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A ira enquanto paixão

A ira é sempre pecaminosa ou pode ser


considerada justa em alguns casos? Não iria ela
contra a ordem de Jesus, que nos ensinou a
mansidão e a humildade de coração? Conheça,
nesta aula de nosso curso de Terapia das
Doenças Espirituais, a "santa ira", a partir das
lições de Santo Tomás de Aquino.
A ira é sempre pecaminosa ou pode ser considerada justa em alguns
casos? Não iria ela contra a ordem de Jesus, que nos ensinou a
mansidão e a humildade de coração?

Conheça, nesta aula de nosso curso de Terapia das Doenças


Espirituais, a "santa ira", a partir das lições de Santo Tomás de
Aquino.

Existe uma discordância entre o pensamento de Santo Tomás de


Aquino e João Cassiano acerca da ira. João Cassiano, escreve: "Ne
dum iubemur irasci cum causa, etiam sine causa irascendi nobis
intromittatur occasio – Não nos é consentido nunca e de nenhuma
forma irar-nos, nem por causas injustas, nem por causas justas." [1]
Assim, para os Padres gregos, dos quais João Cassiano aprendeu a
vida ascética, a ira é sempre ruim. Não se poderia jamais ter ira
contra o irmão, mas tão somente contra o pecado e o demônio.
Trata-se da escola ascética oriental.

Santo Tomás de Aquino, ao contrário, quando fala sobre a ira, pontua


claramente a existência de uma ira virtuosa contra os irmãos.
O homem é capaz de conhecer as coisas por meio da sensibilidade e
do intelecto. Enquanto aquele está ligado a um apetite sensível, este
tem a ver com um apetite racional, também chamado de vontade. A
diferença entre os dois pode ser mais facilmente percebida quando
entram em conflito. Por exemplo, o apetite sensível sente
repugnância de um remédio amargo e, ao mesmo tempo, o apetite
racional quer a saúde. A vontade faz com que o remédio seja
ingerido livremente, em que pese o apetite sensível desejar o
contrário. Ora, os animais possuem o apetite sensível, mas não a
vontade livre. Por isso, quando seu apetite sensível é contrariado,
surge neles uma realidade chamada ira.

Segundo Santo Tomás de Aquino, essa ira, em si mesma, não é boa,


nem má. Ela passa a ser boa ou má quando a alma entre em ação,
quando surge, por exemplo, um querer desordenado ou quando se
rechaça algo que deveria ser desejado. O pecado começa quando a
ira passa da sensibilidade e abarca a alma.

A ira, portanto, é um processo. Primeiro, tem-se o conhecimento da


coisa; depois, o seu julgamento; em terceiro lugar, então, toma-se
uma decisão de agir, punindo ou não o causador daquela situação.
Ao analisar simplesmente a paixão da ira, Santo Tomás de Aquino
afirma que ela tem a ver com o castigo, com a repreensão: "Ira é o
apetite de fazer o mal ao outro em razão de uma justa vingança." [2]
Quando, então, esse apetite deve entrar em ato? Somente depois
dos três primeiros passos, no momento da ação. Tomados pela ira,
inúmeros são aqueles que testemunham terem a vista escurecida e,
claro, isso pode prejudicar qualquer julgamento. Não é à toa que
dizem ser a ira uma péssima conselheira. Portanto, somente depois
que a ira é aplacada se pode julgar e decidir de forma adequada
acerca da punição. Esta seria a justa ira descrita por Santo Tomás de
Aquino.
Para João Cassiano, a ira é sempre ruim. Para Santo Tomás, é
preciso ter o coração manso como o de Jesus, pois somente assim é
possível enxergar o que está acontecendo, julgar com sabedoria,
segundo os princípios divinos, e, então, decidir o que fazer, em
profunda sintonia com o coração de Deus, punindo ou não.

Se Deus criou a ira, ela tem alguma função no ser humano. O


problema é quando ela entra de uma forma desordenada. Um ato
praticado com o todo é mais perfeito do que um ato feito só com
uma parte, ou seja, um ato somente racional é bom, mas não
perfeito. Seria perfeito se usasse também as energias sensíveis,
afinal, o ser humano não é um anjo. Anjo não tem paixão, o homem é
uma combinação estranha de um anjo e um animal que vivem juntos.
É, portanto, o composto do homem que deve agir, corpo e alma.

Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou que "o Reino dos céus é dos
violentos" [3]. Isso significa que aquele que se decide por Deus,
precisa fazer violência para romper com o pecado, para odiar os
maus passos. Logo, a paixão da ira, em si mesma, é como uma faca
que pode ser usada para uma coisa boa ou para um crime. Trata-se
de algo moralmente indiferente.

De forma resumida, é possível dizer que a ira é uma energia que está
presente no ser humano porque este é formado de corpo e alma.
Esta capacidade (energia) foi criada por Deus e em si mesma não é
boa nem ruim, mas neutra. Tragicamente, por causa do pecado
original, essa energia, que deveria ser canalizada para a busca e o
alcance da santidade, no mais das vezes se transforma na doença
espiritual da ira, tema da próxima aula.
O pecado da ira
Quando nos irritamos e perdemos a paciência,
nossa alma fica cega e, governada por sua
sensibilidade animal, acaba tolhida de toda a sua
dignidade humana. Nesta aula do curso de
Terapia das Doenças Espirituais, conheça o
pecado mortífero da ira, que torna o ser humano
semelhante ao demônio, "homicida desde o
princípio".
Quando nos irritamos e perdemos a paciência, nossa alma fica cega
e, governada por sua sensibilidade animal, acaba tolhida de toda a
sua dignidade humana.

Nesta aula do curso de Terapia das Doenças Espirituais, conheça o


pecado mortífero da ira, que torna o ser humano semelhante ao
demônio, "homicida desde o princípio".

Na aula passada, vimos que existe uma ira que não é pecado. Trata-
se de uma energia que pode fazer o bem ou o mal (θυµός, em
grego), que significa exatamente uma pulsão, uma possibilidade que
existe dentro de todo ser humano e, se bem usada, pode ser
positiva.

No entanto, existe um aspecto da ira sempre ruim. Trata-se da


doença espiritual propriamente dita, (οργη, em grego). Ela se dá
quando a sensibilidade animal domina a alma e a deixa cega,
tirando a dignidade do homem e impedindo que ele aja com
justiça. A ira, portanto, torna o ser humano semelhante ao demônio,
que é "homicida desde o princípio" [1].
A doença da ira cega o homem e faz com que ele reaja como um
réptil, um animal irracional. Não é exagero, pois é sabido que a parte
do cérebro de onde surge a ira é justamente aquela mais primitiva,
idêntica ao cérebro dos répteis, dentre os quais se destaca a
serpente [2].

A ira corrompe os relacionamentos entre as pessoas, não permite


que elas se enxerguem como realmente são, mas a partir das
distorções e das deformações que a ira mesmo provoca.

Alguns pensam que a solução para a ira é fechar-se em si mesmo e


recusar a amar. Estão enganados. Os Padres do Deserto contam que
havia um monge que resolveu abandonar a sua comunidade, pois
achou que a culpa de ele se irar sempre era dos irmãos, por causa
das injustiças cometidas contra ele. Num dia qualquer, no deserto,
como eremita, ele foi até o poço pegar água. Encheu a bilha e
colocou-a de pé, mas ela caiu; repetiu o processo e novamente a
bilha caiu. Mais uma vez encheu a bilha e mais uma vez ela caiu. O
monge ficou enervado e atirou a bilha longe, num acesso de fúria,
estraçalhando-a. Quando caiu em si e viu o que tinha feito, disse:
"Eis que fui novamente vencido. Retornarei ao mosteiro. De fato,
é necessária muita fadiga, paciência e, sobretudo, a ajuda de
Deus" [3].

Esse apotegma mostra que não adianta colocar a culpa da própria ira
nos outros. A serpente está dentro de cada um. Por isso, é
necessário lutar, fadigar-se. E como a ira constantemente aparece,
sujeitando o ser humano a constantes acessos de raiva, a
capacidade de amar é prejudicada.

Existem em cada ser humano duas realidades distintas: a primeira,


irracional, sensível, é onde reside a ira (um impulso surgido quando
se é contrariado em seu apetite). A segunda, seu oposto, é o amor. O
animal irracional pode ser contrariado, mas o homem que ama é
capaz de se contrariar. Há uma diferença entre essas duas
contrariedades: a segunda é livre, a primeira não.

Para crescer no amor, portanto, é preciso domar a ira, pois ela é


diametralmente oposta ao amor, uma vez que faz o homem querer
matar o próximo, ao invés de entregar a vida por ele.

São Gregório Magno, ao comentar a passagem do Sermão da


Montanha, quando Jesus diz: "Ora, eu vos digo: todo aquele que
tratar seu irmão com raiva deverá responder no tribunal; quem disser
ao seu irmão 'imbecil' deverá responder perante o sinédrio; quem
chamar seu irmão de 'louco' poderá ser condenado ao fogo do
inferno" [4], ensina: "Primeiro, então, é repreendida a ira sem voz,
depois, de fato, a ira com voz, mas não ainda a formada com
palavras completas; por fim, também quando se diz: Idiota, é
reprovada a ira que, além do excesso de voz, é satisfeita também
com a perfeição do discurso" [5].

A ira também tem algumas características que, num primeiro


momento, parecem contraditórias: é impetuosa, ou seja, acontece
de forma repentina, contudo, quando o ímpeto arrefece, permanece
a memória do mal; e é radical, ou seja, não é fácil livrar-se dessa
doença. Isso se comprova pelo grande número de pessoas que,
avançadas na vida espiritual e tendo vencido tantas batalhas,
conservam ainda dentro de si uma irritabilidade latente.

Para saber se a ira manifestada é doente ou virtuosa, levando-se em


conta que o ser humano não é santo, o adequado é considerar
sempre a própria ira como doença. Dificilmente a ira é do tipo que
racionalmente pensa, decide, julga e pune. A ira costuma ser, no
mais das vezes, repentina e, a partir disso, perde-se a liberdade.
Assim, é um mau sinal a irritação frequente, a violência e o rancor
(manifestação da ira). Ao invés de serem justificados como parte do
próprio "temperamento", importa que eles sejam combatidos, pois
constituem um grande empecilho para o amor. Na ira, o apetite
irascível, que pode ser usado para o amor, é usado para uma
vingança injusta.

A ira é exagerada e cria enormidades. Por causa disso, diz-se que a


pessoa fica cega e, nesta cegueira, não há como realizar a justiça
que ela tanto pede. "A mim cabe a vingança, eu retribuirei" [6],
diz o Senhor. Ou seja, é preciso se conter e deixar a vingança para
Deus. Para aqueles que ocupam cargos, funções e têm deveres
sociais, é claro que podem e devem exercer castigos, punições,
colocar limites, mas é importante que não se esteja envolvido
passionalmente.

