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INDÚSTRIA CULTURAL NA ERA DIGITAL: ALGUMAS

APROXIMAÇÕES ANALÍTICO-COMPORTAMENTAIS
MATHEUS GONZALES AFONSO. Universidade Federal Fluminense (UFF), e-mail: gonzales_matheus@id.uff.br
MARIA HELENA SANTOS DA SILVA. Cooperativa Arigó de Psicólogos, e-mail: mh_silva@id.uff.br
ARLEY JOSÉ SILVEIRA DA COSTA Universidade Federal Fluminense (UFF), e-mail: arleycosta@id.uff.br (orientador)

INTRODUÇÃO
Indústria Cultural (IC) é um conceito cunhado por Theodor W. Adorno (1, 2) e um dos pilares de sua
teoria social junto a outros filósofos marxistas da escola de Frankfurt que fugiam do nazismo durante a
Segunda Guerra. Refere-se a aspectos da administração de mercadorias e práticas culturais uniformes
que permitiam avaliar quais formas de informação e entretenimento seriam ou não popularizadas. Em seu

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tempo, buscou compreender esses aspectos estudando as rádios, hoje este referencial teórico permite a
compreensão das mídias da era digital: as redes sociais. Adorno foi um dos pioneiros na exploração dos
efeitos do monopólio cultural, da mercantilização da cultura e de sua comodificação sobre as massas e,
ainda hoje, é fundamental na análise da manipulação das preferências dos indivíduos. Apesar de não
abordarem especificamente as mídias sociais, de modo similar, Glenn (3), Rakos (4), Martone (5) e tantos
outros analistas do comportamento estudaram as metacontingências que mantêm as consequências
culturais e os produtos agregados de uma indústria seletora de determinados padrões comportamentais.

OBJETIVOS Figura 1 - Metacontingência das interações nas redes sociais


Legenda: Diagrama de metacontingência da Indústria Cultural nas redes sociais.
Este trabalho busca: a) explorar as semelhanças entre a teoria adorniana e a analítico-comportamental
e fomentar a interdisciplinaridade nos estudos culturais de mídia; b) analisar a IC como agência de compreendida, sob a ótica da Análise do Comportamento, como uma agência de controle social
controle que incide sobre os comportamentos vinculados à produção e disseminação da mídia atual; c) contemporânea. Observa-se aqui que o uso do termo adorniano de IC ressalta a inerente sobreposição
utilizar metacontingência para analisar as redes sociais e suas consequências culturais. Apresentamos de agências econômicas, governamentais e midiáticas. A recente disseminação da posição da Google
um estudo inicial utilizando-se do referencial analítico-comportamental a fim de analisar como a IC aos usuários sobre o PL das Fake News (12) e seus impactos é um exemplo ilustrativo desta relação de
contemporânea pode homogeneizar a cultura, manipular a opinião pública, a alienando e comodificando. sobreposição de agências.

