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SUMÁRIO
1. Capa
2. Folha de rosto
3. Sumário
4. Dedicatória
1. 4. Mulá FM
2. 5. Convivendo com o terrorismo
8. Parte Três: Encontrando minha voz
Landmarks
1. Cover
2. Body Matter
3. Table of Contents
4. Copyright Page
Às crianças do mundo todo que não têm acesso à
educação; aos professores que, com valentia,
continuam a lecionar; e a todos que já lutaram por
seus direitos humanos básicos e pela educação.
As palavras em negrito ao longo do texto constam no glossário.
Prólogo
••••
Eu sou Malala
••••
Aquele dia de outubro de 2012 devia ser um dia comum.
Eu tinha quinze anos, estava no nono ano na escola e
havia perdido a hora porque tinha ficado acordada até
tarde na noite anterior, estudando para a prova.
Minha mãe sacudiu meu ombro de leve.
— Acorde, pisho
— ela disse, me chamando de
“gatinha” em pachto , a língua falada pelo nosso povo.
— São sete e meia e você está atrasada para a escola!
Fiz uma prece rápida para Deus. Se esse for
seu
desejo,
Alá
, posso tirar a melhor nota na prova
, por
favor? Ah, e obrigada pelo meu sucesso até agora
!
Engoli o café da manhã enquanto meu irmão mais
novo, Atal, choramingava. Ele reclamou que estavam me
dando atenção demais depois que falei em público sobre
meninas terem o mesmo direito de ir à escola que os
meninos.
— Quando Malala for primeira-ministra, você pode ser
o secretário dela — brincou meu pai.
— Não! — gritou Atal, o palhacinho da família. — Ela é
que vai ser minha secretária!
Corri porta afora e rua abaixo a tempo de ver o ônibus
cheio de outras meninas a caminho da escola.
Nunca mais vi minha casa.
••••
À tarde, minhas colegas e eu encarávamos nossas
provas, tentando pensar em meio às buzinas e ao
barulho das fábricas da cidade de Mingora. Ao fim do dia,
eu estava cansada, mas feliz. Sabia que tinha me saído
bem.
Pedi para minha melhor amiga, Moniba, esperar
comigo o último ônibus, para que pudéssemos conversar
mais um pouco.
Contamos piadas e rimos até a hora de entrar na dyna
, uma caminhonete branca aberta nos fundos que era o
“ônibus” da Escola Khushal.
Como sempre, nosso motorista, Usman Bhai Jan, tinha
um truque de mágica para nos mostrar. Naquele dia, ele
fez um pedregulho desaparecer. Não importava o quanto
tentássemos, nunca conseguíamos descobrir seu
segredo.
Dezenove meninas, duas professoras e eu
balançávamos ao longo da estrada Haji Baba, em meio a
uma mistura de riquixás, mulheres em trajes
esvoaçantes e homens de moto buzinando e costurando
no trânsito. Nosso veículo não tinha janelas, só um
plástico amarelado que se agitava na lateral.
Estávamos a menos de três minutos da minha casa
quando o ônibus da escola parou de repente. Parecia
estranhamente silencioso lá fora.
— Está tudo tão calmo hoje — eu disse a Moniba. —
Cadê todo mundo?
Não lembro de mais nada depois disso.
O que me contaram que aconteceu foi:
Dois jovens em trajes brancos se colocaram na frente
da caminhonete. Um deles veio para a parte traseira e se
aproximou de nós.
— Quem é Malala? — ele perguntou.
Ninguém disse nada, mas algumas meninas olharam
na minha direção. O homem levantou o braço e apontou
para mim. Algumas meninas gritaram, e eu apertei a
mão de Moniba.
Quem é Malala? Eu sou Malala, e esta é minha história.
PARTE UM
••••
Antes do perigo
1
••••
Livre como um pássaro
O que é Ramadã?
O que é Eid ul-Fitr?
O que é Eid ul-Azha?
•••••••••
Ramadã é o nono mês do calendário islâmico. É considerado o mês
sagrado, no qual muçulmanos de todo o mundo refletem sobre sua fé
rezando com ainda mais devoção, lendo o Sagrado Corão , passando o
tempo com a família, fazendo caridade e jejuando todos os dias do nascer
ao pôr do sol. (As famílias às vezes fazem uma refeição juntas quando o
sol se põe.)
O Eid ul-Fitr, também conhecido como Pequena Celebração, dura três
dias e marca o fim do Ramadã. Envolve banquetes, visitas familiares e
presentes — principalmente para as crianças.
No Dhu al-Hijjah, o décimo segundo mês do calendário islâmico, é
realizado o Eid ul-Azha, o festival do sacrifício, também conhecido como
Grande Celebração. Nele, é lembrado o sacrifício do profeta Abraão em
nome de Alá. O espírito do Eid ul-Azha envolve compartilhar as bênçãos
de Alá com seus entes queridos e com os menos privilegiados à sua volta.
••••
Quando eu tinha oito anos, a escola do meu pai ocupava
três prédios e tinha mais de oitocentos alunos. Como a
maioria das famílias pagava para que os filhos estudassem
ali, nossa família finalmente tinha dinheiro o bastante para
comprar uma televisão! Às vezes, Safina e eu víamos
Shaka Laka Boom Boom , um programa sobre um menino
chamado Sanju que tinha um lápis mágico capaz de tornar
seus desenhos reais. Se tinha fome, Sanju desenhava uma
tigela de comida. Se estava em perigo, desenhava um
policial. Sanju era um pequeno herói, sempre protegendo
as pessoas.
Comecei a sonhar em ter meu próprio lápis mágico. À
noite, eu rezava: Deus, por favor, me dê o lápis de Sanju.
Não vou contar a ninguém. É só deixar no meu armário.
Vou usar o lápis para fazer todo mundo feliz. Então eu ia
olhar a gaveta do armário. Mas o lápis nunca estava lá.
Eu queria muito ter um lápis mágico quando minha mãe
me pedia para levar o lixo até o aterro perto de casa.
Poderia apagar tudo: o cheiro, os ratos, a montanha
gigante de comida apodrecendo. Uma tarde, eu estava
prestes a jogar as cascas de batata e de ovo na pilha de
lixo quando vi algo se mover. Dei um salto.
Era uma garota da minha idade. Ela e alguns meninos
que estavam por perto reviravam o lixo. Quis falar com
eles, mas fiquei com medo.
Mais tarde, perguntei ao meu pai sobre aquelas crianças.
Por que não estavam na escola?
Meu pai me disse que eles vendiam o que conseguiam
encontrar no lixão para ajudar a família a comprar comida.
Se fossem para a escola, todos passariam fome.
Então percebi que Deus estava me mostrando como seria
minha vida se eu não pudesse ir à escola. Um lápis capaz
de mudar o mundo era algo que não existia. Eu teria que
fazer alguma coisa. Mas o quê?
Escrevi uma carta para Deus, pedindo força e coragem
para tornar o mundo um lugar melhor . Assinei, enrolei,
prendi a um pedaço de madeira, coloquei um dente-de-leão
em cima e soltei em um córrego que dava no rio Swat.
Deus certamente encontraria a carta ali.
Assim como eu queria ajudar as crianças do lixão, minha
mãe queria ajudar todo mundo. Ela costumava fazer uma
panela de arroz com frango a mais para dar para uma
família pobre da vizinhança.
Uma vez, perguntei a ela por que sempre dava comida
para os outros.
— Sabemos como é sentir fome, pisho — ela disse. —
Nunca podemos nos esquecer de compartilhar o que
temos.
3
••••
Avisos
••••
Em casa, comecei a servir o chá para meu pai e os homens
que o visitavam de modo a ouvir suas discussões sem que
notassem.
Naqueles dias, as conversas se concentravam em dois
assuntos: a Mulá FM e a guerra do outro lado da fronteira,
no Afeganistão. Nos anos anteriores, os Estados Unidos e
outros países travavam uma batalha para derrotar o
governo talibã no Afeganistão, que protegia a Al-Qaeda ,
outro grupo perigoso que tinha crenças parecidas.
