisório de transposição de embarcações visa a definição de um
posicionamento que permitisse deslocar, ao menos momentaneamente, as dimensões
normalizantes da indiferença dos homens de cabeça branca da concessionária.
Após a reunião com os diretores do consórcio responsável pela construção da
usina Belo Monte, logo na semana seguinte, estava agendado um ciclo de apresentações
dos resultados das pesquisas sobre as condições de navegabilidade e escoamento da
produção entre as comunidades Xikrin, da Terra Indígena Trincheira Bacajá (TITB). As
apresentações seriam realizadas em cada uma das cinco aldeias da TITB, o que envolveria
cerca de doze dias de trabalho de campo, além do percurso de aproximadamente 700 km
via fluvial para o acesso a cada uma dessas localidades. Contudo, qual é a motivação para
apresentar dados de suas pesquisas para o público mais concernido com essas
informações, se se sabe que, do lado dos grandes protagonistas dessa intervenção, existem
sujeitos não muito preocupados com as dimensões destrutivas desses empreendimentos?

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Figura 1 – Transporte de passageiros e cargas na Volta Grande do rio Xingu. Registo meu.
Fevereiro de 2011.
Esse foi o primeiro momento de dúvida com relação à minha permanência no
quadro da consultoria ambiental de Belo Monte. “Por que ficar”? Como ter disposição
para continuar num projeto dessas dimensões se eu não passava de um mero funcionário
subalterno, na medida em que sujeitos com posições de poder e de mais destaque, e que
poderiam realmente gerar um efeito sobre aquela realidade, me pareciam ter todos eles
funções tão inúteis? Comecei então a compartilhar esse questionamento com meus
colegas de trabalho e percebi que essas perguntas eram feitas continuamente na
intimidade de seus pensamentos. De repente, uma reflexão profunda se abriu entre eu e
um funcionário de um dos órgãos de regulação ambiental, com responsabilidade direta na
supervisão do licenciamento ambiental de Belo Monte. A conversa iniciou face a face e
terminou com longos textos de e-mail, dos quais apresento a seguir as seguintes reflexões.
Quando fiz pela primeira vez a pergunta “Por que ficar”? a esse colega, ele havia
me dado a seguinte resposta: “Porque eu acredito”. Ou seja, ele seguia trabalhando com
o licenciamento ambiental porque era algo que ele creia ou confiava. Isto é, ele acreditava
fazer parte de uma instância de mediação dos conflitos ambientais decorrentes das
disputas por recursos naturais – entre o estado, o capital e as populações locais – que a
sua instituição representava. Mas aquela resposta não saciava a minha inquietação. E, em

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seguida, fiz uma outra pergunta ao analista ambiental: “Acreditar basta”? Foi aí que
obtive a seguinte resposta via e-mail, enviada em 02 de maio de 2012:
Esse xadrez desse processo é cruel, porque a gente está jogando com “a
dona da bola”, daquelas que se a gente não jogar do jeito dela, ela acaba
com o jogo. E ainda fingindo que é legal. E o que está aparecendo no futuro
não é bom. Daí o que nos resta, além da tal da fé e esperança é a tal da
estratégia. É a gente pensar rápido e bem para ganharmos tempo. A gente
brinca que parte do nosso trabalho é sempre tentar por água fria para o galo
cozinhar. [...] E nisso a gente está trabalhando, subvertendo os objetivos das
coisas, lembra? E nisso a gente vai continuando até a esperança acabar. E
sempre se avaliando para não haver desrespeito... E ainda quando não
houver esperança para enfrentar a onda, é segurar o fôlego, mergulhar, para
ter uma nova estratégia. Diziam que os povos indígenas iam acabar – era
até política governamental, e até hoje, eles estão aí, nos dando altas lições.
São sobreviventes. Ainda bem! Mas é claro que devemos continuar usando
nossas ferramentas para a onda não acabar com tudo. Enfim, pessoalmente,
cada um de nós tem que se avaliar. Se já deu sua cota, já deu. Se ainda dá
para esticar um “cadinho” mais, estiquemos. Mas nunca se desrespeitando.
[...]. Era isso... mais um desabafo.
“Por água fria para o galo cozinhar”, “subverter o objetivo das coisas”, “ter uma
nova estratégia”, “continuar usando nossas ferramentas”, todas essas formas de
expressão, endereçadas num contexto de um “processo cruel” e com o conhecimento de
quem definiu as suas regras (“a dona da bola”), demonstra como o expert que atua na
política do licenciamento ambiental não só representa claramente o funcionamento das
estruturas ou dos constrangimentos sociais que subjazem esse campo, mas registra
também como posições estratégicas podem ser concebidas no curso dessa prática. Embora
o seu ofício esteja sempre atravessado por um sentimento de pânico e desespero, onde é
requerido incessantemente “segurar o fôlego” e “mergulhar” num poço profundo de
indiferença, tentando sair dali inteiro para seguir com o trabalho. “Fôlego é realmente
crucial”, respondi ao analista ambiental em outro e-mail.
Essa troca de e-mails ocorreu de modo tão natural que hoje ela serve como uma
excelente fonte para a compreensão das culturas da expertise ou dos códigos interpessoais
compartilhados pelos experts ambientais para atribuir significado à sua prática, revelando
sentidos muito além da redução da complexidade ou da denegação dos mundos que eles
poderosamente afetam “sobre as bases de regimes de julgamentos precipitados, reações
emocionais e ambições mesquinhas” (Marcus, 2010: 53). Afinal, os códigos interpessoais
por eles utilizados para atribuir sentido à sua atividade manifestam uma faculdade crítica
autoconsciente desses profissionais (Holmes; Marcus, 2006), que se arrisca a “desatar o
nó” (unwind) que enlaça a sua ação ao regime formalista e instrumentalista da prática
tecnocrática (Riles, 2004) do paradigma da adequação ambiental.

