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OS FUNDAMENTOS

DO CAPITALISMO

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JAMES OTTESON

OS FUNDAMENTOS
DO CAPITALISMO
O ESSENCIAL DE ADAM SMITH

Tradução:
MATHEUS PACINI

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A Daniel Garber, por concordar que havia algo digno de
estudo em Adam Smith, e a Ian Mueller, cujo exemplo
acadêmico continua a me inspirar.

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SUMÁRIO

9 INTRODUÇÃO
13 QUEM FOI ADAM SMITH?

19 1. O QUE É ECONOMIA POLÍTICA?

27 2. SIMPATIA, SENTIMENTOS MORAIS E O ESPECTADOR IMPARCIAL

37 3. O NÁUFRAGO SOLITÁRIO E A OBJETIVIDADE MORAL

43 4. JUSTIÇA E BENEFICÊNCIA

51 5. O MERCADO DA MORALIDADE

61 6. A DIVISÃO DO TRABALHO

71 7. A ECONOMIA POLÍTICA DE SMITH

79 8. A MÃO INVISÍVEL

87 9. INTERESSE PRÓPRIO, IGUALDADE E RESPEITO

101 10. O PAPEL DO GOVERNO

109 11. INTERVENÇÕES GOVERNAMENTAIS NA ECONOMIA?

115 12. ANÁLISE FINAL

121 OBRAS CITADAS

123 SUGESTÕES DE LEITURA

126 AGRADECIMENTOS DO AUTOR

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INTRODUÇÃO

ADAM SMITH (1723—90) É AMPLAMENTE ACLAMADO


como o pai da disciplina hoje conhecida como economia, além
de ser considerado o fundador do que hoje conhecemos como
capitalismo. O livro de Smith, Uma investigação sobre a natureza
e as causas da riqueza das nações, de 1776, é citado com frequên-
cia como a origem tanto da economia como do capitalismo, e
sua influência nos 242 anos desde a publicação o coloca entre
as obras mais importantes do último milênio.
Por si só, esse fato justifica a presença de Smith no panteão
das figuras eminentes da tradição ocidental, inserindo-o direta-
mente na lista de autores que todas as pessoas instruídas deve-
riam conhecer. Apesar disso, Smith tornou-se, infelizmente, um
dos grandes autores sobre os quais muitos estudiosos têm opinião,
mas que poucos, de fato, leram. Assim, a reputação de Smith tende
a ser baseada em impressões e relatos de segunda mão, e não em
sua própria obra — o que pode explicar por que Smith é citado por
pessoas que desejam promover todo o espectro de ideias que vai
do libertarismo ao progressismo, além de muitas outras.

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O ESSENCIAL DE adam smith

Para aumentar a confusão, Smith foi professor de filosofia


moral, não de economia. E publicou apenas dois livros em sua
vida: o já mencionado, e agora muito mais famoso, A riqueza das
nações (RN), e um livro anterior, publicado em 1759, chamado A
teoria dos sentimentos morais (TSM). Teoria explora como os seres
humanos formam os sentimentos morais que possuem, tendo
como base a análise do que Smith chamou de “simpatia”; nessa
obra, Smith argumentou que todas as pessoas têm um natural
“desejo pela simpatia mútua de sentimentos”. Em A riqueza das
nações, todavia, não há menção a essa “simpatia”, e muito menos
à obra A teoria dos sentimentos morais. Em vez disso, Riqueza é base-
ado na análise do que Smith alternadamente chama de “interesse
próprio” e “amor-próprio”. Isso levou alguns estudiosos a se
questionarem sobre como os dois livros se relacionam. Um tra-
tava de moralidade e falava de “simpatia”; o outro, de economia
e falava de “amor-próprio”. Talvez, alguns estudiosos pensaram,
Smith estivesse sugerindo que a moralidade e a economia são, na
verdade, esferas independentes da vida humana — que a morali-
dade e os mercados não se misturam. Se o sistema econômico que
Smith descreve em Riqueza é o “capitalismo” (um termo que o
próprio Smith nunca usa), e se a moralidade não tem lugar no
“capitalismo”, então, tanto pior para o capitalismo! Estudiosos
intitularam tal dilema de “o problema de Adam Smith”,* e alguns
deles sugeriram que a aparente inabilidade de Smith combinar
moralidade com economia nos diz, ou deveria nos dizer, que um
sistema smithiano de economia política, que está na base do
mundo econômico atual, de fato tem pouca ou nenhuma base

*  Eu também colaborei para a literatura acadêmica com respeito ao “problema de


Adam Smith”. Veja Otteson (2002a, 2013) e Montes (2004).

