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Aspectos gerais da obra de João Guimarães Rosa

Sua obra traz o regionalismo ao centro da literatura brasileira outra vez, mas agora sob uma
fusão inteiramente nova com o plano da linguagem.

Experimentalismo com os gêneros

● Observação e imaginação da realidade - o sertão das Gerais.


● Não se enquadra completamente na linha do romance regionalista naturalista nem na linha
psicológica espiritualista, que dominavam a prosa brasileira nas décadas de 1930 e 1940.
● Apagamento das fronteiras entre lírica (1) e narrativa (2):
(1) musicalidade da fala sertaneja; recursos da expressão poética - aliterações, assonâncias,
onomatopeias, elipses e anáforas.
(2) estrutura do contador de causos, de histórias populares e míticas (“estórias”); domínio da
narração moderna, interiorizada e fragmentada.

Reacionário-revolucionário da língua

● Recuperação de formas arcaicas e clássicas do português + invenção de uma linguagem


própria, com neologismos, estrangeirismos (aproveitamento das várias línguas faladas pelo
autor) e uma organização singular das frases.
● Sintonia com as experiências modernistas (James Joyce).
● Mistura do popular com o erudito, da expressão oral do interior com a cultura escrita artística.
Familiar e estranho.

“A palavra, em Rosa, é sempre um feixe de significações com uma intensidade e densidade não
prosaica.” (Alfredo Bosi)

Visão de mundo roseana

“Essa força encantatória de sua escrita está vinculada de modo indissociável ao teor mítico de suas
histórias: [sua] visão global da existência, próxima de um materialismo religioso, [...] propenso a fundir
numa única realidade, a natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo” (A. Bosi)

● Desencantamento do homem moderno e culto + Providencialismo místico da cultura popular


brasileira.
● Compreensão dos choques sociais, geográficos e políticos do país - lógica da violência;
Patriarcado; Coronelismo.
● A paisagem marcada pela atividade humana - Tropeiros, Matutos, Jagunços.
● Interesse pelas questões universais, dilemas éticos e metafísicos - a vida, a morte, o amor, a
descoberta do eu e do mundo: o Eu e o Sertão formam um Todo
● Exploração das dimensões pré-conscientes do humano: a realidade percebida pela perspectiva
da infância, da loucura, do sonho, das possibilidades mágicas, da fábula.
● Transformação do ponto de vista: Narrador onisciente, neutro, distante X Interiorização do
narrador, subjetivo
Um chamado João

João era fabulista?


fabuloso?
fábula?

Sertão místico disparando


no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas,
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
Tinha pastos, buritis plantados
no apartamento?
no peito?
[...]

Era um teatro
e todos os artistas
no mesmo papel,
ciranda multívoca?
João era tudo?
[...]

Mágico sem apetrechos,


civilmente mágico, apelador
e precipites prodígios acudindo
a chamado geral?
Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?
Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava


menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
[...]

Ficamos sem saber o que era João


e se João existiu
de se pegar.

Carlos Drummond de Andrade. Poema publicado no jornal Correio da Manhã,


Rio de Janeiro, 22 nov. 1967.
Campo Geral

Publicação

“Campo Geral”, novela publicada originalmente como parte da obra Corpo de baile, em 1956,
reapareceu depois, em uma nova edição, junto com “Uma estória de amor”, no volume Manuelzão e
Miguilim.

Enredo

A novela conta a história de Miguilim, menino de oito anos que mora com a família de pequenos
arrendatários de terra, na região rural do Mutúm, uma terra isolada do mundo, na fronteira entre o
conhecido e o desconhecido: “longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras
veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais
[...]”.
O narrador acompanha muito de perto Miguilim e, colado à visão infantil do menino, retrata suas
dores, alegrias, dúvidas e descobertas do mundo. Quando ele tinha sete anos, saiu do Mutúm pela
primeira vez. Nessa ocasião, Tio Terêz, irmão do pai de Miguilim, levou o menino para “ser crismado no
Sucurijú”. Nessa viagem, a criança fica feliz ao ouvir dizer que o Mutúm era bonito, contrastando com a
visão muito negativa que a mãe, Nhanina, tem do lugar.
Miguilim, vive ao lado dos irmãos, todos mais novos que ele: Tomé, Dito, Drelina e Chica. Mas
há um destaque para Dito, que estava sempre mais próximo dele e, ao mesmo tempo, parecia
compreender melhor o mundo dos adultos: “Dito era menor, mas sabia o sério, pensava ligeiro as coisas,
Deus tinha dado a ele todo juízo”. É Dito quem tenta evitar que o irmão se envolva em uma briga entre
o pai, Nhô Bernardo Caz, e a mãe. No entanto, Miguilim tenta proteger a mãe, leva uma surra do pai e
fica de castigo.
Quando Tio Terêz, volta da caça, Vovó Izidra manda-o embora, pois a briga anterior havia sido
causada pela suspeita que o pai tinha de traição entre a mãe de Miguilim e Tio Terêz. Vovó Izidra é irmã
de Vó Benvinda, a mãe de Nhanina. Vó Benvinda já está morta e, quando moça, foi “mulher-à-toa”
(prostituta).
Seo Deográcias vai pedir um dinheiro a Bernardo, e leva com ele o seu filho Patorí, mas Miguilim
não gosta desse garoto, tem “nojo daquelas conversas do Patorí, coisas porcas, desgovernadas”. Na
sequência, Miguilim adoece. Ele pensa que está com tuberculose e que logo vai morrer, mas Seo Aristeu,
uma espécie de curandeiro local, vai ver o menino:

