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Storytelling1: As Narrativas como Construção da Identidade Cristã

Felipe Barnabé Duarte

Introdução

Durante muito tempo a antropologia cristã se baseou em modelos modernos para


construir sua visão da realidade do ser humano. Como demonstra James K. A.
Smith em seu livro Desejando o Reino, temos em nosso imaginário social uma
percepção de homens e mulheres que podem ser reduzidos a “cérebros em um
palito”2, o que faz com que pensemos em formas cognitivas de absorção de
conhecimento como melhores formas de comunicar as verdades do evangelho.
Fazendo eco com Smith, Kevin J. Vanhoozer em seu livro O Drama da Doutrina
afirma, entre outras coisas, que a doutrina tem um papel maior do que, somente, a
divulgação de proposições que devem ser conhecidas racionalmente. 3 A doutrina
deve servir como um roteiro para a uma atuação adequada no drama que continua a
se desenrolar em nossos dias.

Uma imagem interessante do ser humano é sugerida pelo próprio Smith, em que ele
aponta nossos amores, nossa visão da boa vida, como determinantes para forma
como vivemos. A suspeita do dr. Smith tem fundamento, qualquer redução do ser
humano a um aspecto apenas, empobrece a vida e não apresenta todo o potencial
da Imago Dei. Os dois autores citados, possuem uma visão mais complexa do ser
humano, não idênticas, mas próximas o suficiente para o propósito desse artigo.
Somos seres pensantes? Sim, mas não só isso. Nossas afeições, sentidos e
imaginação desempenham um papel muito importante em nossa forma de viver.
Com isso em mente, percebemos que a doutrina cristã não deve apelar apenas a
nossa racionalidade, mas a todo o nosso ser. Meu objetivo com esse artigo é
investigar qual o impacto dessa visão reducionista do homem em nossa produção
cultural? Mais especificamente, como devemos pensar a produção de arte com uma

1
O Cambridge Dictionary define Storytelling como “the activity of writing, telling, or reading stories” [a
atividade de escrever, contar ou ler histórias]
2
SMITH, James K. A. Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural. Tradução: A. G.
Mendes. São Paulo, Vida Nova, 2018.
3
VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordagem canônico-linguística da teologia
cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo, Vida Nova, 2016.
1
visão mais holística do homem? Como apresentar a doutrina cristã de uma forma
que ela seja absorvida pela igreja e pelo mundo de uma forma mais completa e que
leve em consideração o homem como um ser mais complexo?

Cérebros em um palito?

Smith afirma: "...a forma que pensamos a respeito da educação se acha


inextricavelmente associada ao modo de pensarmos sobre a pessoa humana."
[ CITATION Smi18 \l 1033 ]. Gostaria de ampliar essa ideia para afirmar que a forma
com que pensamos a pessoa humana se acha inextricavelmente associada a
qualquer coisa que praticamos, dentre elas a produção de narrativas 4. Contamos
histórias para pessoas humanas. É inevitável que adaptemos essas histórias para
que se adequem a formas com que imaginamos que as pessoas “entenderão”. Mas,
talvez, entender não seja a única, e nem a melhor, definição do que queremos ao
contar uma história.

A alternativa que o dr. Smith dá para o conceito de cosmovisão nos ajuda a perceber
outras formas de utilizar as histórias:

“O "imaginário social" é uma compreensão afetiva, não cognitiva, do mundo. Ele é


descrito como imaginário (e não como uma teoria) porque é alimentado pela matéria
da imaginação, e não do intelecto; ele é feito de histórias, narrativas, mitos e ícones
e está neles entranhado. Essas visões capturam nosso coração e imaginação,
"guarnecendo" - por assim dizer - a imaginação, proporcionando estruturas de
"significado" pelas quais interpretamos nosso mundo...”[ CITATION Smi18 \l 1033 ]

Ele sugere a utilização de imaginário social de Charles de Taylor 5 em substituição ao


conceito clássico de cosmovisão que é criticado como sendo reducionista em sua
percepção do homem como ser, basicamente, pensante. Não faz parte da discussão
desse artigo o debate cosmovisão x imaginário social. Creio, no entanto, que o
conceito tradicional tem um viés cognitivo forte, mas que pode ser restaurado e
ampliado para agregar outros aspectos do ser humano, não sendo necessário
abandona-lo.6 O que é particularmente interessante na definição acima é a ideia de