Talibã . Assim que ouvi a palavra, lembrei da conversa
que havia tido com meu pai quando estávamos em
Shangla. Naquela época, o Talibã parecia algo muito
distante, algo ruim acontecendo em outro lugar. Mas
Fazlullah era paquistanês e estava ligado ao Talibã. Meu pai
alertou os outros homens de que logo aquele movimento
chegaria ao nosso vale.
Pela primeira vez, me ocorreu que nosso mundo mudava
diante dos meus olhos, e não para melhor.
••••
A Mulá FM lançou a sombra escura do medo sobre nosso
vale.
Cheguei à escola um dia e encontrei todas as minhas
amigas reunidas num canto, falando sobre o programa da
noite anterior. Fazlullah havia anunciado que as escolas
para meninas eram haram — proibidas pelo Sagrado Corão.
Então, em julho de 2007, ele convocou as pessoas a se
opor violentamente contra o governo.
Meu pai disse que nossa família devia fazer o melhor
para ignorar o que o mulá pregava.
— Devemos levar uma vida plena, ainda que só em nosso
coração — ele falou.
Assim, nossas conversas durante o jantar continuaram a
girar em torno de Einstein e Newton, poetas e filósofos, e
outros assuntos intelectuais. Meus irmãos e eu
continuávamos brigando pela posse do controle remoto da
televisão, sobre quem tirava as melhores notas, sobre tudo
e qualquer coisa.
Então Fazlullah uniu forças com outro grupo do Talibã e
anunciou que as mulheres estavam proibidas de sair em
público. De repente, onde quer que eu olhasse, talibãs
pareciam brotar como erva daninha.
Havia rumores de que os homens da Mulá FM ficavam
ouvindo o que se passava do outro lado das portas. Se
identificassem o som de alguém vendo televisão, o que
consideravam pecado, invadiam a casa e destruíam o
aparelho.
Meus irmãos e eu não compreendíamos por que
lutadores com nomes engraçados ou um menininho com
um lápis mágico eram tão ruins. Mas nos assustávamos
toda vez que alguém batia na porta.
Em determinado momento, colocamos a televisão dentro
do armário. Assim, se desconhecidos entrassem, não a
veriam.
Como Fazlullah tinha ficado tão poderoso? E por que
ninguém estava preparado para desafiar o mulá?
••••
Quando Fazlullah começou a anunciar em seu programa o
nome de meninas que continuavam estudando, minha mãe
insistiu que eu não fosse mais à escola sozinha. Ela tinha
medo de que membros do Talibã me vissem de uniforme.
A Escola Khushal estava sob a sombra da Mulá FM . A
cada dia, eu notava que mais colegas tinham ficado em
casa. Um professor avisou meu pai que não ensinaria mais
meninas.
Eu estremecia ao ouvir as histórias sobre os homens de
Fazlullah punindo homens e mulheres que os
desobedecessem. O que estavam fazendo com minha
cidade? O que estavam fazendo conosco?
Deus , eu dizia na hora de ir para a cama, por favor,
proteja minha cidade e o povo.
••••
Meu pai foi a uma reunião para se pronunciar contra o
Talibã. Depois, viajou para Islamabad para pedir ao governo
que protegesse seus cidadãos. Enquanto estava fora, tomei
o costume de fazer a ronda pela casa uma, duas e até três
vezes para me certificar de que todas as portas e janelas
estivessem trancadas.
Às vezes, meu pai só voltava bem tarde. Às vezes,
dormia na casa de um amigo, para o caso de estar sendo
seguido. Ele nos protegia mantendo distância, mas não
tinha como evitar que nos preocupássemos. Naquelas
noites, eu ouvia minha mãe rezar até bem tarde.
Meu pai era apenas um diretor de escola, mas parecia
um falcão, ousando voar aonde outros não iam. Já minha
mãe mantinha os pés firmes no chão.
••••
Um dia, deparamos com uma mensagem para meu pai
grudada no portão da escola. Dizia:
Sua escola é ocidental e infiel. O senhor ensina meninas
e seu uniforme vai contra o islã. Pare com isso ou criará
problemas, e suas crianças vão chorar pelo senhor.
A assinatura a seguir dizia: Fedaim
do islã — devotos do
islã.
O Talibã tinha ameaçado meu pai. Agora eu estava com
medo.
No dia seguinte, ele deu sua resposta ao Talibã através
de uma carta publicada num jornal. Por favor, não
machuquem os alunos , meu pai escreveu, porque o Deus
em que vocês acreditam é o mesmo Deus para o qual eles
rezam todos os dias.
Nosso telefone não parava de tocar naquela noite. Eram
amigos ligando para agradecer a meu pai pela carta.
Ele sempre tinha sido um homem ocupado. Mas, agora,
toda vez que saía de casa eu me perguntava: Será que vai
voltar?
Meu pai decidiu que os uniformes escolares iam mudar.
Os meninos não iam mais usar o uniforme “ocidental”,
composto por camisa e calça comprida — passariam a usar
o conjunto tradicional de túnica e calça chamado shalwar
kamiz. Eu ainda usava meu shalwar kamiz azul e branco,
mas o talibã dizia que as meninas não podiam usar a calça
branca para não ficarem parecidas com meninos. O
uniforme que eu amava agora fazia com que me sentisse
uma criminosa.
••••
Uma noite, ouvimos um anúncio que não
compreendemos. Bati na parede que dava para a casa de
Safina para que alguém viesse nos explicar o que era
“toque de recolher”. Ela, a mãe e o irmão nos disseram
que significava que tínhamos que ficar dentro de casa
durante certos horários do dia e toda a noite.
Mais tarde, fortes luzes brancas varreram o céu,
iluminando nossos quartos. Então: bum! Um baque fez o
chão tremer. Meus irmãos e eu corremos até nossos pais
e ficamos todos abraçados, tremendo enquanto
ouvíamos as bombas caírem. Toda vez que escutávamos
um barulho, nos agarrávamos com ainda mais força, até
que acabamos pegando no sono.
Esperávamos que o barulho significasse que o Exército
tinha derrotado o Talibã. Meu pai saiu para descobrir o
que havia acontecido e voltou com a testa franzida.
Sentimos um aperto no coração quando ele nos deu a
notícia: o Talibã tinha assumido o controle do vale.
O conflito entre o Exército e o Talibã se arrastou por um
ano e meio. Com meus irmãos, não sobrava espaço para
mim na cama dos meus pais, então eu tinha que dormir
em uma pilha de cobertores no chão. (Mesmo em meio à
guerra, odiava que meus irmãos roubassem meu lugar!)
Por mais estranho que pareça, nos acostumamos com os
bombardeios.
Eu costumava falar com Deus, deitada no chão do
quarto dos meus pais. Abençoe e proteja a gente , eu
dizia. Pedia paz para todos. E, especialmente, para o
Swat. Tentava tampar os ouvidos e visualizar minhas
preces flutuando até Deus.
De alguma maneira, acordávamos a salvo todas as
manhãs. Então, um dia, minhas preces foram
respondidas. O Exército não tinha vencido, mas pelo
menos havia conseguido forçar o Talibã a se esconder, se
não a ir embora.
••••
As portas da nossa escola não estiveram abertas durante
todo o conflito, mas sempre que possível eu estava lá.
Conforme eu e minhas amigas crescíamos, a competição
amistosa que havia entre nós ficava mais séria. Não
queríamos apenas tirar boas notas; queríamos tirar as
notas mais altas.
Embora todas quiséssemos ser a melhor, o que mais
importava para cada uma de nós era o elogio de um
professor. Aquilo nos fazia acreditar que tínhamos futuro.
Em um país onde tantas pessoas consideram um
desperdício mandar meninas à escola, são os professores
que nos ajudam a acreditar nos nossos sonhos. Nossa
diretora, a sra. Maryam, era inteligente e independente
— tudo o que eu queria ser. Ela havia feito faculdade.
Tinha um trabalho e recebia seu próprio salário.
Tínhamos nossas aulas normais, como álgebra, química
e física, mas naquela época conversávamos bastante
sobre o Exército e o Talibã. O povo do Swat estava
encurralado entre os dois. Uma amiga gostava de me
irritar dizendo:
— O Talibã é bom, o Exército não.