11
Em outro e-mail, o profissional do órgão ambiental avaliava o modo como “toda
a informação recebida pode se transformar em algo que, no mínimo, pudesse reverter uma
situação ruim ou que serviria de subsídio para mais uma ação”. Citando o caso de um
ofício emitido pela instituição que eu teria “ajudado a escrever” a partir de apontamentos
realizados numa visita de campo conjunta às comunidades da Volta Grande. O ofício
requeria ações de compensação financeiras a pescadores da região por parte do
empreendedor, em função do comprometimento de áreas de pesca após o início das obras
da usina no leito do rio Xingu, um cenário que eu teria “auxiliado” a diagnosticar. Na
sequência desse e-mail, fui informado também que a agência acabara de receber outro
ofício da concessionária de energia “respondendo a dúvidas que eu havia “soprado””
anteriormente, quando pude manifestar a minha desconfiança sobre a possibilidade de
uma embarcação utilizada pelas comunidades indígenas para escoamento da produção de
castanha ser transportada pelo mecanismo de transposições de embarcações.
Ou seja, os relacionamentos e as atividades que operam através das fronteiras das
consultorias ambientais privadas e os órgãos ambientais do licenciamento se dão além
dos interesses constritos das concessões de licenças ambientais. Nesse sentido, a fluidez
da fronteira entre os campos público e privados da prática da política do licenciamento
ambiental pode ser marcada por uma relação que ultrapassa as práticas correntes de poder.
Pois há também um “ethos pragmático” (Stengers, 2005: 188) exigido pela obrigação e
responsabilidade técnica dos experts nesses relacionamentos. Isso não significa ignorar
que os relacionamentos entre órgão ambientais, empreendedores e consultorias privadas
não estejam também orientadas por interesses particulares e práticas de poder, mas apenas
evidenciar que essas relações são múltiplas, e irão depender dos agenciamentos possíveis
entre um conjunto práticas discursivas e não discursivas, contratuais e normativas,
formais e informais em jogo no campo sensível destes profissionais.
Nesse contexto, é preciso evidenciar os múltiplos sentidos contextuais que
compõe, partilha e permeia a experiência das pessoas que trabalham como contrapartida
para o funcionamento das instituições da política do licenciamento ambiental. Afinal,
“por água fria para o galo cozinhar” é uma expressão que convida os antropólogos a
explorar um modo alternativo de produção de conhecimento que os analistas levam a cabo
no curso de sua prática. Uma alternativa que possa não evitar, mas, no mínimo, perturbar
a ordem do conhecimento tecnocrático orientado para resultados ou para a concessão das
licenças ambientais de um megaempreendimento. Uma expressão que, na sua propensão
crítica, parafraseando Holmes e Marcus (2006: 238), tenta realinhar a semiótica do

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mundo social face a influência corrosiva da adequação ambiental, numa ruptura com o
processo de “denegação do mundo” de que nos fala Bourdieu (2007).
Pois, o efeito de um modo de conhecimento orientado para “por água fria para o
galo cozinhar” é fazer com que o processo prévio, de instalação e operação de um
megaempreendimento seja encaminhado num tempo suficiente no qual as populações
atingidas possam ser informadas sobre os impactos ambientais de uma megaobra sobre
os seus territórios. Numa possibilidade de fazer com que os instrumentos da prática da
expertise ambiental – imagens, relatórios, gráficos – tenham um efeito por si mesmos,
mas um efeito que se posicione mais além de um padrão normalizado de poder ou que
não possa ser contido pela econometria dos modelos instrumentais do capitalismo.
Enfim, é preciso encontrar formas mais colaborativas para a etnografia dos experts
se não quisermos “desvalorizar a orientação dos próprios atores com relação à tecnologia,
às teorias e os arranjos institucionais” (Miyazaki; Riles, 2006: 321), bem como não nos
afastar das questões que eles/as colocam como relevantes dentro das fronteiras de sua
atividade (Stengers, 2005: 184). Isso nos levaria não apenas a uma redefinição do status
do informante do projeto etnográfico, onde os interlocutores passariam a ser vistos menos
como “outros exóticos”, mas como intelectuais que, eventualmente, podem compartilhar
“as mesmas dúvidas especulativas” que o pesquisador (Marcus, 1997: 103). Mas também
à “refundação da etnografia” (Holmes; Marcus, 2006), voltada para a elaboração de uma
“crítica colaborativa” ao capitalismo, a qual, juntamente de seus interlocutores, tentasse
“compreender o fugitivo social” constantemente dissimulado pelas forças produtivas.