Essa grave doença espiritual se torna também um vício, uma vez que
faz com que o doente seja intemperante, que se deixe levar pelas
forças irracionais que conduzam a vida, o contrário do que Deus quis
para o homem. Deus fez o homem inteligente para viver plenamente
a sabedoria. Assim, a cura para ira é ingressar no caminho do
amor.

Não foi à toa que Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus de amor que se
fez carne e veio habitar no meio dos homens, exortou: "Se alguém
quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e
siga-me" [7]. Embora muitos vejam nessa exortação uma faceta do
cristianismo que parece completamente absurda - por exigir que as
pessoas se contrariem e aceitem uma injustiça -, ela não é. Somos
nós quem criamos as condições adversas para o amor, tornando-
nos incapazes de amar.

É preciso aprender a se contrariar. Este é o primeiro passo da


terapia da ira. É necessário tomar a própria cruz, renunciar a si
próprio. Isso porque a grande raiz desse mal é a idolatria. Uma
pessoa que se põe no lugar de Deus diz: "Seja feita a minha
vontade, assim na terra como no céu", como uma criança
mimada. E é bom lembrar que as crianças mimadas são também
crianças iradas e, porque são iradas, também são crianças
tristes. São Gregório Magno aponta justamente para a relação
existente entre a ira e a tristeza, dizendo:

Da ira surge a tristeza, pois, a mente perturbada, quanto mais se


agita desordenadamente, tanto mais fica confusa; e quando
perdeu a doçura da tranquilidade, de nada ela se alimenta, senão
da tristeza, que vem dessa perturbação." [8]

A ira é realmente um caminho de morte e, enquanto doença


desordenada, leva o ser humano de abismo em abismo.
Terapia da ira
Como vimos, a ira é um caminho de morte, que
faz o homem tornar-se semelhante ao demônio.
Para curar essa doença espiritual, muitos
remédios podem ser empregados, mas o
principal é o da caridade. Olhando para o
mistério da cruz, somos chamados a imitar
Aquele que, sendo "manso e humilde de
coração", amou e perdoou os Seus algozes.
Nesta aula de nosso curso de Terapia das
Doenças Espirituais, conheça a terapia para o
pecado capital da ira.
Como vimos, a ira é um caminho de morte, que faz o homem tornar-
se semelhante ao demônio. Para curar essa doença espiritual, muitos
remédios podem ser empregados, mas o principal é o da caridade.
Olhando para o mistério da cruz, somos chamados a imitar Aquele
que, sendo "manso e humilde de coração", amou e perdoou os Seus
algozes.

Nesta aula de nosso curso de Terapia das Doenças Espirituais,


conheça a terapia para o pecado capital da ira.

Existem várias formas de terapia para a ira, porque são muitas as


suas causas. A cada pessoa compete encontrar o melhor modo de
combater essa grave doença espiritual que, como vimos na aula
anterior, é um caminho de morte, que faz com que o homem se
assemelhe ao demônio.
São João Clímaco, em sua Escada do Paraíso [1], fala exatamente da
não irascibilidade e da mansidão e explica que os movimentos de
cólera têm causas e origens diversas, sendo impossível definir uma
única regra contra essa paixão. O primeiro cuidado será, portanto,
reconhecer a causa da própria dor.

Existem pessoas que padecem da doença, vivem em constante


irritabilidade e não se apercebem disso. Desta forma, o primeiro
passo é autoanalisar-se, identificando as situações e as causas que
desencadeiam o acesso de ira. Um dos sinais de que a pessoa está
sofrendo da paixão da ira são os sonhos, ou melhor, os pesadelos
(com demônios, animais peçonhentos, cobras, perigos etc.). Os
Padres do Deserto, que eram também diretores espirituais, notaram
que aqueles monges que tinham pesadelos noturnos se tratavam de
pessoas que, acordadas, eram rancorosas, iradas. A ira, portanto, é
capaz de se esconder e manifestar sintomas inusitados.

A admissão da doença também é importante. É preciso reconhecer


que se sente raiva do outro ou de uma situação e não envergonhar-
se, porque é mesmo muito difícil de lidar com a paixão da ira. São
Máximo, o Confessor, em suas Centúrias sobre a Caridade, ensina
que:

As paixões da parte irascível da alma são mais difíceis de


combater que as da parte concupiscível. E, por isso, como
remédio maior contra elas, foi dado pelo Senhor o mandamento
da caridade. [2]

A caridade, por causa de Deus, portanto, é o remédio contra a ira.


Lembrando que a ira produz um certo tipo de ilusão em quem dá
vazão a ela. A pessoa irada sente-se como uma "vítima", enquanto o
outro é o culpado pelo seu infortúnio. Por isso o remédio é a
caridade, lembrando sempre que Deus amou por primeiro e que, sob
essa ótica, ninguém é tão vítima assim. A ofensa sofrida é menos
grave do que a ofensa a Deus que cada um fez, faz e fará. Importa,
pois, olhar para o Cristo na Cruz que ama e perdoa, colocar-se
debaixo desse olhar, lembrando que quando foi traído, Nosso
Senhor, de coração "manso e humilde", não reagiu com ira.

Outro passo importante é rezar pelo outro, colocá-lo também sob o


olhar de Cristo na Cruz. São Máximo continua ensinando: "'Digo-vos
a vós, afirma o Senhor: amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que
vos odeiam, orai pelos que vos caluniam.' Por que o ordenou? Para
libertar-te do ódio, da tristeza, da ira e do rancor, e tornar-te digno
do grandíssimo tesouro da perfeita caridade." [3] Quando se oferece
o perdão, a primeira pessoa que lucra é quem perdoa, pois se livra
do veneno da ira, do rancor.

Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao


conhecimento da Verdade [4]. Esta, pois, deve ser a medida para
saber se houve realmente o perdão: é querer que a pessoa vá para o
céu. Isso é amar.

Uma das dificuldades da oração é a ira, fonte de distrações. É muito


difícil rezar quando se está tomado pela ira. O Padre Gabriel Bunge,
em sua obra Vino dei draghi e pane degli angeli ["Vinho dos dragões
e pão os anjos"], ensina que "para rezar, a pessoa irada deve, antes,
procurar o refúgio nas invocações a Cristo, breves e contínuas. A
respeito destas invocações, nos fala constantemente a literatura
monástica. São aquelas jaculatórias de Santo Agostinho, são aquelas
já conhecidas orações, como as orações do nome de Jesus." Os
monges orientais insistem muito na oração acompanhada da
respiração, assim: inspirar a graça de Deus, o amor, o Espírito Santo;
expirar o peso, a angústia, a raiva. "Jesus, misericórdia", "Jesus,
perdão", "Jesus manso e humilde de coração, fazei o nosso coração
semelhante ao vosso". Essas orações haverão de acalmar o coração
para que assim possa ocorrer uma oração limpa e verdadeira.

João Cassiano, em suas Instituições Cenobíticas, ensina que a


doença da ira é tão importante, que Jesus proíbe aos homens de
apresentarem uma oferta diante do Senhor sem antes perdoar ao
irmão. "Quando estiveres levando a tua oferenda ao altar e ali te
lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa a oferenda diante
do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão" [5]. É preciso
tomar a decisão de perdoar o irmão, caso contrário, o que se estará
vivendo é uma hipocrisia. João Cassiano é claro:

"A oração, quando nasce de um coração que recusa o perdão,


apresenta a Deus apenas a própria 'soberba obstinada', devido
ao seu espírito de rebelião." [6]

Existe, portanto, uma diferença fundamental entre desculpar e


perdoar. Desculpar está ligado à justiça. Por exemplo, quando
alguém inadvertidamente comete um deslize e pede desculpas, é
um dever de justiça des-culpar, ou seja, reconhecer que não
houve culpa. Desculpar é um exercício de justiça.

O perdão por sua vez, reconhecer que houve a culpa, que o ato foi
injusto e inadequado e, mesmo assim, se perdoa - per-doar, ou
seja, doar intensamente. A dificuldade de perdoar reside
justamente numa postura errônea de inocência. Por isso,
quando se assume a condição de pecador, é possível
transformar a ira em uma grande fonte de amor.

A cruz de Cristo mostra que, ali, uma grande injustiça foi cometida.
Mas também mostra que Nosso Senhor ofereceu-se como sacrifício,
com o fogo do Espírito Santo a consumi-Lo. Esse fogo transforma a
dor em amor. Diante de uma injustiça, portanto, suplique o Espírito
Santo, que transformará a dor em amor e o livrará do veneno da ira.
A tristeza enquanto paixão
A tristeza é uma reação normal e sadia de todo
ser humano às coisas más. Por que, porém, o
que deveria ser algo neutro acaba se
transformando em uma realidade perigosa e
doentia em nossas vidas? Por que, mesmo
enquanto sentimento, a tristeza constitui uma
espécie de desordem na humanidade? Como
Cristo, suando sangue no Horto das Oliveiras,
redimiu a tristeza humana?
A tristeza é uma reação normal e sadia de todo ser humano às
coisas más. Por que, porém, o que deveria ser algo neutro acaba se
transformando em uma realidade perigosa e doentia em nossas
vidas? Por que, mesmo enquanto sentimento, a tristeza constitui
uma espécie de desordem na humanidade? Como Cristo, suando
sangue no Horto das Oliveiras, redimiu a tristeza humana?

Como já dito, o apetite sensível divide-se em duas faculdades: o


concupiscível, que diz respeito ao bem simplesmente considerado; e
o irascível, que se refere ao bem enquanto algo árduo. Importa dizer
que o homem só deseja o que ele avalia como bom – ainda que,
objetivamente, aquilo lhe possa fazer mal. Um dependente químico,
por exemplo, só quer as drogas porque ele as vê como um bem,
embora elas sejam, de fato, um mal.

Diante deste bem, duas reações opostas no apetite sensível são


possíveis: na sua presença, tem-se a alegria; na sua ausência, tem-
se a tristeza. Consideradas no aspecto sensível, essas duas reações
são realidades meramente passionais. Não há nelas, pois, nenhuma
doença ou virtude.

Por conta do pecado original, no entanto, a paixão da tristeza, que


deveria ser moralmente neutra, assume um caráter doentio. Como
explicar isso?

Sabemos bem, por revelação divina, que Deus não tinha projetado o
homem para morrer. Adão, o primeiro homem, em estado de
inocência, era imortal e impassível [1]: o ser humano não foi
designado nem para a morte, nem para o sofrimento. Foi após a
queda que as paixões da alma começaram a manifestar-se
desordenadamente no homem. Os nossos primeiros pais, no
Paraíso, não só não enfrentariam a morte, como não se entristeciam,
não sentiam dor e nem eram acometidos abruptamente por
manifestações passionais [2]. Os movimentos das paixões estavam
inteiramente submetidos à faculdade racional. Mas, por um castigo
de Deus (cf. Gn 3, 16-19), esse dom preternatural foi tirado do
homem, com vistas ao seu próprio bem.