Eu sempre dizia a ela que, quando se estava preso no
meio de uma guerra, nenhum dos lados era “bom”.
••••
O caminho para ir e voltar da escola agora era
assustador, então quando eu estava a salvo em casa só
queria relaxar. Um dia, cheguei antes dos meus irmãos e
liguei a televisão, mas só apareceu estática. Tentei todos
os canais. Nada além de estática.
A princípio, achei que fosse uma queda de energia —
vinham ocorrendo muitas delas —, mas naquela noite
descobrimos que os homens de Fazlullah tinham cortado
todos os canais a cabo. Sem nada para ver além da rede
governamental, estávamos praticamente isolados do
mundo.
Outro dia, encontrei meu pai com as mãos na cabeça.
— Ah, jani — ele disse. — Todo mundo enlouqueceu.
Então meu pai contou que os homens de Fazlullah
tinham destruído uma escola para meninas em uma
cidade próxima.
Senti o coração apertado. Não conseguia imaginar por
que alguém ia querer tirar das crianças a chance de
aprender a ler e escrever. Por que um edifício escolar era
tamanha ameaça para o Talibã?
Por favor, Deus , rezei, nos ajude a proteger nosso vale
e a impedir essa violência.
Todos os dias, os homens de Fazlullah atingiam um
novo alvo. Lojas, estradas, pontes. E escolas. A maior
parte dos ataques ocorria fora de Mingora, mas foram
ficando cada vez mais próximos. Um dia, eu estava
lavando a louça na cozinha quando uma bomba explodiu
tão perto que a casa inteira tremeu e o ventilador em
cima da janela caiu.
Eu tinha crescido ouvindo a palavra “terrorismo”, mas
só agora compreendia do que se tratava. Terrorismo é
diferente de guerra, na qual soldados se enfrentam cara
a cara numa batalha. Terrorismo é ir dormir à noite sem
saber que horrores o dia seguinte vai trazer. É andar pela
sua própria rua sem saber em quem pode confiar. É
quando o inimigo está em todo lugar e ataca vindo do
nada.
Nossa família cumpria uma rotina toda vez que
ouvíamos uma explosão. Ligávamos um para o outro
para nos certificar de que estávamos todos bem. Então
ficávamos esperando pelas sirenes. E rezávamos.
Ainda assim, esse tipo de terror aleatório nos levava a
fazer coisas estranhas. Meu pai começou a pegar um
caminho diferente para casa todas as noites, caso
alguém estivesse estudando sua rotina. Minha mãe
evitava o mercado, e meus irmãos ficavam dentro de
casa mesmo nos dias de sol. Como eu estava na cozinha
nas duas vezes em que uma bomba explodira perto de
casa, procurava me manter o mais longe possível
daquele cômodo. Mas como alguém pode viver com
medo de um cômodo da própria casa?
A noite era o pior horário.
Era quando os homens de Fazlullah realizavam a maior
parte de seus ataques — especialmente a destruição de
escolas. Só em 2008, o Talibã atacou duzentas delas.
Todas as manhãs, antes que eu virasse a esquina da rua
da Khushal, fechava os olhos e fazia uma prece — com
medo de abri-los e descobrir que minha escola havia sido
reduzida a destroços durante a noite. Conviver com o
terrorismo era assim.
Uma noite, quando ocorreu uma explosão bem perto
de casa, fui até meu pai.
— Você está com medo? — perguntei.
— À noite nosso medo é grande, jani — ele disse. —
Mas pela manhã, com a luz do dia, reencontramos nossa
coragem.
PARTE TRÊS
••••
Encontrando minha voz
6
••••
Uma chance de falar
••••
Eu me perguntei o que faria se não pudesse ir à escola.
Passaria o resto da vida dentro de casa, longe de vista,
sem televisão para ver e sem livros para ler? Como ia
completar meus estudos e me tornar médica, que era
meu maior sonho na época?
Tentamos desfrutar dos dias antes de 15 de janeiro,
mas, a cada manhã, alguém chegava na escola com
outra história terrível sobre os homens de Fazlullah
atacando gente que não vivia da maneira como o Talibã
determinava. Agora, seríamos proibidas de ir à escola.
Uma tarde, ouvi meu pai falando ao telefone.
— Todas as professoras recusaram — ele disse. —
Estão com muito medo. Mas vou ver o que posso fazer.
Ele desligou e saiu de casa depressa.
Fiquei sabendo que um amigo que trabalhava na BBC, a
poderosa corporação britânica de radiodifusão, havia
pedido que ele indicasse uma professora ou aluna mais
velha para escrever um diário relatando como era a vida
sob o regime talibã. As professoras já haviam recusado.
Uma aluna mais velha tinha concordado, mas o pai dela
disse que era arriscado demais.
Meu pai sabia que os talibãs eram cruéis, mas teve
vontade de dizer que nem eles machucariam uma
criança. No entanto, respeitou a decisão do pai da garota
e se preparou para ligar para a BBC com más notícias.
Eu tinha onze anos. Sabia que queriam uma menina
mais velha, mas disse:
— Por que não eu?
Olhei para meu pai, que tinha uma expressão
esperançosa — e aflita — no rosto. Eu sabia que o diário
poderia ser lido por gente de fora do Paquistão. Afinal de
contas, era a BBC.
Meu pai sempre tinha me ajudado. Poderia eu ajudá-lo?
Sabia que era capaz. Faria o necessário para poder
continuar indo à escola. Mas primeiro fomos falar com
minha mãe. Se não tivéssemos o apoio dela, não
seguiríamos em frente.
Minha mãe respondeu com um verso do Sagrado
Corão.
— A mentira deve morrer — ela falou. — E a verdade
deve prevalecer.
Deus ia me proteger, minha mãe disse, porque minha
missão era digna.
Nossa família não olhava para a vida e via perigo.
Todos víamos possibilidades. Acreditávamos na
esperança.
— As coisas só vão melhorar se erguermos a voz —
disse minha mãe.
Eu não sabia como escrever um diário, então o
jornalista da BBC me ajudou. Preocupado com minha
segurança, ele sugeriu que eu usasse um nome falso,
para que o Talibã não soubesse quem estava escrevendo.
Ele escolheu o pseudônimo Gul Makai, que significa
centáurea-azul (uma flor) e é o nome da heroína de um
conto do folclore pachto.
Meu primeiro texto saiu com data de 3 de janeiro de
2009, cerca de duas semanas antes do prazo final do
ultimato de Fazlullah. O título era: “Tenho medo”. Escrevi
sobre como era difícil estudar ou dormir à noite com o
som constante de combates nas montanhas nos
arredores da cidade. E contei que caminhava para a
escola todas as manhãs olhando por cima do ombro, com
medo de que um talibã estivesse me seguindo.
A história do que vinha acontecendo no Swat tinha ido
parar em um blog na internet, onde o mundo inteiro
poderia ver. Era como se Deus tivesse finalmente
concedido meu desejo de ter um lápis mágico.
••••
Meu segundo texto falava de como a escola era o centro
da minha vida e do quão orgulhosa eu ficava ao andar
pelas ruas de Mingora usando meu uniforme. O jornalista
da BBC me pediu então que na publicação seguinte eu
escrevesse um pouco sobre o conflito na região. Aquilo
era novidade para ele, mas para mim, que convivia
diariamente com o problema, não.
Às vezes, era como se eu não tivesse medo. Só que,
um dia, a caminho da escola, ouvi passos atrás de mim.
Meu coração parou, mas de alguma forma meus pés
seguiram em frente, cada vez mais rápido, até ganhar
distância. Corri para casa, fechei a porta e, alguns
segundos depois, dei uma olhada do lado de fora. Lá
estava o homem, gritando ao celular com alguém, sem
nem ligar para mim.
Ri um pouco comigo mesma. Malala , pensei, há
motivos reais para ter medo. Não precisa imaginar o
perigo onde não tem.
A verdadeira preocupação, me parecia, era que me
descobrissem. É claro que foi Moniba a primeira a
adivinhar a identidade de Gul Makai.
— Li um diário na internet — ela disse um dia no
recreio. — Parecia a nossa história e o que está
acontecendo aqui na escola. É você, não é? — ela
perguntou.
