São mudanças econômicas, políticas, tecnológicas e socioculturais
que estão configurando, entre outros, novos cenários para o mundo do trabalho que impõem, em diversos planos, a necessidade de alterações nas definições, atitudes e competências dos trabalhadores e, em especial, dos profissionais. Imerso em uma crise econômica e social de caráter estrutural, o país vive os problemas das sociedades mais industrializadas (a exemplo dos impactos das novas tecnologias no segmento moderno da sua economia) lado a lado com os crônicos problemas de um país de Terceiro Mundo, condição em que vive a grande maioria da sua população. Ocupações voltadas para a prestação de serviços em saúde e educação são consideradas como as mais promissoras a curto prazo pelos analistas de tendências do mercado de trabalho, levando-se em conta o decrescente peso do emprego industrial a partir das mudanças estruturais que vivem as empresas neste segmento (Bernardo, 1994). Independente dessas transformações mais gerais, que colocam contornos abrangentes que podem conformar a definição e transformações de ocupações específicas, as profissões como sistemas ou estruturas sociais experimentam processos de mudança que ocorrem no seu interior e que modificam continuamente a sua relação com a sociedade. Como afirmam Kast e Rosenberg (1970), o conceito de profissão envolve: (a) a existência de um corpo sistemático de conhecimento que requer lento processo de formação e treinamento, envolvendo tanto aspectos intelectuais como atividades práticas; (b) um grau de autoridade conferida pelos clientes em função do conhecimento técnico especializado um amplo reconhecimento social como base para o exercício da autoridade; (d) um código de ética que regula as relações entre os pares e entre o profissional e os seus clientes; e (e) uma cultura profissional que é mantida pelas organizações. Este processo envolve, como destaca Wolff (1984), fases como a de diferenciação (quando a comple idade de um campo demanda a necessidade de indivíduos capacitados para lidar com determinados problemas), legitimação (quando surge o sentimento de comunidade e o reconhecimento da sua especificidade pelos clientes, governo e sociedade) e a fase de institucionalização (quando os mecanismos de autoregulação e de recrutamento, treinamento e socialização dos novos membros estão consolidados) Ao longo dos capítulos antecedentes deste trabalho teve-se a oportunidade de examinar, nas principais áreas consolidadas de atuação do psicólogo, as transformações em curso no seu interior, que estão gerando novos padrões de serviços prestados por este profissional, assim como as demandas que tais movimentos inovadores colocam para o seu processo de formação. Neste sentido, e até para ser coerente com os resultados já apresentados nos trabalhos isoladamente, torna-se imprescindível recompor o todo do exercício profissional, até o momento decomposto em áreas, por um recurso analítico. Assim, este capítulo retoma os resultados apresentados nos capitu-los anteriores para, em um segundo nível da análise, identificar tendências comuns de mudança no exercício profissional das áreas estudadas, assim como as demandas comuns de alteração no processo de formação. As pesquisas de âmbito nacional realizadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CEP, 1988; Bastos, 1990), assim como outras de abrangência regional ou local, têm, repetidamente, documentado que o exerci-cio profissional do psicólogo no país caracteriza-se pela dominância de um modelo de atuação restrito, denominado por Carvalho (1982) de li-mitado", por não explorar suficiente e adequadamente todo o potencial de conhecimentos que a psicologia já tornou disponível à sociedade. Ou seja, o mercado de trabalho, agora visto sob o prisma do tipo de trabalho oferecido à sociedade, revela-se bastante homogênco, indicando que as instituições formadoras têm atuado como reprodutoras de um modelo básico de atuação que consiste no desempe nho de tarefas tradicionalmente confiadas aos psicólogos, nos seus diversos ambientes de trabalho. Apesar do quadro delineado nos surveys sobre o exercício profis- sional, que tomam como base amostras representativas de profissionais, revelar as características descritas acima, percebe-se que este exercicio, como quaisquer outras práticas sociais, não se revela imune às transformações sociais, econômicas, políticas e tecnológicas que marcam o período atual em nível mundial e nacional Assim, configuram-se novos fazeres, antigas práticas ganham novos contornos, novos fundamentos ou concepções sobre a atuação ganham realce e novas clientelas e contextos são explorados. Produto de interações entre a dinâmica da produção do conhecimento psicológico e os desafios colocados pela realidade nacional (por seu caráter