Resenha do texto: A Construção Narrativa da Realidade
Jerome Bruner .
PROF.ª DRª ECLEIDE CUNICO FURLANETTO
PROF.ª DRª MARIA DA CONCEIÇÃO PASSEGI
DOUTORANDA: IVANICE NOGUEIRA DE CARVALHO GONÇALVES
No inicio do texto, o autor faz um breve histórico acerca de autores empiristas e autores racionalistas, incluindo Piaget e Vygotsky em sua abordagem de que nossas concepções sobre o desenvolvimento da mente têm sua origem na ideia de realidade e que o conhecimento sempre ocorre a partir de um contexto. Para iniciar suas reflexões acerca da construção da realidade por meio das narrativas, Bruner, questiona como o texto narrativo opera como um instrumento mental de construção de realidade? Ele distingue o pensamento narrativo do pensamento lógico ou científico, visto que cada um deles tem seus conteúdos, competências e habilidades, mesmo dialogando entre si em determinados aspectos. O autor afirma também que a narrativa é um modo padronizado, amplamente repassado pela cultura, mas ao mesmo tempo, reduzido a cada nível de domínio com seus princípios e procedimentos que favorece o uso da inteligência de uma determinada forma, porém, não de outra. Bruner afirma que as ferramentas culturais e tradições que modelam os procedimentos e suas formas de disseminação se evidenciam em domínios importantes integrados as culturas diferentes, o que não tem relação com a construção do conhecimento humano e seu contexto social organizado pela lógica ou ciência. Embora, saibamos explicar o mundo natural por suas causas, probabilidades, espaços e tempos é necessário saber como construímos e representamos a realidade. Então, as pessoas organizam e transformam suas experiências e memórias de acontecimentos humanos em narrativas: história, desculpas, mitos, razões para fazer e para não fazer, e assim por diante. Para Bruner, a narrativa, que apenas alcança a verossimilhança, se constitui uma direção comum, utilizada culturalmente como uma versão da realidade, sem a obrigatoriedade de ser chamada de verdadeira ou falsa. Compreendendo a narrativa como forma organizada e estruturada da experiência humana, como a vida imita a arte e vice-versa, o autor propõe discorrer acerca das dez características de como o texto narrativo é construído e como ele funciona como recurso mental na construção da realidade. 1. Diacronicidade narrativa - Tem relação com fatos que se sucedem do ponto de vista do passar do tempo, com retrospectos, memórias, imaginação futura, entre outras. Diz respeito a temporalidade e duração dos eventos numa sequência lógica de tempo humano, não se referindo a tempo do relógio. Inclui diferentes maneiras de construir e de representar a ordem sequencial da evolução da história humana através do tempo, podendo ser não-verbais, como a ordem da escrita da direita para a esquerda, ou verbal como conhecemos bem, porém, todas seguem o mesmo modelo mental de organização única de eventos no tempo. 2. Particularidade – Se relaciona com a inserção de algo a mais ou diferente nas narrativas mais gerais, como acontecimentos particulares em forma de referência ostensiva. Dessa maneira, uma narrativa, na qual o mocinho herói salva a donzela em perigo, precisa de um pormenor agindo para conferir algo a mais e diferenciar-se do que já foi contado: como o mocinho salva a donzela (quais as ações dele)? De quem? Em qual cenário? Há um objeto especial usado? O autor finaliza afirmando que uma narrativa não pode ser compreendida por meio de uma particularidade 3. Vínculos de estados intencionais – Para Bruner, os estados intencionais das narrativas devem ser adequados aos acontecimentos sobre as pessoas enquanto estivem atuando, com todo o contexto social, valores, desejos, entre outros. Dessa maneira, quando na narrativa, animais ou objetos ganham protagonismo, eles precisam ser providos de condições intencionais para realizarem seus objetivos, como nas fábulas e contos maravilhosos. 4. Composicionalidade hermenêutica – Tem relação com a interpretação que fazemos da narrativa que está sendo construída. Uma afirmação muito interessante é o fato de que a compreensão das narrativas é uma das habilidades desenvolvidas precocemente nas crianças, visto que é a maneira mais utilizada de organizar a experiência humana. A interpretação marca a narrativa tanto na construção quanto na compreensão, no significado do texto como um todo, à luz de suas partes constituintes, que se apoiam conferindo viabilidade. Segundo Bruner, há dois processos que criam a ilusão de que uma narrativa não precisa de interpretação: um é a “sedução narrativa” de uma história muito bem contada, geralmente por contadores profissionais, que não deixam dívidas sobre a veracidade da narrativa. O outro é “banalização narrativa”, tomando a história contada como banal, comum, sem importância, e automaticamente não atribuímos qualquer esforço interpretativo. Bruner ressalta que não é ambiguidade do texto ou suas referências que proporciona a interpretação na compreensão da narrativa, mas a narrativa por ela mesma. Ele aponta dois problemas de interpretação que se relacionam mais com o contexto dos interlocutores do que com o texto propriamente dito, ou seja, o jeito e condições de contar/narrar uma história é mais eficiente na interpretação do que o enredo. O primeiro problema está relacionado à intenção, que se traduz no “por que”, “como” e “quando” a história é contada e interpretada por interlocutores de contextos diferentes. O segundo problema é o conhecimento partilhado, pelo contador e pelo ouvinte e suas formas de interpretar o conhecimento partilhado entre si. Nesse sentido, quando um paciente conta sua história numa terapia (conversa de vida), é escutado na forma de conduta clínica, de forma que o terapeuta possa ajudá-lo no tratamento, o que significa algo a mais do que sobre a vida. 5. Canonicidade e violação – As violações de cânones, são muito utilizadas pelos enredos de novelas, séries, entre outros, pois costuma conferir um clímax de conflito às relações familiares. Para o autor, ao narrar a história de uma esposa infiel, um marido traído, incestos, entre outros, tem-se revelado dois componentes da narrativa: o que aconteceu (sequência irredutível das orações) e a condição violadora da canonicidade (algo incomum). E que a maior função da narrativa inventiva é reapresentar os enredos familiares incertos ou problemáticos, desafiando o leitor a novas interpretações. 6. Referencialidade – Tem relação com referências que a narrativa em sua composição. O autor afirme que a verdade narrativa é julgada pelo viés da verossimilhança e não pela dicotomia do verdadeiro ou falso e a aceitação de uma narrativa não pode depender da realidade, pois temos a ficção como convenção literária. A composição narrativa cria problemas para distinguir “sentido e referência”, visto que o sentido pode alterar a referência do todo e de suas partes constituintes, acolhendo a lei de gêneros.