Eu tinha que contar a verdade à minha amiga. Mas
aquilo só a deixou mais brava.
— Como pode dizer que é minha melhor amiga e
guardar um segredo tão importante de mim?
Ela me deu as costas e foi embora. Ainda assim, eu
sabia que não contaria a ninguém que era eu.
Quem acabou revelando nosso segredo foi meu pai,
sem querer. Ele disse a um jornalista que só ir e voltar da
escola a pé já era muito perigoso para as crianças. Sua
própria filha, continuou, achara que um homem que
apenas falava ao celular pretendia machucá-la. Quase
todo mundo reconheceu aquele relato do diário, e em
abril meus dias como Gul Makai já estariam acabados.
Mas o diário cumpriu sua função. Agora inúmeros
jornalistas acompanhavam a tentativa de Fazlullah de
fechar as escolas para meninas no Paquistão, incluindo
um homem de um importante jornal nos Estados Unidos,
o New York Times .
8
••••
Classe dispensada?
••••
Meu pai queria que eu continuasse treinando meu inglês.
Então me incentivou a assistir um DVD que um dos
jornalistas tinha me dado, de uma série de TV chamada
Betty, a feia.
Eu amava Betty, com seu aparelho nos dentes e seu
coração grande. Ficava maravilhada vendo-a passear
livremente pelas ruas de Nova York com suas amigas —
sem véu cobrindo o rosto e sem necessidade da companhia
de homens. Minha parte favorita, no entanto, era ver o pai
de Betty cozinhar para ela, em vez do contrário!
Enquanto via Betty e suas amigas perambulando por aí,
nós ficávamos presas em casa sem nada para fazer.
Aquele tempo todo, eu continuava escrevendo o diário,
que assinava como Gul Makai.
Quatro dias depois do fechamento de todas as escolas
para meninas, os homens de Fazlullah destruíram outras
cinco instituições de ensino. Estou bastante surpresa ,
escrevi. As escolas já estavam fechadas. Por que
precisavam ser destruídas também?
••••
Durante aqueles dias sombrios e tediosos, ouvimos
rumores sobre conversas secretas com o Talibã. Então, do
nada, Fazlullah fez um anúncio surpreendente: não havia
problemas em meninas mais novas irem para a escola, mas
ele insistia que as acima de dez anos permanecessem em
casa, respeitando a purdah .
Eu tinha onze, mas não ia deixar que aquilo me
impedisse. Além do mais, passaria facilmente por uma
menina de dez.
A sra. Maryam mandou uma mensagem para todas as
meninas mais velhas: se quisessem quebrar as regras, ela
abriria as portas da escola. No dia seguinte, saí de casa
com meus livros escondidos debaixo do lenço e a cabeça
erguida.
Mas Mingora havia mudado no mês em que a escola
ficara fechada. As ruas estavam silenciosas, as lojas tinham
sido fechadas, as casas se mantinham escuras. Mais de um
terço da população havia fugido.
Minhas amigas e eu estávamos um pouco assustadas,
mas tínhamos um plano: se um talibã nos parasse,
diríamos apenas:
— Estamos no quarto ano.
Quando chegamos ao portão da escola, a sra. Maryam
nos esperava lá. Deu um abraço em cada uma de nós e
disse que éramos muito corajosas. Ela também corria um
grande risco só de estar ali.
— Esta escola secreta é nosso protesto silencioso — a
sra. Maryam disse.
9
••••
Deslocada
••••
Fiquei no telhado, olhando para as montanhas, para os
becos onde costumávamos jogar críquete, tentando
memorizar cada detalhe caso nunca mais visse minha
casa. Então desci para começar a fazer a mala. Na
pressa, peguei calças de um shalwar kamiz e túnicas de
outros, então acabei ficando com roupas que não
combinavam.
Quase chorei quando minha mãe me disse que eu teria
que deixar meus livros da escola para trás. Eu amava a
escola, e meus livros eram tudo para mim!
Éramos crianças, afinal — crianças com preocupações
infantis, mesmo com uma guerra acontecendo.
Botei meus livros em uma sacola e escondi no quarto
de hóspedes, que parecia o lugar mais seguro. Sussurrei
alguns versos do Sagrado Corão para protegê-los. Em
seguida a família inteira se reuniu, e fizemos algumas
preces juntos para deixar nosso doce lar sob a proteção
de Deus.
Estávamos prestes a nos tornar pessoas deslocadas
internamente, ou IDP
s, na sigla em inglês. É o termo que
usam para aqueles que precisam deixar seu lar porque é
perigoso demais ficar, mas se mantêm no mesmo país.
Deslocados internos. É o que somos agora, não
paquistaneses, não pachtos. Nossa identidade foi
reduzida a três letras: IDP.
Do lado de fora, as ruas estavam tomadas pelo tráfego:
pessoas com malas, pacotes de arroz e sacos de dormir.
Famílias inteiras equilibradas em motos, outras correndo
pelas ruas só com a roupa do corpo. Ninguém sabia
exatamente para onde estava indo, só que precisava ir
embora. Dois milhões de pessoas fugiam de casa. Era o
maior êxodo da história pachto.
A viagem, que em geral levava algumas horas, se
estendeu por dois dias. Meu pai parou em Peshawar
porque sentia que era seu dever alertar as pessoas para
o que estava acontecendo. Minha mãe, meus irmãos e eu
seguimos em frente.
Quando finalmente chegamos a Shangla, nossos
parentes ficaram chocados ao nos ver.
— Por que vieram para cá? — perguntaram.
O Talibã tinha deixado as montanhas há pouco tempo,
mas havia boatos de que logo retornaria.
Para deslocados internos, nenhum lugar era seguro.
Quem são os deslocados
internos?
•••••••••
São pessoas que foram forçadas a deixar sua casa em busca de
segurança, mas que não atravessaram a fronteira para outro país.
Hoje, há mais de 40 milhões de pessoas no mundo que foram
deslocadas devido a violência, guerras, fome e muitas outras ameaças
à saúde, à segurança e aos direitos humanos.
Um refugiado é uma pessoa que deixou sua casa por motivos
similares, mas atravessou uma fronteira internacional. Neste momento,
há mais de 22,5 milhões de refugiados no mundo. *
Um deslocado pode pedir para emigrar para outro país por questões
de segurança. Atualmente, cerca de 3 milhões de pessoas esperam
para saber se seu pedido de asilo humanitário será ou não aceito.
Se todos os deslocados e refugiados formassem seu próprio país,
teria mais gente do que na França.
••••
Fui para a escola da aldeia, sabendo que ficaria na
mesma classe que minha prima Sumbul. Quando
cheguei, vi que havia apenas três meninas na sala dela.
A maioria das garotas de Shangla interrompe os estudos
depois que completa dez anos, então as poucas que
permaneciam na escola aprendiam junto com os
meninos.
Eu chamava a atenção naquela turma: não cobria o
rosto como as outras meninas, falava livremente e fazia
perguntas.
Ah, como sentia saudade de casa. E da minha antiga
escola. E dos meus livros. E até mesmo de Betty, a feia .
Em maio, o Exército enfrentou o Talibã em Mingora
durante quatro dias. Pelo rádio, era impossível dizer
quem estava vencendo. Ao fim, um combate direto teve
início nas ruas.
Tentei imaginar aquilo: talibãs lutando no beco em que
jogávamos críquete.
O Exército finalmente anunciou que os talibãs haviam
fugido, então pudemos respirar um pouco melhor. Mas
nos perguntávamos para onde o Talibã iria agora.
Retornaria às montanhas?
••••
Meu aniversário de doze anos chegou quando ainda
aguardávamos para voltar para casa. Foi estranho.
Esperei o dia inteiro por uma festa — mas tinha tanta
coisa acontecendo que ninguém lembrou da data. Foi
difícil não comparar com meu aniversário de onze anos.
Eu tinha comido bolo com minhas amigas, havia bexigas
e eu tinha feito um pedido pela paz no nosso vale.
Fechei os olhos e repeti aquele pedido no meu
aniversário de doze anos.