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Introdução

moral. Se for assim, talvez o mundo globalizado do comércio


tenha apenas um caráter moral duvidoso.
Por sua parte, Smith acreditava, de fato, que a moralidade e
a economia poderiam se misturar, e que seus dois livros eram
parte de um projeto filosófico mais amplo. Parte do propósito
deste livro, O essencial de Adam Smith, é mostrar como os dois
livros de Smith são coerentes entre si. Mas a questão mais ampla
— como mercados e moralidade se misturam? — não é apenas
acadêmica e histórica, mas relevante para todos nós hoje. Existe
ligação entre moralidade e economia? Podemos nos engajar em
transações econômicas sem perder a moralidade? À medida que
nosso mundo se integra cada vez mais através das finanças e do
comércio, essas questões se tornam ainda mais urgentes. Talvez a
globalização econômica gere prosperidade material crescente,
mas isso à custa de nossos valores morais? Devemos renunciar à
nossa moralidade para enriquecermos?
Por mais atuais que sejam, essas questões já foram anteci-
padas e exploradas por Adam Smith no século XVIII. De fato,
Smith ofereceu uma estrutura para entender a moralidade que
não só integrava as transações de mercado, mas também esta-
belecia parâmetros do que seriam transações aceitáveis. Pode
surpreender tal postura vinda de alguém considerado o pai de
um sistema supostamente amoral; mas o mais surpreendente,
talvez, é que Smith acertou em grande parte de suas alega-
ções. Pesquisadores modernos tanto da moralidade humana
como da história econômica sugerem que Smith foi, na ver-
dade, incrivelmente preciso. Embora tenha cometido alguns
erros — nenhum autor, por melhor que seja, acerta sempre —,
seus dois livros contêm ideias e argumentos que resistiram ao
teste do tempo. Outra parte do propósito deste livro é conven-
cer você disso.

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O ESSENCIAL DE adam smith

Mas o propósito principal é apresentá-lo ao próprio Adam


Smith. A melhor forma de aprender sobre Smith é ler Smith. Isso
serve para qualquer autor, inclusive ele. O objetivo deste livro é ser
uma introdução para o pensamento de Smith em seus aspectos mais
relevantes, familiarizando você, leitor, com algumas razões centrais
que fazem de Smith um grande autor, além de colocar em perspec-
tiva a profundidade e a amplitude de seu pensamento. Embora
Smith tenha escrito apenas dois livros, ele discutiu uma ampla gama
de tópicos, questões, eventos, países, culturas e ideias. Infelizmente,
isso significa que este pequeno livro terá de omitir discussões sobre
aspectos importantes de seu pensamento, algo que um tratado mais
amplo poderia explorar. Além disso, embora tenha me esforçado
para apresentar Smith de forma fidedigna, sem dúvida outros estu-
diosos o fariam de forma diferente. Se a leitura deste livro o levar a
sentir a necessidade de ler os escritos de Smith por sua própria conta,
então terá alcançado talvez seu objetivo mais importante.

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QUEM FOI ADAM SMITH?

ADAM SMITH NASCEU EM 1723, EM KIRKCALDY, ESCÓCIA.


Foi uma das figuras centrais de um período de grande desenvolvi-
mento intelectual conhecido como Iluminismo Escocês, que incluiu
inovações revolucionárias em diversas áreas como medicina, geo-
logia, química, filosofia e economia.* Smith é autor de dois livros:
A teoria dos sentimentos morais (TSM), de 1759, e Uma investigação
sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (RN), de 1776. Teoria
trouxe muito reconhecimento a Smith em vida, e logo foi conside-
rado uma das grandes obras de teoria moral — chamando a aten-
ção, por exemplo, de Charles Darwin (1809—82), que em seu livro
de 1871, A descendência do homem e seleção em relação ao sexo, endos-
sou e aceitou diversas das “impactantes” conclusões de Smith.**

*  Para uma análise das realizações do Iluminismo Escocês, veja Broadie (2003) e
Buchan (2003).
**  Stephen Jay Gould (1980, pp. 66-70) argumenta que A riqueza das nações também
influenciou Darwin.