4
Utilizo narrativas aqui como sinônimo de storytelling – contar histórias, nesse caso as narrativas
poderiam ser filmes, livros, seriados de tv, etc.
5
TAYLOR, Charles. Modern Social Imaginaries. Londres: Duke University Press, 2004.
6
James W. Sire na edição mais recente de O Universo ao Lado atualiza a definição do conceito com
base no livro Cosmovisão: a história de um conceito de David Naugle. Nele, Sire amplia o conceito, o
que, na minha opinião, abarca muito dos imaginários sociais de Charles Taylor.
2
que histórias e narrativas tem um forte apelo a nossa imaginação, esta por sua vez
tem um capacidade de moldar a forma como interpretamos nosso mundo. A
sugestão que se segue é que ao criar histórias, seja na forma de livros, filmes ou
qualquer outro meio apropriado, podemos apresentar as doutrinas cristãs de forma a
alimentar a imaginação das pessoas e, consequentemente, “implantar” conceitos e
doutrinas cristãs em seu imaginário social.

Doutrina como caminhos de vida

Não estou sugerindo que o storytelling deva substituir a evangelização. O ponto não
é conversão que é papel exclusivo do Espírito Santo em que nós temos uma
participação secundária. Como já vimos o “saber” não é suficiente para nos fazer
viver corretamente, de acordo com as Escrituras. Ninguém deixa de pecar porque
sabe que é pecado, não pecamos por falta de conhecimento das proposições
bíblicas. Se a virtude viesse pelo conhecimento, o mundo seria um lugar melhor,
mas infelizmente a educação que nos “enche” de informações não tem poder de
mudar nosso ser.

A doutrina então deve ser “aprendida” de outras formas, não só entendida e


conhecida. Como Vanhoozer afirma, devemos atuar a doutrina. No Drama da
Doutrina, ele apresenta o método de Constantin Stanislavski que foi um marco na
história do teatro. Esse método, em contraposição aos métodos de atuação
anteriores acreditava que o ator deveria “viver” o personagem. Vanhoozer aplica
esse método a teologia: “a chave para alguém realmente ‘estar dentro de’ seu papel
não é maquiagem ou figurino, mas preparação interior”. (VANHOOZER,2016)

A doutrina, então deve servir como roteiro e quanto mais “entranhada” ela estiver em
nós, mais fácil será atuarmos e improvisarmos em nossa atuação do drama de
forma adequada.

O poder da narrativa

Como Smith e Vanhoozer nos mostram, as histórias têm uma força de comunicação
extraordinária pois elas não “falam” apenas ao nosso cérebro, mas a todo nosso ser.

“Narrativas têm uma contribuição cognitiva toda própria; elas explicam o que Paul
Ricouer chama de ‘enredamento’. Narrativas expõem pontos em forma de história

3
que nem sempre podem ser parafraseados em declarações propositivas sem que
algo se perca na tradução” (VANHOOZER,2016)

Nós nos relacionamos com filmes, livros, seriados e afins. Nos emocionamos com
histórias. As mensagens impregnadas nelas nos marcam de uma maneira que
declarações propositivas não fazem.

Citando Mikhail Bakhtin, Vanhoozer afirma, demonstrando o relacionamento dos


gêneros literários com a vida real:

“Bakhtin observa corretamente que certos tipos de situações da vida real pedem
determinados tipos de discurso. Da mesma forma, determinado gênero corporifica
uma expectativa social, uma expectativa a que o leitor/ouvinte responderá da
maneira adequada, seja ouvindo, rindo, chorando, obedecendo, aderindo e assim por
diante.” (VANHOOZER,2016)

E mais:

“Gêneros transmitem suas visões do mundo ‘não explicando um conjunto de


proposições, mas desenvolvendo exemplos concretos’. Em vez de nos dizerem em
que devemos crer, as formas literárias, como a narrativa e a apocalíptica,
possibilitam que os leitores de fato vejam e experimentem o mundo de certa forma.”
(VANHOOZER,2016)

É interessante notar que os diferentes tipos de narrativas nos gêneros literários nos
fazem experimentar o mundo de uma forma diferente. Mas qual a importância disso
para a comunicação da doutrina? E como isso pode ser utilizado para a divulgação
do evangelho?

Alister Macgrath no final de seu livro A Gênese da Doutrina apresenta um argumento


em favor do uso da apologética para a inserção de alguém na tradição cristã. 7 A
ideia de Macgrath é que a apologética clássica, “tentativa de justificar a
‘racionalidade’ ou a ‘razoabilidade’ das crenças” com base em um padrão universal
válido de racionalidade se tornou questionável devido aos insights historicistas e
sociológicos mais recentes. Sendo assim, os argumentos da apologética clássica
variam sentido para alguém inserido nas tradições cristãs.