10
••••
Uma paz estranha
••••
O Swat finalmente estava em paz. O Exército
permaneceu ali, mas as lojas reabriram, e as mulheres
andavam livremente nos mercados. Plantei um caroço de
manga do lado de fora de casa. Sabia que levaria
bastante tempo para que uma árvore crescesse e desse
frutos, mas era meu modo de dizer que estava
esperançosa por um futuro longo e pacífico em Mingora.
Uma das minhas maiores preocupações naquela época
era minha altura. Por volta da época em que completei
treze anos, parei de crescer. Antes, eu era uma das
meninas mais altas da classe, mas agora estava entre as
mais baixas. Andava fazendo muitos discursos, e tinha
medo de que minha altura tornasse mais difícil chamar a
atenção das pessoas!
No começo de 2010, nossa escola foi convidada para
participar de uma assembleia que englobaria todos os
distritos. Sessenta alunos do Swat inteiro foram
escolhidos como membros. A maioria eram meninos, mas
onze meninas da minha escola tinham sido incluídas.
Quando fizemos uma eleição para ver quem seria a
porta-voz, eu ganhei! Era estranho ficar ali no palco
enquanto as pessoas se dirigiam a mim como “sra.
oradora”, mas levei aquela responsabilidade muito a
sério.
A assembleia se reuniu quase todos os meses por um
ano, e passamos nove resoluções. Decidimos que
nenhuma criança deveria ser forçada a trabalhar.
Pedimos ajuda para colocar crianças de rua ou com
deficiência nas escolas. Exigimos que todas as escolas
destruídas pelo Talibã fossem reconstruídas. Assim que
concordamos quanto às resoluções, elas foram enviadas
ao governo — e algumas foram até levadas adiante.
Estávamos sendo ouvidos, estávamos fazendo a
diferença, e a sensação era boa.
••••
No começo de 2011, ouvimos falar que mais escolas
haviam sido destruídas e que os talibãs estavam
ameaçando quem os criticava.
Por volta da mesma época, chegou em casa uma carta
anônima endereçada ao meu pai. Você nos criticou, e vai
encarar as consequências.
Começava a parecer que o Talibã nunca havia ido
embora de verdade.
Tentei dizer a mim mesma que aquela carta terrível era
só uma ameaça vazia. Mas ainda assim rezava pela
segurança do meu pai todos os dias. Rezava para que
minha escola permanecesse aberta e para que as escolas
destruídas fossem reerguidas. E rezava para crescer. Se
ia me tornar uma política e trabalhar pelo meu país,
disse a Deus, precisava pelo menos enxergar acima da
tribuna.
11
••••
Enfim, boas notícias
••••
Na primavera, houve um pequeno milagre na campanha
pela educação dentro da minha própria casa. Minha mãe
começou a aprender a ler.
Enquanto meu pai e eu estávamos ocupados falando por
todo o vale do Swat, ela tinha começado a ter aulas com
uma das professoras do primário da Khushal. Logo minha
mãe já era capaz de ler a língua nacional paquistanesa, o
urdu — e tinha começado a aprender inglês também.
Minha mãe gostava de estudar ainda mais do que eu, se
é que isso é possível. Muitas vezes fazíamos a lição de casa
juntas à noite, tomando chá — duas gerações de mulheres
pachtos alegremente debruçadas sobre seus livros.
••••
Eu sentia que meu aniversário de quinze anos seria um
ponto de virada para mim. Já era considerada adulta — na
nossa sociedade, deixamos a infância aos catorze anos.
Mas era hora de pensar no meu futuro. Tinha certeza de
que queria ser uma líder política. E começava a me
preocupar com todos os prêmios que vinha recebendo. Via
tantas crianças sofrendo — como podia desfrutar de festas
de gala e cerimônias?
Eu disse a meu pai que queria gastar parte do dinheiro
que havia recebido ajudando pessoas necessitadas. Nunca
tinha esquecido das crianças que vi no lixão tantos anos
antes. Queria ajudar crianças como aquelas. Então
organizei uma reunião com 21 meninas da escola, e
discutimos como poderíamos ajudar todas as meninas no
Swat a receber educação. Decidimos que focaríamos em
crianças em situação de rua ou trabalho infantil. O plano
era continuar conversando a respeito e, no outono, decidir
exatamente o que fazer.
••••
No começo de agosto, meu pai recebeu a assustadora
notícia de que Zahid Khan, um amigo próximo que também
criticava o Talibã, tinha sofrido um ataque. Haviam dito
para a gente que o Talibã tinha fugido, mas ainda havia
violência no vale. As pessoas que mais corriam risco eram
aquelas que pediam paz.
Por algum milagre, Zahid Khan sobreviveu. Depois
daquilo, no entanto, notei uma mudança no meu pai. Antes
que ele entrasse na escola, olhava para um lado e para o
outro da rua quatro ou cinco vezes para se certificar de que
não estava sendo seguido. À noite, entrava no meu quarto
com a desculpa de que queria me dar boa-noite, mas na
verdade só queria conferir se todas as janelas estavam
trancadas.
— Se os talibãs quisessem me matar — eu dizia a ele —
teriam feito isso em 2009. Aquela era a hora.
Então ele balançava a cabeça para mim e dizia:
— Não, você tem que ficar em segurança.
Às vezes eu me preocupava que alguém pudesse pular o
muro e entrar em casa. Às vezes, depois que todo mundo
já tinha pego no sono, eu saía na ponta dos pés e ia
verificar se o portão da frente estava mesmo trancado.
13
••••
Um dia como qualquer outro
••••
Depois da prova, fiquei procurando meu irmão Atal
enquanto conversava com Moniba, porque ele iria para
casa comigo naquele dia. Mas conforme as meninas se
reuniam para ver nosso motorista fazer um truque de
mágica, esqueci completamente das instruções da minha
mãe em relação a meu irmão.
Sentamos nos nossos lugares de sempre na dyna :
Moniba ao meu lado e o resto das minhas amigas à nossa
frente, no outro banco. Uma menininha chamada Hina
pegou o assento do meu outro lado, onde minha amiga
Shazia costumava ficar, obrigando Shazia a sentar no
banco que ficava ao meio, onde em geral ficavam nossas
mochilas. Shazia pareceu tão infeliz que pedi a Hina que
trocasse de lugar com ela.
Quando o ônibus escolar estava prestes a sair, Atal
chegou correndo. As portas estavam fechadas, mas ele
pulou e se agarrou à tampa da traseira. Era um truque
novo e perigoso, se segurar ali.
— Sente lá dentro, Atal — disse o motorista.
Mas ele não quis saber.
— Sente lá dentro com as meninas, Atal Khan
Yousafzai, ou não vou levar você! — o motorista disse,
com mais força dessa vez.
— Prefiro ir andando pra casa do que nesse ônibus! —
gritou Atal. Ele pulou e saiu correndo, bravo.
Estava quente e grudento lá dentro, enquanto
chacoalhávamos pelas ruas lotadas de Mingora na hora
do rush. Uma das meninas começou a cantar para passar
o tempo. O ar estava denso, com o cheiro familiar de
combustível, pão e carne misturado ao fedor do córrego
próximo, onde todo mundo jogava lixo. Como sempre,
viramos na via principal na altura do posto de controle do
Exército e passamos pelo pôster em que se lia:
TERRORISTAS PROCURADOS.
Depois que deixamos a fábrica de salgadinhos para
trás, a rua ficou estranhamente quieta. O veículo reduziu
a velocidade até parar. Não lembro do jovem que
bloqueou o caminho e perguntou ao motorista se aquele
era o ônibus da Escola Khushal. Não lembro do outro
homem entrando pela traseira e se aproximando de nós.
Não o ouvi perguntar:
— Quem é Malala?
E não ouvi o bang, bang, bang das três balas.
A última coisa de que me lembro é de estar pensando
na prova. Depois, tudo ficou escuro.
PARTE QUATRO
••••
Uma nova vida, longe de casa
14
••••
Um lugar chamado Birmingham
••••
Quando abri os olhos, estava em uma sala verde sem
janelas e com luzes muito fortes. Um médico falou
comigo em urdu. A voz dele saía abafada, mas
compreendi que estava a salvo e que ele havia me
trazido do Paquistão. Tentei falar, sem sucesso. Uma
enfermeira me deu papel e caneta, mas eu não
conseguia escrever direito. Então ela escreveu o alfabeto
inteiro em um pedaço de papel para que eu apontasse
para as letras.
