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Deu MATCH! Imbricações entre Tinder, Capitalismo Digital e Lógicas do Consumo1


Rosa Fonseca2
Marcos Hiller3

Resumo: Baseados em pesquisa bibliográfica e empírica, problematizamos a datificação das


interações amorosas em aplicativos de relacionamento. A investigação aponta à intensificação das
lógicas mercantis no cotidiano das relações, com incorporação da racionalidade algorítmica na
administração da vida amorosa. Nota-se tensão entre o ideário neoliberal e o ideal romântico em
vigor, o que colaboraria para engajar os usuários na procura pelo par ideal enquanto seus dados são
intensiva, extensiva e opacamente expropriados e mercantilizados.
Palavras-chave: Comunicação e Consumo; Produção de Subjetividades; Aplicativos Digitais.

Introdução
No contemporâneo, a mídia desempenha papel preponderante na produção de
subjetividades, oferecendo produtos, serviços e diretrizes comportamentais que funcionam como
um guia para atendimento a perfis de comportamento bradados como atuais e desejáveis (Castro,
2014). Para compreender esta proposição de modo abrangente, é necessário, entender por mídia
não apenas os meios de comunicação consolidados. De fato, a linha que separa veículos
mainstream de outros objetos sociotécnicos, como games, dispositivos wearable e aplicativos
digitais, se torna progressivamente opaca (Hepp, 2020). Isto considerado, Tinder4 e congêneres são
aqui considerados parte integrante do sistema midiático.
Assim sendo, os aplicativos de relacionamento colaborariam para promover determinados
valores e interesses de mercado em uma esfera da vida humana tradicionalmente considerada como
‘fora’ da vida econômica: os relacionamentos. Partindo de tais ideias, indagamos quais modos de
ser e viver seriam promovidos com a popularização dos aplicativos de relacionamento. Após dez
anos do Tinder, o que o prestígio alcançado por tais aplicativos revelaria sobre os negócios e a
comunicação no capitalismo digital?

1
Artigo submetido ao GT 19: Comunicação Digital, Redes e Processos, no congresso XVI Congresso ALAIC.
2
Doutoranda e mestre pelo Programa em Comunicação e Práticas do consumo da ESPM SP (Brasil), Rosa Fonseca é professora e
pesquisadora membro do Grupo CNPq de Pesquisa em Comunicação, Consumo e Subjetividade - rosa.fonsesca@espm.br
3
Doutorando e mestre pelo Programa em Comunicação e Práticas do Consumo da ESPM SP (Brasil), Marcos Hiller é professor e
pesquisador membro do Grupo CNPq de Pesquisa em Comunicação, Consumo e Subjetividade - marcos.hiller@espm.br
4
Segundo a descrição da marca, o Tinder é o aplicativo de relacionamento mais popular do mundo. Mais em:
https://tinder.com – Acesso em: 07.08.2022.
2

Além de denúncias sobre relacionamentos mais superficiais, com mais frustração e solidão
e menos responsabilidade afetiva (Turkle, 2017), surge a suspeita de que a gradativa conformação
aos parâmetros de apresentação e seleção fornecidos pelos aplicativos acabaria por modular os
comportamentos a uma lógica algorítmica (Sodré, 2018). Ou seja: passaríamos a buscar parceiros
românticos e classificá-los de acordo com premissas e critérios de data analysis.
Neste artigo, sugerimos que assim como os sistemas de inteligência artificial partem de
volumes gigantescos e abrangentes de dados classificados com base em relativos poucos
parâmetros binários (como detalharemos adiante), os usuários do Tinder seriam convocados a lidar
com um conjunto imenso de matches potenciais (em uma lógica de quanto mais opções, melhor) e
a executar rápidos e sucessivos agrupamentos do tipo Sim/Não com base em julgamentos
superficiais.