O conteúdo das maldições divinas a Adão e Eva descreve


sofrimentos predominantemente exteriores ( dores, tratando de
modo genérico): "Multiplicarei os sofrimentos de tua gravidez. Entre
dores darás à luz os filhos. (...) Amaldiçoado será o solo por tua
causa. Com sofrimento tirarás dele o alimento todos os dias de tua
vida". A tristeza, propriamente dita, diz respeito a uma espécie de
dor, ensina Santo Tomás de Aquino [3]: enquanto esta é causada
pela mera apreensão exterior, aquela é causada pela apreensão
interior. Por isso, embora a tristeza esteja presente na natureza dos
animais, essa paixão, no ser humano, assume o caráter de doença.

Para entender melhor essa realidade, vale considerar o que


acontecia na alma perfeítissima de Cristo com relação às paixões.
Está nas Escrituras que Ele, antes de morrer, padeceu a agonia no
Horto, chegando a declarar que sua alma estava triste até a morte
(cf. Mc 14, 34). Essa tristeza se deu em Sua alma de modo livre,
diferentemente do que acontece conosco, que somos acometidos
subitamente pelas paixões. Ele escolheu livremente que as Suas
paixões humanas se manifestassem em Sua Paixão, a fim de que
também elas fossem remidas por Sua ação redentora, seguindo o já
conhecido princípio de que "quod non est assumptum, non est
sanatum – o que não foi assumido, não foi salvo". Preleciona, sobre
isso, o Doutor Angélico:

"Deve-se saber que essas paixões existiram em Cristo de


maneira diferente do que em nós quanto a três aspectos.
Primeiro, quanto ao objeto. Em nós, essas paixões muitas vezes
tendem a coisas ilícitas, o que não acontecia em Cristo. Segundo,
quanto ao princípio. Em nós, essas paixões antecedem
frequentemente o juízo da razão; em Cristo, porém, todos os
movimentos do apetite sensitivo eram orientados segundo a
disposição da razão. Por isso diz Agostinho: 'Esses movimentos,
pela graça de uma disposição certíssima, Cristo acolheu quando
quis na alma humana, assim como se fez homem quando quis.' –
Terceiro, quanto ao efeito. Em nós esses movimentos algumas
vezes não se detêm no apetite sensitivo, mas arrastam consigo a
razão. Mas isso não sucedeu em Cristo, pois os movimentos que
convinham naturalmente à carne humana de tal modo
permaneciam, segundo sua disposição, no apetite sensitivo, que
a razão não era, de maneira alguma, impedida de fazer o que era
conveniente." [4]

No homem decaído, porém, as paixões se encontram de tal modo


desordenadas que podem gerar um ciclo de autodestruição. Veja-
se, e. g., esta explicação do Aquinate:
"Deve-se dizer que a própria dor pode ser deleitável,
acidentalmente, quando acompanhada de admiração, como nos
espetáculos; ou quando faz lembrar o ser amado e faz sentir o
amor daquele de cuja ausência sofre. Por isso, como o amor dá
prazer, a dor e tudo o que procede do amor, é deleitável enquanto
faz sentir o amor." [5]

Essas linhas podem servir de ajuda para diagnosticar o problema da


depressão. Os psicólogos modernos admitem que um indivíduo
irremediavelmente deprimido só chega à beira do abismo porque foi
seduzido por uma espécie de "recompensa": a pessoa sente um
certo prazer em sua tristeza. O depressivo transformou esse
"ganho" em uma droga e, embora o sofrimento o esteja destruindo,
ele não deseja sair desse ciclo de morte.

Essas considerações já se dirigem, de algum modo, ao que será


abordado nas próximas aulas, que é a doença da tristeza
propriamente dita. A princípio, porém, é importante olhar para a
tristeza como simples paixão.
O pecado da tristeza
Para quem crê no amor de Deus, há sempre algo
de nocivo em alimentar a tristeza e mendigar o
amor dos outros com vitimismos e
ressentimentos. Mas, afinal de contas, toda
tristeza é má? Descubra, nesta nova aula, como
usar o luto e a dor a seu favor e não se deixar
arrastar pela doença paralisante da tristeza.
Para quem crê no amor de Deus, há sempre algo de nocivo em
alimentar a tristeza e mendigar o amor dos outros com vitimismos e
ressentimentos. Mas, afinal de contas, toda tristeza é má?

Descubra, nesta nova aula, como usar o luto e a dor a seu favor e
não se deixar arrastar pela doença paralisante da tristeza.

Embora não estivesse no plano original do Criador, a tristeza,


enquanto paixão, é uma realidade moralmente neutra, como já se
falou na última aula. Para que seja pecaminosa, torna-se necessário
o concurso da inteligência e da vontade.

Antes, porém, de falar sobre como a tristeza assume o caráter de


doença espiritual, importa distinguir que a palavra "pecado" – entre
múltiplas classificações possíveis [1] – pode ser usada para se
referir:

1. ao pecado original, que, em toda a humanidade, com exceção


de Adão e Eva, não é uma falta cometida, mas simplesmente
contraída, herdada;
2. ao pecado pessoal (também chamado de atual) que "é aquele
que o homem, chegado ao uso da razão, comete por sua livre
vontade" [2]; ou ainda
3. aos chamados pecados capitais (às vezes simplesmente
chamados de vícios), que são as "doenças espirituais"
propriamente ditas.

No que diz respeito a essa última acepção, a tristeza – bem como os


outros pecados capitais – pode estar alojada na alma, ainda que esta
se encontre em estado de graça. Assim é, porque o pecado capital
se trata de um hábito, uma tendência que provém do pecado e
conduz a ele – dependendo da liberdade do indivíduo para se
transformar em ato.

Convém explicar que as paixões podem ser antecedentes ou


consequentes à intervenção da inteligência e da vontade. Tome-se
como exemplo o pecado da luxúria. Nem todos os movimentos
carnais – ou, em uma linguagem mais popular, nem toda excitação –
são provocados. O simples sentir não é pecado, mas o consentir. Só
se peca quando, diante da percepção do movimento carnal, se
passa a alimentar a fantasia.

O mesmo ocorre com a tristeza. Pode ser que, por razões físicas – o
cérebro não esteja produzindo serotonina como deveria, por
exemplo –, uma pessoa caia em tristeza, sem que sequer se dê
conta de que está triste. É quando ela toma consciência de seu
estado e age deliberadamente para alimentá-lo, que acontece o
pecado. Por isso, São Paulo escreve, em sua Carta aos Filipenses:
"Alegrai-vos sempre no Senhor!" (Fl 4, 4). De fato, para quem crê no
amor de Deus, há sempre algo de malsão em entristecer-se
propositalmente e mendigar o amor dos outros por meio de
vitimismos.

Nem toda tristeza, porém, é má. Santo Tomás de Aquino define a


paixão da tristeza simplesmente como uma dor interior diante de um
mal. Se este mal é um mal verdadeiro, Tomás enxerga, com
perspicácia, a existência de uma tristeza boa. Diz ele:

"A tristeza tem utilidade, se é por causa de um mal a evitar. (...)


Assim, a tristeza do pecado é útil para o homem fugir do pecado,
segundo diz o Apóstolo, em 2 Cor 7, 9: 'Alegro-me não de que vocês
estejam tristes, mas de que vossa tristeza vos levou à penitência'."
[3]

Assim, quando alguém se entristece porque perdeu o sumo Bem,


essa tristeza o leva de volta para casa, como fez o filho pródigo (cf.
Lc 15, 11-32). Esse luto também é chamado pelos padres gregos de
πένθος (pénthos) e está ligado ao dom de lágrimas.

Quando, porém, o que a pessoa perde é um bem aparente, como


que um lobo vestido em pele de cordeiro (cf. Mt 7, 15), tem-se a
tristeza ruim. Explica Santo Tomás que "assim como a tristeza pelo
mal procede de uma vontade e de uma razão reta, que detestam o
mal, assim a tristeza pelo bem procede de uma razão e vontade
perversa, que detestam o bem" [4]. O pecado da tristeza, portanto,
está ligado mais a "uma razão e vontade perversa" do que
propriamente à paixão presente na alma.

Por isso, São Paulo fala de duas tristezas (cf. 2 Cor 7, 10): uma que é
segundo a carne ("κόσµου λύπη", kosmou lipe) e uma que é
segundo Deus ("Θεὸν λύπη", Teón lipe).

Noutro lugar, o Aquinate ainda fala sobre as espécies de tristeza [5],


dentre as quais se destacam:

1. A acídia [6], que se entristece com o bem divino;


2. A inveja [7], que se entristece com o bem do próximo.
Cabe esclarecer que o Doutor Angélico segue aqui a classificação
tradicional, tal como encontrada em São Gregório Magno [8] e nos
demais padres latinos. Em João Cassiano [9], Evágrio Pôntico e nos
outros padres gregos, porém, a distinção entre as espécies de
tristeza é um pouco mais nebulosa e a acídia figura apenas como
uma espécie de tristeza mais grave. Santo Tomás, distinguindo os
diferentes objetos das tristezas, consegue ser mais cirúrgico nessa
questão.

Tomás também enumera, citando o Papa Gregório, as filhas


espirituais da inveja, que são "o ódio, a murmuração, a detração, a
satisfação com as adversidades alheias e a decepção com a sua
prosperidade" [10]. Afinal, é isto o que constitui um vício capital, a
saber, o fato de que eles "geram outros pecados, outros vícios" [11].
Terapia da tristeza
Não é à toa que a depressão é considerada "o
mal do século XXI": em um mundo cada vez
mais egoísta e indiferente, a tristeza tem se
alastrado como uma epidemia, destruindo
famílias, amizades e muitos outros
relacionamentos. Qual é, afinal, a cura para essa
doença? Como a doutrina da Igreja e os
conselhos dos santos podem ajudar as pessoas
a superarem o luto e a angústia? Nesta aula do
curso de Terapia das Doenças Espirituais,
conheça os remédios espirituais para lidar com
vários tipos de tristeza: desde aquela ligeira
angústia das tardes de domingo, até os
ressentimentos mais profundos, causados pelo
egoísmo e pela inveja.
Não é à toa que a depressão é considerada "o mal do século XXI":
em um mundo cada vez mais egoísta e indiferente, a tristeza tem se
alastrado como uma epidemia, destruindo famílias, amizades e
muitos outros relacionamentos. Qual é, afinal, a cura para essa
doença? Como a doutrina da Igreja e os conselhos dos santos
podem ajudar as pessoas a superarem o luto e a angústia?

Nesta aula do curso de Terapia das Doenças Espirituais, conheça os


remédios espirituais para lidar com vários tipos de tristeza: desde
aquela ligeira angústia das tardes de domingo, até os
ressentimentos mais profundos, causados pelo egoísmo e pela
inveja.

Falou-se, nas últimas aulas, sobre a tristeza enquanto realidade


meramente passional e a partir de quando ela se torna uma doença
espiritual. Assim, cabe falar também de várias terapias para a
tristeza.