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O ESSENCIAL DE adam smith

Teoria teve seis edições revisadas durante a vida de Smith. Ainda


assim, desde o século XIX, Smith é mais lembrado por seu segundo
livro, que, pela influência ou grandeza, deve ser considerado um
dos tratados mais importantes do segundo milênio.
Poucos detalhes da infância de Smith são conhecidos. Ele
nasceu em 5 de junho e foi filho único. Seu pai, também chamado
Adam Smith, faleceu logo após o seu nascimento. No livro de
1793, Account of the Life and Writings of Adam Smith, LL.D [Relato
da vida e dos escritos de Adam Smith], Dugald Stewart, aluno de
Smith, relata que “ele foi uma criança frágil e doente, e necessitou
de todo o cuidado carinhoso de sua mãe. Ela foi acusada de tê-lo
tratado com complacência ilimitada, mas isso não gerou efeitos
desfavoráveis no temperamento ou nas capacidades do filho”
(SMITH, 1982a, p. 269). Um acontecimento da infância de Smith
vale a pena ser contado. Ele e sua mãe, Margaret, visitavam o
irmão dela regularmente em Strathenry, cerca de onze quilôme-
tros a noroeste de Kirkcaldy. Em uma visita, o pequeno Smith,
então com três anos, brincava na frente da casa de seu tio quando
foi sequestrado por um grupo de “ciganos”. O sequestro foi
reportado imediatamente, e os sequestradores foram localizados
e presos perto da floresta Leslie, com Smith retornando em segu-
rança à sua família. Stewart afirma que o tio de Smith, que o recu-
perou, “foi o feliz instrumento que preservou um gênio para o
mundo, que estava destinado, não apenas a expandir os limites
da ciência, mas a iluminar e reformar a política comercial da
Europa” (SMITH, 1982, p. 270).
Smith matriculou-se na Universidade de Glasgow em 1737, aos
14 anos, e em 1740 recebeu uma bolsa para estudar no Balliol
College, em Oxford. No entanto, Smith não ficou satisfeito com o
nível de ensino de Oxford. Como ele escreveu anos depois em A
riqueza das nações, “na Universidade de Oxford, a maior parte dos

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Quem foi Adam Smith?

professores desistiu, já há tempos, da pretensão de ensinar” (RN, p.


761). Apesar disso, Smith fez bom uso das bibliotecas de Oxford,
estudando nas literaturas inglesa, francesa, grega e latina. Ele saiu
de Oxford e retornou a Kirkcaldy em 1746.
Em 1748, a convite de Henry Home Lorde Kames (1696—1782),
Smith começou a ministrar uma série de palestras em Edimburgo
chamada “Lectures on the Rhetoric and the Belles Lettres” [Palestras
sobre a retórica e as belas-letras], focando em crítica literária e nas
artes de falar e escrever bem. Foi durante essa época que Smith
conheceu e se tornou amigo do filósofo escocês David Hume (1711—
76), que acabaria por se tornar seu confidente mais próximo e sua
maior influência filosófica. Smith deixou Edimburgo para se tornar
professor de lógica na Universidade de Glasgow, em 1751, e depois
professor de filosofia moral, em 1752. As palestras que ministrou em
Glasgow vieram a se cristalizar em A teoria dos sentimentos morais,
publicada com grande aclamação em 1759.
Em 1763, Smith pediu demissão de seu posto em Glasgow
para se tornar o tutor pessoal de Henry Scott, Terceiro Duque de
Buccleuch, com quem Smith viajou por dezoito meses pela França
e pela Suíça. Durante essa viagem, Smith conheceu Voltaire
(1694—1778), sobre quem aparentemente deixou uma boa impres-
são, pois Voltaire escreveu depois: “Esse Smith é um excelente
homem! Não temos ninguém comparado a ele, e me envergonho
por meus queridos compatriotas” (MULLER, 1993, p. 15). Smith
também conheceu François Quesnay (1694—1774), Jacques Turgot
(1727—81), e outros entre os chamados fisiocratas franceses, que
defendiam um relaxamento das barreiras comerciais e, em geral,
políticas econômicas laissez-faire. Embora Smith já estivesse, por si
só, desenvolvendo ideias similares, o contato com os fisiocratas
certamente o ajudou a refiná-las. Em 1767, Smith retornou a Kirk-
caldy para cuidar de sua mãe doente e para finalizar o que viria a