A primeira palavra que soletrei foi “pai”. Depois “país”.
Onde estava meu pai? Eu queria saber. E que país era
aquele?
Eu ainda tinha dificuldade de ouvir a voz do médico,
mas ele parecia dizer que eu estava num lugar chamado
Birmingham. Eu não sabia onde ficava. Só depois
descobri que estava na Inglaterra.
Por que o médico não tinha dito nada sobre meu pai?
Me movi para soletrar “pai” de novo e senti uma pontada
na cabeça. Era como se houvesse uma centena de
lâminas dentro do meu crânio, se debatendo e retinindo.
Tentei respirar. A enfermeira levou um pano à minha
orelha e ele ficou manchado de sangue. Meu ouvido
estava sangrando? O que havia acontecido comigo?
Enfermeiros e médicos entravam e saíam, lançando-me
perguntas. Eu fazia que sim e que não com a cabeça em
resposta. Eles perguntaram se eu sabia como me
chamava. Assenti. Perguntaram se eu conseguia mexer a
mão esquerda. Balancei a cabeça em negativa. Tinham
muitas perguntas, mas não respondiam às minhas.
••••
Uma mulher entrou e me disse que era a dra. Fiona
Reynolds. Falou comigo como se fôssemos velhas
amigas. Ela me entregou um ursinho de pelúcia verde —
eu estranhei um pouco a cor — e um caderno rosa. A
primeira coisa que escrevi foi: Obrigada.
Então escrevi: Por que meu pai não está?
Olhei para todos os equipamentos médicos
complicados à minha volta e escrevi: Meu pai não tem
dinheiro. Quem vai pagar por isso?
— Seu pai está bem — ela disse. — Ele está no
Paquistão. Não se preocupe com o pagamento.
Se meu pai estava bem, por que não estava comigo? E
onde estava minha mãe?
As palavras de que eu precisava não me vinham à
mente. Ela pareceu compreender aquilo.
— Uma coisa ruim aconteceu com você — a dra. Fiona
disse. — Mas está a salvo agora.
O que tinha acontecido? Tentei lembrar. Durante
aqueles primeiros dias no hospital, eu oscilava entre o
mundo real e um mundo de sonhos. Imagens variadas
vagavam pela minha cabeça.
Eu via uma multidão reunida à minha volta enquanto
me mantinha deitada em uma cama, ou talvez uma
maca. Não conseguia ver meu pai. Tentava gritar: Onde
está aba, onde está meu pai? Mas não conseguia falar.
Então o via, e ficava feliz e aliviada.
Eu estava em uma maca, e meu pai estendia os braços
para mim.
Eu tentava acordar, ir para a escola, mas não
conseguia. Então via a escola e minhas amigas, mas não
conseguia alcançá-las.
As imagens pareciam muito reais, mas eu sabia que
nem todas eram. De alguma forma, tinha ido parar em
um lugar chamado Birmingham, em uma sala cheia de
máquinas, só com o ursinho verde ao meu lado.
Achava que talvez tivesse levado um tiro, mas não
tinha certeza. Eram sonhos ou lembranças?
Eu não conseguia lembrar das palavras. Escrevi aos
enfermeiros pedindo um arame para limpar os dentes.
Então notei que meu ursinho de pelúcia tinha sumido.
No lugar dele havia aparecido um branco. Mas o ursinho
verde tinha ficado ao meu lado; ele tinha me ajudado.
Peguei o caderno e escrevi: Cadê o ursinho verde?
Ninguém me deu a resposta que eu queria. Só
disseram que aquele era o mesmo ursinho que a dra.
Fiona havia me dado. As luzes e as paredes tinham lhe
emprestado um brilho esverdeado, mas o ursinho era
branco, insistiam. Sempre tinha sido branco.
As luzes fortes no quarto eram como adagas quentes
nos meus olhos. Parem as luzes , implorei no meu
caderno.
Os enfermeiros faziam o que podiam para escurecer o
ambiente, mas assim que a dor aliviava um pouco, minha
cabeça voltava à mesma questão: onde estava meu pai?
Toda vez que um médico ou enfermeiro diferente
entrava no meu quarto, eu entregava meu caderno e
apontava para as perguntas sobre meu pai. Eles diziam
que eu não precisava me preocupar.
Mas eu me preocupava. Não conseguia evitar.
Tinha certeza de que os médicos e enfermeiros
estavam todos comentando:
— Malala não tem dinheiro. Malala não pode pagar pelo
tratamento.
Um médico parecia estar sempre triste, então escrevi
um bilhete para ele. Por que você está triste? , perguntei.
Achei que era porque ele sabia que eu não podia pagar a
conta do hospital. Mas ele respondeu:
— Não estou triste.
Quem vai pagar? , escrevi. Não temos dinheiro.
— Não se preocupe — o médico falou. Depois daquilo,
ele sempre sorria quando me via.
••••
A dra. Fiona entrou no meu quarto e me entregou um
recorte de jornal. Era uma foto do meu pai ao lado do
chefe do Exército do Paquistão. Meu pai estava vivo! E ao
fundo da foto estava Atal!
Sorri, agradecida. Então notei uma figura coberta com
lenço sentada ao fundo da foto, perto do meu irmão. Só
dava para identificar seus pés. Eram os pés da minha
mãe!
Essa é minha mãe! , escrevi para a dra. Fiona.
Dormi um pouco melhor naquela noite, embora meu
sono ainda fosse permeado de sonhos estranhos. Eu
acordava e olhava em volta em busca do ursinho verde.
Mas só encontrava o branco.
Agora que eu sabia que minha família estava a salvo,
passava o tempo todo me preocupando com uma
maneira de pagar pelo tratamento. Estaria meu pai em
casa, vendendo nossas poucas posses? Ligando para os
amigos para pedir dinheiro emprestado?
Mal consegui acreditar quando o homem que havia
falado comigo em urdu, o dr. Javid Kayani, entrou com o
celular na mão e disse:
— Vamos ligar para os seus pais. — Então ele
continuou, de maneira firme, mas bondosa: — Não chore.
Seja forte. Não vai querer que sua família fique
preocupada.
Assenti. Não tinha chorado nem uma vez desde que
acordara. Meu olho esquerdo lacrimejava o tempo todo,
mas aquilo não era choro.
Depois de uma série de bipes, ouvi a voz querida e
familiar do meu pai.
— Jani? — ele disse. — Como está se sentindo, minha
jani ?
Eu não conseguia responder, por causa do tubo na
minha garganta. E não podia sorrir, porque meu rosto
estava dormente. Mas sorria por dentro, e tinha certeza
de que meu pai sabia.
— Vou chegar logo — ele disse. — Agora descanse. Em
dois dias estaremos aí.
Sua voz estava alta e animada. Talvez um pouco
animada demais.
Então me dei conta: também tinham dito a ele para
não chorar.
15
••••
Uma centena de perguntas
••••
Fiquei olhando para o relógio no quarto enquanto
esperava pela minha família. Acompanhar a
movimentação dos ponteiros me reassegurava de que eu
estava mesmo viva. Também me ajudava a contar os
minutos até minha família chegar.
O relógio sempre tinha sido meu inimigo em casa —
roubando meu sono pela manhã quando tudo o que eu
queria era me esconder debaixo do cobertor. Eu queria
só ver quando minha família ouvisse que eu finalmente
havia feito as pazes com ele — e que, pela primeira vez
na vida, estava acordando cedo! Todas as manhãs,
esperava avidamente pelas sete horas, quando amigos
como Yma, que trabalhava no hospital, e os enfermeiros
da ala infantil vinham me fazer companhia.
Quando eu já estava conseguindo enxergar bem o
bastante, eles me levaram um aparelho de DVD e uma
pilha de filmes.
Tinham ligado a televisão nos primeiros dias, mas
minha visão ainda estava tão embaçada que eu havia
pedido que desligassem. Agora meus olhos tinham
melhorado, embora eu ainda estivesse com um pouco de
visão dupla. Minhas opções eram Driblando o destino,
High School Musical, Hannah Montana e Shrek. Escolhi
Shrek . Gostei tanto que vi a sequência logo em seguida.