excludente, também no que se refere ao acesso aos benefícios gerados pela psicologia), a busca de alternativas ao fazer clássico que definiu, e permanece delindo legalmente o exercício da psicologia, ainda não consolidou um novo padrão de ntuação que seja largamente domi-nante. (1992) resumem as principais tendências encontradas pelas revisões bi-biográficas nas áreas de atuação do psicólogo A primeira tendência consiste na consolidação de um modelo que não se restringe à mensuração de caracteristicas psicológicas e intervenção frente aos problemas de ajustamento de indivíduos, o que ocorre até mesmo na área clínica. Neste sentido, vai além da anterior e nos dá acesso a práticas singulares que estão construindo uma nova forma de ver o papel do psicólogo e a sua relação com a vida de indivi-duos, grupos, organizações e comunidades. Quando se examinam os textos produzidos sobre as diferentes áreas de atuação pode-se, claramente, perceber a existência de movimentos comuns, que ganham contornos e coloração distintos nos campos, mas que se apóiam, largamente, na consciência de quão insuficientes e limitadas têm sido as respostas dadas pelos psicólogos às demandas sociais que lhes chegam. "Trata- se, portanto, neste referencial, da adoção da idéia de que signos produzidos pelo conhecimento humano, que vão surgir de uma encruzilhada entre lugares sociais, históricos, políticos, econômicos, culturais de onde são proferidos, e não da consideração de conceitos universais com o estatuto de revelações, de certezas tornadas Na atuação do psicólogo em educação, essa transformação se manifesta através de uma psicologia que avança na busca de maior com- pieensão do significado do comportamento humano nos contextos de interação em que ele se insere. No campo da psicologia organizacional e do trabalho é apontado, como um dos elementos que caracterizariam a emergência de um novo paradigma, o "redimensionamento do ser que trabalha como agente e não como mero recurso [...) a explicação dos eventos que ocorrem no nivel individual passaram a ser analisados em suas relações mais amplas, atas-tando-se de uma visão reducionista e redescobrindo significados" (Zanel-li, cap. Na atuação do psicólogo social, a visão do homem em uma perspectiva histórico-social torna-se um pressuposto básico "É necessário ter uma dimensão do movimento histórico e do meio sociocultural em que o sujeito está inserido e buscar delinear as forças de influências mútuas existentes nesta inter-relação" ( Bomfim, cap.4) Este pressuposto manifesta-se na totalidade das experiências descritas por Bomfim Vejamos alguns exemplos. No geral, esta mudança expressa-se através de uma aproximação, bem mais estreita, dos conhecimentos psicológicos daqueles produzidos por outras ciências sociais, como a Sociologia e a Antropologia. Os profissionais entrevistados apontaram a relevância de vários intercâmbios entre a psicologia e outros campos da ciência com a antropologia, para a compreensão da historicidade humana; com a sociologia e ciência política para o entendimento dos contextos e das clientelas com que trabalha; com a epidemiologia e sociologia para lidar com as questões de saude pública; com as ciências biológicas e medicina, para romper o modelo psicologizante que domina a explicação dos problemas individuais. Os problemas com que se defrontam os psicólogos sociais - pela sua diversidade ~ demandam conhecimentos de um leque extremamente abrangente de campos do conhecimento, como destacado por Bomfim (cap 4). A natureza complexa dos fenômenos que demandam a intervenção do psicólogo, nos diversos domínios do seu campo de atuação, aliada às concepções emergentes que procuram ver o fenômeno psicológico nas suas interações com outros fenômenos, conduz à necessidade de integração de múltiplas perspectivas profissionais O trabalho em equipes multiprofissionais passa a ser um imperativo para que o enfrentamento do problema seja congruente com as múltiplas facetas que ele assume. Nos domínios da psicologia clínica o trabalho em equipe multiprofissional é uma decorrência da crescente inserção do psicólogo em instituições de saúde, associando-se, portanto, ao rompimento do "modelo de consultório. Como afirma Silva (1992), o "trabalho conjunto que busque a integração de vários saberes e práticas profissionais é um dos requisitos mais importantes do modelo de atenção à saúde que se busca implementar" (apud, Lo Bianco et al , cap 1). Um exemplo que bem caracteriza uma atuação multiprofissional encontra-se no caso da psicóloga que trabalha no departamento de cardiologia de um grande complexo hospitalar O exame desta experiência, entre outras informações, revela que o conceito de multiprofissionalidade requer mais do que simples justaposição de vários profissionais e envolve coesão