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O ESSENCIAL DE adam smith

ser A riqueza das nações. Durante esse tempo, ele foi sustentado por
uma pensão generosa do Duque de Buccleuch, o que lhe permitiu
focar totalmente em seu trabalho acadêmico. Era de conhecimento
público que o celebrado autor de Teoria estava trabalhando furio-
samente em um novo livro, e os dez anos que já dedicava a ele ele-
varam muito as expectativas. Por fim, após uma longa espera, a
magnum opus de Smith foi publicada em 9 de março de 1776.
Smith permaneceu em Kirkcaldy até 1778, quando se tornou
comissário da alfândega em Edimburgo. Sua mãe faleceu em 1784,
quando Smith tinha 61 anos. Passara muito tempo cuidando da
mãe, o que pode explicar, em parte, o fato de nunca ter se casado
ou tido filhos. Embora aparentemente tenha tido um caso amoroso
durante a sua vida adulta, não resultou em matrimônio. Dugald
Stewart escreve: “na primeira parte da vida do sr. Smith, é sabido
que ele interessou-se durante muitos anos por uma jovem dama de
grande beleza e muitos dotes. Não fui capaz de descobrir como
suas investidas foram recebidas, ou que circunstâncias impediram
a união, mas creio ser quase certo que, após essa decepção, ele dei-
xou de lado todos os pensamentos sobre matrimônio. Essa jovem
também faleceu solteira. (SMITH, 1982, pp. 349-50).
Durante a década em que viveu em Kirkcaldy e, posterior-
mente, em sua estada em Edimburgo, Smith despendeu grande
parte de seu tempo visitando e recebendo amigos, entre os quais o
filósofo e estadista católico irlandês Edmund Burke (1729—97), o
químico Joseph Black (1728—99), o geólogo James Hutton (1726—
97), o engenheiro mecânico James Watt (1736—1819), o primeiro-
-ministro Lorde Frederick North (1732—92), e o primeiro-ministro
William Pitt, o Novo (1759—1806). Também teve papel importante
em instituições como o Oyster Club, o Poker Club e a Select Society,
a última das quais tinha entre seus membros William Robertson
(1721—93), David Hume, James Burnett (Lorde Monboddo)

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Quem foi Adam Smith?

(1714—99), Adam Ferguson (1723—1816) e Lorde Kames.* Em


1783, Smith foi membro fundador da Sociedade Real de Edim-
burgo, que existe até hoje como a principal academia de letras e
ciências da Escócia. Tendo servido anteriormente como Decano
das Artes (1760) e vice-reitor (1761—63) da Universidade de Glas-
gow, foi eleito reitor em 1787, ocupando o cargo até 1789.
Durante seus anos em Edimburgo, Smith revisou amplamente
seus dois livros para novas edições. Em 1785, ele escreveu ao
Duque de La Rochefoucauld: “Tenho dois outros livros em produ-
ção; o primeiro é um tipo de história filosófica de todos os distin-
tos ramos da literatura, filosofia, poesia e eloquência; o outro é um
tipo de teoria e história do direito e do governo” (SMITH, 1987, p.
248). Contudo, nenhum desses projetos chegou a ser publicado.
Dias antes de sua morte, Smith chamou os amigos Black e Hutton
aos seus aposentos e lhes pediu que queimassem seus manuscri-
tos não publicados, um pedido a que eles tinham se oposto em
diversas ocasiões. Dessa vez, Smith insistiu. Eles relutantemente
aceitaram, destruindo dezesseis volumes de manuscritos. É prová-
vel que os dois livros mencionados estivessem entre os trabalhos
que foram destruídos naquela trágica perda.
Adam Smith faleceu em Edimburgo em 17 de julho de 1790 e
foi enterrado no cemitério Canongate, próximo à High Street em
Edimburgo.
James R. Otteson

James R. Otteson é o Thomas W. Smith Presidential Chair em


ética empresarial, professor de economia e diretor-executivo
do Eudaimonia Institute na Wake Forest University.