Consumindo a utopia romântica


Aludimos ao título de um livro de Illouz (1997) para atualizar a sua discussão sobre amor
e mercado, trazendo à baila o problema da mediação algorítmica a qual os usuários do aplicativos
de relacionamento são submetidos.
Os estudos da autora partem da modernidade, período em que se estabeleceria um novo
regime afetivo. Por séculos, sentimentos e vida amorosa foram assuntos de foro íntimo. Em
decorrência de um pensamento cartesiano hegemônico, o amor era considerado temática de
interesse de humanos tidos como de ‘segunda categoria’ (Hooks, 2021), como: mulheres, jovens,
crianças, artistas e populações representadas como frágeis ou selvagens. O lugar do amor no
capitalismo (ou a falta de lugar) preocuparia pensadores como Adorno (1951), que externava
ceticismo quanto às possibilidades do amor no mundo utilitário. Em suas palavras: "Amar significa
ser capaz de não deixar a espontaneidade ser sequestrada pela pressão onipresente da intermediação
da economia" (p. 29). Contudo, ao contrário do que os críticos supunham, o mercado não entraria
em choque com o amor, mas tentaria produzir e propagar um tipo de amor favorável ao seu avanço:
o amor romântico.
Convém sublinhar a ausência de definição para o amor na bibliografia sociológica, como
se fosse um tópico ‘pouco científico’ (Hooks, 2021). O termo é empregue neste artigo, na
dificuldade de localizar substituto à altura. Falar de afetos, relacionamentos afetivos ou
relacionamentos amorosos tenderia a incluir a fraternidade, o amor parental e a amizade, fora do
3

escopo da nossa análise. Em geral, as literaturas recorrem ao termo “amor romântico”, contudo,
este é um conceito circunscrito, criado para descrever o tipo de aspiração amorosa difundida a
partir do século XIX na Europa e EUA5.
Como modelo de relação, condensam-se no amor romântico paixão sexual e afeição
emocional e planos de constituição de um ideal de família burguesa patriarcal. Como prática
cultural, o amor romântico corresponderia a um repertório de discursos, ações e rituais segundo os
quais a emoções amorosas seriam evocadas, percebidas, transmitidas e intensificadas (Costa,
2005). Como ideal, o amor romântico supõe a comunhão entre os parceiros, um estado em que os
amantes se tornariam uma só unidade, em consequência de perfeita harmonia e
complementariedade, levando a um estado de júbilo e perfeição comparáveis ao nirvana religioso.
Até o século XIX, o ideário em torno do amor não se ligava a valores como
imprevisibilidade e emotividade; ao contrário, o amor surgiria da convivência. O amor romântico
emerge como escape emocional, um lugar simbólico onde os sujeitos dariam vazão a impulsos
interditos em um mundo onde imperam relações impessoais, competitividade e disciplina. O amor
romântico constituiria fonte geradora de utopias necessárias à manutenção simbólica e material do
capitalismo. Os amantes se veriam tomados por grande energia criativa, se sentindo como
revolucionários vivendo experiências que escapam à ordem cotidiana. Entretanto, para o status
quo, a revolução promovida seria praticamente inofensiva.
No vértice entre amor e mercado, emerge a industrial cultural, estabelecendo-se um ciclo
no qual o ideário romântico aquece o mercado e o mercado alimenta o ideário romântico. Se as
obras literárias foram responsáveis pela difusão de certos modelos de comportamento, no
contemporâneo, tal função seria desempenhada pela mídia, onde mercadorias materiais e
simbólicas seriam ubiquamente ofertadas para promover o ideal romântico. Nos rituais românticos,
bens e símbolos ajudariam a transportar os amantes a um mundo fantástico onde constrangimentos
e fragilidades seriam temporariamente suspensos. Paradoxalmente, para ‘escapar’ da enfadonha
normalidade, os amantes são incentivados a repetir o que fazem todos os dias: consumir bens,
serviços, imagens e ideias.
Paralelo ao amor romântico, emergiria o ‘eu’ romântico: uma subjetividade afeita à
demonstração pública de sua sensibilidade e singularidade (Sibilia, 2016). A mídia trataria de

