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Capítulo I PARADOXO

O ser humano é ambivalente. Conhecido e estranho, próximo e distante,


transparente e opaco. O ser humano canta e protesta, dança e agride,
congrega e dispersa. O ser humano é diáfano e indevassável, lúcido e
nebuloso, acessível e inabordável. Circula pelas ruas, mas também recolhe-se
na intimidade. O ser humano expande-se festivamente e tranca-se
amargamente. É lógico e ilógico.
O ser humano é linguagem pluriforme. Fala e silencia, grita e emudece,
gargalha e enclausura-se. O ser humano é palavra ofertada e palavra
recusada. E recusar a palavra aos outros é rejeitá-los. O ser humano é fonte
exuberante de comunicação, e também núcleo rígido de incomunicação.
Comunicabilidade e incomunicabilidade são duas faces do existir humano. O
ser humano é diálogo fecundo e monólogo estéril.
O ser humano é torrente de amor. Amar é expressão de vida, êxtase,
paixão, impulso vital. É Eros. Mas o ser humano pode também gotejar ódio
feroz. O ódio é filho de Tânatos. O ser humano é mistura de Eros e Tânatos.
Quando o amor se perverte, converte-se em ódio implacável. Seres que se
amavam apaixonadamente passam a odiar-se rancorosamente. E o "amante"
chega a assassinar o "amado".
O ser humano é fértil em criações. Cria vida, saúde, pão, paz, ciência,
tecnologia. Mas o ser humano é também niilista. Incinera o mundo. Basta ver a
guerra. O ser humano constrói maravilhas, mas também pode arrasá-las.
Planta a semente e desintegra a germinação. Pai luta para ter filho; e pai
estupra a carne de sua carne. Mãe sagra para sustentar o filho; e mãe
abandona ou estrangula o recém-nascido.
O ser humano sente necessidade de convivência e solidariedade. Mas
também é anti-social. A discriminação, o fanatismo e o sectarismo esfiapam o
tecido da sociabilidade. O ser humano fascina. As pessoas seduzem pelo amor
e pela beleza, pela inteligência e pela bondade. Mas também as pessoas
intimidam e ameaçam com violências e assassinatos. O ser humano cativa
com afeição e algema com servidão

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O ser humano é paradoxo antropológico. Muitos exaltam a grandeza do
ser humano. Outros muitos lhe estigmatizam a vileza. O ser humano não se
define por conceito matemático. É sequência de contrastes. É campo de “joio e
trigo”. É sem devenir. Pode acertar e pode errar. Pode fazer-se e desfazer-se.
Mas abriga potencial para se re-fazer-se. O ser humano é acapaz de eliminar o
ódio, a perversidade, a destruição. E pode propulsar energias criadoras
inteligentes que amadureçam a consciência, redirecionam a liberdade, cultivem
o amor, promovam a justiça, efetivem a solidariedade e assumam a
responsabilidade.
O ser humano é oscilante. É paradoxo. Avança e recua, atrai e expulsa,
ergue-se e recai, edifica e pulveriza, arrisca-se e amoita-se. O ser humano não
é apenas herança. É decisão. É gênese existencial. É conquista de todos os
dias. Lidar com o ser humano é lidar com o paradoxo.

Superação dialética

Pode-se dizer que a filosofia é hermenêutica do significado. Interpreta a


realidade para compreender-lhe o sentido. A filosofia busca o significado
“arqueológico” do ser humano, como quer Michel Foucault. Muitos usam o ser
humano em vez de compreendê-lo.
Para compreender o ser humano é preciso vedo como processo, como
fenômeno em andamento. A visão fixista estratifica o ser humano e mumifica-
lhe o real significado. O ser humano pulsa, está em mutação. É cachoeira de
decisões. Jamais concluído. Todorov diz lucidamente: "O homem é ser
incompletamente determinado, potencialmente bom e potencialmente mau.
Tudo é possível. Nada é certo". [NR1] O ser humano pode avançar ou recuar,
endireitar-se ou entortar-se, afirmar-se ou negar-se. Abriga potencial para
construir e para arruinar.
O ser humano é mistura de bem e de mal, de solidariedade e de
egoísmo, de afirmação e de negação. E Eros e Tânatos, é vida e cinza, é amor
e ódio, é justiça e injustiça, é inocência e malícia. O ser humano morre para
defender causa justa e mata para salvaguardar interesses injustos. Não é
estereotipado. É oscilação. Dança entre ser e não-ser, escorrega entre assumir
e fugir.