MÉTODOS DISCUSSÃO
O método envolveu a análise de obras de Theodor Adorno (1, 2) e B. F. Skinner (6, 7) que serviram Anteriormente a este trabalho, analistas do comportamento já conceitualizaram a imprensa (4, 13) e a
para a compreensão do conceito de IC e Agência de Controle. Foi realizada uma busca na literatura mídia (8, 9, 14, 15, 16) enquanto agências de controle influenciadas por outras grandes agências, como a
analítico-comportamental utilizando termos-chave como “Adorno”, “teoria adorniana”, “indústria cultural”, economia e o governo. Propomos que a IC é uma agência de controle por controlar variáveis-chave como
“mídia”, “redes sociais”, “análise do comportamento”, “análise comportamental da cultura”, “analítico- o acesso à informação e entretenimento, e por se caracterizar enquanto um termo abrangente que
comportamental”, “agência de controle”, “metacontingência”. A partir do material encontrado, buscou-se descreve as diferentes formas de produção cultural e contempla as NTIC, não contemporâneas a Adorno.
conexões entre as teorias de Adorno e Skinner. Por fim, utilizamos os conceitos de agência de controle e Destacamos que compreender a agência de controle ressalta sua relação com as contingências
metacontingência, da literatura analítico-comportamental, para compreender funcionalmente a IC e suas econômicas pela materialização das práticas enquanto mercadorias culturais, ou, senão, commodities.
consequências. Vislumbramos convergências epistemológicas entre a teoria adorniana da IC e a teoria analítico-
comportamental sobre cultura. Ambas destacam a influência do controle ambiental na construção e
RESULTADOS manutenção da cultura, ressaltando que a existência de contingências sociais pode ter efeitos prejudiciais
A literatura encontrada demonstra amplo emprego do conceito de IC, majoritariamente compreendido sobre a autonomia e a expressão individual. Enquanto Skinner abordou a falta de contingências sociais
como uma forma específica de administração das mercadorias culturais. Seus efeitos sobre as massas reforçadoras e a alienação resultante, Adorno enfatizou a padronização, homogeneização e manipulação
empreendem uma relação de subordinação entre controladores e controlados. Estes, expostos a das preferências culturais pela IC. Ambos adotam uma abordagem crítica à manutenção de contingências
contingências de consumo de informação de forma deliberada e irrestrita, podem não discriminar a sociais coercitivas. Adorno considera a IC como parte integrante do modo de produção capitalista e da
censura ou os vieses daquilo que consomem (1), tampouco possuem mecanismos de contracontrole mercantilização da cultura, ao passo que Skinner destaca que as agências de controle são influenciadas
eficazes (8). por contingências sociais, incluindo econômicas e políticas, que podem reforçar comportamentos que
Ao engajar com um conteúdo específico, o usuário das redes fornece informações de sua sensibilidade mantêm as estruturas de poder e controle social. Essas convergências proporcionam uma base sólida
aos reforçadores e, com isso, como propôs Adorno, permite a criação de categorias culturais A ou B (e.g. para a compreensão crítica da cultura contemporânea e abrem espaço para o diálogo conceitual.
vídeos de dança; vlogs de viagem). O produto de sua interação (data) possibilita que o algoritmo aja Esta primeira aproximação aponta as conexões teóricas e evidencia a possibilidade de integração
como ambiente seletor das categorias de consumo, que são organizadas não por sua topografia, e sim, conceitual entre redes sociais, IC e agência de controle. Por exemplo, mídias, cultura e redes sociais são
de acordo com a sua função classificatória e estatística dos consumidores A ou B, tornando-as uma compreendidas como IC contemporânea e como agência de controle. Compreender IC enquanto agência
receita publicitária (9) de sucesso. Diferente das mídias tradicionais, nas novas tecnologias de informação de controle possibilitou o refinamento da análise da mídia, especialmente das redes sociais, permitindo a
e comunicação (NTIC), o usuário pode “treinar o algoritmo” para personalizar o conteúdo consumido por compreensão de como as contingências dispostas nas mídias afetam o comportamento das massas e a
sinalizar que gostaria ou não de ver conteúdos equivalentes àquele (i.e. o usuário A acessar produção cultural contemporânea. Diferentemente de Adorno, que propunha o desaparecimento do jazz e