5
Reconhecemos que o recorte apresentado se confunde com a história social dos relacionamentos na Europa e, mais
tarde, nos EUA, tomados aqui em decorrência de sua hegemonia cultural.
4

posicionar a exibição calculada de sentimentos, gostos, temperamentos e aspirações como um


comportamento cool, sempre alicerçado em mercadorias para projetar impressões e seduzir.
Paulatinamente, a exibição de uma essência sensível passaria ser promovida também entre
empresas e produtos. Se antes leite era comodity vendida a litro, com o passar do século XX, até
marcas de leite teriam identidade. Mais do que leite, vendem-se ideários afetivos de amor,
parentagem, pureza.
Ao invés de tentar proteger o mercado dos perigos da emotividade, o mercado absorveria o
ideário aspiracional romântico e o aplicaria ao marketing. Ao personalizar mercadorias e empresas,
estas são discursivamente postas em paridade com pessoas. Se estabeleceriam aí as bases culturais
para duas ambiguidades contemporâneas: o "capitalismo afetivo" (Illouz, 2007) e o sujeito
neoliberal, entendido como alguém que se entende e se administra como se fosse uma empresa
(Dardot & Laval, 2017).

Sociabilidade algoritimizada
A propagada afirmação de que “dados são o novo petróleo” sugere que a exploração de
dados teria se tornado tão ou mais lucrativa do que a exploração de petróleo. Se assim for, podemos
assumir que, assim como a riqueza e poder da indústria petrolífera derivam de uma sociedade
carbono-dependente, o ascendente valor dos dados dependeria de uma sociedade ‘dadocêntrica’.
Não espanta que autores críticos alertem à centralidade dos dados. Em comum, denunciam
que o capitalismo contemporâneo teria encontrado um modo de extrair valor até das atividades
cotidianas, agora monitoradas e transformadas em dados que significam dinheiro e poder. No atual
sistema, improdutivo, especulativo e datificado, o abstrato se consolidaria como mercadoria e
principal fonte de capital.
Para capturar os dados, emerge um imenso ecossistema de mineração e análise composto
por algumas das corporações mais ricas e influentes do planeta – que Van Dijck et al. (2018)
denominam de ecossistema de plataforma. Para além do campo econômico, tal sistema se
entrelaçaria às estruturas sociais, culturais e políticas. Deste modo, a datificação não se trata de um
fenômeno técnico-econômico apenas. Os dados capturados são utilizados para calibrar mensagens
5

corporativas de todo o tipo (publicidade, propaganda política etc.), prever tendências e promover
produtos e ideias, em um círculo vicioso orientado a promover determinados comportamentos6.
É provável que os executivos do Match Group, grupo empresarial detentor do Tinder,
tenham percebido que valeria a pena descontinuar o antigo site de relacionamentos, Match.com,
para apostar em um modelo de negócios no qual os dados dos usuários fossem um capital em si
mesmo.
A relevância dos dados ajudaria a esclarecer por que, em 2020, o valor do Match Group em
bolsa chegou a USD160 bilhões7, enquanto a receita total anunciada era de pouco mais de um
bilhão8. Nada mal, se considerarmos uma companhia sem patrimônio tangível, com muitos
consumidores não pagantes, cuja rentabilidade viria de microtransações9 e assinaturas10 entre USD
4 e 20/mês11. Ao que tudo indica, o valor financeiro de empresas como Tinder adviria sobretudo
da exploração e mercantilização massiva, acelerada e não transparente dos dados. A tarefa fulcral
desses negócios seria criar ofertas atraentes o suficiente para manter as pessoas conectadas gerando
mais e mais dados (Fonseca, 2019).
Analisando os termos de uso, conclui-se que as corporações acessariam uma série de dados
durante o uso dos aplicativos, inclusive de outras aplicações e dispositivos conectados à internet -
embora não detalhem quais, nem como. Alguns dados seriam obtidos com os aplicativos apenas
instalados, sem uso - e nem mesmo seu apagamento garantiria a interrupção da vazão de dados.
Mesmo que não devamos assumir que todos os cadastros correspondam a usuários ativos,
em 2016, o Tinder teria chegado aos 100 milhões de cadastros12. Não localizamos atualizações,