e articulação da equipe em torno de um objetivo comum Na área escolar/educacional, a atuação do psicólogo passa a ser exercida, sobretudo, em parceria com o educador, como condição para promover a melhoria da qualidade das práticas pedagógicas. Na álea organizacional pode-se pensar, na realidade, em múltiplas equipes multiprofissionais, a depender da subárea ou do tipo de intervenção em foco O psicólogo aproxima-se do administrador, por exemplo, quando se insere nos sistemas de gerência de pessoal; trabalha junto a pedagogos, educadores, administradores e sociólogos na área de treinamento e desenvolvimento; atua com assistentes sociais e advogados quando se encontra na área de benefícios. A força que tal tipo de intervenção exerce na definição da identidade do profissional de psicologia extrapola, largamente, o que se convencionou chamar de área clínica e atravessa a atuação do psicólogos em diversos outros contextos de trabalho. A atuação tradicional do psicólogo na escola é caracterizada pelos entrevistados por Maluf (cap.3) como uma atuação clínica, remediativa e voltada para avaliação psicométrica. A área organizacional e do trabalho caminhou nitidamente para superar o modelo restrito e caracterizado pela psicotécnica que marca os seus primórdios, caracterizado por centrar-se no ajustamento do indivíduo ao trabalho a partir de mensurações de características de personalidade, aptidões e interesses Como descreve Malvezzi (1979) seu foco desloca-se para a transformação dos sistemas socio técnicos corresponsabilizando-se por atividades que possam construir modelos organizacionais mais apropriados às demandas do seu ambiente externo e interno. também deixam claro este movimento de deslocamento de uma intervenção centrada no indivíduo e nos processos de seleção, para atividades que lidam com grupos e com a própria estrutura organizacional. Na própria área clínica existe um movimento de expansão que, por um lado retira o psicólogo do consultório e o coloca em instituições de saúde e, por outro lado, procura incorporar, na compreensão do problema individual, elementos dos contexto social. Na área organizacional e do trabalho, já a revisão bibliográfica realizada por Bastos (1992) apontava, como o terceiro movimento inovador na área, a busca de uma inserção do profissional a posições mais estratégicas permitindo-lhe interferir na formulação das políticas organizacionais básicas. Na área escolar este tipo de inserção é vista como permitindo que o psicólogo se desvincule do corpo administrativo da escola Profissionais entrevistados por Maluf (cap. Embora ainda mantenha um forte vínculo com a atividade acade mica de ensino e pesquisa, também é crescente o número de psicólogos sociais que desenvolve atividades de consultoria junto aos movimentos populares, sociais e comunitários assim como junto a instituições as mais diversas. A ampliação do leque de problemas com que o psicólogo passa a lidar, a crescente crença sobre a multideterminação envolvida nestes problemas além do fato de passar a trabalhar com outros profissionais em torno de uma questão específica, tem como um subproduto importante a diversificação dos recursos técnicos empregados Esta diversificação associase, na maioria dos casos, à necessidade de passar a lidar com gIu-pos e não mais com indivíduos isoladamente Em síntese, o que foi percebido por Lo Bianco er al (cap.l) em relação à atuação do psicólogo clínico, parece estender-se para os demais domínios, especialmente para as práticas na psicologia social. No caso do psicólogo clínico, o seu contato com uma clientela distinta daquela que tem acesso aos serviços psicoterápicos privados parece ter um efeito importante no desencadeamento das mudanças descritas, envolvendo desde a revisão dos modelos teórico-conceituais até as estratégias de como lidar com os aspectos psicológicos e psicopatológicos Sua inserção nos serviços básicos de saúde pública, por exemplo, leva-o a se engajar em atividades voltadas para atenção primária e secundária, no geral ações preventivas ou remediativas de baixa complexidade. Também é a área social que apresenta a mais clara diversificação de clientela, por trazer para o campo de atuação da psicologia, os segmentos sociais antes excluídos. A citação de Martín-Baró feita por Maluí (cap 3) é bastante elucidativa deste movimento: "muitos dos conceitos, teorias e modelos mais utilizados em Psicologia surgiram em condições muito diferentes, a partir de interesses sociais muito concretos e na busca de respostas murto específicas, mas costumamos aceitá-los como se se tratasse de lentes universais e assépticas que nos permitissem ler qualquer realidade" Por lidar com problemas que se afastam fortemente daqueles do eminentemente enfrentados pela Psicologia e, especialmente, por