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Em conversa exclusiva,

Donna Haraway
explica por que
se deve fazer
parentescos em
vez de bebês
Pesquisadora americana lança no Brasil “O Manifesto das Espécies
Companheiras” pela editora Bazar do Tempo.
Com participação de
Marilene Felinto
Escritora e colunista da Folha,
mantém o site marilenefelinto.com.br
Cecilia Cavalieri
Pesquisadora cosmofeminista,
artista visual e mãe. Doutoranda
em linguagens visuais na UFRJ,
é autora de “La Femme” (Psémata, 2019).
Juliana Fausto
Filósofa, escritora,
pesquisadora de pós-doutorado na UFPR,
é autora de
“A Cosmopolítica dos Animais” (n-1 edições, 2020).

Esta entrevista foi publicada originalmente em versão reduzida no jornal


Folha de S. Paulo, em 22 de agosto de 2021.
Por ocasião do lançamento no Brasil, em
julho último, de “O Manifesto das Espécies
Companheiras – Cachorros, pessoas e alteri-
dade significativa” (editora Bazar do Tempo),
a pensadora americana Donna Haraway falou
com exclusividade à Folha. Bióloga de for-
mação, Haraway, 77, transita por outras áreas
das ciências (filosofia, antropologia, tecnologia
da informação, literatura) com igual paixão e
espírito investigativo criador. Seu texto mais
conhecido aqui é "Manifesto Ciborgue: Ciên-
cia, tecnologia e feminismo-socialista no final
do século XX" (1985), e saiu em coletâneas (a
mais recente, pela editora Autêntica, 2009).
O “Ciborgue” é uma convocação à cons-
trução de um mundo favorável à diversidade,
ao mostrar como a atual predominância da
ciência e da tecnologia da informática fez ruí-
rem velhos padrões de dominação hierárquica
do pensamento ocidental (submissão dos seres
queer, mulheres, negros, trabalhadores, ani-
mais etc.), rompeu fronteiras (entre mente/
corpo, natureza/cultura, macho/fêmea, orga-
nismo/máquina) e inaugurou novas formas de
poder e subjetividades.
“O Manifesto das Espécies Companhei-
Imagens: stills do filme “Donna Haraway: Story Telling for Earthly Survival”, doc. de
Fabrizzio Terranova, 2016. ras”, publicado em 2003 nos EUA, aprofunda
Antidesign gráfico: Natália Quinderé
de certo modo a visão da autora sobre ela própria diz) torna-o ainda mais instigan-
este “grande canil queer”, como ela se refere te, tanto do ponto de vista teórico quanto da
ao mundo de afinidades ou parentescos en- linguagem que o expressa, cheia de termos
tre gentes solidárias e interespécies em seus que a própria autora inventa (ou “retorce”) e
manifestos. reinventa. “Eu ficaria feliz se me chamassem
“O Manifesto das Espécies Companhei- apenas de uma ‘contadora de histórias’”, ela
ras” não é apenas sobre cães, é sobre ecologia comenta.
e coevolução, encontro, consideração e res- Às perguntas que enviamos a Donna
peito na relação entre canídeos e hominídeos, Haraway com antecedência, ela respondeu,
como observa Fernando Silva e Silva no pos- em mensagem de e-mail à Bazar do Tempo:
fácio ao livro. É um pensamento filosófico em “Achei impressionantes as perguntas e as re-
que se trata de “levar em con- flexões! Eu queria ter dias inteiros para con-
sideração, e a sério, os modos de existência versar com cada uma das entrevistadoras. Não
de outros seres (e outros humanos) em seus veja a hora de conversar com elas!”
próprios termos”, sem que “as categorias hu- A uma pergunta enviada por Cecilia
manas sejam as dominantes”, e em que todos Cavalieri sobre uma doação de leite materno
os seres “emergem de uma teia multiespécie que ela fez para um banco de leite durante
ramificante”. os primeiros oito meses de vida de sua filha,
Esta entrevista, feita online, não teria sido Haraway respondeu muito comovida, naquela
possível sem a colaboração das duas mulheres mesma mensagem de e-mail:
que convidei para assiná-la comigo. Cada uma “A entrevistadora que compartilhou o leite
em sua área de atuação, e estudiosas entu- dela e de seu bebê com uma comunidade, com
siastas, Cecilia Cavalieri (artes visuais), 37, e aqueles que precisam de leite materno, e as
Juliana Fausto (filosofia), 42, são a prova de redes ratificadoras de parentes humanos e
como a obra de Haraway vem inspirando por mais do que humanos que se ramificam nesse
aqui principalmente as novas gerações. cuidado até agora, é exatamente o que quero
A interdisciplinaridade do pensamento de Ha- dizer com ‘fazer parentescos’! Eu também sou
raway (ou a “não disciplinaridade”, como nutrida por compartilhar o leite e contar a his-
tória. Em solidariedade mamífera. Donna”.

Além disso, Donna Haraway já conhecia


Juliana Fausto, por ocasião de outra entrevista
que esta filósofa realizou com ela.
DONNA HARAWAY: Quero agrade- entrevistas que ele fazia, com o trabalho de
cer a vocês pelas perguntas. Elas realmente fundo, com o conhecimento que ele tinha da
me comoveram. Eu não queria dar entrevista comunidade. Assim, cresci com profundo
porque já dei tantas, e online se tornou difícil respeito pela prática do jornalismo como uma
para todos nós. Mas depois concordei. Quando prática de narração de histórias baseada em
recebi as perguntas de vocês, fiquei tão feliz, evidências, pesquisas, no mundo, de modo
porque senti uma conexão real com o projeto um bom jornalista está sempre aprendendo a
de vocês. Estamos em uma espécie de corpo ouvir, a fazer perguntas, a investigar e a contar
importante juntas. É importante, neste mo- a história.
mento, pensarmos umas com as outras. Acho que meu conhecimento foi profun-
MF: Isso é maravilhoso. Minha primei- damente influenciado pela prática do jornalis-
ra pergunta é sobre linguagem, sobre como mo, o modo como fui formada como cientista,
apresentar seu texto a um público que conhece bióloga, e também como alguém da literatura
pouco seu trabalho. E esta é uma demanda e da filosofia, além de como fui forjada nas po-
da minha editora no jornal. Por outro lado, líticas de minha vida, em todos esses que são
eu concordo muito com você quando diz da mundos contadores de histórias. E as histórias
importância dos tropos e das metáforas na nos abrem para mundos vividos, realidades vi-
contação de histórias. O simples fato de “O vidas. E as histórias nunca são “nada além de
Manifesto das Espécies Companheiras” ser seu histórias”, nada é “meramente uma história”,
primeiro livro publicado aqui é um sinal de como se fosse apenas a decoração que você co-
esperança neste momento político tão adverso loca sobre os fatos ou algo assim. As histórias
no Brasil. Mas como apresentar seu texto aca- propõem mundos. E eu acho que meu ofício
dêmico em linguagem acessível a um público é o de contar histórias. E está enraizado em
mais amplo, leitor de jornal? muitos tipos de pesquisa, certamente na pes-
DH: Primeiro de tudo, cresci em uma fa- quisa antropológica, biológica, está enraizado
mília onde meu pai era jornalista [esportivo]. na leitura ampla, e assim por diante. Mas eu
Ele escrevia histórias diárias sobre jogos, e proponho histórias com as quais me preocupo.