6
Pode soar distópico, mas um escândalo envolvendo o Facebook demonstrou que dados captados e comercializados
pela corporação geraram perfis sobre as preferências de bilhões de pessoas que passaram a receber propaganda não
declarada e personalizada para influenciar a campanha presidencial dos EUA de 2016 e o plebiscito sobre o Brexit.
7
Fonte: https://glamurama.uol.com.br/notas/boom-de-matches-durante-a-quarentena-faz-valor-do-match-group-
dono-do-tinder-disparar-na-bolsa – Acesso em: 12.05.2022.
8
Fonte: www.affde.com/pt/tinder-usage-statistics-and-revenue.html - Acesso em: 11.05.2022
9
Microtransação é o nome dado à comercialização de bens virtuais, vantagens, exclusividades, serviços ou
informações dentro de aplicativos digitais e em jogos on-line. Os itens são de baixo valor (chegam a custar centavos)
e a compra não é obrigatória, mas constituem objeto de desejo por elevaren a competitividade e status dos
compradores.
10
Menos de 10% do total de usuários ativos do Tinder seriam de assinantes pagos. Mais em:
www.knowyourmobile.com/pt/news/tinder-stats-facts - Acesso em: 12.08.2022.
11
Com o tempo, os valores das assinaturas passaram a ser mais altos para pessoas a partir dos 30 anos, sugerindo
interesse em desestimular a presença de adultos de baixo poder aquisitivo. Mais em
www.tudocelular.com/curiosidade/noticias/n128561/tinder-nao-quer-pessoas-mais-velhas.html - Acesso em
12.08.2022
12
Fonte: www.tudocelular.com/android/noticias/n65917/tinder-atinge-100-milhoes-downloads.html - Acesso em:
10.08.2022
6

mas é certo que os números aumentaram, até porque a pandemia potencializaria a sociabilidade
digital. Ainda que partamos de 100 milhões de cadastros, o montante equivaleria à quase metade
da população do Brasil, sexto país mais populoso do mundo.
Enquanto multidões confiam seus dados a aplicativos como o Tinder, inflam-se os balanços
financeiros de empresas que exploram dados e as bases dos sistemas de inteligência artificial por
trás das plataformas. A despeito de mensagens que afirmem o contrário, esses sistemas se baseiam
em modelos estatísticos - e não exatamente no funcionamento do cérebro humano. Isso porque o
cérebro é capaz de produzir impressionantes outputs a partir de inputs escassos. Como exemplo
paradigmático, uma maçã caiu da árvore e Newton formulou sua teoria da gravidade. De forma
oposta, sistemas algorítmicos dependem de um volume colossal de inputs para gerar outputs
viáveis.
Para ilustrar como algoritmos podem operar de formas distintas das que supomos,
imaginemos um grupo composto por frutas e outro por caminhões. Diante deles, um sistema
parametrizado para buscar por amarelo ignorará características evidentes aos humanos. Mesmo
quando reconhecem sons e formas, máquinas não observam o mundo. Sua assertividade é
relativa. Ela não deduzem a partir da observação de características imanentes, mas projetam os
parâmetros. O que esses sistemas fazem com notoriedade é criar padrões. Por sua vez, essa
tremenda capacidade de selecionar, categorizar e padronizar se entrelaça a outras estruturas de
poder vigentes (como a estrutura de preços, a burocracia, as leis etc.), instaurando um nova forma
de poder que Issar e Aneesh (2021) chamam de “algocracia”.
Considerando a importância da geração progressiva de dados no cenário ampliado da
economia política, não soa conspiratório supor que os algoritmos do Tinder não sejam tão
programados para facilitar a realização amorosa quanto para manter multidões engajadas no
looping da procura.