Conclusão: Etnografia dos ruídos.

A minha experiência de campo como analista ambiental em Belo Monte foi


marcada por uma série de momentos de hesitação e dúvida com relação à prática da
política do licenciamento ambiental. Revisando os meus diários de campo, escutando
novamente os áudios das entrevistas com as comunidades da Volta Grande para
composição dos meus levantamentos sobre a navegação, revisitando as mensagens de e-
mail trocadas com colegas de trabalho, rememorando as várias conversas informais que
tive com amigos e consultores ambientais sobre os desafios desse trabalho – é comum
encontrar em todos estes momentos uma perplexidade constante frente os limites
impostos pela forma particular da tecnocracia ambiental, na sua pretensão de regular os
efeitos sociais e ambientais de um megaempreendimento.
É certo que essa hesitação não encontra uma forma de expressão nos processos
formais da prática da política do licenciamento ambiental. Afinal, essa perplexidade está

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na contramão da autoridade reivindicada pela expertise ambiental e dos meios
desinteressados e racionais que orientam a sua prática. Contudo, se essa perplexidade não
é conhecida pelos meios formais de uma prática profissional, ela não deixa de ser vivida
via processos mais íntimos ou informais da existência coletiva e/ou individual.
Em leituras recentes do trabalho de Michel Foucault (2004, 1972), pude concluir
que os momentos de hesitação e perplexidade (pontualmente descritos acima e
complementarmente em descrição na minha tese de doutorado) representam uma “coisa
essencial na vida humana e nas relações humanas... [que é] o pensamento” (2004: 10).
Algo que, segundo o autor, passou a ser considerado muito rapidamente pela análise
social. Segundo Foucault:
É preciso se liberar da sacralização do social como única instância do real e parar de
considerar rapidamente esta coisa essencial na vida humana e nas relações humanas,
quero dizer, o pensamento. O pensamento existe além ou aquém dos sistemas ou
edifícios de discurso. É algo que se esconde frequentemente, mas anima sempre os
comportamentos cotidianos. Há sempre um pouco de pensamento mesmo nas
instituições mais tolas, há sempre pensamento mesmo nos hábitos mudos. A crítica
consiste em caçar esse pensamento e ensaiar a mudança: mostrar que as coisas não
são tão evidentes quanto se crê, fazer de forma que isso que se aceita como vigente
em si, não o seja mais em si. Fazer a crítica é tornar difíceis os gestos fáceis demais
(ibid.; ênfase minha).
Nesse sentido, a etnografia que pretendo realizar tenta seguir esses pensamentos
que se escondem frequentemente, mas que animam muitos dos comportamentos
cotidianos. Isto é, os pensamentos ilícitos que se desenvolvem no decorrer da prática da
expertise ambiental. Com isso, a problematização antropológica se volta para as situações
vivenciadas pelo expert ambiental nas quais lhe é exigido pensar. Assim, essa abordagem
comportaria menos a descrição das “condições sociais de possibilidade” que definiram a
experiência das pessoas enquanto a personificação de “sujeitos expertos”, mas
experimentar as questões irresolutas ou “incompletamente interpretadas” (na expressão
de Viveiros de Castro, 2013: 360) que são colocadas por esses profissionais.
Essa formulação se deve à leitura contraposta dos textos de Pierre Bourdieu (2003)
e Isabelle Stengers (2005). Nessa contra leitura, onde Bourdieu postula explorar “não a
'experiência vivida' de um sujeito de conhecimento, mas as condições de sua
possibilidade". Eu quero fazer exatamente o contrário, problematizar não as condições de
possibilidade do sujeito de conhecimento, mas a sua experiência vivida. O que me levaria
a enfatizar menos as "propriedades tristemente impessoais” desses ‘sujeitos’, as
“disposições socialmente construídas”, os “controles da consciência", etc. (Bourdieu,
2003). Mas, na esteira de Stengers (2005), sublinhar aquilo que causa o pensamento e o
sentimento dos experts ambientais no curso da sua prática.

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É nesse sentido que convido os cientistas sociais a seguir os pensamentos
marginais das culturas da expertise. Pois os pensamentos que se busca registrar se
encontram no limite da linguagem, eles não pertencem nem à lógica, nem à economia,
nem à gramática, nem ao ordenamento visível, político-administrativo do Estado ou do
capital. Mas ao domínio dos ruídos, dos sussurros, dos rumores, dos murmúrios, das
vibrações irregulares, das vozes desarmônicas, confusas e descontentes que muitos dos
experts ambientais percebem, ouvem, expressam e assinalam no curso da sua prática
profissional. Nesse sentido, o desafio é prestar atenção aos ruídos da prática experta, os
quais, colocando incessantemente em dúvida suas obrigações e responsabilidades,
incidem numa crítica colaborativa ao quadro normativo do capitalismo.

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ANEXO I
Localização do Sistema de Transposição de Embarcações (STE) de Belo Monte.

Fonte: Norte Energia, 2012.

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