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de remessas para o Zimbábue http://dx.doi.org/10.1590/1678-49442018v24n1p266

sob forma de bens para revenda). BRONZ, Deborah. 2016. Nos


Esses negócios não regulados e os bastidores do licenciamento
empregos assalariados regidos pela ambiental: uma etnografia das
lei se viabilizam mutuamente, o práticas empresariais em grandes
trabalho organizado e a atividade empreendimentos. Rio de Janeiro:
informal são complementares, Contra Capa. 474 pp.
com as inflexões próprias dessa
articulação na África do Sul, onde Leonardo Francisco de Azevedo
“trabalho formal” costuma coincidir Doutorando em Ciências Sociais na
com “trabalhar para os brancos”. Universidade Federal de Juiz de Fora/
Para muita gente, o emprego formal MG, Brasil.
em Grootplaas é menos importante
em si do que pelas outras vias que
Compreender políticas públicas
deixa abertas, como a dona de um
e aparatos burocráticos – estatais
bar que precisava trabalhar na
e não estatais – e suas dinâmicas
fazenda para manter seu ponto, tem se tornado uma preocupação
negócio bem mais lucrativo do crescente da antropologia, dentro
que o salário ganho. Há um jogo de um campo temático denominado
interessante entre dependência e “antropologia da administração e
autonomia. governança”. O livro de Deborah
As variações em torno dos Bronz, originalmente apresentado
diferentes modos de transitoriedade como tese de doutorado no Programa
e enraizamento são fundamentais de Pós-Graduação em Antropologia
para Bolt, em seu projeto de mostrar Social do Museu Nacional/UFRJ,
como o trabalho organiza a vida em em fevereiro de 2011, sob orientação
tempos de desemprego em massa e de Antonio Carlos de Souza Lima,
incerteza radical. Nas margens do pode ser considerado um relevante
capitalismo global, no qual, contudo, trabalho ne s t e camp o. Numa
estão plenamente inseridas, as etnografia de fôlego, ilustra com
fazendas da fronteira são como maestria como investigar diferentes
ilhas de trabalho formal num mar de dimensões dos aparatos estatais e
informalidade, onde cada um navega privados, direta e indiretamente
como pode. envolvidos na concessão de licenças
ambientais para a construção de
grandes empreendimentos.
Esse consistente trabalho
apresenta uma série de contribuições
à antropologia em diferentes sentidos.
Uma delas é a metodológica, pois a
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autora leva para o centro de sua A partir de situações etnográficas


pesquisa o desafio de se investigar o ocor ridas em cinco diferentes
“andar de cima” da estrutura social, empreendimentos, ela produziu dois
etnografando elites empresarias, casos abstratos, denominados de
relacionado a um complexo debate “ficções etnográficas”: o “Complexo
ético sobre seu envolvimento com Metalúrgico da Baía” e o “Complexo
o “campo” – não necessariamente Portuário Novo Horizonte”. Para tal
ideológico, mas institucional e constituição, a autora incorporou
profissional, considerando o vínculo apenas situações que se repetiram,
empregatício que possuía com uma mantendo nos mapas recriados
firma de consultoria contratada atributos dos territórios originais.
pelas empresas responsáveis pelos Tal recurso se torna uma estratégia
empreendimentos. A partir de um metodológica potente, podendo
mecanismo criado para garantir o ser utilizado em investigações
anonimato dos empreendimentos e semelhantes.
de seus interlocutores, conseguiu se O livro, com 474 páginas, em 10
afastar, metódica e eticamente, do seu capítulos divididos em quatro partes,
papel de consultora para realizar o nos permite percorrer diferentes
que Bourdieu chamou de “objetivação perspectivas e escalas da “conquista”
participante”, como apontado por do licenciamento ambiental para a
Souza Lima no prefácio do livro. instalação desses empreendimentos.
Para conseguir realizar a O farto material coletado pela
pesquisa, ocupou o lugar que chamou pesquisadora nos possibilita circular
de “obser vação -inter venção ”, por reuniões, grupos focais, atas,
diretamente atravessado por uma entrevistas, legislações, audiências
relação de trabalho. Para ela, ter públicas, e-mails, apresentações
tal postura metodológica permitiu em PowerPoint e relatórios, nos
ganhos substantivos para a apresentando uma consistente
investigação, sem ferir princípios “etnografia multissituada”.
éticos e morais da disciplina. Como Bronz inicia seu livro
forma de não anunciar quem eram apresentando um panorama geral
seus interlocutores, construiu uma do processo de produção das licenças
realidade ficcional a partir da fusão ambientais no Brasil, como as leis
de dados reais. Um tipo de abstração e as normas que as regulamentam
que permitiu, metodologicamente, e os rituais constitutivos desse
fugir dos particularismos do campo e processo, denominados por ela
da dificuldade de encontrar métodos de “cenas participativas”. Nessa
contra-hegemônicos de estudar o apresentação, fica claro o papel do
poder, sem ficar refém das forças Estado na responsabilidade técnica
dos campos em que estava inserida. e administrativa na concessão das
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licenças e o papel das audiências e per for mances padronizadas