repetidamente vídeos de dança funcionaria como (seria equivalente a um) SD para o algoritmo exibir do blues, podemos refletir com uma crítica não elitista acerca do caráter leve do entretenimento. Se
vídeos de dança e como SΔ para vlogs de viagem). Essa equivalência é apenas presumida, uma vez que compreendermos o controle, estaremos em melhores condições para organizar o contracontrole. Analisar
é uma alteração que o sujeito produz no ambiente (representado pelo algoritmo) ao se comportar. Apesar a IC, tendo consciência das contingências em vigor, pode permitir que atuemos enquanto sociedade para
de reforçar o comportamento do criador/influencer, a personalização não gera a variabilidade de delimitar planejamentos culturais. Sempre permitindo a ocorrência de variabilidade e conduzindo
conteúdo, e sim, a falsa sensação de liberdade de escolha (10). processos de experimentação que avaliem os resultados e reformulem as propostas. Variabilidade e
Quando um usuário, não influencer, cria conteúdos inovadores nas redes sociais o algoritmo tende a experimentação asseguram que novas práticas culturais ocorram e sejam selecionadas sob controle da
não distribuí-lo para sua comunidade de maneira uniforme, restringindo-o de reforçadores sociais (i.e. sociedade.
“flop”), ao passo que o conteúdo repetitivo (não o mesmo material, mas a exibição de outros materiais É crucial ressaltar a importância de futuros estudos para investigar como os mecanismos de controle
produzidos sob formas ou conteúdos já amplamente acessados) tende a ganhar engajamento e presentes nas redes sociais afetam a liberdade de escolha e a autonomia dos indivíduos. No entanto, é
“viralizar”. Na criação de conteúdo virtual, a extinção de topografias inovadoras tende a ser a regra e, fundamental reconhecer que dentro desse contexto existem oportunidades para contracontrole. Alguns
com ela, “trends” que viralizaram por sua marca, como dançar olhando pra câmera e/ou com movimentos produtores de conteúdo, como os professores Gustavo Gaiofato e Bárbara Carine, já utilizam as redes
sequenciais específicos, são reforçadas com o número de repetições. É, este, o tipo de conteúdo leve, sociais para fomentar repertórios críticos sobre consciência de classe e antirracismo. A luta coletiva pela
que inspira as massas à dependência de uma realidade virtual cujo custo de resposta é quase nulo. Pela propriedade dos nossos dados é uma pauta relevante na construção de uma cultura digital mais inclusiva
ótica adorniana, a totalidade da IC consiste na repetição produtiva, as novas formas de consumo não e autônoma, sendo, assim, um imperativo para a preservação da individualidade e da liberdade de
passam de aperfeiçoamentos tecnológicos. A repetição, contudo, não é vazia, é a arte e o entretenimento escolha nas redes sociais.
que não exigem a reflexão da obra, servindo para pôr fim à privação de divertimento das massas de Este trabalho apresenta algumas limitações. Primeiramente, a abordagem interdisciplinar entre a teoria
trabalhadores, compensando o excesso de aborrecimento com seu cotidiano (1). adorniana e a análise do comportamento, embora promissora, requer uma análise mais aprofundada e
Tal conformação estrutura um processo de alienação, em que o sujeito consome a IC sem refletir empírica para validar suas conexões e aplicabilidade em contextos específicos das mídias digitais. Além
sobre a obra ou sua realidade, de modo que o divertimento no curto prazo mantém as contingências disso, a discussão sobre a IC e suas implicações nas redes sociais é complexa e multifacetada, e este
vigentes, em geral exploradoras, sobre o sujeito. Nesse sentido, sob a lógica analítico-comportamental trabalho fornece apenas uma visão inicial. Futuros estudos devem considerar uma análise mais
(10) é possível fazer um paralelo entre essa condição e o termo “escravo feliz”, pois os usuários abrangente e detalhada das dinâmicas específicas das mídias sociais e como elas se relacionam com as
submetem-se a reforçadores de curto prazo em detrimento de aversivos de médio e longo prazo (e.g. teorias abordadas. Por fim, as conclusões deste trabalho são hipotéticas e teóricas; portanto, pesquisas
apropriação de dados pessoais, dependência de telas, perda de habilidades sociais etc.). empíricas são necessárias para validar as suposições feitas e expandir nosso entendimento sobre a
Se todos consomem da mesmice e o comportamento de compra é direcionado, entre outras coisas, influência da Indústria Cultural e das agências de controle nas mídias digitais.