7. Genericidade – Se relaciona com os tipos de narrativas e entre
eles, os mais comuns são romances, receita, fábulas, contos, entre outros. O gênero é a forma de narrar ou contar, desta maneira, não só pode ser pensado como um modo de construir situações humanas, mas também como um guia para usar a mente, na medida em que o uso da mente é guiado pelo uso de uma linguagem habilitadora. Além disso, o gênero facilita a interpretação da narrativa, uma vez que possui propriedades físicas e composicionais indutivas. Com isso conseguimos compreender que um texto é uma receita médica apenas analisando a forma física como ele se constituiu. 8. Normatividade - Está relacionado à norma, um padrão no qual a narrativa se constrói. Sabemos, por exemplo, que um conto de fadas se inicia por “Era uma vez” e finaliza com “Foram felizes para sempre”. Quando algo foge dessa norma, acontece a violação. A forma da narrativa muda conforme as circunstancias do momento em está sendo construída, na tentativa de solucionar os problemas, pois a narrativa é projetada para conter esquisitices. Surge então, o que o autor chama de enredo consolador, que é incorporado à narrativa no lugar de “Foram feliz para sempre”, visto que não precisa dar certo no final, gerando interpretações de situações, tornando-as suportáveis. 9. Sensibilidade de contexto e negociabilidade – Se relaciona com a “Composicionabilidade hermêneutica” e “interpretabilidade de narrativa”. É certo que a narrativa é assimilada pelos termos dos interlocutores, levando em conta as intenções do narrador e o conhecimento partilhado entre si. É essa ideia de sensibilidade de contexto que faz o discurso narrativo na vida cotidiana ser um instrumento viável para negociação cultural, sendo que cada um conta a sua versão da história e não necessitam de confronto legal para entrar em acordo. Bruner cita Dunn sobre o início da compreensão social em crianças e mostra claramente que esse tipo de negociação de diferentes versões de narrativas começa cedo e é profundamente incorporado em ações sociais práticas como o oferecimento de desculpas, e não somente em narrações por si mesmas. Por esse viés, é a dependência do contexto da explicação narrativa que permite a negociação cultural, visto que os significados chegam a partir dos próprios participantes - imersos em seus próprios processos culturais de negociação de sentidos. 10. Acréscimo narrativo – Tem relação com os enredos acrescentados às narrativas já existentes. Quando atualizamos nosso Memorial Acadêmico ou o Currículo Lattes, na realidade, estamos realizando os acréscimos narrativos, nos quais localizamos nossos egos e nossas continuidades. Quando o Juiz dá 10 minutos de acrescimento em um jogo de futebol, por exemplo, ele está acrescentando enredos numa narrativa construída ao longo de 90 minutos, podendo mudar drasticamente o final da história narrada até aquele momento. A capacidade de acrescentar histórias de acontecimentos do passado a algum tipo de estrutura diacrônica que permita uma continuidade até o presente é o que cria a cultura. Esse movimento de construção e reconstrução perpetua do passado pelo processo de acréscimo narrativo compõem os elementos de continuidade e legitimidade das histórias. Nesse sentido de pertencer ao passado canônico que nos permite formar nossas próprias narrativas divergentes apesar de manter cumplicidade com o cânone. Como conclusão, Bruner retoma a premissa original de que há domínios específicos de conhecimento e habilidade e que eles são apoiados e organizados por meio de ferramentas culturais. E entendendo a natureza e o desenvolvimento da mente em qualquer ambiente, nós não podemos tomar como nossa unidade de análise o indivíduo isolado culturalmente. Mas, teremos de aceitar o ponto de vista de que a mente humana não pode expressar seus poderes inatos sem a habilitação dos sistemas simbólicos de cultura. Em uma cultura para atuar com a efetividade, o domínio de convicções sociais e de seus procedimentos — o que nós pensamos que as pessoas são e como eles têm que relacionar-se mutuamente, são narrativamente organizados.