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Há que manter a perspectiva da mistura, e não do dualismo. Costuma-se
separar a humanidade entre bons e maus, entre ilibados e culpados. É a falsa
dicotomia dos "dois lados". Do lado de cá, estão os bons e os puros. Do lado
de lá, estão os maus e os sujos. Esse dualismo é ingênuo e discriminatório. Os
bons olham os maus com superioridade, e os maus olham os bons com
náusea. Rigorosamente, não há banda de puros e banda de impuros. Cada ser
humano é mistura de bem e de mal, de trigo e de joio, embora a dosagem do
bem e do mal possa variar de pessoa para pessoa. Aqui vigora a dialética, e
não o dualismo.
O ser humano é protótipo de dialética. Vive a contradição entre o bem e
o mal no cerne de sua existência. O confronto dialético não existe apenas entre
o bando dos perfeitos e o bando dos malvados. Trava-se sobretudo entre o
crescer e o fenecer dentro da pessoa. Há lutas entre grupos e sistemas, mas
aqui salientamos o conflito dilacerante entre a força construtiva e a força
destrutiva na medula do existir pessoal. No ser humano há potencial
ontogenético que gera o ser, e há potencial niiligenético que espalha a
devastação do nada. Luta entre ser e não-ser.
Por não estar totalmente determinado, o homem é essencialmente
mutável. É Metá-noia, termo grego que significa "mudança" no pensar, no
sentir, no agir, no conviver. Metá-noia tem profundo sentido filosófico,
psicológico, ético e teológico. É expressão que convida o ser humano a
transformar-se para converter o mal em bem, o servilismo em libertação, o ódio
em amor, a degeneração em regeneração. Se o ser humano cultivar, dentro de
si, a ruína que esfarela a vida, o joio que envenena o trigo, o nada que incinera
o crescer, estará precipitando sua própria demolição.
O ser humano desafia a si mesmo. É potencial grandioso em luta com
potencial trágico. É dialética antropológica explosiva. Sartre dizia que o homem
"está condenado a ser livre". Acrescentaríamos que o ser humano está
condenado a superar-se. A extrair afirmação de sua negatividade, a extrair
emancipação de sua dependência, a extrair audácia de sua timidez, a extrair
clamor de seu silêncio, a extrair criatividade de sua inércia, a extrair ser de seu
nada, a extrair vida de sua agonia. O ser humano responde aos desafios, com
a superação dialética.
Contágio tanatológico

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Tânatos é tido como deus da morte. É filho de Nix, a noite. Sísifo
conseguiu algemar Tânatos. E, durante certo período, a morte cessou de
devastar a vida da humanidade. Entretanto, Zeus decidiu libertar Tânatos, que,
desalgemado, eliminou Sísifo. E, então, Tânatos voltou a espalhar as forças
mortíferas pelo mundo.
Tânatos distribui a morte "natural" provocada pela velhice, por doenças e
acidentes meteorológicos. Nessa área, Tânatos mantém-se moderado porque
os avanços científicos estão favorecendo a vida humana. Mas, em outras
áreas, Tânatos demonstra fôlego e apetite, e age com fúria. Não lhe basta
repartir o "morrer" lentamente. Tem pressa. Mata com voracidade. Tânatos
atiça chacinas e extermina multidões barbaramente. E a eficiência tanatológica
está crescendo disparadamente.
Matar tornou-se prática rotineira. Programam-se chacinas. Mata-se com
frieza, cinicamente. Executam-se existências de forma hedionda. Assassina-se
para humilhar vítimas. Esbagaçar o ser humano é festa. O código manda matar
com arrogância, para ostentar poderio, exibir valentia e arrotar impunidade.
Matadores profissionais, bandidos sofisticados e, até, detentores de cargos
públicos assassinam e esbanjam orgasmo tanatológico. Babam de prazer
mórbido. Usufruem felicidade de monstros. Amedrontam e silenciam
testemunhas. O império de Tânatos desafia a sobrevivência da humanidade.
Há o contágio tanatológico. Tânatos oferece a pedagogia do homicídio.
Propaga a mentalidade assassina e ensina a matar. Difunde-se a crença de
que matar é coisa banal, é "normal". As pessoas são contaminadas pela
ferocidade destrutiva. Introduz-se a cultura do assassinato. E não falta o culto
ao exterminador, ao ditador sanguinário.
Um fenômeno deve preocupar a quem não perdeu o sentido de
humanidade. Tânatos mata com a violência das armas. E mata também com a
violência da servidão, do desemprego, do salário insuficiente, da desnutrição,
da doença e do pânico. E pode acontecer que o contágio tanatológico consiga
encharcar os brasileiros de ódio e crueldade. E aí será uma tragédia. É
oportuno lembrar que Tânatos tem coração de ferro e entranhas de bronze. É
impiedoso. A contaminação tanatológica pode metalizar a consciência dos
brasileiros e despojá-los do senso de humanidade. Seríamos povo sem alma,

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sociedade barbarizada. A rápida propagação de práticas cruéis já constitui
sintoma alarmante.
Perante o cenário tanatológico, alguns se sentem assustados e
revoltados. Outros permanecem perplexos e entorpecidos. Hipno era o "sono"
que adormecia as pessoas. Hipno tem o poder de hipnotizar, anestesiar a
sociedade. Curioso é que Hipno era irmão gêmeo de Tânatos. A mitologia
sugere que Hipno adormece os clientes e Tânatos mata-os. A sociedade que
se mostra insensível em relação a tantos assassinatos parece sonolenta,
hipnotizada. Bernard Durei diz que "o mal muito propagado hoje é a apatia".
É hora de despertar para atalhar o surto tanatológico que ensanguenta
casas, ruas, praças, bairros e famílias. E reconhecer que o país tem problemas
graves e crônicos que exigem soluções radicais. É imprescindível descobrir e
extirpar as causas que desencadeiam o extermínio de tantos seres humanos. É
urgente ativar a paixão biofílica, que fomenta o amor à vida, para sustar a
demolição tanatológica.

Nota de rodapé

1 Todorov, T. LejardinImparfait. Grasset, Paris, 1998, p. 293.

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