públicas como ritos cerimoniais por uma ideologia própria aos
obrigatórios para a sua obtenção. grandes empreendimentos. Sendo
Há três diferentes licenças a serem o licenciamento ambiental um
adquiridas pelos empreendedores “procedimento administrativo
para a instalação de um grande em que os empreendedores são
empreendimento: a licença prévia, responsabilizados pela produção
a de instalação e a de operação. de um certo tipo de conhecimento
Para conquistar a licença prévia é sobre territórios e populações, bem
necessário que a empresa elabore um como pelo planejamento e a gestão
termo de referência, realize um estudo ambiental e social dos efeitos de
de impacto ambiental, um relatório de suas atividades industriais” (:87), os
impacto ambiental (EIA/Rima) e uma consultores têm um domínio especial
audiência pública. Com a licença nesse processo, pois agem, na prática,
prévia adquirida, é preciso elaborar guiando a ação de empresários e
um plano básico contendo as medidas funcionários nessa tarefa. Entre os
de mitigação e compensação que a discursos acionados para justificar
empresa garantirá aos moradores esse trabalho, encontra-se uma
afetados da região. Por fim, entre a crença no progresso através da
licença de instalação e a de operação, transformação da ética empresarial
é necessário atender a algumas e da elaboração de um ethos dos
condicionantes colocadas pelo grandes empreendimentos.
órgão ambiental responsável pelo O “posicionamento” é uma
monitoramento de instalação da obra. categoria que traduz as estratégias
Bronz nos faz conhecer as dimensões e o planejamento dos consultores
cotidianas dessas etapas, sobretudo e empreendedores em suas ações,
as que antecedem a aquisição da definindo eficazmente suas posições
licença ambiental prévia. no mercado e evitando possíveis
A primeira parte do livro nos questionamentos legais da licença.
permite compreender a tarefa de Essa arte de explorar condições
empreendedores e consultores, tanto favoráveis não é tida apenas como um
nos bastidores quanto nas encenações cálculo racional, mas um habitus, “um
de seus papéis no processo de jogo social incorporado, um domínio
licenciamento. Esses atores redigem adquirido com a experiência, que
estrategicamente o script de atua fora do controle consciente do
atuação, nas ações denominadas de discurso” (:96). Já o “alinhamento”
“posicionamento” e “alinhamento”, é um procedimento contínuo de
fundamentais no planejamento padronização dos discursos e das
para a obtenção das licenças. Tais estratégias realizados antes das
scripts são sustentados por discursos reuniões com a comunidade e das
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audiências públicas. Os consultores diferentes categorias e conceitos