*  Para mais detalhes sobre esses grupos e seus membros, veja Broadie (2007).

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Ansiamos ver nossos próprios julgamentos e sentimentos ecoados nos outros. Senti-
mos prazer ao descobrir que os outros julgam pessoas, ações e comportamentos da
mesma forma que nós; é desagradável, porém, descobrir que os outros julgam de
forma diferente.

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Capítulo 1

O QUE É ECONOMIA
POLÍTICA?

A DISCIPLINA QUE HOJE CONHECEMOS COMO “ECONOMIA”


começou como “economia política” no século XVIII. Os primeiros
economistas políticos, incluindo Adam Smith e David Hume,
desejavam adaptar uma metodologia científica newtoniana ao
estudo do comportamento humano e da sociedade humana por
dois motivos principais e relacionados: primeiro, descobrir, atra-
vés da história e da observação empírica, padrões regulares de
comportamento que pudessem ser sistematizados e, portanto,
explicados e entendidos; e, segundo, para utilizar esses padrões
como bases empíricas pelas quais fazer recomendações sobre
reforma institucional. Eles argumentavam que, se pudéssemos
entender o funcionamento das instituições sociais humanas, tal-
vez pudéssemos entender quais instituições morais, políticas,
econômicas e culturais conduziam — e, é claro, as que não condu-
ziam — à prosperidade humana.
Após o século XVIII, esses propósitos da economia política se
dividiram em dois campos relativamente distintos de investigação.

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O ESSENCIAL DE adam smith

Um deles é a filosofia moral, uma tentativa de entender não apenas


que objetivos deveríamos perseguir, do ponto de vista moral, mas
também quais seriam as bases normativas desse “deveria” — isto
é, não apenas a coisa certa a fazer, mas também o que torna essa
coisa, de fato, certa. Uma vertente da filosofia moral é a filosofia
política, que busca aplicar as conclusões da filosofia moral especi-
ficamente às instituições e ao comportamento público. O outro
grande campo em que se dividiu a economia política foi a econo-
mia, uma análise positiva e técnica (e, nos séculos XX e XXI, tam-
bém cada vez mais quantitativa) do comportamento humano sob
circunstâncias variadas, somada ao desenvolvimento de modelos
matemáticos para explicar o comportamento humano no passado
e, talvez, prevê-lo no futuro. Hoje, filósofos morais e economistas
desconhecem, ou mesmo desconsideram, o trabalho dos estudio-
sos do outro campo.
Uma das razões principais dessa divisão é a distinção entre
análise descritiva e análise normativa — isto é, de um lado, a distin-
ção entre investigações que buscam descrever, empírica ou factu-
almente, o que ocorre no mundo, e, de outro, as que buscam fazer
recomendações sobre como deveríamos ou não nos comportar.
Esses dois tipos de investigação são distintos do ponto de vista
lógico. É possível, por exemplo, descrever todos os resultados pro-
váveis de um aumento no salário mínimo, sem, no entanto, com-
prometer-se com a afirmação de que ele seria bom (ou ruim). Da
mesma forma, se sou questionado por uma aluna se ela deveria
cursar a faculdade de Direito, posso citar elementos como as
médias por disciplina e médias ponderadas finais exigidas para
entrar em diversas faculdades, o salário inicial médio de gradua-
dos em tais faculdades, o tipo de atividades realizadas por advo-
gados treinados em diferentes áreas e assim por diante. Ainda
assim, nada disso responde à pergunta original da aluna. Pois,

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O que é economia política?