A terapia para a tristeza enquanto paixão. – Para a tristeza


passional, Santo Tomás de Aquino enumera remédios bastante
"humanos", que vão desde o partilhar a dor com os amigos até um
banho quente e uma boa noite de sono [1]. Diz ele que, "como
qualquer repouso do corpo traz remédio a qualquer fadiga, provinda
de qualquer causa não natural, assim também todo prazer é remédio
que alivia qualquer tristeza, seja qual for sua origem" [2].

Um dos remédios aqui elencados pelo Doutor Angélico, no entanto,


é de suma importância para entender a cura da tristeza doentia:
trata-se da contemplação da verdade. Quanto mais se estuda as
verdades de fé, quanto mais se reza e "quanto mais perfeitamente
se ama a sabedoria" [3], mais "se exorcizam" as tristezas de nossas
almas. É que toda tristeza – esteja ela nos sentimentos ou na
vontade – consiste em fechar-se em um mundo distante da
realidade.

A terapia para a inveja. – Exemplo prático disso é o pecado da


inveja, que é, como já se viu na última aula, uma tristeza em relação
ao bem alheio. Sobre este pecado, João Cassiano alerta que é mais
difícil obter a sua cura que a dos outros vícios, já que foi a invidia o
primeiro pecado de Satanás na terra, como atesta o Autor Sagrado:
"Foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e
experimentam-na os que são do seu partido" (Sb 2, 24). Continua
Cassiano:
"De todos os vícios, de fato, o mais pernicioso e do qual é mais
difícil se purificar é a inveja, a qual é acesa justamente pelos
remédios que extinguem os outros vícios. Assim, por exemplo, se
alguém se queixa de ter sofrido algum dano, a generosidade lhe
oferece uma compensação, e ei-lo curado de seu mal. Se um
outro se indigna, diante de uma injúria que lhe tiver sido feita,
uma humilde satisfação o apazigua. Mas, que podes fazer a
alguém que se ofende exatamente por ver-te mais humilde e mais
agraciado (...), a quem se irrita tão somente com o sucesso da
prosperidade alheia?" [4]

Em uma exortação a seus irmãos frades, São Francisco de Assis


ordena que se evite o pecado da inveja, pois "todo aquele que inveja
seu irmão pelo bem que o Senhor diz e faz nele, incorre no pecado
de blasfêmia, porque inveja o próprio Altíssimo, que diz e faz todo
bem" [5]. De fato, ao entristecer-se com o bem do outro, o invejoso
"reclama" de Deus, já que é por decreto de favor divino que as
pessoas são abençoadas.

O remédio da solidariedade. – Neste ponto, é possível perceber


um componente de ira dentro da inveja. O invejoso se entristece e ao
mesmo tempo se irrita com a bênção alheia. A sua cura se encontra,
portanto, no relacionamento com as outras pessoas, na
solidariedade com os outros. São Máximo, o Confessor, diz que:

"Também a tua inveja pode deter-se, se te alegrares por aquilo


por que se alegra quem é invejado por ti, e se também te
entristeceres por aquilo por que ele se entristece, cumprindo
assim a palavra do Apóstolo: 'Alegrai-vos com os que se alegram,
chorai com os que choram' (Rm 12, 15)." [6]

Assim, quando algo acontece a si ou aos seus, as pessoas são


tentadas a perguntar: "Por que comigo? Por que com os de minha
família?" Quase não percebem que elas se fecharam em um mundo
irreal, onde se tornaram como que "deusas intocáveis", a quem nada
pode atingir ou fazer mal. Se, porém, essas pessoas entrarem em um
mínimo contato que seja com a realidade, verão que todos os seres
humanos estão suscetíveis aos males e desgraças desta vida, e que
elas não eram assim tão especiais quanto imaginavam. As tragédias
e eventualidades da vida podem abrir os seus olhos, chamando-as à
solidariedade com o próximo e servindo de remédio para a sua
doença.

O remédio da gratidão. – Enzo Bianchi, ao falar sobre a cura para a


inveja, aponta outro remédio: o da gratidão. Diz ele que "matou o
sentimento da inveja em si mesmo quem souber dizer: 'Aquilo que eu
pude fazer de bem, eu o fiz graças aos outros que estão comigo:
sem estes meus irmãos, sem estes meus amados, não poderia fazer
aquele pouco de bem que realizei" [7]. Um dos passos da terapia,
portanto, consiste em ser agradecido pelo dom do outro,
enxergando a realidade sempre com um coração eucarístico, em
constante ação de graças.

O remédio do amor. – A tristeza pecaminosa faz as pessoas


deslizarem para um mundo paralelo, do qual desaparecem todas as
realidades eternas. São Gregório Magno, em seu famoso e extenso
comentário moral ao Livro de Jó, ensina a "quem quer ser totalmente
liberto da peste da inveja" que "ame aquela herança que não diminui
com o crescimento do número de herdeiros" [8]. O grande Papa e
Doutor da Igreja vê na raiz do pecado da inveja o apego às coisas
materiais. De fato, nos bens terrenos, o ter de um é muitas vezes
associado ao mal e à privação por parte de outrem. Assim, se um
indivíduo só recebe uma herança, ele tem tudo; se, porém, descobre
um coerdeiro, é obrigado a repartir metade do que tem com ele. Para
vencer a inveja, pois, é preciso elevar os olhos àquela herança "que
não diminui com o crescimento do número de herdeiros". Ou seja,
com os bens espirituais, acontece o contrário do que se dá com os
objetos materiais: quando se dá Deus a uma pessoa, aumenta a
caridade na alma de quem dá e cria-se a caridade na alma de quem
recebe; se, por outro lado, se deseja o mal eterno a alguém, o
primeiro a ganhar o mal é quem amaldiçoa, porque Deus e o ódio
não podem conviver em um mesmo lugar.

Continua São Gregório: "Quae si perfecte in amore coelestis patriae


rapitur, plene etiam in proximi dilectione sine omni invidia solidatur –
Quem é perfeitamente arrebatado pelo amor da pátria celeste,
torna-se plenamente solidário no amor ao próximo, sem nenhuma
inveja" [9]. A cura da tristeza está, pois, no amor. Os marxistas
acreditam que a fé na vida eterna "aliena" os homens e faz com que
eles se esqueçam desta vida. O que acontece, porém, é o contrário:
só de olhos fixos no Céu é possível resolver os antagonismos e os
conflitos deste mundo. Para uma ideologia que vive em torno da
inveja, é muito difícil aceitar isso. O teórico Pierre Bourdieu († 2002)
insistia em que se falasse sobre o tema dos "excluídos" porque, de
fato, todos podem sentir-se excluídos por alguma coisa e é esse
sentimento de insatisfação – que degenera em ódio, guerras e
destruição – o combustível para a revolução marxista.

O remédio para a "luta de classes" preconizada por Marx está na


"contemplação da verdade", apontada por Santo Tomás: a realidade
mais verdadeira que os homens devem ter diante de si é a grandeza
de sua vocação, a efemeridade deste mundo e a bem-aventurança
eterna da qual Deus nos quer fazer partícipes.

O remédio do arrependimento. – Para quem investiu toda a sua


vida em alegrias passageiras, há uma solução: recorrer à verdadeira
alegria, trilhando a senda do arrependimento. O místico São João
Clímaco fala do πένθος (pénthos) [10], que não é senão o luto sadio
do filho pródigo, que deixa de comer a lavagem dos porcos e volta
para a casa do pai, onde é recebido com festa (cf. Lc 15, 11-32).

Atente-se que, diante da alegria com que é recebido de volta o irmão


mais novo, o filho mais velho se entristece, não querendo entrar no
festim de seu pai. Existem, portanto, uma tristeza que conduz à
salvação e outra que conduz à morte. Na história da salvação, várias
personagens representaram essa tristeza pecaminosa – de Caim a
Saul, dos carrascos de Jesus aos perseguidores dos Apóstolos. Os
seus exemplos, porém, são sinal de uma única e fatal tristeza: a que
não reconhece a alegria do Evangelho e a verdade que, contemplada
pelos homens, leva-os ao Céu.
O pecado da acídia
Para muitos, a preguiça parece um pecado
"simpático" e evoca cenas no mínimo
engraçadas do cotidiano: é a licença para ativar
o "modo soneca" do celular, a corrida de um
funcionário atrasado para o serviço, o tempo
desperdiçado na linha do tempo do Facebook, e
os exemplos se multiplicam... Mas, por trás de
todos esses comportamentos, está uma
preguiça muito mais séria e perigosa: a preguiça
de ser santo. Neste vídeo exclusivo, Padre Paulo
Ricardo fala sobre a doença espiritual da acídia,
a qual tem se espalhado hoje como uma
verdadeira epidemia. Em que consiste esse
pecado? O que gera a acídia e quais as suas
consequências para a vida espiritual? Por que
essa tristeza como que "paralisa" a pessoa,
tornando-a incapaz de agir e trabalhar?
Descubra, através das lições de Evágrio Pôntico,
São Gregório Magno e Santo Tomás de Aquino,
quais as raízes e os efeitos terríveis desse
pecado capital.
Para muitos, a preguiça parece um pecado "simpático" e evoca
cenas no mínimo engraçadas do cotidiano: é a licença para ativar o
"modo soneca" do celular, a corrida de um funcionário atrasado para
o serviço, o tempo desperdiçado na linha do tempo do Facebook, e
os exemplos se multiplicam...

Mas, por trás de todos esses comportamentos, está uma preguiça


muito mais séria e perigosa: a preguiça de ser santo.

Neste vídeo exclusivo, Padre Paulo Ricardo fala sobre a doença


espiritual da acídia, a qual tem se espalhado hoje como uma
verdadeira epidemia.

Em que consiste esse pecado? O que gera a acídia e quais as


suas consequências para a vida espiritual? Por que essa tristeza
como que "paralisa" a pessoa, tornando-a incapaz de agir e
trabalhar?

Descubra, através das lições de Evágrio Pôntico, São Gregório


Magno e Santo Tomás de Aquino, quais as raízes e os efeitos
terríveis desse pecado capital.

A acídia como "tristeza espiritual". – Santo Tomás de Aquino, ao


considerar os vícios opostos à alegria da caridade, começa pela
acídia (do grego ἀκηδία, que quer dizer, literalmente, "falta de
cuidado"), a qual ele define como "tristeza do bem espiritual"
(acedia nominat tristitiam spiritualis boni) [1]. Trata-se de uma
amargura que se abate sobre a pessoa, quando ela considera o
projeto de santidade que Deus tem para si: no começo, até sente
entusiasmo com a pregação das virtudes e a vida dos santos, mas,
quando tem que aplicar em si as verdades divinas, deprime-se e fica
desanimada, acabrunhada pela grandeza das exigências da vida
cristã.