elas estavam sempre relacionadas com as
Portanto, na medida em que meu trabalho que ainda não sei como dizer. Nesse sentido,
se conecta com públicos mais amplos, é por- acho que o jornalista, no seu caso, o tradutor,
que tenho alguma intensidade, que é apenas como Juliana, e outras pessoas que estão tra-
uma realidade do meu corpo, pois eu não pedi balhando em tradução comigo, estão fazendo
por todos esses hormônios que me deixam algo do mesmo tipo, tradução e jornalismo são
louca. Mas, com alguma intensidade, sinto que ambos uma espécie de mergulho dentro de um
meus escritos propõem histórias sobre coisas mundo para apresentá-lo ou para habitá-lo, e
que me interessam e que eu acho que são im- para levar outros a se interessarem por habitar
portantes. São importantes para mim e impor- esse mundo. Por isso, não acho que seja tão
tantes ao se estenderem para os outros. Por- difícil tornar meu trabalho acessível. De iní-
tanto, nesse sentido, embora às vezes minha cio fiquei realmente surpresa, mas nem tanto
linguagem pareça difícil, na verdade não é por quanto humilhada, ao [saber] que muitos ado-
ser particularmente técnica. Ocasionalmente lescentes leem meu trabalho. Recebo e-mails
é, mas a linguagem técnica é na verdade bas- de jovens do ensino médio perguntando o que
tante fácil. As pessoas estão acostumadas a ler quero dizer com “ciborgue”, e penso: “Você
histórias, digamos, sobre pesquisa de labora- deve estar brincando comigo, não tenho ideia
tório e produção de vacinas, e compreendem de como explicar isso a alguém de 15 anos que
que um bom jornalista explica alguns con- está fazendo uma tarefa para o ensino mé-
ceitos técnicos, e assim por diante. Acho que dio!”. Mas eles sabem mais, quer dizer, eles
minha linguagem é difícil por outro motivo. E sabem mesmo... Os jovens leem meu traba-
é porque não estou necessariamente usando as lho, os artistas leem meu trabalho, os ativis-
palavras da mesma maneira como as pessoas tas leem meu trabalho. Os estudiosos... nem
estão acostumadas a ouvi-las. Eu entorto as tanto. Na verdade, meu público é menos meus
palavras, retorço-as para tentar dizer algo que pares disciplinares – eles também o leem. Mas
ainda não sei como dizer. Sinto que, quando o público que me interessa é um público de
dou minhas palestras ou aulas ou quando es- amigos, de parentescos, de pessoas que estão
tou escrevendo, tenho esta sensação de algo tentando descobrir, ao modo da velha pergun-
que me puxa para fora, para tentar dizer algo ta esquerdista: “O que fazer”? “Quem somos
nós? O que deve ser feito”? Isso responde ao importa, você se agarra àquilo, puxa os fios, e
que você perguntou? os segue. Isso leva você a ser mais cosmopo-
MF: Sim. Eu acho que você está certa, lita, no bom sentido, e não menos. E, claro,
você escreve como uma escritora, como uma os cães não são a única maneira de fazer isso.
poeta que precisa às vezes criar suas próprias Cães não são a única espécie companheira. As
palavras. Resposta perfeita para mim. A de- máquinas são espécies companheiras de certo
manda era da minha editora... tipo, do tipo que importa. As muletas de meu
DH: Tendo em mente sua editora, então, pai, para caminhar depois de uma tuberculose
posso dizer algo mais concreto. Em “O Mani- óssea, eram companheiras. Os pássaros... O
festo das Espécies Companheiras”, é verdade jovem falcão-tanoeiro [que pousou] no poste,
que os cães são os seres, os cães são os par- por exemplo, a algumas casas de distância,
ceiros nesta narrativa. E o que acontece ao que pode estar morrendo de fome, pois acho
levarmos os cães a sério no relacionamento é que o jovem falcão ainda não é bem-sucedido
que eles nos levam a tantos lugares, nos levam na caça. Pelo menos estamos realmente pre-
às classes trabalhadoras de Porto Rico e às ocupados com aquele falcão. Seguir aquele
práticas de cuidado na rua. Eles nos levam a falcão leva você a algo realmente bom, a todo
histórias evolucionárias, nos levam a contestar um universo de quem vive como predador ur-
histórias de adestramento, nos levam a ques- bano, à questão da vida selvagem urbana e da
tões de violência e amor. Se você leva os cães conservação de plantas, animais e micróbios
a sério, eles levarão você a mundos realmente nas cidades. Portanto, estou interessada em
complexos e grandes... Claro que é [minha ca- seguir o que eu amo, para ser uma pessoa mais
dela] Shindychew que dorme na minha cama, situada, mais assentada no mundo.
de modo que eu não possa me virar à noite e
acorde exausta porque tenho medo de tirar
minha cachorra da cama. Claro que há essa ca-
dela também, não é? De tal modo que, se você
leva algo a sério, algo com que você se
MF: A morte da minha pastora alemã,
pouco tempo atrás, é que me levou ao seu
“Manifesto das Espécies Companheiras”, por
indicação de um amigo. A leitura me ajudou
não só a entender a relação com uma “espécie
companheira”, mas também a encontrar soli-
dariedade e conforto. Então, meu contato com
seu texto seria um destes “processos incons-
cientes e solidariedades no trabalho”, que não
são necessariamente escolhas, como você já
observou?
DH: Acho que sim. Acho que ambas
temos a experiência de mudança de vida ao re-
almente nos importarmos com um membro de
outra espécie, que é nosso parente, e de passar
por processos de luto, de morte, de ir adiante
com isso como sendo parte de nós. E nesse
sentido, sem nunca nos conhecermos, temos
habitado uma parte realmente importante de
um mundo comum. Além disso, ambas somos
cidadãs de estados-nações sob a ameaça ime-
diata do fascismo grave, sob o domínio ime-
diato da desigualdade extrema e do racismo,
sob o domínio imediato da violência contra as
mulheres, do feminicídio, da decadência da
autonomia e dos direitos reprodutivos etc.
Vivemos em um mundo com uma espécie
de pavor consciente e inconsciente compar- obrigada pela oportunidade. Já que você falou
tilhado, um pavor profundo, orientado pelo sobre fascismo no Brasil e nos Estados Uni-
conhecimento suficiente da história para dos, vou começar com isso. As últimas eleições
entendermos as tragédias que já estão acon- presidenciais no Brasil, assim como as últimas
tecendo, mas que poderiam esperar. E encon- eleições americanas (e esperamos ter aqui
tramos conforto na companhia um do outro, uma eleição presidencial no próximo ano)
encontramos conforto em dar alegria um ao foram marcadas pela disseminação de fake
outro, em práticas de arte e ficção, e não como news. Você é uma das teóricas mais importan-
escapismo, embora não haja nada de errado tes das epistemologias feministas, que postu-
com um pequeno escapismo, mas como uma lam um ponto de vista de forte objetividade.
forma de fazer com o outro para, em meu Que concepção de verdade devemos defender
idioma, “ficar com o problema” [referência a e como não cair no velho truque da neutralida-
seu livro Staying with the trouble]. E muito de como um ponto de vista do lugar nenhum?
disso é solidariedade inconsciente. E enquan- DH: Sim, isso é urgente e difícil. Mas,
to olho para minha rede agora, como uma como você, eu acho que, por sinal, fiquei ani-
mulher velha, as pessoas de quem gosto são mada com as eleições para prefeitos no Bra-
pessoas com as quais compartilho consciente e sil, não faz muito tempo. Sandra Azeredo me
inconscientemente solidariedades, esperanças, manteve informada. Essas coisas importam
terrores e um senso de que não está certo tor- imensamente. Na verdade, passei o café da
nar-se cínico, ou estranhamente apocalíptico, manhã de hoje falando com meu marido sobre
ou estranhamente [achar que] “tem que haver como abordar essa questão das fake news.