para respondê-la, é necessário não apenas uma análise de suas cir-


cunstâncias e oportunidades particulares, mas também, e de forma
mais crucial, de seus valores. O que ela deseja fazer? Quais são
seus objetivos, propósitos e ambições? O que ela acredita ser um
uso valioso de seu tempo, talento e riqueza? Sem conhecimento
disso, não teríamos como saber se ela deveria ou não cursar
Direito. Esse “deveria” depende, então, dos valores dessa aluna —
incluindo os valores morais — e geraria uma afirmação normativa
distinta das afirmações descritivas sobre a faculdade de Direito.
Essa divisão da economia política em campos separados de
pesquisa descritiva (economia) e pesquisa normativa (filosofia)
estava ausente em outros autores pioneiros da economia política.
Ironicamente, talvez tenha sido o amigo de Smith, David Hume,
quem primeiro chamou a nossa atenção para tal distinção:

Em todo sistema moral que até hoje encontrei, sempre notei


que o autor segue, por algum tempo, o modo comum de
raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo
observações a respeito dos assuntos humanos; porém, de
repente, surpreendo-me ao descobrir que, em vez das cópu-
las usuais de proposições, ser e não ser, não encontro uma
só proposição não conectada a um dever ou não dever. Essa
mudança é imperceptível, mas é da maior importância; pois,
como esse dever ou não dever expressam uma nova relação
ou afirmação, é necessário que sejam notados e explicados;
e, ao mesmo tempo, é preciso que se dê uma razão, para
algo que parece inteiramente inconcebível, sobre como se
pode deduzir essa nova relação a partir de outras inteira-
mente diferentes.

(HUME, 2000 [1740], p. 302; ênfase no original)

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O ESSENCIAL DE adam smith

Ao longo dos séculos XIX e XX, pensadores foram cada vez


mais influenciados por essa distinção, e o domínio das afirmações
do “ser” ficou mais relegado à economia, enquanto o domínio das
afirmações do “dever-ser”, à filosofia. Economistas passaram a ver
seu trabalho como o de um físico ou, talvez, o de um engenheiro:
você me diz quais são os seus objetivos, e eu lhe digo como melhor
alcançá-los: ou, posso lhe mostrar quais são as consequências pro-
váveis das políticas que você está contemplando, porém deixo
para você ou outros decidirem se são boas ou ruins. E os filósofos,
por sua vez, viram que sua principal contribuição para a discussão
seria explorar os valores morais que deveriam ser defendidos ou
almejados, com pouca consideração sobre como poderiam ser
alcançados na prática. Hoje, os economistas acusam os filósofos de
estarem desconectados do mundo real, enquanto os filósofos acu-
sam os economistas de focarem nas questões erradas. Não surpre-
ende, então, que uns não leiam os trabalhos dos outros.
Para Adam Smith, todavia, esses dois campos de pesquisa —
o descritivo e o normativo — estavam integrados em uma única
investigação: a economia política. Smith queria entender (i) a natu-
reza humana, incluindo a psicologia e as motivações humanas; (ii)
a condição humana, incluindo o estado do mundo e seus recursos;
e (iii) as instituições sociais humanas, incluindo como elas surgem,
como se mantêm e crescem, e como perecem. Mas Smith também
acreditava que tais pesquisas seriam, em última instância, vazias e
sem sentido, a menos que fossem ligadas a recomendações que
permitissem às pessoas viver melhor. Então, Smith pensava que o
economista político precisava, primeiro, saber de que material —
humano e outros — dispunha para trabalhar,* e quais eram as

*  Smith usa apenas pronomes masculinos ao longo de sua obra. Por causa disso, e
para evitar quaisquer questões interpretativas, adotei a mesma convenção.

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O que é economia política?