por propagandas controladas por algoritmos, ou ainda, se um governante é eleito porque a população foi
inundada por fake news financiadas ilegalmente, entre outras possibilidades, então, é possível vislumbrar REFERÊNCIAS
as estruturas e efeitos da IC como a comodificação e alienação cultural. Compreendendo-os como
consequências de um controle por meio da mídia, a cultura torna-se uma commodity, manipulam-se e 1 - ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Tradução: Guido Antonio De Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
2 - ADORNO, T. W. Indústria cultural. São Paulo: Editora Unesp, 2020.
vendem-se os produtos agregados desta interação dos usuários com a maquinaria digital: seus dados 3 - Glenn, Sigrid S., and Maria E. Malott. "Complexity and selection: Implications for organizational change." Behavior and social issues 13 (2004): 89-106.
4 - Martone, R. C. & Banaco, R. A. (2005). Comportamento social: a imprensa como agência e ferramenta de controle social. Em J. C. Todorov; R. C. Martone; M. B. M. (orgs.),
(big data). Metacontingências: Comportamento, cultura e sociedade (pp. 61-80). Santo André, SP: Esetec.
5 - Rakos, R. F. (1993). Propaganda as stimulus control: The case of the Iraqi invasion of Kuwait. Behavior and social issues, 3, 35-62.
A partir do conceito de metacontingência, proposto por Sigrid Glenn (11), ilustramos como as redes 6 - SKINNER, B. F. Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
sociais atuam sobre seus usuários. A agência de controle das mídias digitais dispõe contingências sociais 7 - SKINNER, B. F. Sobre o behaviorismo. São Paulo: Editora Cultrix, 2006.
8 - Knapp - Knapp, T. J. (1981). The media and control in the future. Behaviorists for social action Journal, 3, 17-19. Link
para os usuários das redes (Fig. 1). As contingências entrelaçadas são compostas de contingências 9 - Laitinen, R. & Rakos, R. (1997). Corporate Control of Media and Propaganda: A Behavior Analysis. Em: P.A. Lamal (org.), Cultural Contingencies: Behavior Analytic
Perspectives on Cultural Practices. (pp. 237-267). Westport: Praeger Publisher.
operantes que envolvem os comportamentos de interação com a rede como curtir, comentar, 10 - BAUM, W. M. Compreender o behaviorismo: ciência, comportamento e cultura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
11 - GLENN, Sigrid S. et al. Por uma terminologia consistente na Abordagem Comportamental da Cultura. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, [S.l.], v. 18, n. 1,
compartilhar, visualizar, produzir e comprar determinado conteúdo. Com isso, geram-se dados da maio 2022.
12 - AMATO, Fábio; CAMARGO, Isabela; RODRIGUES, Mateus. Governo manda Google sinalizar como 'publicidade' material feito pela empresa contra PL das Fake News. Portal
preferência de usuários das redes (produto agregado) que posteriormente é vendido. O algoritmo das G1, Brasília, 02 de maio de 2023. Seção Política. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/05/02/governo-manda-google-sinalizar-como-publicidade-material-
redes, estabelecido pelas corporações, seleciona os conteúdos em alta de forma a aumentar o tempo de feito-pela-empresa-contra-pl-das-fake-news.ghtml
13 - Knapp, T. J. (1981). The media and control in the future. Behaviorists for social action Journal, 3, 17-19.
tela dos usuários. 14 - Laitinen, R. & Rakos, R. (1997). Corporate Control of Media and Propaganda: A Behavior Analysis. Em: P.A. Lamal (org.), Cultural Contingencies: Behavior Analytic
Perspectives on Cultural Practices. (pp. 237-267). Westport: Praeger Publisher.
A IC e seus agentes manipulam variáveis que exercem controle sobre as massas e seus efeitos sobre 15 - Alves, A. C. P. (2006). Mídia e Construção Social do Conhecimento: atentados terroristas no relato de dois jornais brasileiros (Dissertação de mestrado). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP.
os controlados. Assim, essa forma de administração das práticas e mercadorias culturais pode ser 16 - Silva, C.M.S. (2010). A mídia como objeto de estudo da análise do comportamento. Em M. M. C. Hübner; M. R.Garcia; P. R. Abreu; E. N. P. Cillo & P. B. Faleiros (Orgs.), Sobre
Comportamento e Cognição. Análise Experimental do Comportamento, cultura, questões conceituais e filosóficas (Vol. 25, pp. 103-117). Santo André, SP: Esetec

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