uma tecnogambiarra em algum lugar”... Que Eu estava pensando em você... Na verdade,
precisamos ficar um com o outro como seres não sabia que era você que tinha escrito essa
viventes e mortais. E entre as muitas coisas pergunta. Mas eu estava pensando em antro-
que os cães nos ensinam está isso. pologia e na Amazônia. E estava pensando no
JF: Eu gostaria de dizer que tenho a hon- multinaturalismo, nos mundos múltiplos, e no
ra e a humildade de falar com você Donna, compromisso de nem sempre impor a
ontologia e a epistemologia do Ocidente mo- [É] realmente estranho que sejamos quase
dernista a absolutamente todo mundo. Então, obrigados a afirmar declarações de fé repetida-
sobre essa ideia de combater as fake news, mente. Bem, a maioria dos pessoas do mundo
nós fomos treinadas, com alguma dificuldade, não vive assim. Ou pelo menos muita gente no
pessoas como você e eu, para não fazer isso. mundo não vive assim. Suas criações de mun-
E fomos treinadas por pessoas cujas formas do epistemológicas, ontológicas, enraízam-se,
de fazer mundos incluem atores, práticas e linguística e praticamente, de outra forma. Por
modos de configurar práticas linguísticas que isso, parte desse discurso sobre fake news, eu
simplesmente não podem ser abrigadas pelo acho, é para entendermos que, para os moder-
Ocidente modernista, nem podem ser cha- nistas ocidentais, o mundo está dividido em
madas de falsas. Certo? Elas não podem ser falso e verdadeiro. E esse é o nosso primeiro
apenas bonitinhas, ou tradicionais etc. Por- erro. Certo? Agora, o outro erro é que, diante
tanto, fomos treinadas nesta dura disciplina disso, muitos modernistas ocidentais vão dizer
de fazer com que as epistemologias científicas, “Bom, é tudo relativo, cada um com o seu,
por falta de um termo melhor, não consigam todos os mundos são igualmente válidos”. Isso
abrigar tudo o que é realmente importante. não é uma prática de relacionalismo. É uma
E têm que ser, de certa forma, suspensas às prática de relativismo. O relativismo é desistir,
vezes. Mas é um tipo de suspensão na prática é não levar nada a sério, inclusive o próprio
da relacionalidade, na prática da compreen- conhecimento das verdades. Daí estarmos,
são de que para os ocidentais, os modernistas nós, modernistas ocidentais, no momento, en-
ocidentais, as declarações confessionais de fé gajados em práticas como o jornalismo em um
são muitas vezes muito importantes. “Você jornal de uma grande cidade, que diz a verda-
acredita no único Deus verdadeiro? E que tal a de, se formos bons nisso. E vale a pena lutar
Trindade? Ou você é um unitarista?...” As de- por essas verdades, lutar ocasionalmente, ou
clarações confessionais têm sido secularizadas nem tão ocasionalmente... veja quantos jorna-
na ciência para que você acredite na evolução, listas são assassinados, inclusive no Brasil, por
por exemplo, ou acredite em vacinas... dizerem a verdade. Veja o assassinato de jor-
nalistas no México neste momento. Veja a mais fortes e mais úteis, se vão resultar em
destruição e a ruína de reputações etc. O menos pessoas sofrendo e morrendo ou não.
jornalismo é uma profissão perigosa, porque E não se trata de uma questão individualista.
tem como objetivo dizer a verdade. E quando é Penso nas ciências como práticas coletivas,
bom nisso, ele o faz. práticas coletivas de construção desses tipos
Essa é uma prática de relacionalismo com de verdades pelas quais vale a pena morrer,
verdades em “v” minúsculo, e não com “V” francamente, de modo que a ciência também
maiúsculo. E todo o conceito de notícia falsa não seja com “C” maiúsculo. Bruno Latour tem
funciona com conceitos em maiúsculas, “V” sido particularmente eloquente sobre esse fato
maiúsculo [de “verdade”] ou “F” [de falso/ importante. As ciências são práticas enraiza-
fake] maiúsculo. Portanto, acho que nosso das de dispositivos e companheiros que fazem
trabalho é dizer: “Bom, mas espera aí, espera esse tipo de coisa quase milagrosa, no mundo
aí... o que está em jogo aqui? Do que estamos louco em que vivemos. Os bons cientistas ten-
falando?” Vejamos o caso das vacinas, certo? tam descobrir se estão errados. E desenvolvem
Vamos fazer um escrutínio... Vamos entrar nos técnicas para saber, para descobrir se estão
detalhes e nas práticas. Quem está dizendo o errados sobre algo. E têm pequenas máquinas
quê e com base em quê? Quais são as formas chamadas laboratórios, ou práticas de campo,
de saber que estão em jogo aqui, incluindo tal- para descobrir se suas propostas fazem algum
vez as orações, ou práticas de cura que não nos sentido, inclusive se fazem algum sentido
interessam? Não vou descartá-las, como uma para as moléculas, ou para as aves, ou para os
relativista [faria]: “Bom, isso é apenas a crença mineiros, ou para a floresta, os defensores da
deles, e eu tenho a minha”. O que vou dizer é água... Tentam entender os limites das for-
“Como e onde isso importa?”, porque não im- mas de saber, a fim de dizer: “Isso realmente
porta em todos os lugares. E se for importante se aplica, em muitos casos”. E nós realmente
em termos de questões urgentes, de morte sabemos muitas coisas. Não vou simplesmente
em massa e saúde pública, lutarei para ver se desaparecer diante de sua raiva, ou diante de
minhas maneiras de dizer a verdade são sua acusação de fake news. Nesse caso, você
não está certo. Neste momento, 97% das pes- é realmente importante, sem se tornar essa
soas nos Estados Unidos que estão hospitali- coisa estranha chamada relativista. Nós somos
zadas por Covid-19, em 26 de julho, não estão relacionalistas, não relativistas.
vacinadas. Bom, isso importa, certo? Algumas JF: Então, você diria que se trata de um
pessoas não querem ouvir isso. O nível de rai- conceito pragmático de verdade, uma arte das
va delas é muito alto. A desconfiança é muito consequências, daquilo que realmente impor-
alta. Nesse caso, elas que fiquem com os an- ta?
tivacina. Mas há muitos outros exemplos que DH: Sim, em bons termos filosóficos,
poderíamos usar. Elas recebem uma atenção esta é uma posição pragmática, que se baseia
incrível da mídia. A voz delas é amplificada. na prática e que afirma verdades que recusam
É quase a única voz que conseguimos ouvir. uma espécie de cinismo estranho. E isso está
Alguns dos mais censuráveis, os militantes muito sintonizado com dispositivos de signifi-
armados da direita, os ideólogos da direita, os cação, realmente interessados na forma como
apresentadores de programas de rádio, têm os significados são gerados, com o quê, por
suas vozes amplificadas. Acho que parte do quem, como eles se sustentam. Um tremendo
nosso trabalho é baixar o volume deles, de- interesse, em suma, pela semiótica, mas se-
pois aumentar o nosso volume. E de todas as miótica de um tipo que se baseia na prática,
maneiras que pudermos. Às vezes é estando incluindo as práticas de pensamento, que é
nas ruas, às vezes é falando com os vizinhos, uma prática.
às vezes é assegurando-nos de estar lá fora
com os professores, no sindicato e na universi-
dade, lutando por uma educação decente, por
creches e por um salário digno. Às vezes é em
uma greve de aluguel, conseguindo divulgá-la
e fazendo boa propaganda. É colocar nossos
artistas do nosso lado. Aumentar o nosso volu-
me. E descobrir como baixar o volume deles
CC: Curiosamente, parte da esquerda e Camille 2 é de fato um pouco mais ética do que
parte da direita europeias convergiram para isso, ela provavelmente não sairia mobilizando
um ponto de comum acordo: a recusa à vaci- insetos aliados e vacinando a todos. Por outro
na. Vemos que o negacionismo está inclusive lado, Camille 2 há de ser pró-ciência. Camille
presente em discursos de intelectuais impor- 2 vai insistir em dizer: “Vejam, pessoal, por
tantes por lá. O que as Camille, de “Camille causa do meu trabalho no mundo, sigo o ca-
Stories” [ficção científica de Haraway, que está minho de que os insetos precisam para ter um
no livro “Staying with the trouble”], teriam a futuro. Isso me leva até o meio-oeste agrícola
dizer aos militantes antivacina? dos Estados Unidos. Me faz atravessar Nuevo
DH: Eu ri dessa pergunta. Gostei do fato Leon, atravessar a cidade de Monterey até o
de você ter decidido não perguntar a mim, eixo neovulcânico no México. Me leva pela
mas perguntar a uma das Camilles. Talvez costa oeste até as montanhas rochosas e às
Camille 2 seja minha favorita. A 2 ou 5, que é zonas de incêndio do noroeste. E estou ciente
a oradora dos mortos, mas vou responder pela de que há as borboletas-monarcas que não são
2. No início, eu pensei, bem, Camille 2, que é migratórias, de modo que também olho para
muito esperta em termos de engenharia gené- as populações de borboletas-monarcas que re-
tica e de certos tipos de transformações mole- sidem durante todo o ano nas ilhas do Pacífi-
culares, elaboraria um tipo de pequeno inseto co”. Por cuidar de algo real, nesse caso, borbo-
secreto que voaria vacinando secretamente a letas que podem não ter futuro, além daqueles
todos, a começar pelas pessoas mais vulnerá- com quem a borboleta vive – as pessoas, as
veis do mundo. E Camille 2 não teria nenhum árvores, as flores, as fazendas, o maquinário,
problema em mobilizar insetos aliados para os pesticidas – e porque seu trabalho é cuidar
injetar vacinas, como mosquitos em zonas de de toda a teia, Camille 2 tem muito a dizer. E
malária [risos]. Camille 2 só trabalharia um Camille 2 sabe de algo e não vai ter medo de
pouco no laboratório e colocaria essas vacinas falar, usando todos os dispositivos que tiver à
em novos sistemas de entrega. Então, pensei sua disposição para tentar propor, explicar etc.