têm uma atuação pedagógica e, como ideologia, assume um
para gerar essa padronização de conteúdo educativo e moralizador.
pensamentos, a partir de um discurso A segunda e terceira partes
autorizado pelos empreendedores. do livro apresentam, a partir de
O discurso, nesse processo, é dados etnográficos, os processos de
o recurso utilizado para demonstrar relacionamento entre os consultores
a viabilidade dos empreendimentos e os empreendedores com os
e de sua importância social e atores envolvidos no processo de
econômica tanto para o país como licenciamento ambiental. Com
para as regiões onde se instalam. O nomenclaturas diferentes –
discurso, portanto, é a “arma” dos “Processo de Diálogo Social” no
empreendedores para adquirirem Complexo Metalúrgico da Baía
ampla aceitação de seus projetos, e “Programa de Comunicação
tanto do poder público como dos Social” do Complexo Portuário Novo
atores e dos grupos envolvidos Horizonte – ambos os programas
com o licenciamento. Para justificá- tinham intenção claramente
lo, o discurso construído origina- persuasiva, visando difundir os
se da escolha do lugar a partir discursos dos empreendedores entre
de sua “vocação regional”; passa políticos, acadêmicos, empresários,
pelas contribuições da obra para o mídia, vizinhos, pescadores e
desenvolvimento local, regional e ambientalistas através de diferentes
nacional; termina na elaboração de aparatos teóricos e tecnológicos. A
uma linha imaginária demarcando reação de parte destes grupos ao
as responsabilidades das empresas e empreendimento nos é apresentada
do Estado na resolução de problemas na quarta e última parte, através
e conflitos sociais, territoriais e das diferenças de posicionamento
ambientais. Nesse processo há a de representantes de dois grupos
produção do que a autora define específicos e de entidades de pesca.
como “geopolítica empresarial”, em A autora conclui a obra
que parte das estratégias de gestão lembrando que o objetivo da
desses empreendimentos refere-se pesquisa foi “demonstrar como
aos territórios, recaindo “sobre os práticas empresariais são justificadas
empreendimentos e consultores a por um conjunto de pressupostos
função de ordenar a expansão das morais e ideológicos que, na medida
fronteiras do Estado (ou do aparato em que são naturalizados nas ações
governamental)” (:146-7). Como cotidianas do trabalho, podem cegar
pano de fundo para todos esses os empreendedores a respeito de
argumentos, estava o discurso sobre seus efeitos” (:444-5). Com os
desenvolvimento, que mobiliza dados etnográficos fica claro que os
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efeitos dessas práticas, na contramão instâncias, de acesso bem mais


das crenças de “responsabilidade restrito. O trabalho de Bronz nos
social” e “sustentabilidade”, acabam permite justamente compreender a
por agravar as desigualdades já dimensão micropolítica da relação
vivenciadas pelas populações entre os grandes empreendimentos
afetadas pelos empreendimentos. e o Estado brasileiro, tendo como
Empreendedores e consultores, pano de fundo uma sociedade
ao compartilharem a crença no extremamente desigual.
“desenvolvimento”, acreditavam A autora conclui seu livro
ser missionários da salvação observando que é o Estado brasileiro
econômica dos municípios em que “outorga” uma visão gerencial
que as obras eram realizadas em centrada nos interesses empresariais,
função da geração de empregos pois as empresas possuem relativa
e dos cursos profissionalizantes autonomia para produzir as peças
que ofereciam. No meio de uma técnicas e propor as medidas de
população extremamente pobre, compensação referentes aos impactos
rural e pouco escolarizada, os atores de suas próprias obras. Nesse
do empreendimento acreditavam processo, as medidas de mitigação
que a “saída” daquela situação acabam por mitigar os próprios
passava pelas possibilidades do empreendedores, diminuindo
empreendimento, resultado de um os riscos de as suas operações
capitalismo “humanizado”. afetarem seus próprios negócios;
A partir da observação e as medidas de compensação
participante da concessão dessas acabam por compensar os próprios
licenças, evidenciam-se as diferentes empreendedores, pois são negociadas
dimensões e lacunas no processo para “caber ” nos orçamentos das
de constituição do Estado e da empresas, sendo considerados
cidadania brasileira, em que a noção “grupos afetados” somente aqueles
de “desenvolvimento”, em suas que podem afetar realmente os
diferentes facetas, está diretamente interesses empresariais. Após essa
atrelada à intensificação do longa empreitada, a antropóloga
capitalismo de maneira autoritária. nos apresenta uma conclusão pouco
Ao acompanhar a produção esperançosa, mas realista, acerca do
dos discursos e dos rituais, fica poder do capitalismo e do Estado na
claro como estes atores acionam produção da crença no “progresso” e
as categorias “participação” e no “desenvolvimento”.
“transparência” de modo seletivo
e politicamente orientado, estando
os verdadeiros espaços de decisão e
deliberação configurados em outras

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