Uma enfermeira descobriu que se cobrisse meu olho
machucado com um pedaço de gaze o problema da visão
dupla era amenizado. Assim, passei o dia com um ogro
verde e um burro falante enquanto esperava que meus
pais chegassem à Inglaterra.
••••
Depois de alguns dias no hospital, o tubo na minha
garganta foi removido, e recuperei minha voz. Então
comecei a fazer minhas perguntas à dra. Fiona. Era como
estar de volta às aulas de biologia na escola.
Fiquei sabendo que, no Paquistão, os médicos disseram
a meus pais que eu não sobreviveria a menos que fosse
levada para um hospital melhor. Meus pais concordaram
que o dr. Javid e a dra. Fiona me levassem. Os dois
médicos, que estavam no Paquistão a trabalho, tinham
sido chamados para ajudar no meu tratamento e haviam
ficado ao meu lado por quase duas semanas. Não era à
toa que se comportavam como se me conhecessem há
muito tempo.
Havia uma última coisa que eu queria saber:
— Eu fiquei em coma — disse. — Por quanto tempo?
— Uma semana — a dra. Fiona me disse.
Eu tinha perdido uma semana da minha vida. Nesse
período, levei um tiro, fui operada e levada para o outro
lado do mundo. A primeira vez que peguei um avião e saí
do Paquistão foi em um jatinho particular para que
salvassem minha vida.
O mundo não parou de girar, e eu não sabia nada do
que tinha acontecido. Me perguntei o que mais teria
perdido.
16
••••
Preenchendo as lacunas
••••
— Está tudo bem. Estamos todos aqui agora — meu pai
dizia quando eu perguntava o que havia acontecido
comigo. Então tentava mudar de assunto, e eu deixava.
Um dia, quando estávamos sozinhos, ele pegou minha
mão, com os olhos cheios de lágrimas.
— Jani , eles me ameaçaram tantas vezes. Você levou
minha bala. Deveria ter sido eu. — Depois de uma pausa,
meu pai continuou: — As pessoas passam por alegrias e
sofrimento na vida. Você teve todo o sofrimento de uma
vez só, e o resto da sua vida vai ser cheio de alegria. —
Ele não conseguiu falar mais.
Eu queria dizer a meu pai que não estava sofrendo — e
que não queria que ele sofresse. Abri outro sorriso torto e
disse apenas:
— Aba .
Era tão injusto que meu pobre cérebro danificado não
conseguisse escolher as palavras certas diante de uma
pessoa que eu amava tanto.
Mas meu pai compreendia. Ele sorriu de volta, apesar
dos olhos úmidos.
Um pouco mais tarde, minha mãe estava me ajudando
no banheiro quando a vi dar uma olhada no meu reflexo
no espelho. Nossos olhos se encontraram por um
momento, então desviou o olhar.
— Seu rosto — sussurrou depois. — Vai melhorar?
Contei à minha mãe o que os médicos me disseram:
em algum momento, meu rosto ia melhorar. Mas nunca
seria como antes.
Quando ela me acompanhou de volta à cama, olhei
para meus pais.
— É o meu rosto, e eu o aceito. Vocês precisam aceitar
também — falei, com delicadeza.
Eu queria dizer tantas outras coisas a meus pais. Tivera
tempo de me acostumar com meu novo rosto. Mas para
eles ainda era um choque. Quando você vê a morte , eu
queria dizer, as coisas mudam. Não importava se eu não
conseguia piscar ou sorrir. Ainda era eu, Malala.
Sabia que minha recuperação era uma bênção, um
presente de Deus e de todas as pessoas que haviam se
preocupado comigo e rezado por mim. Então me sentia
em paz. Mas enquanto eu melhorava em Birmingham,
vendo Shrek e seu burro falante, meus pobres pais
tinham estado a milhares de quilômetros de distância,
lidando com sua própria dor.
A partir daquele dia, nossa família passou a se curar
unida.
••••
Aos poucos, meus pais me contaram tudo o que havia
acontecido nos dezesseis dias entre o ataque e o nosso
reencontro.
O que descobri foi:
Assim que o motorista do ônibus escolar, Usman Bhai
Jan, se deu conta do que havia acontecido, me levou
direto para o Hospital Central do Swat. As outras meninas
gritavam e choravam. Eu estava deitada sobre Moniba,
sangrando.
Naquele dia, meu pai estava em um encontro da
Associação de Escolas Particulares, no qual faria um
discurso. Quando soube o que havia acontecido, correu
para o hospital. Ele me encontrou lá dentro, deitada
numa maca, com a cabeça enfaixada, os olhos fechados
e o cabelo todo bagunçado.
— Minha filha, minha corajosa filha, minha linda filha —
meu pai me disse de novo e de novo, como se aquilo
pudesse me despertar. Acho que, de alguma maneira, eu
sabia que ele estava comigo, mesmo inconsciente.
Os médicos disseram a ele que a bala não tinha
chegado perto do cérebro e que o ferimento não era
grave. Logo o Exército tomou conta da situação, e às 15h
eu estava em uma ambulância a caminho de um
helicóptero que ia me levar para outro hospital, na
cidade de Peshawar. Não havia tempo para esperar
minha mãe, então a sra. Maryam, que havia chegado ao
hospital pouco depois do meu pai, insistiu em ir junto
caso eu precisasse de ajuda de uma mulher.
— Não chorem — minha mãe dissera às vizinhas à
beira das lágrimas. — Rezem. — Enquanto o helicóptero
sobrevoava nossa cidade, ela correu para o telhado. Tirou
o lenço da cabeça, um gesto raro para uma mulher
pachto, e o ergueu para o céu. — Deus, eu a confio ao
Senhor — minha mãe disse.
Os canais paquistaneses mostravam fotos e vídeos
meus, com preces e poemas. O pobre Atal ligou a
televisão depois da escola, ouviu a notícia e se deu conta
de que se não tivesse ficado bravo por não poder ir
agarrado na traseira, teria estado naquele ônibus
também.
Enquanto isso, eu estava em Peshawar, onde um
médico descobriu que meus ferimentos eram bastante
sérios. Ele me operou, então os dois médicos britânicos
— a dra. Fiona e o dr. Javid — assumiram meus cuidados.
A dra. Fiona insistiu que eu receberia melhor
tratamento no hospital do dr. Javid em Birmingham, na
Inglaterra: o Queen Elizabeth. Mas eu precisaria ser
levada imediatamente — em no máximo dois dias. Minha
família não poderia ir comigo. O dr. Javid garantiu ao meu
pai que eles tomariam conta de mim.
— Não é um milagre que vocês por acaso estivessem
aqui quando Malala levou um tiro? — meu pai comentou.
— Sou da opinião de que Deus manda a solução
primeiro e o problema depois — respondeu o dr. Javid.
••••
Eu tinha perdido tanta coisa! No entanto, enquanto meus
pais me explicavam o que havia acontecido,
acrescentando que o mundo inteiro estava
acompanhando as notícias, era quase como se
estivessem me contando uma história. Como se aquelas
coisas tivessem acontecido com alguma outra menina
que não eu.
Talvez seja porque eu não me lembre de nada sobre o
ataque. Absolutamente nada.
Os médicos e enfermeiros tinham explicações
complicadas para isso: o cérebro nos protege de
lembranças dolorosas demais. Ou, diziam, o meu podia
ter desligado assim que fui ferida. Amo a ciência, mas
não preciso que me explique por que não lembro do
ataque.
Na verdade, eu sei o motivo: Deus foi bom para mim.
Ninguém me entende quando digo isso. Imagino que,
se você nunca chegou perto de morrer, não tem como
entender mesmo. Mas eu e a morte estivemos bem
próximas. Só que a morte, ao que parece, não me quis.
••••
Quando finalmente assisti ao telejornal, descobri que um
porta-voz de Fazlullah havia dito que o Talibã tinha sido
“forçado” a atirar em mim porque eu não parava de
criticar o movimento.
Eles tinham me alertado, tinham ido à imprensa, e eu
não havia parado.
Meus outros crimes eram defender a educação e a paz.