bem, e, sabe, isso não é muito ético... E, no final das contas, acho que Camille 2, em
primeiro lugar, forçaria as grandes empresas de maneira tal que hoje não há profissionais
farmacêuticas a construir instalações de fa- de primeira linha nem nos melhores laborató-
bricação de vacinas regionalmente em todo o rios? Elas foram sucateadas, da mesma forma
mundo, na América Latina e na África e assim que os bens públicos foram sucateados pelo
por diante, de modo que já existissem labora- capitalismo contemporâneo em todo o mundo,
tórios muito bons e bastante preparados para incluindo o capital chinês – bem, isso é com-
fazer as vacinas baseadas em DNA, do tipo plicado... Mas nossos dispositivos de saúde
Moderna ou Pfizer. Acho que a Camille 2 asse- pública foram sucateados de uma forma tama-
guraria que os meios de produção, incluindo nha que estamos vendo níveis extraordinários
a pesquisa, fossem distribuídos globalmente o de incompetência. E Camille 2 falaria sobre
mais rápido possível. E, enquanto isso acon- isso, eu acho.
tecesse, ela garantiria que as vacinas fossem
distribuídas de forma mais equânime. E que
os direitos de propriedade intelectual fossem
suspensos por questões de saúde pública,
começando por aí, mas se ampliando, pois há
muitas outras situações nas quais o apoio à
pesquisa científica não dará lucro e que, por-
tanto, precisa de dinheiro público. Camille 2
também vai perguntar por que a Organização
Mundial da Saúde, os centros de controle de
doenças, os dispositivos de saúde pública do
Brasil etc. têm sido tão terrivelmente incom-
petentes. Por que essas organizações com as
quais contamos foram tão tremendamente
incompetentes durante o último ano e meio?
Por que foi permitido que elas se degradassem
JF: E alguns desses negacionistas na es- do “Movimento Ciência para o Povo”, do Cole-
querda parecem equiparar saúde pública com tivo de Saúde Feminina de Boston, da revista
biopolítica, com dispositivos biopolíticos. “Radical Science” e em laboratórios de biolo-
DH: Sim. Isso tem a ver com a conversa gia, onde meus instrutores de pós-graduação
sobre a esquerda e a direita convergindo quan- ensinam sobre guerra química e biológica e
to a isso, a essa bobagem. E eu acho que isto racismo científico, e assim por diante. Então
é, novamente, algo que sinto que eu e meus eu acredito que tanto a esquerda quanto a
amigos estamos nos ajudando mutuamente a direita se tornam anticiência por meio de seu
entender: a crítica nunca é suficiente. Uma vez compromisso incansável de pensar que uma
que você se engaja na crítica, digamos, à “Big vez que você tem a crítica, que você os captu-
Science” e à “Big Pharma”, isso é apenas uma rou. Trata-se da “atitude ‘te peguei!’”, que não
pequena parte do projeto. E acho que cer- é uma atitude de criação nem de construção
tas figuras da direita e da esquerda estão tão de nada, mas apenas de “botar abaixo, botar
comprometidas com a crítica que não fazem a abaixo!”. Acho que tanto a esquerda como a
pergunta crucial sobre o que é que está sendo direita são culpadas disso. Partes da esquerda
construído que não deveríamos apoiar, e o que e da direita.
é que, apesar dos problemas, ainda está acon- JF: No filme “Storytelling for Earthly
tecendo que é realmente precioso. A crítica é Survival” e em outras entrevistas, você contou
tão destrutiva e desdenhosa. E a anticiência sobre algumas formas de parentesco não con-
é incrivelmente destrutiva. Certamente qual- vencional que cultivou e cultiva em sua vida.
quer humana no mundo vai entender, é claro, Como você acha possível, hoje, na prática,
as opressões da ciência e da medicina, mas vai criar formas de parentescos não-convencio-
entender também a extraordinária história de nais em nossa sociedade?
libertação enraizada na ciência e na medicina DH: Acho que provavelmente concorda-
para a humana, entender que a ciência e a me- mos que isso é urgente, e que estamos empo-
dicina são absolutamente essenciais. Eu cresci brecidos nos meios para fazê-lo. E, ao mesmo
como uma feminista, como parte informada tempo, acho que todos já fazemos parentes de
maneiras que precisamos explicitar, honrar de cachorrinhos, bebês são cheirosos [risos].
e descrever. Penso, por exemplo, na amiza- E meu slogan, “façamos parentes, não
de entre adultos. Em sociedades tipicamente bebês” funciona, é muito bom como slogan,
heteropatriarcais e heteronormativas, a ami- mas não é exatamente o que eu quero dizer.
zade intensa é considerada uma prática dos Enfim, esse slogan é um problema, mesmo que
jovens. Quando você cresce e envelhece, deve eu goste dele. Digamos que você esteja interes-
se orientar para a família e para o trabalho – sada em um projeto de moradia acessível em
reprodutividade e produtividade –, e a ami- sua cidade ou região, ou em um redesenho dos
zade é rebaixada. E se você dá muita atenção sistemas de parque em relação à localização de
à amizade, é considerado imaturo, especial- escolas e centros comunitários, ou algo assim.
mente se a amizade o leva a fazer parentes em Fazer parentes é assumir uma forma de traba-
vez de bebês e a cuidar de comunidades como lhar que seja séria em relação às gerações, que
uma prática de cuidado de gerações. De certa diga respeito a herdar histórias como parte
forma, penso que fazer parentes é fazer gera- das gerações, que diga respeito à robustez dos
ções, cultivar solidariedades e modos de trazer mundos para os jovens, de modo que eles não
mundos humanos e não humanos, que in- fiquem completamente subordinados a seus
cluem jovens, para o futuro. Acho que, no caso pais ou seus professores. Diz respeito a como
dos seres humanos, fazer parentes quer dizer dar a esses jovens mais autonomia – pois nes-
que, se crescemos até a idade adulta – o que te momento eles têm muito pouca autonomia,
em si é raro e surpreendente quando olhamos pelo menos neste país –, a como construir
para a história do mundo –, só por esse fato mundos multigeracionais, a como configurar
temos uma espécie de obrigação de cuidar dos arquitetura, sistemas de trabalho e sistemas
jovens, de ser a favor dos jovens, de estar em de mobilidade, entre outros. A como construir
um mundo pró-crianças. E isso envolve desco- mundos tais que os mais velhos não precisem
brir dispositivos para fazer parentes em vez de explorar os jovens para se desenvolverem,
bebês. Não se trata de não fazer bebês, bebês para que os estados-nações não precisem se
são legais, gosto de bebês quase tanto quanto preocupar tanto se a taxa de natalidade é alta
o suficiente para sustentar a população mais teresse é que os dispositivos de apoio estão
velha. Que tal celebrar essa população mais totalmente degradados e ausentes, e a mulher
velha de maneiras concretas e celebrar a possi- será responsável por cuidar não apenas de
bilidade de libertar os jovens de exigências seus próprios pais, mas dos pais de seu marido
incansáveis? e de uma criança, e com apoio mínimo. Então,
Penso na China neste momento, por ela recebe uma pequena mesada relacionada
exemplo. Não me importa de quantos modos o à criança e, bem, isso é ótimo, mas ela ainda
Estado chinês suspende as restrições à natali- não tem o sistema de previdência social de que
dade se não dá autonomia reprodutiva às mu- precisa. As mulheres jovens têm outras opções
lheres. Que diferença faz o número de filhos neste momento nas cidades chinesas, e sim-
que você pode ter? Se você não tem autonomia plesmente não estão interessadas em se casar.
