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Peter K. Spink
INTRODUÇÃO
A distinção inicial que precisa ser feita é entre uma fonte de problemas
que precisam ser resolvidos, enquanto campo de uma psicologia aplicada, e
um fenômeno que precisa ser compreendido e problematizado. A diferença
fundamental entre estas duas posições está na proposição de que a segunda
inclui a primeira enquanto foco de análise. Esta é a contribuição que uma
aproximação maior com a psicologia social dita sociológica permite.
O reencontro na psicologia social com as diversas e às vezes divergentes
teorias sobre a intersubjetividade no terreno da teoria. social teve como
conseqüência busca da contribuição da psicologia social à compreensão
crítica da ação no âmbito societal. Se na Europa este processo se deu de
maneira mais reflexiva a partir da década de 1960, com os comentários de
Moscovici5, Israel e Tajfel 6 e Harré7 entre outros, na América Latina ela se
tornou mais radical, produto em parte da exacerbação de problemas sociais e
das mÚltiplas consequências dos ajustes estruturais macroeconômicos 8.
Na América Latina em geral, o débito para com a prática tinha assumido
proporções tão alarmantes que muitos psicólogos preferiam agir a partir do
senso comum diante da incapacidade das teorias psicológicas ortodoxas
oferecerem um quadro de referência mais informado. Dado que também o
lugar da discussão sobre o significado das questões sociais e as possíveis
estratégias de ação se dava, conceitual e politicamente, nas ciências sociais,
o resultado
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foi uma saudável sociologização da psicologia social e uma rejeição de muito
de seu conteÚdo tradicional. Esta virada, às vezes exagerada pelo conflito que
gerava, trouxe uma compreensão da complexidade do campo de processos
sociais e serviu também para mostrar que o desafio de construir uma
contribuição mais relevante não podia ser enfrentado com a simples
psicologização de conceitos sociológicos e antropológicos. Seria necessário
examinar a própria matriz conceitual da psicologia social em busca de
elementos que permitissem uma complementaridade integrativa entre os
conceitos de pessoa e processos sociais em vez do distanciamento provocado
pelo binômio tradicional do indivíduo-sociedade9.
O resultado tem sido um avanço significativo da capacidade de
compreender os eventos do dia-a-dia como uma prática intersubjetiva e
socialmente relevante, base da produção e reprodução de processos sociais 10.
Começou-se a desfazer a noção, implícita na falsa separação do indivíduo e
contexto, de que o empírico tem dois níveis - um nível psicológico e um nível
sociológico. Como bem comentou Adorno1l:
"A psicotécnica econômica pode servir certos fins do comércio e da indústria, mas se
estes são os melhores não é uma preocupação que deve pesar para o psicólogo" 16
"ainda mais importante de que lucros comerciais de ambos os lados são os ganhos
culturais à vida econômica da nação na medida em que todos podem ser levados ao
lugar em que suas melhores energias podem ser demonstradas e sua satisfação pessoal
obtida. A psicologia experimental econômica oferece nada menos de que a idéia
inspiradora que o ajuste de trabalho e psique pode levar à troca da insatisfação no
trabalho e depressão mental pela felicidade e harmonia interna perfeita" 19.
Não deve ser, portanto, uma surpresa descobrir que mais tarde, quando os
resultados do estudo da montagem dos relays estavam sendo elaborados, o
conflito - criado por duas das mulheres que tentaram negociar com a gerência
melhores condições salariais e certos privilégios e que foram retiradas do
experimento - seria esquecido e a razão de sua retirada dada como outra. As
duas eram consideradas neuróticas e não adequadas para as condições do
experimento. De maneira similar, o estudo dos homens na sala de fiação iria
perder todo seu conteÚdo mais crítico sobre a natureza da resistência à
autoridade industrial e gerencial (resultado das observações sobre as
discussões dos operários sobre a importância de manter um nível de
produtividade suficiente, mas não demasiado) com o afastamento do projeto
do antropólogo social W. Lloyd Warner. Afinal, o livro iria receber o nome
de: A Gerência "e" o trabalhador 29.