Namoro on-line: modos de usar


A partir da moldura teórica acima, procurarmos observar, no campo empírico, como se
realizaria sociabilidade no Tinder. Para isso, realizamos uma entrevista em profundidade13 com um
heavy user14, por anos assinante pago do serviço e entusiasta da ferramenta, que afirma ser “uma

13
Aplicou-se um questionário semiestruturado, composto por 16 tópicos explorados em 40 minutos de conversa.
14
Heavy user é um termo que designa usuários que fazem uso prolongado das ferramentas.
7

das maiores invenções da humanidade”. Nomeado de “usuário T”, o entrevistado é brasileiro


cisgênero, 45 anos, heterossexual, executivo de mercado, condição socioeconômica privilegiada,
morador de uma capital fora do Brasil que tem como estilo de vida viajar pelo mundo, a trabalho e
a turismo.
Comparando os resultados dessa entrevista com testemunhos de usuários de sites de
relacionamento analisados nos estudos de Illouz (2007), nota-se um acirramento do problema da
autodescrição e da gestão da lista de candidatos. Ao contrário do que ocorria anteriormente, quando
os internautas preenchiam infinidades de formulários sobre si, agora, há pouquíssimos os
parâmetros de triagem. No Tinder, são basicamente: idade, gênero, orientação sexual, grau de
instrução e localização. Os usuários podem incluir tags sobre sua personalidade e interesses,
declarar se procuram amizades, relações casuais e/ou relacionamentos sérios e compartilhar seus
perfis em outros aplicativos e redes sociais, como o Instagram e o Spotify.
É possível criar um perfil sem qualquer informação, a não ser uma foto. O corpo, aliás, está
sempre em destaque, presentificado em até seis fotografia que deveriam aludir à essência o ‘eu’
enquanto projetam uma imagem vendável. Tal prática se insere em um contexto cultural onde o
corpo humano se apresenta como um capital físico, simbólico, social e econômico (Goldenberg,
2007).
O problema da autodescrição seria resolvido recorrendo-se à repetição de características
socialmente bem quistas e à exibição de preferências de consumo e marcadores de estilo de vida.
A administração dos candidatos potenciais seguiria a lógica da linha de produção, com mensagens
padrão enviadas a vários contatos.

Figura 1 – tags de personalidade e interesse mais usadas no Tinder (EUA, 2022)


8

Fonte: https://katiehempenius.com/post/tinder-profile-analysis - Acesso em: 12.08.2022

Indagado sobre as estratégias de construção do seu perfil, o usuário T relatou:

Tinder é vendas! E [...] a melhor estratégia de vendas é a verdade [...]. Quanto mais
rápido você transparecer quem é e o que tá procurando, menos tempo vai ter que
ficar no Tinder. [...] Eu falo logo o que eu tô procurando e mostro fotos exatamente
do que eu sou [...], mostro que eu não tenho cabelo, que eu tenho gatos [...], mostro
eu lendo livro na piscina pra mostrar que eu leio livros. Se a pessoa num tá a fim,
ótimo, porque eu num tô no Tinder pra acumular likes; tô pra conhecer pessoas
incríveis! E o jeito mais rápido de fazer isso é mostrar logo o que você quer. É
vendas. Eu num tô construindo uma imagem, eu tô abrindo o kimono. [...] Em uma
das fotos eu tô beijando meu gato na boca. Se a mulher achar nojento, ótimo! Vai
ter mulher que vai pensar ‘que cara legal’, ‘ele gosta de gato como eu’. É o meu
poupa-tempo. [...] Eu não vou me sentir ofendido porque alguém não gosta de mim
[...]. Minha vida é boa o suficiente com o volume de pessoas me dão match! [...]
Não tem estratégia. A estratégia é mostrar o máximo possível no menor tempo
possível.

É curioso que o usuário afirme não usar estratégias enquanto as descreve e se refira à sua
representação na internet como seu “eu” autêntico, “como se esse perfil fosse uma extensão sua
[...] sua identidade [...] um estandarte de si” (Santaella, 2013, p. 43).
Nota-se uma ‘ideologia da compatibilidade’ e como tal crença se afasta do ideal de amor
romântico, um amor que desafiaria toda a lógica, para instaurar-se um cuidadoso cálculo de si e do
par ideal.
9

Instado a nomear o que sente quando há um match15, o usuário T respondeu com o termo
“oportunidade” e explicou: “match significa que alguém gostou do seu perfil, significa que você
num é palhaço.”.
Questionado sobre a seleção das parcerias, enfatizou:
Mulher que não tem nada escrito no perfil, eu nem vejo, tchau. Não dá pra ficar
perdendo meu tempo. Por mais bonita que for, se escrever algo que eu não goste,
esquece. Tinder é pra ganhar tempo! E dou logo uma filtrada na idade e geolocation.
[...] depois é pegar aquele maço de cartas ali e ir uma por uma, não tem jeito.