reprodutiva, isso não é feminista. A autonomia Em primeiro lugar, não acho que se trate de
reprodutiva é feminista. E a autonomia repro- uma questão de taxa de natalidade baixa, mas
dutiva requer o cuidado de redes e amigos. De de uma abertura de possibilidade que deve ser
qualquer forma, eu sou feminista, não malthu- celebrada, pois se trata do cuidado com as pes-
siana [seguidora de Malthus, que propôs, no soas. Nesse caso em especial, do cuidado de
final do século XVIII, o controle populacional pessoas mais velhas, assim como de crianças.
humano como resposta à teoria de que o cres- Vejo a imprensa se lamentar e se deses-
cimento demográfico acontecia por progressão perar e dizer “Meu Deus, a taxa de natalidade
geométrica enquanto a produção de alimen- está muito baixa, isso é horrível, vai ser uma
tos, por progressão aritmética]. Enfim, neste bagunça danada...”. Bem, é verdade. Divago
momento, segundo informações de amigos um pouco. É verdade que o homo sapiens,
chineses, acadêmicos chineses, estudantes em nossa espécie, está passando por um período
intercâmbio e outros, as jovens na China têm de várias décadas durante as quais a taxa de
exatamente zero interesse em se casar – estou natalidade será menor do que provavelmente
exagerando. Mas parte da razão desse desin- já foi durante o tempo evolutivo, embora seja
preciso qualificar isso. E uma estrutura popu-
lacional que tem muito mais idosos do que jo- que esse bebê não seja responsável por isso e
vens, de um ponto de vista evolutivo, natural- seja uma pessoa incrivelmente valiosa. E, além
-cultural, é realmente incomum, produz tipos do mais, não precisa ser assim.
bem diferentes de desafios para as sociedades Vivemos em uma espécie de capitalismo
que estão neste período histórico particular, extrativista que culpa a população pelo que a
e isso vai exigir muita imaginação, recursos e população não está fazendo. Portanto, estou
investimentos consideráveis etc. Não acredito extremamente atenta ao fato, creio, de que a
que estamos na transição demográfica que os população não é a causa do tipo de crise que
malthusianos previam, mas em uma transição enfrentamos. Mas também insisto que ela é
diferente, e em meio a uma crise ecológica sem um fio, um fator, que não se pode simples-
precedentes em sua ameaça aos sistemas de mente esquecer, e que temos que falar sobre
sustentação da vida multiespécies, em meio a isso de formas multiespecíficas feministas. E
uma crise de extinção. temos que nos permitir errar, pensar alto e
Portanto, fazer bebês neste contexto é errar, e perdoarmo-nos uns aos outros e seguir
parte disso, de modo profundo. Fazer paren- em frente e reconhecer que nem todos os
tes deve ser abordado a partir de uma forma grupos neste mundo estão na mesma relação
de feminismo coletivo, multiespécies, atento diante da questão de fazer bebês. E é preciso
ao racismo dos programas de controle popu- que haja uma espécie de coragem no que diz
lacional, como o classismo e os genocídios. respeito a fazer parentes e no que diz respeito
Pois existem povos no mundo, a maioria dos a pensar os números humanos. Eu realmente
povos indígenas no mundo e as histórias de proponho que não está tudo bem no fato de a
holocausto, incluindo o holocausto judeu, os Terra ter 11 bilhões de seres humanos visando
deslocamentos dos palestinos e tantas outras um estilo de vida de classe média, ao mesmo
histórias... para os quais a questão de fazer be- tempo em que essas pessoas são sujeitadas a
bês é diferente. E há a questão da minha classe migrações forçadas, a campos forçados de re-
social, por exemplo, na qual um bebê é um fugiados e à morte forçada em massa, enquan-
fardo gigantesco para toda a Terra, mesmo to esse ideal de uma vida de classe média
universal para 11 bilhões de pessoas ainda é de coerção reprodutiva e assim por diante,
fraudulentamente sustentado. Então, quais com o objetivo de construirmos a aliança ao
são os equilíbrios certos, onde e quem, de que mesmo tempo em que nos recusamos a ser-
tipo de autoridade, de que tipo de autonomia mos silenciadas sobre a questão dos números
precisamos para criar a mistura dessas coisas humanos.
sobre as quais falamos? JF: Uma vez você disse que o sistema
Pois neste momento, e sei por experiência colonial baseado na escravidão e na mono-
própria, eu tenho sido xingada em salas de cultura, conhecido como plantation, sugava
aula, por exemplo, e repudiada aos gritos de as potências de vitalidade e geratividade da
“você não é mais uma feminista, você é uma vida e quebrava a passagem entre as gera-
malthusiana!” Até mesmo tentar falar sobre ções, substituindo-as por trabalho produtivo
essas coisas é proibido na esquerda feminis- e reprodutivo a partir das quais a extração de
ta. Não se pode sequer falar sobre isso sem valor podia se dar, e que esse era um modo
ser chamada de racista. Então, Adele Clark [ pelo qual o capital operava até hoje. Entendi
socióloga e professora de Ciências da Saúde da corretamente? Você poderia falar sobre essa
Universidade da Califórnia em São Francisco] relação entre colonialismo e capitalismo?
e eu pensamos: “Olha, somos duas velhas mu- DH: Exatamente. Nós vivemos nesse sis-
lheres brancas, nossos óvulos já estão todos tema e temos que prestar atenção nele. Bem,
acabados, que mal podem nos fazer? Se não você vive no Brasil, eu vivo nos Estados Uni-
nós, então quem? Então vamos tentar, vamos dos, esses mundos estão baseados na extração
dar nosso melhor”. E deixamos claro que esse da mão de obra dos escravos, bem como na
debate está em aliança com os povos indíge- conquista de muitos, inclusive contra povos
nas, com o “Vidas Negras Importam”, com indígenas, na expropriação de terra etc. Nós
o “Leave it in the Ground” [ou LINGO, asso- duas vivemos em sociedades que vieram ao
ciação da sociedade civil que combate o uso mundo dessa maneira. Eu devo muito ao tra-
de combustíveis fósseis], com as pessoas que balho acadêmico feito por pensadores afro-ca-
estão prestando atenção aos muitos tipos de ribenhos e afro-americanos do Atlântico, em
sua maioria pessoas negras, que escreveram para outro local, a recomposição das ferra-
sobre a história da escravidão e da resistência. mentas de trabalho, por exemplo, a que en-
Devo a pessoas como Sylvia Wynter [filósofa e volveu açúcar, destilarias, sistemas para fazer
escritora cubana, de ascendência jamaicana], melaço, formas de contabilizar, o sistema
Catherine McKittrick [canadense, professora escravagista. O sistema de escravidão inven-
de Estudos de Gênero na Queen’s University] tou os sistemas modernos de contabilidade,
e Janae Davis [geógrafa e ativista acadêmi- o método de notação de partidas dobradas, a
ca da Clarck University] e muitas outras. E escrituração contábil. Inventou os sistemas
acho que estamos de acordo. Temos algumas modernos de divisão do trabalho, que foram
pequenas discordâncias, penso eu, embora importados e transformados na criação do
concordemos que o sistema de plantation, tal sistema de fábricas. Tudo isso ainda predomi-
como se desenvolveu, é a origem Capitaloceno na no mundo da monocultura agrícola ou nos
[catástrofe ambiental causada pelo Capital]. sistemas de extração mineral: o mundo que a
A escravidão e o sistema de plantation, que plantation construiu está em andamento.
remove, desloca, quebra padrões de gerativi- Acho que as pessoas pensam nas plantations
dade que fazem mundos passados, presentes como monocultura de óleo de palma e como
e futuros e desloca seres humanos, plantas e algo que ficou no passado, e não como todo
talentos, que perturba sistemas alimentares e um sistema de fabricação de mundo que ainda
substitui, digamos, a mandioca, ou outros sis- opera muito bem até hoje. E de fato se trata
temas alimentares de alto teor de carboidra- de substituir populações e impor produção e
tos, ao mesmo tempo em que remove forças reprodução no lugar de fazer mundos uns com
de trabalho masculinas e assim por diante. os outros de maneiras multiespecíficas, o que
O deslocamento forçado de populações; na não diz respeito necessariamente a um lugar
verdade, a invenção do conceito de população, exato. Não é que só se possa viver em apenas
a localização forçada de entidades contábeis e um lugar. Essa quebra pode se dar em mundos
produtivas, o deslocamento forçado do local que envolvem viagens e cosmopolitismo e tro-
no qual se estava envolvido na geratividade ca... Veja a história dos povos da Amazônia,
que está sendo evidenciada pelos arqueólogos, reprodução de gênero. Raça, classe, gênero,
com seus múltiplos caminhos de comércio, sabe, podendo-se multiplicar as categorias.