Nos termos deles, eu defendia a educação ocidental,
que, na opinião dos talibãs, era contra o islã.
E o Talibã tentaria me matar de novo, dissera Fazlullah.
— Que isso sirva de lição.
Era uma lição, de fato. Minha mãe estivera certa ao
citar o Sagrado Corão. A mentira deve morrer, ela me
dissera tantos anos antes, quando eu estava
considerando escrever o diário para a BBC. E a verdade
deve prevalecer.
A verdade sempre triunfará sobre a mentira. Essa é a
verdadeira crença islâmica, que nos guiou em nossa
jornada.
O Talibã atirou em mim para tentar me silenciar. Mas
agora o mundo todo estava ouvindo minha mensagem.
17
••••
Mensagens do mundo todo
••••
Em dezembro, depois de quase dois meses hospitalizada,
finalmente permitiram que eu fizesse meu primeiro
passeio: ao Jardim Botânico de Birmingham. Fomos eu,
minha mãe e duas enfermeiras. Meu pai não foi: ele tinha
aparecido tanto na televisão que estava com medo de
chamar a atenção das câmeras.
Fui no banco de trás do carro, virando a cabeça de um
lado para o outro no caminho, louca para absorver tudo
daquele país totalmente novo.
Eu não estava acostumada ao vento forte e ao ar frio.
Mas as plantas eram lindas! E familiares!
— Temos dessa lá no vale também — eu disse a uma das
enfermeiras. — E dessa também!
Minha mãe ficou tão animada que ligou para meu pai.
— Pela primeira vez — ela disse —, estou feliz.
Àquela altura, minha família estava morando em um
prédio alto de Birmingham e me visitava todos os dias. A
vida estava mesmo voltando ao normal, já que meus
irmãos estavam me deixando louca de novo! Depois de
mais ou menos um dia me tratando como uma boneca de
porcelana, tinham voltado a ser irritantes.
— Por que tanta onda com a Malala? — Atal disse uma
vez. — Eu a vi. Ela sobreviveu.
— Deixem os dois em casa! — implorei aos meus pais. —
Eles só fazem barulho e ainda querem ficar com meus
presentes.
Eu finalmente era capaz de ler de novo, e a linguagem e
as lembranças começaram a voltar. Embora eu ainda
tivesse dificuldade de lembrar os nomes de algumas das
minhas amigas, estava fazendo bastante progresso, e me
animava a cada dia.
Naquele mesmo mês, recebi minha primeira visita que
não era da família: Asif Ali Zardari, presidente do Paquistão.
O hospital tinha medo de que a visita atraísse muita
atenção dos jornalistas, mas eu tinha que recebê-lo. O sr.
Zardari havia prometido que o governo cobriria todas as
minhas despesas médicas.
Eu vesti um casacão roxo e escapei do prédio pela saída
de funcionários. Passamos de carro por um aglomerado de
jornalistas e fotógrafos, que nem nos notaram. A cena
parecia saída de um livro de espionagem.
Fomos levados a um escritório. Enquanto esperávamos,
Atal, Khushal e eu brincávamos com um joguinho eletrônico
chamado Elf Bowling. Era a primeira vez que eu jogava, e
mesmo assim ganhei dos dois. Prova de que a velha Malala
estava de volta.
Quando o presidente entrou, levou a mão à minha
cabeça, um gesto de respeito no meu país. Ele falou que
havia conseguido um emprego para meu pai em
Birmingham. Tudo ficaria bem, disse. Meu trabalho era
focar na minha recuperação.
Depois, o sr. Zardari disse que eu era “uma menina
extraordinária e um orgulho para o Paquistão”.
Foi um dia incrível. O líder do meu país me tratava com
respeito e todas as minhas preocupações relativas a
dinheiro tinham sido resolvidas.
Mas, ah, foi um dia agridoce. Porque então eu entendi:
não voltaríamos para casa por um bom tempo.
18
••••
Milagres
••••
Eu sentia muita falta de casa. Tinha saudade das minhas
amigas da escola, das montanhas, das cachoeiras, do lindo
rio Swat, dos campos verdes exuberantes. Então foi duro
quando descobri que algumas pessoas no Paquistão me
criticavam. Elas questionavam a honestidade da minha
família. Havia até quem dissesse que meu pai havia atirado
em mim só para que pudéssemos viver em meio ao luxo no
exterior.
Também recebi notícias da escola. Pelo Skype, Moniba
me disse que sentia muito minha falta e que nenhuma
outra menina poderia ocupar o lugar que eu havia deixado
em seu coração. Ela também me disse que Shazia e Kainat
já tinham se recuperado e estavam de volta à escola. E que
minhas amigas haviam guardado um lugar para mim na
sala.
— Ah, aliás — Moniba disse —, você acertou tudo na
prova de estudos paquistaneses.
Era a que eu havia feito na manhã do ataque.
••••
Fiz muitas cirurgias, incluindo uma para melhorar minha
audição. Um dispositivo eletrônico bem pequeno foi
colocado atrás da minha orelha para me ajudar a escutar.
Algumas semanas depois, um receptor foi encaixado, e
ouvi um leve bipe. Então outro. Então veio o som da voz do
médico. A princípio, todo mundo soava como um robô, mas
logo minha audição melhorou.
Como Deus é grande! Ele nos deu olhos para ver a beleza
do mundo, mãos para tocá-la, um nariz para sentir sua
fragrância, e um coração para desfrutar de tudo. Mas não
nos damos conta de como nossos sentidos são milagrosos
até perdermos um.
O retorno da minha audição era só um milagre.
Um talibã dera três tiros à queima-roupa atingindo três
meninas em um ônibus escolar — mas nenhuma de nós
morreu.
Uma pessoa tentou me silenciar. E milhões ergueram sua
voz.
Tudo isso eram milagres também.
19
••••
Este novo lugar
••••
Conforme o primeiro aniversário do ataque se aproximava,
os jornalistas voltaram a me entrevistar. Descobri que eu
não estava nem de perto tão chateada quanto alguns deles
em relação ao que havia acontecido comigo. Acho que vejo
minha situação de maneira diferente. Se dissesse a mim
mesma: “Malala, você nunca vai poder voltar para casa
porque é alvo do Talibã”, eu viveria em sofrimento.
Encaro tudo da seguinte maneira: posso ver! Posso ouvir!
Posso falar! Estou vivendo a vida que Deus quer para mim.
Os jornalistas também me perguntam se tenho medo.
Digo que não. E é verdade.
Fico frustrada quando eles querem focar no ataque, e não
na minha luta pela educação das meninas. Eu até
compreendo. Mas na minha cabeça, a violência e a
tragédia criaram uma oportunidade.
Nunca esqueço dessa oportunidade, especialmente
quando penso na organização que criei para ajudar outras
crianças, o Fundo Malala, e lembro de todo o bem que fez e
continuará a fazer. Estamos ajudando meninas no Swat que
não receberam educação porque foram forçadas a
trabalhar. Estamos ajudando crianças refugiadas em todo o
mundo. É nosso dever garantir que essas crianças tenham
comida, abrigo e educação. E vamos fazer isso.
badal
: vingança
dyna
: caminhonete aberta nos fundos
haram
: o que é proibido pelo islã
jani
: querido(a)
pisho
: gatinho(a)
purdah
: segregação ou reclusão das mulheres, uso do
véu
shalwar kamiz
: veste tradicional composta por túnica
(kamiz ) e calça (shalwar ) soltas
3
de janeiro de 2009: Malala começa a escrever para o
site da BBC urdu sobre a vida sob o Talibã.
Maio de
2009: Devido à turbulência local, a família de
Malala e os residentes do Swat precisam deixar o vale.
Outubro
de 2009: O New York Times retrata Malala e
seu pai no documentário Class Dismissed [Classe
dispensada].
Março
de 2013: Malala volta à escola em Birmingham.
12 de
julho de 2013: Malala fala às Nações Unidas em
seu aniversário de dezesseis anos, que
12 de julho de 2015
: Malala abre uma escola no vale
do Beca, no Líbano, para meninas sírias refugiadas.
Abril
-setembro de 2017: Malala viaja pelo mundo
falando diretamente tanto com meninas quanto com
líderes mundiais.