Até hoje esta capacidade de convívio dentro de um simulacro
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de debate continua firme. O debate é sobre a divisão de um campo e não
sobre a sua formação e significado no estudo da sociedade moderna; sobre
seu papel naquilo que polanyi chamou de “grande transformação” 30. Continua
a discussão dentro da moldura mas não da moldura em si. Arakcy Martins
Rodrigues tem comentado como a ordem de tópicos em quase a totalidade
dos cursos de psicologia do trabalho mostra bem esta incapacidade de
problematizar o campo. Começa-se sempre com análise de cargos e seleção,
as primeiras atividades da psicologia industrial, e segue-se numa ordem que
reproduz a ordem cronológica da ampliação do campo até chegar ao
desenvolvimento organizacional. Em momento nenhum se reflete sobre o
significado, a intertextualidade temática que resulta destas idas e vindas.
Afinal, os departamentos de administração de pessoal também seguem o
mesmo processo - as áreas de rotinas trabalhistas, cargos e salários, seleção,
treinamento técnico e desenvolvimento gerencial são sempre separadas e lá
também há os progressistas e os tradicionais. Mesmo nas tentativas de criar
um novo conceito de recursos humanos (o “Human Resource Management”),
foi necessário manter separada a parte administrativa para permitir que a
parte nobre mantenha a sua ideologia desenvolvimentista31.
A dificuldade em se questionar vem do pressuposto original. Psicologia é
para ser aplicada ao campo do trabalho e de organizações, conseqüentemente
assume-se que a problematização da psicologia é feita onde se faz a
psicologia, não onde se aplica. Os dois são instâncias distintas. Ao agir dentro
da ótica da separação entre teoria e aplicação, cai-se no terreno restritivo onde
a preocupação social do psicólogo enquanto ser-no-mundo influencia o tipo
de problema que quer resolver, mas a maneira de resolvê-la permanece presa
àquilo disponível para aplicação. O mundo de trabalho e de organização é um
campo de atuação e não um fenômeno a ser compreendido, porque na
hierarquia implícita da ciência esse não é o papel do aplicador. Psicologia do
trabalho é um assunto do quinto ano ou de cursos de pós-graduação no
exterior; algo que um psicólogo pode fazer mas não como parte de sua
identidade básica.
Nestas circunstâncias, se a psicologia, voltada cada vez mais ao estudo
isolado de pequenos núcleos de variáveis, não oferece uma leitura
problematizadora do fenômeno social, o resultado é um círculo vicioso
inevitável. Uma fragmentação do terreno em pequenas áreas, cada uma das
quais composta de pedaços de psicologia mal
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costurados e engajados numa briga inócua que divide o conflito emocional
numa dinâmica intergrupal 32, que é em si produto e reprodutor de um
fenômeno complexo que permanece, programaticamente, fora do alcance
conceitual e do acesso emocional. A separação falsa entre a teoria e a prática
que levou a psicologia a se conceber enquanto segmentos, nega a
possibilidade de uma práxis voltada à compreensão ativa de um mundo social
processual. Uma imagem negativa de um trabalho reduzido e preso à
reprodução do capital sem opção de análise e ação completa o círculo,
afastando o profissional do acadêmico.
Uma aproximação com a psicologia social neste momento da sua
reconfiguração fornece diversas pistas para a reconcepção do campo,
iniciando-se com o reconhecimento que o campo da psicologia do trabalho é
parte do fenômeno do trabalho, ele é produto de suas circunstâncias e não
alheio a elas. Entretanto, cabe aos psicólogos que militam no campo
organizativo a tarefa mais difícil da legitimação do fenômeno de trabalho e
das formas que a atividade humana assume com o espaço de pesquisa e
produção de conhecimento não sobre o trabalho ou sobre as organizações,
mas sobre a psicologia da vida associativa, a psicologia social - a psicologia.
Cabe a estes rejeitar a falsa separação da teoria e da prática, do puro e do
aplicado e sua hierarquização profissional implícita. Cabe também reconhecer
que estas separações - que só foram rejeitadas explicitamente pelos ativistas
da pesquisa-ação33 compõem uma problemática mais profunda. Poder,
dominação, ideologia, conflito social e de classe não habitam um espaço
próprio alheio à academia; os campos do saber também têm seu cotidiano.
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