viagens, intercâmbio cultural etc., coisas que CC: Durante os primeiros oito meses de
os modernos tendiam a pensar que os amazô- vida de minha filha, doei 30 litros de leite para
nidas não faziam. Olhe para os mundos que o banco de leite local. Essa experiência radical
foram destruídos. Portanto, trata-se da in- no seio de minha própria espécie transfor-
venção de população, da invenção de raça, do mou-me para sempre em um animal de gran-
deslocamento de plantas, animais, micróbios de porte capaz de fazer comunidade e gerar
e pessoas, dos sistemas de extração e contabi- vida através da substância leite, uma cocriação
lidade e da exploração do trabalho. O “Planta- minha e de Dora. Nunca mais consegui olhar
tionoceno”, palavra que lancei ao acaso numa para uma mamífera lactante de qualquer
conversa, um dia. Não me importo tanto com espécie com olhos que não fossem de uma
a palavra, mas acho que ela é útil. Penso que cumplicidade e empatia absolutas. Como você
é realmente importante entender que a inter- acha que podemos experimentar uma abertu-
rupção das práticas de fazer outros seres, fazer ra celular para outras espécies sem necessa-
bebês, fazer plantas, fazer cidades, essa quebra riamente precisar cair em alguma armadilha
de geratividade, e a implantação forçada de pós-humanista?
populações, raças, produção e reprodução é... DH: Posso perguntar-lhe, antes, quando
chamemos isso de modernismo por enquan- você diz “armadilha pós-humanista”, o que
to, esse tipo de modernismo, o modernismo você quer dizer com isso? O que você pensa,
capitalista... isso é o Capitaloceno. E acho que que imagem lhe vem à mente quando você diz
é difícil para todos nós, inclusive para as femi- isso?
nistas, entendermos isso. Aquilo de que preci- CC: Então, em primeiro lugar, preciso di-
samos e aquilo por que estamos trabalhando é zer que sou artista, venho do campo das artes.
um fortalecimento da geratividade uns com os E quando falo dessa armadilha pós-humanis-
outros, e um enfraquecimento das práticas de ta, estou basicamente me referindo ao lugar
extração enraizadas em raça, produção e em que alguns aceleracionistas [aqueles que
propõem que os processos capitalistas devem a outros que não tinham acesso suficiente ao
ser acelerados com o objetivo de uma mu- leite materno, e para os quais o leite materno
dança social] a situam, depois do “Manifesto poderia ser uma forma de permanecer vivo,
Ciborgue”. E, pelo que pude ler, não me parece o que constitui um ato realmente importante
que você gosta muito desse lugar, mas você de solidariedade no sentido mais material da
mantém um pé dentro e um fora, como se partilha dos fluidos do nosso corpo. Nós com-
flutuasse ao redor, se mantendo a par do que partilhamos sangue, compartilhamos leite,
se passa nele. compartilhamos bactérias. No seu caso, uma
DH: Sim, eu entendo completamente. jovem mulher e seu bebê, compartilhar leite
Vinciane Despret [filósofa e psicóloga belga] com outras mulheres e seus bebês, que você
– e é difícil nomear sua área, pois ela é muito provavelmente nunca conheceu pelo nome, e
móvel é inclusiva, assim como eu... – me en- que não tem ideia de quem bebeu aquele leite,
sinou a trabalhar pelo que amamos e a traba- implica que você está ligada a eles, que você
lhar por adição e sintonia, não por subtração fez parentes. Esta é uma prática realmente
e proibição. Veja, eu amo ser um animal, não forte de fazer parentes. E essa prática de fazer
posso dizer o quanto sou feliz por ser um ani- parentes se ramificou para você e para mim
mal. E eu realmente gosto de ser uma mamífe- ao ler sobre ela. E também ao me lembrar de
ra, sou incrivelmente feliz por ser um animal outras coisas que sei sobre leite.
fêmea. Refiro-me a um certo tipo de diversão Por exemplo, que meu marido, quando
em nosso corpo e também a levar a sério a dor, era adolescente, desenvolveu mamas que pro-
a artrite, o sofrimento, levar a sério a dor dos duziam um pouco de líquido, e que isso não
outros, como o fato de um amigo estar com é incomum em meninos adolescentes. E que
um câncer metastático. Esse modo de viver no seu pai, que era médico, o chamou num canto
mundo mortal, viver e morrer junto, é o único e disse: “Sabe, isso também aconteceu comigo
lugar em que eu sempre quis estar. quando eu era criança e é totalmente normal,
Pois bem, você e Dora doaram leite, já que não se preocupe, basta usar uma camiseta sol-
ambas doaram esse leite. E vocês doaram leite ta se te incomodar”. Trata-se da partilha de
de mamas, mesmo dessa maneira. Também CC: Eu colocava minha filha em um seio
me lembro do meu fascínio quando soube do e, no outro, a bomba de ordenha.
leite que as baleias e outros mamíferos mari- DH: Exatamente. Então, sua filha se
nhos produzem, e da maneira como os cien- alimentava enquanto te estimulava?
tistas ordenhavam as baleias para obter amos- CC: Sim.
tras de seu leite. Pense nisso por um minuto: DH: E ambas bem alimentadas, sortu-
no que é necessário para obter uma amostra das e saudáveis e produzindo leite...
de leite de uma baleia enquanto ela nada... CC: E muitos hormônios bons também!
Não é como ir ao galpão de leite onde está uma DH: Portanto, há máquinas envolvidas,
vaca holandesa. Então, como bióloga e mamí- e seu leite, presumo, teve que ser refrigerado
fera, estou ligada a essas baleias e seus filhotes e provavelmente testado quanto à presença
e a esse leite. A toda essa materialidade, à sua de algum vírus preocupante, o que exige uma
suculência e o seu o significado. Eu chamo isso biologia molecular avançada. E depois a do-
de material-semiótico, uma abreviação quase ação de leite envolveu cruzar uma linha de
técnica, mas na verdade trata-se da suculência classe bem delicada. De toda forma, o ato de
significativa de viver e morrer junto, e de saber compartilhar leite é cosmopolita, mundano.
como estamos realmente conectados. Da mes- Totalmente. Nos meus termos, você esteve no
ma forma, sou fascinada pelas histórias sobre meio de um mundo biotecnológico, um mundo
o modo como camundongas e ratas cuidam natural-cultural. Isso não acontece apesar da
de seus filhotes. Pelas pequenas tetas, pelas ciência, mas não se trata em nenhum momen-
grandes baleias, e depois por você com esse to de glorificar o pós-humanismo. Não tem
banco de leite comunitário. Então, veja, esse é nada a ver com Elon Musk indo para o espaço
um modo expansivo de fazer parentes e inclui em seu pequeno pênis, seu exopenis.
dispositivos. Presumo que você se ordenhou CC: Exatamente! Há uma empresa, acho
com um desses pequenos aparelhos de sucção, que nos Estados Unidos, chamada Biomilq.
que precisava de garrafas, de formas de coletar Você já ouviu falar dela?
seu próprio leite.
DH: Acho que não.
CC: Eu acho que essa é a armadilha,
porque se trata de uma empresa que produz
leite a partir de células, como no processo de
produção de carne artificial. Leite em tanque,
produzido a partir de células de leite humano.
E é possível customizar o leite, torná-lo mais
asiático, mais afro-americano, e eu acho isso
preocupante.
DH: Bom, esse é mais um, para usar um
termo tradicional, cercamento [enclosure of
the commons] realizado com o propósito de
exploração de mão de obra e da produção de
valor que visa o lucro. Não há nada de erra-
do com o leite sintético. Acredito que o leite
sintético pode ser uma peça muito valiosa do
quebra-cabeça. Não tenho nada contra ele,
mas contra o cercamento e a realocação das
capacidades do corpo visando lucro. Sou ver-
dadeiramente anticapitalista. O Biomilq como
substância não é a violação, a violação é o
dispositivo de produção e reprodução que visa
o lucro, que não vai aliviar substancialmente a
desigualdade na reprodução em geral, que não
vai tornar essas mães ricas.