O povo de Israel perambulando no deserto por longos quarenta anos


é uma imagem muito adequada dessa doença espiritual. Depois de
serem libertos da escravidão do Egito, os israelitas chegaram bem
depressa às portas da Terra Prometida. Por medo e covardia, no
entanto, não quiseram atravessar e conquistar a terra que Deus tinha
preparado para eles: "O povo que vive nessa terra é muito forte –
diziam eles –, as cidades são fortificadas e enormes. (...) Não
podemos enfrentar esse povo, porque é mais forte do que nós" ( Nm
13, 28.31). O povo de Deus chegou a planejar uma volta para o Egito:
"Por que nos leva o Senhor para esta terra? A fim de cairmos ao fio
da espada, e para que nossas mulheres e nossos filhos sejam
reduzidos ao cativeiro? (...) Vamos escolher um chefe e voltar para o
Egito" (Nm 14, 3-4). Como castigo por sua infidelidade, o Senhor
entregou-os às suas vontades e deixou que vagassem quarenta
anos no deserto: "Não entrarão no meu repouso prometido" (Sl 94,
11; cf. Nm 14, 20-38). O acidioso, como o povo de Israel, tem a Terra
Prometida diante de si, mas não quer entrar. Ele vê o grande projeto
para o qual é chamado – a santidade –, mas resiste em dar o passo
do amor.

No início de sua teologia moral, o Doutor Angélico deixa bem claro


que a bem-aventurança do homem está na comunhão e na amizade
com Deus: " Solus Deus voluntatem hominis implere potest – Só
Deus pode satisfazer a vontade do homem" [2]. O que o pecado
original faz é transformar esse que é o verdadeiro bem das almas e
revesti-lo de uma aparência de mal. Como, para unir-se com Deus, a
alma humana deve mortificar o seu egoísmo e fazer a "passagem"
da Páscoa, o acidioso, porque não enxerga a Ressurreição por trás
da Cruz, interpreta o bem divino como uma desgraça e isso o enche
de uma tristeza profunda e paralisante.

Na verdade, essa doença é uma verdadeira epidemia nos tempos


modernos, assim como era muito comum entre os religiosos de vida
monástica. Evágrio Pôntico, um dos grandes psicólogos da
espiritualidade, descreve a acídia como uma divagação da "alma
peregrina" que, em um misto de desejo e ira, anseia pelo que não
tem e sente raiva do que tem. Diz ele:

"A nuvem carente de água é dispersada pelo vento e a mente


sem paciência, pelo espírito da acídia. (...) O vento da acídia tira o
monge de sua morada, enquanto quem é tolerante e paciente
tem uma vida tranquila. (...) O monge preguiçoso é veloz em seu
ofício, e toma como preceito a própria satisfação. A brisa leve
agita e faz curvar a planta frágil; a imaginação da peregrinação
distrai o acidioso. (...) O monge vagabundo é um arbusto árido da
solidão, descansa pouco e é agitado de lá para cá contra a sua
vontade. A planta transladada não oferece fruto e o monge
itinerante não dá fruto de virtude. Ao débil e enfermo um só
alimento não satisfaz; ao monge acidioso uma só ocupação não é
o bastante. Ao luxurioso uma mulher não é suficiente e ao monge
acidioso não basta uma cela." [3]

A acídia como "tédio no agir". – Como essa doença deixa a pessoa


inerte e preguiçosa, o Aquinate também a conceitua como "um certo
tédio no agir" (acedia importat quoddam taedium operandi) [4]. Isso
acontece porque, como tudo o que o ser humano faz é por amor, o
acidioso, que não ama, não consegue realizar nenhuma obra. O
círculo do amor começa por um desejo de unir-se ao objeto amado –
o que pode chamar-se de "união afetiva"; esse desejo, para chegar a
uma "união efetiva", deve ser operante, procurando, por meio de
atos concretos, realizar a fusão entre o sujeito amante e o objeto
amado. Se, porém, o amor da pessoa está doente, ela não se motiva,
torna-se incapaz de agir. Esta é a raiz de uma sociedade lânguida e
inoperante: a falta de amor.

Assim como a união com o ser amado provoca o gaudium, a alegria


[5], a acídia é corretamente identificada como uma tristeza. Contra
ela, um só remédio é possível: a conversão (do grego µετάνοια, que
significa, literalmente, "mudança de pensamento"), pela qual a
pessoa deixa de ver Deus como um inimigo e se decide a amá-Lo
com determinação. Isso, porém, é objeto da próxima aula deste
curso.

As filhas da acídia. – Analisando as consequências da acídia, São


Gregório Magno define como suas filhas "malitia, rancor,
pusillanimitas, desperatio, torpor circa praecepta, vagatio mentis
erga illicita – a malícia, o rancor, a pusilanimidade, o desespero, o
torpor em relação aos preceitos e a divagação da mente por coisas
proibidas" [6], ao que Santo Tomás comenta:

"Gregório designou as filhas da acídia como devia. Com efeito,


segundo o Filósofo, 'ninguém pode ficar muito tempo sem prazer
em companhia da tristeza'. Por isso a tristeza tem
necessariamente dois resultados: leva o homem a se afastar do
que o entristece; e o faz passar a outras atividades nas quais
encontra seu prazer. Assim, os que não podem alegrar-se com as
alegrias espirituais voltam-se para as alegrias corporais, segundo
o Filósofo. Nesse movimento de fuga, em relação à tristeza,
observa-se o seguinte processo: primeiro, o homem foge das
coisas que o entristecem; em seguida, combate o que lhe traz
tristeza. Ora, os bens espirituais com os quais a acídia se
entristece são o fim e os meios para o fim. Foge-se do fim por
desespero. Foge-se dos bens que são meios, quando se trata de
bens difíceis pertencentes à via dos conselhos, pela
pusilanimidade; quando se trata de bens que provêm da justiça
comum, pelo torpor em relação aos preceitos. – O combate
contra os bens espirituais entristecedores se dá por vezes contra
os homens que os propõem, e surge então o rancor; por vezes o
combate se estende contra os próprios bens espirituais, o que
leva a detestá-los, e surge então a malícia propriamente dita. –
Enfim, quando por causa da tristeza alguém passa dos bens
espirituais para os prazeres exteriores, a filha da acídia é então a
divagação por coisas proibidas." [7]
Terapia da acídia
Nem sempre preguiça significa ficar sem fazer
nada. De nada adianta, por exemplo, nos
entupirmos de coisas para fazer, se estamos
sempre adiando nossa vida de oração e
deixando nossos deveres de estado para a
última hora. Como sair do vício da acídia? Qual a
solução para vencer o tédio e a moleza nos
serviços do dia a dia? É possível conciliar o
trabalho duro com a vida de comunhão e
intimidade com Deus? Nesta 18.ª aula de Terapia
das Doenças Espirituais, descubra os remédios
da espiritualidade católica para a preguiça e
aprenda a firmar o seu coração no "único
necessário".
Nem sempre preguiça significa ficar sem fazer nada. De nada
adianta, por exemplo, nos entupirmos de coisas para fazer, se
estamos sempre adiando nossa vida de oração e deixando nossos
deveres de estado para a última hora.

Como sair do vício da acídia? Qual a solução para vencer o tédio e a


moleza nos serviços do dia a dia? É possível conciliar o trabalho duro
com a vida de comunhão e intimidade com Deus?

Nesta 18.ª aula de Terapia das Doenças Espirituais, descubra os


remédios da espiritualidade católica para a preguiça e aprenda a
firmar o seu coração no "único necessário".
Como dito na última aula, a acídia constitui uma tristeza em relação
aos bens espirituais [1]. Diante do grande santo em que Deus quer
transformar todo ser humano, o acidioso inquieta-se, agita-se, tem o
seu coração dividido (µεριµνᾷ, em grego), sem conseguir
concentrar-se em sua identidade e vocação à perfeição.

Por isso, um das formas básicas de remediar esse estado doentio é a


quietude (stabilitas), que consiste em ter firme o coração no seu
devido lugar. Isso estende-se para todas as atividades diárias,
mormente a oração e o trabalho. É preciso ter propósitos bem
determinados na vida de oração – sem ficar mudando de práticas
devocionais a todo momento –, bem como constância e
perseverança nos serviços a ser realizados no dia a dia. A Ordem de
São Bento condensa isso no seu famoso lema "Ora et labora – Reza
e trabalha".

A cura pelo trabalho. – Há, de fato, uma grande ênfase dos Padres
do Deserto na questão do trabalho. Evágrio Pôntico, por exemplo,
condena várias vezes os que ele chama de "monges giróvagos". "O
monge vagabundo é um arbusto árido da solidão, descansa pouco e
é agitado de lá para cá contra a sua vontade", ele diz. "A planta
transladada não oferece fruto e o monge itinerante não dá fruto de
virtude" [2]. Na mesma linha, João Cassiano, em suas Instituições
Cenobíticas, dedica todo um capítulo à acídia, ressaltando aí a
importância do trabalho humilde e perseverante como remédio à
doença [3].

Mesmo para quem não é monge, porém, fica de pé o conselho de


levar a sério o trabalho ordinário como meio de santificação. O
acidioso deve amar e servir a Deus nos trabalhos humildes do dia a
dia, evitando distrair-se à procura de tarefas extraordinárias – que,
no mais das vezes, não passam de desculpas para fugir das próprias
obrigações. Nesses casos, o vício da preguiça disfarça-se sob a
máscara de um falso e perigoso "ativismo".

Sobre essa matéria, a obra de dois santos em especial merece ser


mencionada.

O primeiro deles é São Francisco de Sales, que escreve, em sua


Introdução à Vida Devota, as seguintes linhas:

"Na conservação e aquisição dos bens terrestres, imita as


crianças que, segurando-se com uma mão na mão de seu pai,
com a outra se divertem em colher frutos e flores; quero dizer
que te deves conservar continuamente debaixo da dependência e
proteção de teu Pai celeste, considerando que ele te segura pela
mão, com diz a Sagrada Escritura, para te conduzir felizmente ao
termo de tua vida e volvendo de tempos em tempos os olhos
para ele, a ver se tuas ocupações lhe são agradáveis; toma
principalmente cuidado que a cobiça de ajuntar maiores bens não
te faça largar a sua mão e negligenciar a sua proteção, porque, se
ele te abandonar, não poderás mais dar um passo sequer que não
caias com o nariz no chão.

Assim, Filotéia, nas ocupações ordinárias que exigem muita


atenção, pensa mais em Deus que em teus negócios e, se forem
de tal importância que ocupem toda a tua atenção, nunca deixes
de levantar de vez em quando os olhos para Deus, como os
navegantes que, para dirigirem o navio, mais olham para o céu
que para o mar. Fazendo assim, Deus trabalhará contigo, em ti e
por ti e teu trabalho te trará toda a consolação que dele esperas."
[4]

Outro grande mestre nesse assunto é São Josemaría Escrivá – o


fundador do Opus Dei –, cujas obras, repletas de conselhos práticos
e de profundo conteúdo espiritual, podem ser facilmente
consultadas na Internet.