tratá-los em um perspectiva interdisciplinar, presume-se como necessária a produção de conhecimentos especificamente voltados para a clientela, problemas e contextos em que estes ocorrem O trabalho de Bomfim e al (1992), de alguma forma, ao descrever a trajetória da psicologia social enquanto campo de intervenção em problemas socio comunitários no Brasil, permite inferir o papel desafiador colocado pela própria prática inovadora junto aos movimentos sociais e comunitários para a geração deste conhecimento Fortalece-se uma preocupação com o engajamento pela transformação social Permeando todo o conjunto de mudanças analisadas, parece emergir da maioria das práticas profissionais descritas nos capítulos anterio-res, uma noção diferenciada acerca do compromisso social da psicologia. Hoje, a noção de compromisso parece estender-se para abarcar uma clara preocupação com a transformação das condições de vida em que o indivíduo vive ou com a alteração de estruturas sociais tidas como geradoras dos problemas vividos pelos indivíduos. No domínio da psicologia social, talvez este seja um dos principais eixos em que se dão as mudanças observadas Todas as experiências descritas como inovadoras trazem, como marca definidora, uma preocupação com a transformação social e, mais especificamente, com a alteração das estruturas geradoras da exclusão a que é remetida a maioria da população brasileira. Na área organizacional Zanelli (cap 2) registra que, para alguns segmentos da atuação, emerge uma maior preocupação com o compromisso político-ideológico. Essa nova noção de compromisso social aparece, especialmente, na atuação em qualidade de vida no trabalho e saúde mental e junto dos sindicatos, quando o psicólogo passa a lidar com aspectos sociais e políticos que extrapolam o âmbito próprio da organização. A atuação clínica tradicional é o locus privilegiado para a manutenção de uma perspectiva humanista, quando não assistencialista, como definidora do tipo de comprometimento do psicólogo com o social. Apesar disso, nos movimentos de saude pública, o movimento pela extinção dos manicômios, em síntese, os trabalhos que se situam na interface entre o clínico e o social trazem, também para a área clínica, a noção de compromisso com a transformação social mais abrangente. Como afirma Guedes (1992) referindo-se à atuacão clínica, "um alcance maior para o trabalho do psicólogo - no sentido de atingir mais pessoas ou camadas mais pobres da população - já não implica necessariamente opção por outra área". Essa inserção institucional impõe a relação com outros profissionais c entre outros aspectos, configura um contexto específico, que deve ser considerado na própria execução do trabalho; a progressiva perda do seu caráter liberal com o crescente número de psicólogos assalariados se, por um lado, contribui para a democratização dos serviços psicológicos, por outro, implica em alterações significativas na forma como o seu trabalho é organizado. Tais elementos envolvem não apenas os conhecimentos e técnicas que se tornam necessários aos novos contextos e clientelas com que passa a trabalhar. Nesse teneno pode-se perceber, também, que os movimentos inovadores descritos, de forma congruente, exigem, independente de área de atuação, uma "postura" diferenciada em relação a que hoje domina o exercício profissional. o ser pró-ativo, empreendedor Esse conjunto de habilidades revela a necessidade de que, no curso da formação acadêmica do psicólogo, sejam rompidos os limites que o aprisionam a uma formação fragmentada e tecnicista ou que o preparam para reproduzir formas extremamente limitadas de enfientar um reduzido leque de problemas Ele, também, aponta o desafio de que a mudança na formação não pode se reduzir ao plano dos conteúdos ou conhecimentos, mesmo que a sua ampliação dê conta dos novos contextos, clientelas e problemas com os quais o psicólogo passou a se deparar. No plano dos novos conteúdos ou conhecimentos, fica claro que a sua profunda ampliação, decorrente da diversificação de problemas e contextos com que o psicólogo passa a lidar, não pode ser contemplada diretamente e em toda a sua extensão, por um curso no nível de graduação Neste sentido, é interessante notar como o discurso dos profissionais entrevistados caminha na direção de propor uma sólida formação básica que desenvolva no psicólogo habilidades fundamentais, inclusive relativas à busca dos conhecimentos necessários à uma atuação específica. O que parece em questão é que a simples existência ou contato com tais áreas não tem se revelado suficiente para garantir uma perspectiva interdisciplinar ao campo.
Alianças Inconscientes e Grupos de Trabalho: Como ajudar equipes profissionais com dificuldades em atuar de maneira intersetorial na implementação de políticas públicas