CC: Sim, e [no caso das fórmulas] há
também um monte de vacas escravizadas em
situações precárias envolvidas. JF: Marx falou sobre uma mudança me-
DH: Posso imaginar. Voltamos nova- tabólica operada pelo capitalismo.
mente ao mundo da plantation, àquele tipo de DH: Eu concordo. Acho que Marx con-
deslocamento seguido de cativeiro. Vivemos tinua sendo um dos pensadores mais inova-
em múltiplos sistemas de cativeiro. Há uma dores, que seu materialismo era metabólico,
conectividade entre esses sistemas de cativei- como você disse, não abstrato.
ro, entre os mundos carcerários em geral e os JF: Minha última pergunta é uma pro-
mundos de recintos, incluindo, é claro, as pri- vocação. Sua obra por muitos anos foi pouco
sões. Não sou vegana, embora esteja cada vez traduzida no Brasil. Isso talvez se deva a um
mais próxima de sê-lo, e não sou por muitas caráter ainda refratário de certa parcela da
razões, que incluem o respeito pelos trabalha- academia brasileira à interdisciplinaridade,
dores animais que vivem com os trabalhado- o que vem mudando com as gerações mais
res de fazenda e produzem leite, que vivem e jovens. Não por acaso, agora há um esforço de
morrem juntos, inclusive ao matar. Essas são tradução e publicação de diversos livros seus,
formas que eu penso que merecem um futuro, que devem sair nos próximos meses. Apesar
pois não se trata da indústria leiteira. Bem, disso, você costuma ser identificada como filó-
é complicado, porque quem trabalha para a sofa. Como você situa a sua obra em relação à
indústria de laticínios vive à margem. Traba- Filosofia, já que parece inapropriado reduzi-la
lha horas incrivelmente longas, e a maioria apenas à disciplina?
de fato se importa com seus animais. Penso DH: Bem, eu olhei para essa pergunta
que é realmente importante não demonizar os esta manhã e também ontem à noite, e pensei
pequenos produtores neste conjunto de histó- que era difícil, porque em certo sentido, não
rias. Mas o dispositivo em que todos nós esta- tenho o direito de ser chamada de filósofa,
mos contidos na produção de leite não é um não tenho um diploma avançado na área, por
dispositivo para a geratividade de que estamos exemplo. Portanto, do ponto de vista discipli-
coletivamente falando hoje. nar, na universidade, sou uma filósofa com “f”
minúsculo, no sentido de que tento pensar
profundamente com os outros e cultivo uma de não ser levada a sério. Portanto, isso tam-
espécie de amor ao pensamento, aos moldes bém não funciona. E eu não sou de fato uma
de Hannah Arendt, de amar “sair em visita” escritora de ficção. Vejamos, por exemplo, as
[Em suas Lições sobre a filosofia política de “Camille Stories”, elas são um bom roteiro,
Kant, Arendt escreveu que “pensar com uma um bom esboço para contar histórias, mas, na
mentalidade alargada significa treinar a ima- minha opinião, a narrativa mesma é bem fraca
ginação a sair em visita”]. Nesse sentido, sou como ficção. Conheço muitos escritores de fic-
uma filósofa, mas não sou uma Filósofa. E aí, ção, inclusive iniciantes, que são muito melho-
às vezes, sou chamada de bióloga. Bom, eu res. Por outro lado, acho que tenho um ótimo
tenho um doutorado em biologia molecular e roteiro ali. Bom, veremos, mas não mereço o
desenvolvimento celular, portanto, tenho um direito de ser chamada de escritora de ficção.
pouco mais de direito a esse rótulo. Por outro Então, o que sou eu no sentido discipli-
lado, não pratico biologia há 50 anos! Isso é nar? O que eu sou, e isso é a mais absoluta
muito tempo. É verdade que leio relatórios verdade, é não disciplinar. E tenho a vantagem
de pesquisa até certo ponto, mas de forma de trabalhar na Universidade da Califórnia,
muito seletiva. De fato, não há nenhum sen- onde tenho um emprego desde 1980 em um
tido autêntico que me deixe confortável ao programa de pós-graduação que é deliberada-
ser chamada de bióloga. Mas me sinto muito mente não disciplinar. Os professores lá vêm
confortável em ser chamada de contadora de de várias disciplinas. No meu caso, da biolo-
histórias. gia, e todos nós trabalhamos com estudantes
Contudo, muitas pessoas acham que que precisam do que sabemos, mas nossa
contar histórias não é uma ocupação séria, que principal tarefa é a de ajudar esses estudantes
não envolve uma disciplina séria, no sentido a encontrar os recursos de que precisam para
de conhecimento disciplinar, como o de filo- realizar o trabalho deles. E depois eles arran-
sofia e de biologia. Por isso, ser chamada de jam empregos em vários lugares, incluindo de-
contadora de histórias, especialmente quando partamentos de Antropologia, departamentos
se é uma mulher velha, pode ser uma forma de Estudos Críticos de Raça ou de Estudos de
Mulheres ou de Sociologia e assim por diante. que destinou fundos a instituições públicas e
Portanto, eles têm que ser muito bem forma- privadas e empréstimos a estudantes de bai-
dos para conseguir esses empregos, e somos xa renda, entre outras ações] e outras fontes
muitos sérios em relação a isso. Mas nosso de riqueza me permitiram, enquanto parte
compromisso é não disciplinar. de uma família de classe média baixa, obter
Então, eu tive o apoio social, incluindo uma educação avançada em ciências em uma
um salário muito bom, um ótimo plano de instituição de prestígio mundial, no meu caso,
aposentadoria e um bom plano de saúde que Yale. Tive também uma ótima bolsa de estu-
me permitiram ser não disciplinar. Não foi só dos na faculdade.
uma escolha, sabe, não decidi simplesmente Trabalhei, é claro, fui garçonete, fiz mui-
que seria bom ser não disciplinar. Não, eu tive tas coisas, mas tive uma ótima bolsa de estu-
o dispositivo da Universidade da Califórnia dos que me permitiu me graduar triplamente
apoiando essa prática de não disciplinaridade. em filosofia, literatura e biologia. Então, me
E também teve o Sputnik [o lançamento do beneficiei do imperialismo americano e conse-
satélite Sputnik pela União Soviética em 1954 gui uma bolsa de estudos Fulbright e fui para
levou os EUA a investir consideráveis recursos a França, para estudar filosofia evolucionária
em educação científica de modo que o país no Teilhard de Chardin. E muitas coisas se
pudesse rivalizar com os comunistas] e o di- seguiram a isso. Estudei humanismo evolucio-
nheiro dos Estados Unidos depois da Segunda nário, e como o trabalho da Terra é produzir
Guerra Mundial, que foi gasto para educar o o homem como seu maior produto. Estudei
cérebro de uma garota católica de origem ir- os homens que desenvolveram essas filosofias
landesa, que de outra forma teria acabado com evolucionárias do homem como produto do
10 filhos e se tornado uma ativista antiaborto. trabalho da Terra. Assim, antes de me tornar
Portanto, não há dúvida de que a Lei de Edu- uma feminista, fui muito bem educada no
cação da Defesa Nacional [a “National Defense sistema de mitos da produção evolucionária
Education Act” legalizou, a partir de 1958, o patriarcal do homem. Assim, quando olho
financiamento federal da educação superior, para Elon Musk e Jeff Bezos e seus exopenis,
entendo a continuidade deste mito do trabalho
da Terra para produzir velocidade de fuga em
um exopenis. O que estou tentando dizer é que
me beneficiei da riqueza organizada dirigida
à educação e, portanto, me foi permitido ser
não disciplinar e aproveitar todas essas opor-
tunidades para estudar, inclusive pelo estudo
disciplinar.
JF: A partir de agora, posso me referir
então a “Donna Haraway, a autora não disci-
plinar...”