Classificou a paquera ao vivo como “sacal” e juvenil e afirmou que usa os aplicativos pois
“permitem conhecer mais mulher em menos tempo e de forma assíncrona”. Adicionou: “o Tinder
é espetacular porque pula essa parte de falar com mulher [...] e vai logo pro final.”.
Segundo ele, 99% das experiências na plataforma – a que se refere como “um inventário de
pessoas” - foram “positivas”, “legais” ou “bons negócios”. “Se não der em nada, tô no lucro porque
num tô perdendo nada e vou pra próxima, encontro logo outra coisa.”, completou.
Ao contar sobre suas aventuras românticas, se referiu às mulheres pela nacionalidade:
“americana”, “italiana”, tcheca”, “australiana”, “a moça de Hong Kong” e assim por diante. Afirma
que as pessoas do país periférico onde reside “definitivamente não são sua audiência”, segundo ele,
por “diferenças culturais”. Como ocorre com grifes, certas nacionalidades parecem constituir uma
espécie de fetiche, justificando a predileção e exibição de algumas em detrimento de outras.
Um ponto inquietante foi a prática de planejar suas viagens de acordo com os encontros
articulados:
Eu ligo o Tinder e tem um short list das mulheres que deram like em mim. É ótimo, poupa
tempo! Outra coisa que pro meu estilo de vida é inestimável, é poder me teleportar. Digamos
que eu queira conhecer Israel. Eu uso o teleporte pra ver o inventário de mulheres lá.
Quando sair do avião, pode ser que já tenha alguém que eu sei que vou me relacionar. Quais
as chances de isso acontecer sem o Tinder? Eu teria que ir em bares que os turistas vão e
essas pessoas tinham que estar lá na mesma hora que eu. Tava chegando a um ponto - num
tenho vergonha de dizer – [...] que eu olhava o Tinder pra ver em que cidade achava alguém,
e aí eu ia pra lá.

Em contraste com termos geralmente positivos para se referir ao Tinder, ao falar sobre
tempo de uso, se referiu à ferramenta como “perigosa” e “viciante” e comentou que a média de
matches até conhecer alguém “legal” é de “500 pra um”.

15
Match acontece quando duas pessoas se curtem mutuamente no Tinder.
10

Manter um perfil enquanto se está num relacionamento pode ser perigoso porque você fica
pensando que tem uma lista de gente disponível. A tentação é grande, todas essas portas
que você pode abrir, a um clique de distância. Ter essas mulheres que você sabe que se
investir vai pegar, isso não faz bem pra cabeça. É como ter uma televisão com um milhão
de canais. Afeta as suas prioridades na vida. Para num soar hipócrita: [...] eu ficava direto
no Tinder, enchendo o meu pipeline de vendas. Ter todas essas bolas no ar, mulheres em
várias cidades é um negócio espetacular. [...] Quando eu finalmente achei alguém, parei.
Mas eu voltaria pro Tinder.

No aquecimento da entrevista, afirmou:


Não estou nem aí para os termos e condições de uso, nem li [...]! A equação é ‘o que eu tô
dando versus o que eu tô recebendo’. O que eu já recebi é tão gigantesco, que num faz
diferença. [...] O custo-benefício é inimaginável. [...] Façam o que quiser com meus dados!
(risos)

Por fim, indagado se indicaria o Tinder para uma filha/o, concluiu:

Acho que seria muito ser bom pro meu filho aprender logo as lições difíceis da vida. Quanto
mais rápido, melhor. E no Tinder você toma tombos sem botar muito em risco. Só num
pode virar um vício porque esses apps são feitos pra viciar... Eu tentaria explicar que ele
num precisa mentir no perfil. Se você num tá pegando, o problema talvez num seja que você
pareça alguém que num tem valor suficiente pras pessoas gostarem de você. [...] Se ninguém
gosta de você no app, tem alguma coisa errada que você está manifestando. Então, da
mesma forma que o Tinder usa os dados pra calibrar os algoritmos dele, você pode usar o
Tinder pra se melhorar.