A cura pelo descanso. – Com relação à vida interior, é preciso


lembrar uma consideração que faz o Doutor Angélico sobre a
gravidade do pecado da acídia. Trata-se, diz ele, de um pecado
mortal, já que "se opõe ao preceito de santificação do sábado que
prescreve, enquanto preceito moral, o repouso da alma em Deus"
[5]. É a esse repouso espiritual que se refere Santo Agostinho,
quando preleciona, em suas Confissões, que "inquieto está o nosso
coração, até que repouse em Deus" [6].

Mas que tem que ver o pecado da acídia com o terceiro preceito do
Decálogo?

No Antigo Testamento, para ensinar o inculto povo de Israel a rezar,


Deus se serviu de um mandamento que ordenava os homens a
repousarem no dia do sábado:

"Lembra-te de santificar o dia do sábado. Trabalharás durante


seis dias e farás todos os trabalhos, mas o sétimo dia é sábado,
descanso dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho
algum, nem tu, nem teu filho, nem teu escravo, nem tua escrava,
nem teu gado, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades." (Ex
20, 8-10)

O sentido do descanso sabático, todavia, não se esgotava nessas


linhas. Apontava para uma realidade muito maior, constituindo um
sinal do verdadeiro descanso que todos os homens são chamados a
encontrar em Deus, através da oração. Por isso, embora o dia de
preceito dos cristãos não seja mais o sábado, mas o domingo,
permanece válida a realidade moral a que faz referência esse
mandamento do Decálogo. "Santificar o dia de sábado", pois, nada
mais é que santificar todos os dias de nossa vida, dedicando a Deus
um tempo exclusivo para a oração.
Mas qual é o gênero de oração que pode ajudar concretamente os
acidiosos a deixarem o seu pecado?

A resposta está na faculdade da vontade, pela qual os seres


humanos elevam a sua alma a Deus de modo propriamente humano.
Muitas vezes, ao rezarem, as pessoas se movem no campo do que é
meramente físico e animal – como é o caso dos sentimentos e da
imaginação. Estão mais à procura de arrepios e consolações que de
uma verdadeira relação de amizade com Deus. Não que seja errado
servir-se dessas potências para rezar. As parábolas contadas por
Jesus são um sugestivo recurso pedagógico envolvendo a
imaginação, e Santa Teresa de Ávila, a mestra da oração, sempre
recomendou às suas irmãs que usassem essa faculdade da alma. O
problema está em estacionar nessas paragens e não ir adiante. Na
vida de oração, mais do que simples afetos sensíveis, o essencial
está em unir a própria vontade à vontade de Deus.

Só assim é possível entender o amor dos santos à Cruz.


Contrariando-se a si mesmos, eles enxergavam em todas as
circunstâncias adversas desta vida uma ocasião para amar o seu
Senhor. Santa Teresinha do Menino Jesus, por exemplo, narra em
sua autobiografia como começou a manifestar sinais de amor para
com uma irmã que não lhe era muito agradável [7]. Ela não sentia,
mas queria, atraída pelo charme que carrega consigo todo
sofrimento [8]. E todas essas pequenas coisas, vividas com um
amor extraordinário, fizeram dela uma grande santa.

Para vencer a acídia, o caminho é o mesmo. Diante da tentação do


desânimo e da letargia espiritual, é preciso reagir com a grandeza e
o heroísmo dos santos, perseverando insistentemente, "com
determinada determinação" [9], até atingir a meta definitiva, que é a
eterna bem-aventurança no Céu.
A soberba
É a "rainha de todos os vícios" o tema desta aula
de nosso curso de Terapia das Doenças
Espirituais. Por ela caiu Lúcifer e caíram Adão e
Eva. Nela ainda, correm o risco de cair até as
pessoas que venceram os seus pecados mais
grosseiros e começaram a ter uma vida
espiritual. Conheça o perigo da soberba, saiba
quais são as espécies deste pecado e descubra
quais as virtudes necessárias para combatê-lo.
É a "rainha de todos os vícios" o tema desta aula de nosso curso de
Terapia das Doenças Espirituais. Por ela caiu Lúcifer e caíram Adão e
Eva. Nela ainda, correm o risco de cair até as pessoas que venceram
os seus pecados mais grosseiros e começaram a ter uma vida
espiritual.

Conheça o perigo da soberba, saiba quais são as espécies deste


pecado e descubra quais as virtudes necessárias para combatê-lo.

Os Padres do Oriente incluem a soberba no rol dos pecados capitais,


os quais acabam totalizando o número de oito [1]. Em sintonia com o
Autor Sagrado, todavia, para quem "a soberba é o início de todo
pecado" (Eclo 10, 15), São Gregório Magno situa a superbia acima
dos outros sete pecados, chamando-a de "rainha dos vícios" [2].

Santo Tomás de Aquino, em concordância com esse raciocínio,


explica [3] que é possível tomar essa palavra em três acepções:

1. Na primeira, como um "apetite desordenado da própria


excelência" (inordinatum appetitum propriae excellentiae) – a
qual se chama também de amor próprio ou filáucia;
2. Na segunda, como um "certo desprezo atual de Deus"
(quendam actualem contemptum Dei), quanto ao seu efeito,
que é não submeter-se aos Seus mandamentos;
3. Na terceira, como uma "certa inclinação a esse mesmo
desprezo" (quendam inclinationem ad huiusmodi contemptum),
que vem da corrupção da natureza humana, pelo pecado
original.

Em todos esses sentidos, a soberba é considerada a raiz de todos os


vícios.

Trata-se, também, por sua natureza espiritual, de um tipo


particularmente grave de pecado. Para entendê-lo, é preciso
conhecer a distinção que existe, quanto ao tipo de prazer que se
busca, entre pecados carnais e pecados espirituais [4]: enquanto os
primeiros consistem em deleites carnais – como a ira, a tristeza, a
avareza, a gula e a luxúria –, os segundos dizem respeito ao espírito
– e dessa espécie são a soberba e a inveja. Considerada
simplesmente a diferença entre o espírito e a carne, explica o Doutor
Angélico, esses pecados são mais graves que os outros, por três
razões:

1. Da parte do sujeito (ex parte subiecti): "Enquanto os pecados


espirituais pertencem ao espírito – ao qual é próprio tanto o
converter-se a Deus quanto o afastar-se d'Ele –, os pecados
carnais são consumados no deleite do apetite carnal – ao qual é
próprio principalmente o converter-se ao bem corporal. Assim,
pois, como o pecado carnal tem mais de 'conversão', razão pela
qual é maior a sua adesão, o pecado espiritual tem mais de
'aversão', da qual procede a razão da culpa. Em si mesmo,
portanto, implica maior culpa o pecado espiritual."
2. Da parte daquele contra quem se peca (ex parte eius in quem
peccatur): "Enquanto tal, o pecado carnal vai contra o próprio
corpo. Este deve ser amado, segundo a ordem da caridade,
menos que a Deus e ao próximo, contra quem vão os pecados
espirituais. Por isso, em si mesmos, os pecados espirituais
implicam maior culpa."
3. Da parte do motivo (ex parte motivi). "Porque quanto maior é o
impulso a pecar, tanto menos o homem peca. Ora, os pecados
carnais procedem de um impulso mais veemente, que é a
própria concupiscência da carne, inata em nós. Por isso, em si
mesmos, os pecados espirituais implicam maior culpa." [5]

Os anjos, como seres puramente espirituais que são, podem


cometer tão somente essa espécie de pecado [6] – e efetivamente o
fizeram: primeiro, quando quiseram ser como Deus, pecando por
soberba; depois, quando seduziram o homem a fazer o mesmo,
pecando por inveja.

É preciso entender que, quando cederam à tentação de Lúcifer,


Adão e Eva pecaram por um "apetite desordenado da própria
excelência". Isso significa dizer que há uma vontade ordenada da
própria excelência. Trata-se da importante virtude da
magnanimidade. Não há problema em que as criaturas aspirem à
perfeição, em que os homens queiram ser semelhantes a Deus. Do
contrário, as exortações do Autor Sagrado à santidade de vida não
teriam sentido algum (cf. Lv 11, 44; Mt 5, 48). O mal está em querer
ser como Deus por usurpação, e não por graça; em querer tomar à
força aquilo que deve ser recebido como um dom gratuito do Criador
[7].

Ao lado desse desejo de perfeição, desse saudável anseio pelas


coisas do alto, deve estar a virtude oposta à soberba, que é a
humildade. Como ensina Santa Teresa, a humildade consiste em
"andar na verdade" [8], cultivando o conhecimento da própria
baixeza e reconhecendo a condição de pecado e de afastamento de
Deus em que se vive. À medida que se cresce nessa virtude, é
crescente também a virtude da magnanimidade. Como no
organismo humano normal, em que os órgãos e membros do corpo
crescem todos juntos, no organismo sobrenatural as virtudes não
aumentam sozinhas: quem é humilde não deixa de aspirar à
grandeza; quem se reconhece miserável diante de Deus é, ao
mesmo tempo, magnânimo. Com essas duas virtudes, cresce na
criatura a consciência de sua total dependência em relação a Deus.
Não se pode chegar à semelhança com Ele sem que Ele mesmo
venha em auxílio do homem com a Sua graça.

Cabe assinalar ainda as quatro espécies de soberba


convenientemente elencadas por São Gregório Magno (e ratificadas
por Santo Tomás, em S. Th., II-II, q. 162, a. 4). "Todo o tumor dos
arrogantes – diz ele – se manifesta de quatro modos:

1. Quando estimam possuir o bem graças a eles próprios (cum


bonum a semetipsis habere se aestimant);
2. Quando, mesmo acreditando que o bem lhes foi dado do alto,
acham que foi por seus méritos que o receberam (si sibi datum
desuper credunt, pro suis hoc accepisse meritis putant);
3. Quando se gabam de possuir o que não possuem (cum iactant
se habere quod non habent);
4. Quando, desprezando os demais, apreciam particularmente
ostentar o que possuem (despectis ceteris, singulariter videri
appetunt habere quod habent)." [9]

Por fim, vale lembrar que o vício da soberba – sendo um pecado


espiritual, como já se disse – é uma armadilha constante no caminho
de quem quer servir a Deus. Depois de lutar contra as faltas mais
grosseiras, como são a gula, a luxúria e a ira, é bem possível que
esteja o demônio, à espreita no final, tentando a pessoa ao pecado
da soberba. A advertência é de São João da Cruz:

"Nesta prosperidade, sentem-se estes principiantes tão


fervorosos e diligentes nas coisas espirituais e exercícios
devotos, que – embora as coisas santas de si humilhem –, devido
à imperfeição deles, muitas vezes lhes nasce certo ramo de
soberba oculta, de onde vêm a ter alguma satisfação de suas
obras e de si mesmos. Nasce-lhes também certa vontade algo
vã, e às vezes muito vã, de falar sobre assuntos espirituais diante
de outras pessoas, e ainda, às vezes, de ensiná-los mais do que
de aprendê-los. Condenam em seu coração a outros quando não
os vêem com o modo de devoção que eles queriam, e chegam
até a dizê-lo claramente. Tornam-se semelhantes ao fariseu que,
louvando a Deus, se gabava das obras que fazia, enquanto
desprezava o publicano." [10]
O pecado da vaidade
"Vaidade das vaidades" é o mundo virtual. Em
tempos de "redes sociais", todo o mundo quer
aparecer e ver a sua estrela brilhar diante dos
outros. Em meio ao número quase infinito de
posts, está muitas vezes a insaciável
competição por curtidas e compartilhamentos
que, no fim das contas, não leva a lugar algum.
Nesta aula do curso de Terapia das Doenças
Espirituais, conheça o pecado mais popular do
mundo virtual, a partir da doutrina perene de
Santo Tomás de Aquino, e saiba por que nem
sempre é saudável ficar buscando a própria
glória e a aprovação dos outros.
"Vaidade das vaidades" é o mundo virtual. Em tempos de "redes
sociais", todo o mundo quer aparecer e ver a sua estrela brilhar
diante dos outros. Em meio ao número quase infinito de posts, está
muitas vezes a insaciável competição por curtidas e
compartilhamentos que, no fim das contas, não leva a lugar algum.