DH: [Risos] Ninguém iria entender! Mas
nós, por enquanto, compreendemos. A pro-
pósito, uso rótulos diferentes em contextos
diferentes, a depender do trabalho a ser feito
nesse contexto. Assim, diante de alguns pú-
blicos, direi que sou bióloga, e estarei à altura
dessa expertise. Por vezes, estarei à altura da
expertise em filosofia. E outras vezes direi:
“Esperem um pouco, não tenho direito a isso”.
Depende inteiramente, bem, não inteiramen-
te... É uma decisão situada, de quais rótulos
usar em relação a si mesma.
JF: Entendo. Como trabalho com filoso-
fia, costumo chamá-la de filósofa.
DH: Dá uma certa autoridade. Sim, por
que não?
CC: Você é muito e cada vez mais lida e que estejam muito atentas ao fato de que, na
entre artistas no Brasil. A artista Jenny Holzer pandemia, globalmente, as exigências de pro-
tem uma frase célebre que diz “Proteja-me do dutividade não foram reduzidas. A capacidade
que eu quero”. Na pandemia, artistas mulhe- de produtividade foi retirada das cuidadoras,
res implicadas no cuidado – de filhos, pais, também conhecidas como mulheres, especial-
idosos... – ficaram ainda mais invisibilizadas mente das chamadas trabalhadoras essenciais,
do que já eram por terem filhos, ao passo principalmente mulheres não brancas que ain-
que muitos dos artistas sem filhos tomaram da são obrigadas a sair e trabalhar na indús-
a pandemia como uma oportunidade para tria hoteleira e em tantos outros lugares, como
produzir. Tomando de empréstimo a afirma- faxineiras, cozinheiras e assim por diante. A
ção de Holzer, como você acha que podemos demanda para produzir não foi diminuída na
nos proteger do modelo sujeito-homem-bran- pandemia, mas a capacidade de apoiar essa
co-neoliberal-não-implicado-no-cuidado que produtividade foi reduzida, como os cuidados
nos ensinaram a desejar, e o que a arte tem a com as crianças e os subsídios sociais para que
ver com isso? as pessoas que precisem ficar em casa possam
DH: A última parte da pergunta é fácil, ficar.
pois as práticas artísticas têm tudo a ver com o Esse dinheiro foi disponibilizado apenas
que acontece. Não me surpreende, por exem- em parte. Por exemplo, as taxas de pobreza
plo, e vejo isso na sua doação de leite, nas prá- nos Estados Unidos não subiram durante os
ticas artísticas de Natalie Loveless em torno meses mais intensos de pagamentos públicos
da maternidade e do cuidado, nos múltiplos de auxílio. E houve uma moratória de despe-
casamentos e na ecossexualidade de Elizabeth jo para que os proprietários não pudessem
Stephens e Annie Sprinkle. Não é nenhuma despejar os locatários por um período consi-
surpresa para mim que muitas feministas que derável de tempo. Houve algumas políticas de-
são pró-vitalidade, não pró-vitalidade, mas centes que importaram, mas que foram com-
pró-florescimento, sejam artistas e façam uso pletamente inadequadas. Assim, por exemplo,
de tudo, inclusive das ciências, para fazer arte, em relação às acadêmicas que eu conheço,
minhas colegas, mesmo aquelas com maridos e idosos a preços acessíveis sejam universal-
ou parceiros decentes, que são inteiramente mente disponibilizados durante pandemia. E
a favor de cuidar de crianças, e que fizeram esse pode ser um modelo para como agir após
seu melhor para serem seus iguais, bem, não a pandemia.
há igualdade. Vejamos a questão da próxima Muitos tipos de estratégias boas podem ser
avaliação de 10 anos de suas publicações. No inventadas durante a pandemia e desenvolvi-
máximo, elas conseguirão um ano de adia- das depois. Dessa forma, os movimentos de
mento nessa avaliação, mas os níveis de pro- solidariedade são, penso eu, parte da respos-
dutividade exigidos ainda são realmente altos ta. Continuar a fazer arte, lutar por bolsas de
e os meios para produzir são muito reduzidos. estudo, fazer reuniões comunitárias, reuniões
A interruptibilidade das mulheres é um de conselhos municipais e eleições locais,
fato, as mulheres podem sempre ser interrom- divulgar os encargos desiguais do cuidado. E
pidas, seja pelas necessidades de uma pessoa valorizar o cuidado, que não é apenas de um
idosa ou por terem um filho ou um parceiro. fardo, para que o cuidado se torne um traba-
E as feministas sabem disso, fizemos uma lho valorizado. Na verdade, é um privilégio
ótima análise a esse respeito. Muitas pessoas cuidarmos uns dos outros. Precisamos agir
atuam nesse sentido, fazemos muito barulho. para fazer do cuidado uns com os outros algo
Nós, quer dizer, acadêmicas como eu, que que nos encha de vida em vez de nos drenar.
estou aposentada e, portanto, não tenho que Bem, isso pode ser feito e envolve comparti-
suportar as consequências dessa afirmação, lhar as partes difíceis assim como as partes
mas acadêmicas como eu poderiam se recusar boas. Portanto, não se trata de algo exatamen-
a dar aulas, a menos que o acesso ao cuidado te misterioso. Acho que não nos falta saber o
infantil seja disponibilizado a todos os pro- que precisamos fazer. Penso que nosso desafio
fessores, também professores universitários, é mais saber como manter a coragem diante
inclusive aqueles sem posições privilegiadas. uns dos outros, como permanecermos presen-
Poderíamos nos recusar a voltar às aulas a me- tes, como nos tornarmos mais fortes. Acho que
nos que moradia e cuidados para crianças não nos falta o conhecimento sobre o que é
E temos grandes modelos e planos e possibi- gosto que haja financiamento público para
lidades de políticas em todo o mundo. Mas fazer essas explorações e quero que elas sejam
como construir nossos movimentos quando públicas. Parte do que me ofende é a privati-
eles são tão fracos, como conectar movimentos zação desses projetos, porque acho que eles
que estão acontecendo em todos os lugares, são realmente interessantes. Sou a favor da
mas que não sabem uns sobre os outros? E astronomia, da cosmologia, da exploração e
como manter a coragem? – eu não sei vo- de tudo o mais. Mas não posso concordar com
cês, mas o medo e a depressão são realmente uma ideologia de fuga da Terra. Nós temos só
tentadores hoje em dia. Precisamos nos apoiar uma Terra, e é nossa tarefa cuidar dela. E isso
psicologicamente no meio disso tudo. é parte de cuidar uns dos outros, incluindo o
MF: Eu gostaria de fazer uma última per- veículo de exploração... E prefiro que se gaste
gunta. Você disse uma vez que o ciborgue está dinheiro nisso do que em drones militares,
incluído no grande canil das espécies compa- por exemplo. Acho que pode haver algo como
nheiras. Então eu gostaria de perguntar se es- a exploração pacífica do espaço, uma explora-
tes robôs que estão agora no planeta Marte, as ção desmilitarizada. E entendo que isso é uma
máquinas chinesas e as máquinas americanas, luta. Portanto, estou interessada nessa luta. E
estão incluídos neste canil. Eles são espécies há muito dinheiro para isso, se desmilitarizar-
companheiras? O que você pensa sobre estas mos os exércitos globais. Há dinheiro de sobra
técnicas e tecnologias espaciais incríveis? para tudo. Há muita riqueza no mundo para
DH: Sim, elas são espécies companhei- cuidar deste planeta.
ras, e nem todas as espécies companheiras MF: Muito obrigada.
são amigáveis. Essas máquinas são ao mesmo DH: Você acha que sua editora vai ficar
tempo amistosas e não amistosas. Elas são feliz?
complicadas. Acho que os exopenis de Jeff MF: Certamente vai ficar muito feliz. Foi
Bezos e Elon Musk... isso não! O veículo explo- Foi um verdadeiro prazer conhecê-la e con-
rador de Marte e a sua versão chinesa dele e versar com você. Aprendi tanto em uma hora.
tudo mais, eu meio que gosto deles. Eu até Muito obrigada.
DH: Bem, muito obrigada também. Eu
gostei muito. E foi uma grande honra para
mim que todas vocês tenham tido tempo para
fazer esse trabalho.
SPECIES
PANFLETO DE ANTROPOLOGIA ESPECULATIVA

AGO
2021

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