“O evangelismo, entendido como o emprego de estratégias (entre elas, talvez, a


apologética) por meio das quais as pessoas são levadas para o seio da comunidade
de fé parece combinar assim os méritos do rigor epistemológico, do realismo cultural
e do pragmatismo social” (MACGRATH,2015)

7
MCGRATH, Alister E. A Gênese da Doutrina: fundamentos da crítica doutrinária. Tradução: A. G.
Mendes. São Paulo, Vida Nova, 2015.
4
Assim, parece que uma forma auxiliar de inserir pessoas no seio da comunidade de
fé e torná-las acessíveis as verdades do evangelho, poderia ser através da
disseminação dessas verdades através da produção de histórias que acabariam por
fazer parte do imaginário social da comunidade. Longe de ser uma alternativa ao
evangelismo e a apologética, a prática de produção cultural em forma narrativa teria
um papel secundário como auxiliar na construção de uma estrutura de imaginação
comunitária que fosse mais receptível ao cristianismo.

Em outra parte do livro, Macgrath apresenta alguns argumentos em favor da tradição


como forma de transmissão da doutrina, dentre eles a ideia de que a tradição de
utiliza de narrativa: “...essas informações são transmitidas em forma de narrativa.
Esta é, na verdade, a única forma literária capaz de expressar estruturalmente o
tempo e a história” (MACGRATH,2015). Sendo assim, um outro ponto a favor da
utilização de narrativas seria que elas auxiliam a própria comunidade cristã a
absorver a doutrina.

A arte não precisa de justificativa

Um último ponto a ser discutido é o conteúdo dessas narrativas. Não estou


defendendo que criemos mais filmes ou livros cristãos com lições de moral declaras
ou implícitas. Não precisamos justificar nossa arte como evangelística. Esse não é o
ponto. Como vimos, nosso imaginário social já estará repleto de imagens cristãs e
como afirmam Hans Rookmaaker e Francis Schaeffer, a cosmovisão do artista
transparece naturalmente em suas obras. Não devemos nos preocupar em sermos
intencionais na apresentar das doutrinas cristãs. Nossas histórias serão
impregnadas, naturalmente, com boa doutrina se vivermos a doutrina em nosso dia
a dia.

A arte não precisa de justificativa.8 Devemos criar porque a criatividade e a


imaginação fazem parte da imago Dei em nós. Devemos fazer coisas belas
simplesmente pelo amor pela beleza que sempre refletirá a Beleza suprema 9.

8
Referência ao livro: ROOKMAAKER, Hans. A Arte não Precisa de Justificativa. Viçosa: Ultimato,
2010. Vale a pena citar também: ROOKMAAKER, Hans. Filosofia e Estética. Brasília: Monergismo,
2018 e SCHAEFFER, Francis A. A Arte e a Bíblia. Viçosa: Ultimato, 2010.
9
Não estou aqui advogando um ideal platônico de Beleza, mas faço referência a como tudo de belo que há no
mundo tem um referente transcendental em Deus.
5
Conclusão

Nossa imaginação tem um papel importante na formação da nossa identidade.


Nosso imaginário social é formado pela imaginação e isso pode e deve ser
explorado. Como seres criativos criados por um Deus criativo, devemos utilizar
nossos dons para a criação de histórias que estarão naturalmente impregnadas, de
doutrina cristã e nos auxiliarão a absorver e relembrar essas doutrinas. Assim como,
apresentará ao mundo as doutrinas de uma forma diferente em que eles poderão
sentir o evangelho e, Deus permitindo, entende-lo.

Bibliografia

MCGRATH, Alister E. A Gênese da Doutrina: fundamentos da crítica doutrinária.


Tradução: A. G. Mendes. São Paulo, Vida Nova, 2015.

ROOKMAAKER, Hans. A Arte não Precisa de Justificativa. Viçosa: Ultimato, 2010.


ROOKMAAKER, Hans. Filosofia e Estética. Brasília: Monergismo, 2018.

SCHAEFFER, Francis A. A Arte e a Bíblia. Viçosa: Ultimato, 2010.

SIRE, James W. O Universo ao Lado. Brasília, Monergismo, 2018

SMITH, James K. A. Desejando o Reino: culto, cosmovisão e formação cultural.


Tradução: A. G. Mendes. São Paulo, Vida Nova, 2018.

TAYLOR, Charles. Modern Social Imaginaries. Londres: Duke University Press,


2004.

VANHOOZER, Kevin J. O Drama da Doutrina: uma abordadem canônico-linguística da


teologia cristã. Tradução: Daniel de Oliveira. São Paulo, Vida Nova, 2016.

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