Nesta aula do curso de Terapia das Doenças Espirituais, conheça o


pecado mais popular do mundo virtual, a partir da doutrina perene
de Santo Tomás de Aquino, e saiba por que nem sempre é saudável
ficar buscando a própria glória e a aprovação dos outros.

Depois de examinar a soberba, considerada por São Gregório Magno


"rainha dos vícios", cabe-nos olhar bem de perto para um de seus
efeitos diretos, que é o pecado da vanglória (ou vaidade).

Embora ambos os vícios tenham a ver com a excelência, explica


Santo Tomás de Aquino, "a soberba não é o mesmo que a vanglória,
mas a sua causa, porque busca a excelência de forma desordenada,
ao passo que a vanglória almeja a manifestação da excelência
(inanis gloria appetit excellentiae manifestationem)" [1].

Para entendermos o que seja essa "manifestação da excelência", o


mesmo Doutor Angélico vem em nosso auxílio, no capítulo da Suma
Teológica que ele dedica, inteiro, ao pecado da vanglória. Trata-se
da questão 132, da segunda seção da segunda parte (secunda
secundae) de sua obra.

No artigo 1.º, considerando se o desejo da glória é pecado (utrum


appetitus gloriae sit peccatum), o Aquinate afirma que "a glória
significa um certo brilho". Ele se serve de Santo Agostinho, para
quem ser glorificado (glorificari) significa, de alguma forma, ser
clarificado (clarificari). "O brilho tem uma certa beleza que se
manifesta diante de todos", explica Tomás. "É a razão pela qual a
palavra glória implica manifestação de alguma coisa que os homens
acham bonita, quer se trate de um bem corporal ou espiritual."

Esse processo pode ser descrito simplesmente assim: primeiro, tem-


se a excelência de um indivíduo; quando os outros a reconhecem,
acontece a reverência (que, quando se manifesta externamente, é
chamada honra); esta, por sua vez, resulta na glória, faz
resplandecer a excelência daquela pessoa e, quanto mais ela é
glorificada, mais brilha a sua luz diante dos homens (cf. Mt 5, 16), e
mais se está obrigado, por justiça, a reverenciar esse indivíduo.
Trata-se, pois, de um ciclo, que, por si mesmo (de se), "não designa
nada de vicioso". "Não é pecado desejar que suas boas obras sejam
aprovadas pelos outros", diz o Doutor Angélico.
O problema está no apetite da glória vã (κενοδοξία, em grego; inanis
gloria, em latim), que pode acontecer por três razões:

1. Por causa do objeto de que se procura tirar glória (ex parte


rei de qua quis gloriam quaerit), "quando por exemplo se
procura glória por algo que não existe, ou por uma coisa que
não é digna dela, por ser frágil e caduca". É o caso de um
impuro que se jacta de ter guardado a própria virgindade,
quando, na verdade, ela não mais existe; ou o de um jovem que
se gaba de ter bebido mais que todos os seus amigos numa
festa, quando isso não é motivo de glória coisíssima nenhuma.
2. Pela inépcia de quem se procura ganhar glória (ex parte eius
a quo quis gloriam quaerit). Seria o caso de um jogador de
futebol que tenta arrancar elogios de um completo ignorante da
matéria, ou de um pianista que procurasse demonstrar seus
talentos musicais a uma plateia de incultos.
3. Por parte da própria pessoa que busca a glória (ex parte
ipsius qui gloriam appetit), "quando, por exemplo, esta pessoa
não orienta o seu desejo de glória para o fim devido, qual seja a
honra de Deus ou a salvação do próximo". Essa situação é muito
frequente na vida de quem já abandonou os erros mais
grosseiros e começou a ter vida interior, mas ainda está a fazer
as coisas certas pelas razões erradas. Para remediar esse
estado, uma grande ajuda é observar a vida dos santos. Santa
Teresinha do Menino Jesus, quando aumenta a sua fama e o
número de seus devotos no mundo inteiro, o que quer é
incendiar os corações humanos com o amor de Deus. A Mãe de
Deus, quando canta o Magnificat e diz que todas as gerações a
proclamarão bem-aventurada, não o faz por vaidade, mas
porque quer ver exaltado Aquele cujo nome é santo e cuja
misericórdia se estende sobre os homens (cf. Lc 1, 48ss). O
próprio Deus, escreve Santo Tomás, "não procura sua glória
para si próprio, mas para nós" (ad 1): Ele sabe que, quando lhe
rendemos glória, isso redunda também em nosso benefício. "De
modo semelhante – acrescenta o Aquinate –, o homem também
pode desejar sua própria glória para o serviço dos outros".

Há, portanto, uma glória justa, buscada pelos santos, e uma glória
vazia, que é capaz de "sugar", por assim dizer, todos os bens
interiores de uma alma, "enquanto torna o homem presunçoso e
confiante demais em si mesmo" [2].

Mas, de que gênero é o pecado da vaidade? No artigo 3.º da mesma


questão, o Doutor Angélico explica que – diferentemente da
soberba, que é pecado mortal – a vanglória, simplesmente
considerada, é pecado venial, mas pode tornar-se mortal quando se
opõe ao amor de Deus. E como a vaidade se opõe à caridade devida
a Deus? De dois modos, ele diz:

1. "Em razão da matéria da qual alguém se gloria (ratione


materiae de qua quis gloriatur). (a) Por exemplo, se uma pessoa
se glorifica de uma coisa falsa que se opõe ao respeito devido a
Deus, como consta em Ez 28, 2: 'Teu coração se encheu de
orgulho e tu disseste: Eu sou Deus', e 1 Cor 4, 7: 'Que tens tu
que não tenhas recebido? E se o recebeste por que te gloriar
como se não tivesses recebido?' (b) Ou ainda, quando alguém
prefere a Deus um bem temporal do qual se gloria, o que proíbe
Jr 9, 23-24: 'Que o sábio não se glorifique de sua sabedoria,
nem o forte de sua força, nem o rico de suas riquezas, mas
quem quer se gloriar, que encontre glória nisto: ter inteligência e
me conhecer'. (c) Ou ainda, quando alguém coloca o
testemunho dos homens acima do testemunho de Deus, como
aqueles que são condenados em Jo 12, 43: 'Eles amaram a
glória dos homens mais que a glória de Deus'.
2. Da parte do próprio vaidoso (ex parte ipsius gloriantis), que
projeta sua intenção sobre a glória como sobre seu fim último,
orientando para ela todas as suas obras de virtude chegando
até a cometer ações contra Deus. Neste caso, o pecado da
vanglória é pecado mortal. Por isso Agostinho escreve: 'Quando
a cupidez da glória supera no coração o amor e o temor de
Deus, este vício é tão inimigo da fé piedosa, que leva o Senhor a
dizer: Como podeis ter fé, vós que esperais vossa glória uns dos
outros, e que não procurais a glória que vem de Deus, e só
dele? (Jo 5, 44)'."

Posto tudo isso, só nos falta compreender por que a vanglória é


considerada pecado capital. Para tanto, na próxima aula, falaremos
sobre as filhas da vaidade, que nos ajudarão a identificar o modo
concreto como esse vício se manifesta no dia a dia e em nossa
conduta pessoal.
As filhas da vaidade
Esta aula pretende ser um verdadeiro exame de
consciência. Normalmente, quando alguém
menciona simples e vagamente a palavra
"vaidade", tendemos a ficar em dúvida se
possuímos ou não esse pecado capital. É só
quando conhecemos as suas filhas, isto é, os
pecados decorrentes desse vício, que
identificamos com mais facilidade onde estamos
errando. Descubra quais são, nesta 21.ª aula de
nosso curso de Terapia das Doenças Espirituais,
as filhas da vanglória, a partir das lições de São
Gregório Magno e Santo Tomás de Aquino.
Esta aula pretende ser um verdadeiro exame de consciência.
Normalmente, quando alguém menciona simples e vagamente a
palavra "vaidade", tendemos a ficar em dúvida se possuímos ou não
esse pecado capital. É só quando conhecemos as suas filhas, isto é,
os pecados decorrentes desse vício, que identificamos com mais
facilidade onde estamos errando.

Descubra quais são, nesta 21.ª aula de nosso curso de Terapia das
Doenças Espirituais, as filhas da vanglória, a partir das lições de São
Gregório Magno e Santo Tomás de Aquino.

Esta aula pretende ser um verdadeiro exame de consciência.


Normalmente, quando um pregador menciona simples e vagamente
a palavra "vaidade", as pessoas em volta ficam em dúvida se
possuem ou não esse pecado. É, afinal, quando se conhece as suas
filhas, isto é, os pecados que se originam desse vício capital, que o
penitente identifica com mais facilidade onde está errando e, então,
põe os remédios para livrar-se da doença espiritual.

Diz-se que um pecado, como a vanglória, é capital, justamente por


ele ser "cabeça" (caput/capitis, em latim) de outros pecados. São
Gregório Magno elenca, como filhas da vaidade, sete vícios. "Da
vanglória – diz ele – nascem a desobediência, a jactância, a
hipocrisia, a contestação, a obstinação, a discórdia e a presunção do
novo" [1].

Embora pareça aleatória, a lista apresentada por Gregório tem uma


razão de ser, e é Santo Tomás de Aquino, com a sua capacidade
extraordinária de análise e sistematização, quem explica como esses
pecados se originam da vaidade. A brilhante explanação do Aquinate
se encontra no artigo 5.º da questão 132, da segunda seção da
segunda parte (secunda secundae) da Suma Teológica.