“— […]. Sucede como eu, que também uma vez já morri: morri sim, mas acho que foi morte de ida-
e-volta… Te segura e pula, Miguilim, levanta já!
Miguilim, dividido de tudo, se levantava mesmo, de repente são, não ia morrer mais, enquanto Seo
Aristeu não quisesse. Todo ria. Tremia de alegrias.”

Em outra ocasião, quando está voltando para casa, depois de levar comida para o pai na roça,
Miguilim encontra Tio Terêz no caminho. O homem, então, pede para o sobrinho entregar um bilhete
para Nhanina, mas Miguilim, tomado por dilemas morais, devolve o bilhete no dia seguinte ao tio.
Tempos depois, Luisaltino, amigo de Nhô Bernardo, vai morar na roça com eles, para ajudar a
plantar, e traz com ele o papagaio Papaco-o-Paco. Em um momento determinante da narrativa, Dito
corta o pé “num caco de pote” e, depois de muito sofrimento, acaba morrendo de tétano.
Miguilim, profundamente abalado pela perda do irmão, decide se comportar de modo a honrar
a memória de Dito, e então começa a ajudar o pai na roça. Quando Liovaldo, o irmão mais velho que
havia partido do Mutúm, vai visitar a família, Miguilim não se dá bem com o irmão. Depois que Liovaldo
vai embora, o menino fica muito doente. Para complicar a situação, o pai outra vez com ciúmes da
mulher, mata Luisaltino e depois se enforca com um cipó.
Então, Tio Terêz volta a morar com eles, Miguilim melhora, e, quando o doutor José Lourenço,
de Curvêlo, aparece na sua casa, descobre que o menino é míope e precisa usar óculos. Assim, com o
consentimento da família, o doutor leva Miguilim para a cidade, onde o garoto vai estudar e aprender um
ofício.

Foco narrativo

● Narrador em 3ª pessoa, mas muito próximo da perspectiva de Miguilim.


● Uso frequente do discurso indireto livre, em que o olhar externo do narrador se funde à
percepção do personagem.
● O narrador é envolvido pelos dramas e pela imaginação infantil.
● Ponto de vista concentrado no ambiente próximo, nas relações familiares e afetivas.

Tempo e espaço narrativos

● Sugestão do universo do conto de fadas: Tempo vago + Espaço isolado do Mutum.


● Espaço: interior de Minas Gerais.
● Tempo cronológico: provavelmente, na primeira metade do século XX.
● Tempo psicológico: recortes e saltos abruptos, determinados pelas experiências marcantes
da infância de Miguilim.

Temas principais

● Travessia interior do protagonista - narrativa de formação, de amadurecimento, de


entendimento das razões dos adultos: “[Campo Geral] é também uma novela de formação, de
um menino vivendo, sofrendo e descobrindo o mundo e os homens, mas também reagindo a
eles.” (Luiz Roncari)
● Os conflitos da família patriarcal brasileira: a violência, o ciúme, os desejos reprimidos.
● A natureza concebida pela imaginação e pela magia da infância.
● A experiência da morte e do luto.
● Alegoria da visão: ao final da novela, quando Miguilim percebe que é míope, há uma ampliação
da sua percepção de mundo, uma revelação ou confirmação de belezas antes incertas para
ele e, ao mesmo tempo, a tomada de consciência de que há uma vida para além do Mutum.
Questões

1. (ENEM) “De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro de roupa. Miguilim
saudou, pedindo a bênção. O homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com um
chapéu diferente, mesmo. – Deus te abençoe, pequenino. Como é teu nome? – Miguilim. Eu sou irmão do Dito. –
E o seu irmão Dito é o dono daqui? – Não, meu senhor. O Ditinho está em glória. O homem esbarrava o avanço
do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia: – Ah, não sabia, não. Deus o tenha
em sua guarda... Mas que é que há, Miguilim? Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele,
por isso é que o encarava. – Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem
é que está em tua casa? – É Mãe, e os meninos... Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. O senhor alto e
claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do
Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: – Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está
enxergando? E agora?”

ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

Esta história, com narrador observador em terceira pessoa, apresenta os acontecimentos da perspectiva
de Miguilim. O fato de o ponto de vista do narrador ter Miguilim como referência, inclusive espacial, fica
explicitado em:

a) O homem trouxe o cavalo cá bem junto.


b) Ele era de óculos, corado, alto (...).
c) O homem esbarrava o avanço do cavalo, (...).
d) Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele (...).
e) Estava Mãe, estava tio Terez, estavam todos.

2. (Fuvest) Considere atentamente as seguintes afirmações sobre a novela Campo geral (“Miguilim”), de
Guimarães Rosa:

I. A sabedoria precoce do pequeno Dito é decisiva para o aprendizado de Miguilim, seja nas experiências
imediatas do cotidiano, seja na investigação do valor e do sentido profundos dessas experiências.
II. Por meio da personagem Miguilim, o autor nos mostra que a vida rústica do sertanejo é pobre como
experiência - o que pode ser compensado pela imaginação poética de quem sabe desligar-se daquela
vida.
III. No momento final da narrativa, é em sentido literal e simbólico que um novo mundo se revela para
Miguilim - mundo que também se abre para uma vida de novas experiências.

A leitura atenta da novela permite concluir que apenas:

a) As afirmações I e III são corretas.


b) As afirmações I e II são corretas.
c) As afirmações II e III são corretas.
d) A afirmação II é correta.
e) A afirmação III é correta
03. (Fuvest) Olhava mais era para Mãe. Drelina era bonita, a Chica, Tomezinho. Sorriu para Tio Terêz: – “Tio
Terêz, o senhor parece com Pai...” Todos choravam. O doutor limpou a goela, disse: – “Não sei, quando eu tiro
esses óculos, tão fortes, até meus olhos se enchem d’água...” Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Um
soluçozinho veio. Dito e a Cuca Pingo-de-Ouro. E o Pai. Sempre alegre, Miguilim... sempre alegre, Miguilim...
Nem sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava. A Rosa punha-lhe doces-de-leite nas algibeiras, para a
viagem. Papaco-o-Paco falava, alto, falava.

In: Manuelzão e Miguilim; João Guimarães Rosa.

Neste trecho de Campo Geral, de Guimarães Rosa, as expressões sublinhadas retomam, ao final da
narrativa,

a) Os versos sertanejos cantados pelo vaqueiro Salúz, em seu desejo de consolar Miguilim.
b) A mensagem inicial de Tio Terêz, unindo, assim, o princípio e o fim da história.
c) As lições de conformidade e alegria de Mãitina a Miguilim, enraizados no catolicismo popular.
d) A derradeira lição da sabedoria do Dito, reforçada depois por seu Aristeu.
e) O ensinamento do Grivo, cuja pobreza extrema era, no entanto, fonte de doçura e alegria.

4. (Fuvest) Leia o trecho e responda à questão:

No dia em que Luisaltino não foi trabalhar na roça – disse que estava perrengue – Pai teve uma hora em que quis
conversar com Miguilim. Drelina, a Chica e Tomezinho tinham trazido o almoço e voltaram para casa. Pai fez um
cigarro, e falou do feijãodas-águas, e de quantos carros de milho que podia vender para seo Braz do Bião.
Perguntou. Mas Miguilim não sabia responder, não achou jeito, cabeça dele não dava para esses assuntos. Pai
fechou a cara. Pai disse: “Vigia, Miguilim: ali!” Miguilim olhou e não respondeu. Não estava vendo. Era uma
plantação brotando da terra, lá adiante, mas direito ele não estava enxergando. Pai calou a boca, muitas vezes.
Mas, de noite, em casa, mesmo na frente de Miguilim, pai disse à Mãe que ele não prestava, que menino bom
era o Dito, que Deus tinha levado para si, era muito melhor tivesse levado Miguilim em vez d´o Dito.

Guimarães Rosa, “Campo Geral”, In: Manuelzão e Miguilim (Corpo de Baile).

a) No trecho acima, o Pai diz preferir Dito a Miguilim. Preencha as lacunas da folha de respostas,
substituindo os termos originais por outro verbo e outro adjetivo, respectivamente, que salientem o
mesmo critério de valor do Pai a respeito dos filhos.
b) Reproduza uma frase do trecho que apresente uma característica de Miguilim, a qual será enfocada,
em tom esperançoso, no arremate da narrativa. Em seguida, justifique a sua escolha.

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