limitações e as possibilidades de tal material; e, segundo, o econo-


mista político deveria, então, usar o que viesse a aprender para
recomendar comportamentos e políticas que pudessem permitir a
criaturas “programadas como nós somos”, vivendo nas condições
em que vivemos, a levar vidas que merecessem ser vividas. Para
Smith, isso significava que ele deveria estudar a natureza humana
da mesma forma que um psicólogo empírico moral faria atual-
mente, porém tirando conclusões disso para políticas públicas
com base em seus achados. Smith acreditava que a felicidade
humana era o summum bonum [bem supremo], e que tanto a pes-
quisa empírica como a filosofia moral eram necessárias para enten-
dermos o significado da felicidade genuína para os seres humanos.
Mas ele também supunha que tentar alcançá-la, bem como ajudar
os outros a fazê-lo, era um imperativo moral.
O objetivo final da economia política — como Smith a conce-
bia — era descobrir quais instituições públicas e sociais propicia-
riam uma sociedade próspera em que as pessoas teriam a chance
de viver vidas verdadeiramente felizes. Para isso, primeiro ele
teria de entender a natureza e a psicologia humanas, e o que cons-
tituía a felicidade humana genuína: esse foi o objetivo primário
de seu primeiro livro, A teoria dos sentimentos morais. E então o
economista político teria de entender a condição humana, as res-
trições materiais e outras encaradas pelo ser humano: o objetivo
primário de seu segundo livro, A riqueza das nações. Só então ele
poderia fazer recomendações positivas sobre quais políticas per-
mitiriam a criaturas como nós, segundo nossas condições particu-
lares, prosperar e florescer. As recomendações político-econômicas
feitas por Smith em Riqueza podem ser entendidas, então, como
resultado desse processo investigativo de duas fases.
No início de Riqueza, Smith nos apresenta uma vívida imagem
do que ele acredita estar em jogo. Parte de sua inspiração para

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O ESSENCIAL DE adam smith

escrever essa obra foi o fato de ele ter observado que algumas pes-
soas eram muito mais ricas do que outras. Como era a vida em
nações pobres na metade do século XVIII? Smith escreve: “Tais
nações são tão miseravelmente pobres que, pela mera necessidade,
frequentemente são reduzidas — ou, pelo menos, pensam estar
reduzidas — à necessidade de, às vezes eliminar, às vezes abando-
nar suas crianças, seus velhos e os afligidos por doenças prolonga-
das a perecerem de fome ou a serem devoradas por animais
selvagens” (RN, p. 10). Para muitos de nós pode ser difícil, hoje, em
meio aos níveis sem precedentes de riqueza de que desfrutamos no
século XXI, entender as dificuldades que tais povos encaravam
vivendo em condições tão desesperadoras e abjetas. E, mesmo
assim, essa foi a realidade comum e praticamente incontestável da
maioria das pessoas, por quase toda a história humana até o século
XVIII. Mas Smith percebeu que, em sua época, alguns povos, e
algumas nações, estavam começando a se libertar dessas condições
miseráveis. Ele queria entender como eram capazes de fazê-lo —
não meramente por curiosidade acadêmica ou histórica, mas por-
que ele entendia, e tinha visto com os próprios olhos, que a vida
das pessoas frequentemente dependia das políticas adotadas e das
instituições públicas construídas por seus países. Se fosse possível
entender as instituições que permitiriam às pessoas sair da pobreza,
talvez estas poderiam ser recomendadas, compartilhadas e replica-
das, melhorando, assim, a situação de vida de ainda mais pessoas.
Era possível, portanto, ter esperança de que muitas vidas, mesmo
milhões de vidas, poderiam ser melhoradas.
As principais questões da economia política de Adam Smith,
então, eram: o que é a felicidade humana genuína, e como ela
pode ser alcançada? O que constitui riqueza real, e qual é a cone-
xão entre felicidade e riqueza? Por que alguns lugares são mais
ricos do que outros, e como lugares mais pobres podem

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O que é economia política?

enriquecer? Quais instituições públicas podemos recomendar


para realizarem nossas aspirações morais ao possibilitar às pes-
soas alcançar a felicidade? E, por fim: como podemos ajudar
todos os cidadãos, em especial, os mais pobres, a ter uma vida
não apenas de prosperidade, mas de propósito e significado?
Esses eram os objetivos de Smith e do campo da economia polí-
tica que ele praticava. Que projeto poderia ser mais benéfico e
moral do que esse?

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A beneficência propriamente dita deveria não ficar nas mãos do governo, mas na
dos indivíduos, com base em seu conhecimento localizado e julgamento individual.
Apenas eles podem saber se deveriam doar ou não e, em caso afirmativo, o que
deveriam doar. É por isso que Smith argumenta que a beneficência não deveria ser
extorquida à força.

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