Na visão do entrevistado, estar no aplicativo ajudaria a otimizar a competência emocional,


a alcançar ideais hegemônicos de sucesso e felicidade. É digo de registro que ele não tenha sequer
cogitado uma filha usando o aplicativo.
Destaca-se em sua fala um imperativo de velocidade e um desejo – ainda que
ocasionalmente disfarçado - por ser notado e admirado.
A escolha de parceiras se fundamentaria no cálculo entre compatibilidade, status e
conveniência. Nessa equação, o melhor par seria aquele 1) totalmente de acordo com meus
interesses e necessidades; 2) compatível ou superior ao meu status social e; 3) que não requer
grande comprometimento – de tempo, dinheiro, compromisso afetivo, esforço ou risco.
Como resultado, os aplicativos parece exacerbar a lógica da transação econômica na busca
por parceiros: consolidam o ‘eu’ como mercadoria; destacam preferências de consumo;
contaminam a busca com o problema da eficiência; e atribuem valor econômico aos usuários. Isso
constituiria desvio radical do amor romântico, tido como acontecimento abrupto e inesperado,
11

inexplicável, irracional; acionado após o primeiro contato e independente de conhecimento sobre


o outro (Illouz, 2007).
Contudo, tal fenômeno não coincidiria com declínio no ideal de amor romântico,
continuamente reforçado nos dispositivos midiáticos. De um lado, os dispositivos midiáticos nos
instam a sermos práticos; de outro, a acreditar no amor. Na intersecção dessas convocações, faz o
apelo para usar todos os recursos possíveis na procura pelo amor. À luz da racionalidade neoliberal,
esperar pelo destino pareceria uma atitude tola e antiquada. Na pior das hipóteses, enquanto não se
acha a pessoa 'certa', seria lógico ganhar tempo com as 'erradas'.
Como espelhado nas falas do usuário T, anos de promoção midiática funcionariam para
esmorecer as desconfianças e naturalizar o uso de aplicativos e outras ferramentas digitais, com
consequente permissão, nem sempre consciente, para que uma série de instituições explorem os
nossos dados.

A título de conclusão
Amor e capitalismo constituiriam um casamento bem e mal resolvido. Mal resolvido porque
o amor passaria pela abnegação em função de um bem que transcende ao indivíduo, algo
diametralmente oposto aos valores de individualismo e acumulação que norteiam o sistema capital.
Todavia, uma vez conformado aos parâmetros românticos, o amor contribuiria para fazer girar a
máquina capitalista.
A popularização do Tinder ajudaria a promover a racionalidade neoliberal, sugerindo que
até o imponderável poderia ser gerenciado e melhorado. Simultaneamente, ajudaria a manter vivo
o ideal romântico, acenando permanentemente com a tentação do par perfeito.
Com efeito, ambos os ideários de realização pessoal – neoliberalismo e romantismo –
carregam a impossibilidade da sua realização: o amor não seria perfeito, nem administrável. A
ansiedade por fazer vingar tais promessas colaboraria, a seu turno, para elevar o apelo dos
aplicativos de relacionamento.
Adicionalmente, a popularização de ferramentas como o Tinder se afina ao capitalismo
digital, multiplicando o big data em circulação e inserindo a governança algorítmica em uma esfera
particularmente inquietante da vida: a vida amorosa.
Se alguns parecem navegar relativamente bem nesse mapa simbólico oblíquo e tortuoso
rumo à suposta felicidade, outros talvez ouçam tocar um alerta interno, indicando um equívoco na
12

forma como o amor é mercantilizado. A sensação de que algo está fora de lugar poderia, quiçá,
fomentar fissuras no sistema. Vale questionar: por que o amor seria bradado como um problema a
ser resolvido? Livre da padronização tão cara aos algoritmos e ao mercado, o amor constituiria,
outrossim, potência de emancipação.

Referências

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