Como já visto, "o fim da vanglória é a manifestação da própria


excelência", que pode se dar de dois modos: diretamente, quando a
pessoa quer fazer brilhar a sua glória exaltando-se a si mesma; e
indiretamente, "quando alguém quer manifestar sua superioridade
mostrando que não é inferior aos outros".

Diretamente, as filhas da vaidade são três:

1. A jactância, que se dá por meio de palavras (per verba), é a


falta de quem fica se gabando e contando as suas pretensas
virtudes aos outros, contaminado que está pela ânsia de louvar
a si próprio;
2. A ânsia de novidades (praesumptio novitatum), que se origina
de atos verdadeiros (per facta vera), é o pecado que leva, por
exemplo, os responsáveis pela liturgia a quererem "inventar a
roda" e adaptar danças e teatros indevidos para a celebração
da Santa Missa; e
3. A hipocrisia, que se origina de atos falsos (per ficta), acontece
quando uma pessoa quer demonstrar, com as suas ações,
alguma virtude que ela, na verdade, não possui; a origem grega
dessa palavra quer dizer, literalmente, "máscara".

Indiretamente, as filhas da vaidade são quatro:

1. A teimosia (pertinacia), quanto à inteligência, "que nos leva a


nos apegar demais à nossa própria opinião, de modo a não
aceitar nenhuma opinião melhor";
2. A discórdia, quanto à vontade, "quando alguém não quer
abandonar sua vontade para concordar com outros";
3. A disputa (contentio), quanto à linguagem, "quando alguém
briga com outros, entre gestos e gritos (dum aliquis verbis
clamose)"; e
4. A desobediência, quanto à ação, "quando alguém não quer
executar o preceito do superior".

Diagnosticados detalhadamente os vários aspectos do problema, é


possível partir à cura da doença, coisa que faremos na próxima aula.
Terapia da soberba
A humildade é uma joia preciosa, mas é preciso
saber distinguir a pedra verdadeira entre as
falsas, o ouro verdadeiro do que é simples
bijuteria. Para explicar o que é essa virtude, e
principalmente o que ela não é, Padre Paulo
Ricardo conta com a ajuda de dois doutores da
Igreja: Santo Tomás de Aquino e Santa Teresa
d'Ávila. Nesta aula de Terapia das Doenças
Espirituais, conheça o remédio para se curar do
vício da soberba e aprenda dos santos a
verdadeira humildade de coração.
A humildade é uma joia preciosa, mas é preciso saber distinguir a
pedra verdadeira entre as falsas, o ouro verdadeiro do que é simples
bijuteria.

Para explicar o que é essa virtude, e principalmente o que ela não é,


Padre Paulo Ricardo conta com a ajuda de dois doutores da Igreja:
Santo Tomás de Aquino e Santa Teresa d'Ávila.

Nesta aula de Terapia das Doenças Espirituais, conheça o remédio


para se curar do vício da soberba e aprenda dos santos a verdadeira
humildade de coração.

Como os vícios se combatem com as virtudes que lhes são


contrárias, a terapia para a soberba está na humildade.

Santo Tomás de Aquino, antes de falar especificamente sobre essa


virtude, mostra como ela se relaciona com o bem árduo que todos
devemos buscar, a santidade:

"O bem árduo possui algo que atrai o apetite, a saber, a sua
própria razão de bem, mas possui também algo que retrai o
apetite, ou seja, a própria dificuldade de conquistá-lo. Desses
elementos, o primeiro faz surgir o movimento da esperança e o
segundo, o movimento do desânimo. Mas os movimentos
apetitivos de caráter impulsivo requerem uma virtude que os
modere e os refreie; e os que causam retração precisam de uma
virtude moral que os reforce e estimule. Portanto, relativamente
ao bem árduo, duas virtudes são necessárias. Uma, que tempere
e refreie a alma, para que não aspire, imoderadamente, a coisas
elevadas, e aí entra a humildade; outra, que fortaleça o espírito
contra o desânimo e o incentive a desejar grandes feitos,
segundo a reta razão, e aí aparece a magnanimidade." [1]

Para ilustrar o que ensina o Aquinate, é muito apropriado recorrer à


imagem de um carro parado em uma rampa congestionada: se o
motorista não estiver atento, usando a embreagem, o freio e o
acelerador na medida certa, ou o carro avança e bate no veículo
dianteiro, ou retrocede e se choca com quem vem atrás. Na busca
pela santidade, a virtude da magnanimidade é como o acelerador,
pois nos fortalece e nos impulsiona às coisas do alto; e a humildade
é como o freio, que "tempera" a nossa alma e põe uma ordem em
nosso esforço pela perfeição.

É importante, porém, não confundir a virtude da humildade com a


pusilanimidade, que é o desânimo de quem acha que nunca vai
chegar a ser santo e, por isso, imita aquele servo mau e preguiçoso,
que enterrou os seus talentos na terra (cf. Mt 25, 14ss; Lc 19, 12ss).
Santa Teresa d'Ávila sofreu muito com esse pecado no início de sua
caminhada, chegando a abandonar a vida de oração por causa dele:
"Que humildade tão soberba o demônio inventava em mim [...]!
Faço agora o sinal-da-cruz, e creio que não passei por perigo
maior do que essa invenção que o demônio me ensinava como se
fosse humildade. Ele me sugeria que, sendo eu uma coisa tão
ruim e tendo recebido tantas graças, não podia dedicar-me à
oração; bastava-me fazer as orações obrigatórias, como todas, e,
como nem isso eu fazia bem, não podia querer fazer mais, pois,
assim agindo, desrespeitava e desprezava os favores de Deus."
[2]

Outra grande armadilha em que se pode cair é o pecado do


desespero, que nasce de uma consideração distorcida das próprias
culpas, normalmente apartada da misericórdia de Deus, que "quer
que todos os homens se salvem" (1 Tm 2, 4). Também nessa matéria
Santa Teresa pode nos ajudar, ensinando o modo de identificar essa
"falsa humildade":

"Guardai-vos também, filhas, das humildades que vêm do


demônio, acompanhadas de grande inquietação a respeito da
gravidade dos nossos pecados, que costuma nos acometer de
muitas maneiras até afastar a alma das comunhões e da oração
particular (por não ser ela digna, sugere-lhe o demônio). E
quando a alma se aproxima do Santíssimo Sacramento, perde
todo o tempo em que havia de receber graças pensando se está
ou não bem preparada. A coisa chega a tal ponto que a alma tem
a impressão de que, por ser como é, está tão abandonada por
Deus que quase duvida de Sua misericórdia. Tudo o que ela faz
lhe parece perigoso, e o seu serviço, por melhor que seja,
infrutífero. Vem-lhe uma desconfiança que a impede de fazer
qualquer bem, por pensar ela que o que é bem nos outros nela é
mal." [3]

"Quando o demônio age, percebemo-lo com clareza na


inquietação e no desassossego com que ele começa, na agitação
que traz à alma enquanto dura a sua ação, e na obscuridade e na
aflição que ele deixa, ao lado da aridez e da pouca disposição
para a oração e para fazer algum bem. Ao que parece, ele afoga a
alma e amarra o corpo para que de nada aproveite. Porque a
verdadeira humildade, mesmo que nos faça ver que a nossa alma
é ruim e nos leve a sofrer ao ver o que somos, fazendo-nos
lamentar com sinceridade a nossa maldade, gerando sofrimentos
grandes como os que já falei, e que são sentidos de verdade, não
vem com alvoroço, nem desassossega a alma, não a obscurece
nem lhe traz secura. Em vez disso, a verdadeira humildade traz
graças à alma, e tudo ocorre ao contrário da falsa: com quietude,
com suavidade, com luz." [4]

Para não cair em desespero diante de suas próprias faltas, a alma


precisa considerar, além de sua miséria, a misericórdia de Deus.
"Duas coisas podem ser consideradas no homem – ensina o Doutor
Angélico –, o que é de Deus e o que é do homem: é do homem,
certamente, tudo o que é falho e é de Deus tudo o que é de salvação
e perfeição" [5]. Tendo diante de nós essas duas verdades a nosso
respeito, podemos compreender a afirmação de Santa Teresa
d'Ávila, de que a virtude da humildade consiste em "andar na
verdade", uma vez que "é grandíssima verdade o fato de nada de
bom proceder de nós; só o fazem a miséria e a insignificância" [6].

O que vale para nós também se aplica às outras pessoas. Por isso,
explica Santo Tomás, a humildade nos ensina a sujeição a todos os
homens, como está escrito: "Com humildade, considerai os outros
superiores a vós" (Fl 2, 3). De que modo isso se dá, é o próprio
Aquinate quem explica: "A humildade, como se viu, visa,
propriamente, à reverência com que o homem se submete a Deus. E,
por isso, todo homem, por aquilo que é seu, deve sujeitar-se ao
próximo, quem quer que seja, por causa daquilo que é de Deus
nessa pessoa" [7]. Na prática, portanto, devemos humilhar-nos
somente diante de Deus; como, porém, Ele está presente no próximo
– doando-lhe as Suas graças, as Suas virtudes e os Seus dons –,
também devemos nos submeter aos outros. Um modo de fazer isso
é procurar no irmão uma virtude que ele não tem, ou considerar em
si mesmo um defeito que ele não tem. Se não formos capazes de
fazer isso, ainda assim podemos nos humilhar, pensando que, se
aquela pessoa tivesse recebido as graças que recebemos, ela com
certeza seria melhor do que nós.

Considerando, porém, que a soberba é um mau relacionamento com


Deus, é preciso tomar cuidado com outra "falsa humildade", além
das duas citadas por Santa Teresa. Seu nome é hipocrisia: dá-se
quando a pessoa se demonstra humilde "só por sinais externos, por
fingimento", esquecendo-se que a verdadeira humildade "não está
em coisas exteriores, mas, principalmente, na decisão interior do
espírito" [8]. É o que faz o homem moderno, que gosta de exibir
simplicidade e usar andrajos diante dos outros, enquanto esconde
os confortos de sua burguesia em casa. Nessa matéria, os santos
têm muito a nos ensinar: enquanto exteriormente se apresentavam
como qualquer um, embaixo de suas roupas traziam o cilício que
mortificava a sua carne; vestiam-se conforme a alteza de sua
vocação, mas tinham no peito um coração contrito e humilhado
diante de Deus, sem a necessidade de estampar a sua humildade na
vitrine – o que seria, na verdade, magna superbia [9].

Quem quer que se proponha a trilhar o caminho da humildade, por


fim, deve configurar-se a Nosso Senhor, o "manso e humilde de
coração" (Mt 11, 29), que "se humilhou, fazendo-se obediente até a
morte – e morte de cruz" (Fl 2, 8). "Ponhamos os nossos olhos em
Cristo, nosso bem, e com Ele, bem como com seus santos,
aprenderemos a verdadeira humildade" [10].
Na próxima aula, veremos como fazer isso de forma bem concreta, a
partir dos doze degraus da humildade, expostos por São Bento de
Núrsia em sua Regra.

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