Você está na página 1de 3

TEXTO 01

A conceituação de infância

Adriana Demite Stephani**

Um primeiro enfrentamento da bibliografia disponível, em nossa língua, a respeito de infância já é


suficiente para pôr em evidência que ela é compreendida como um estágio crucial na construção do indivíduo.
Mas essa noção do que seja a infância já foi bem menos sofisticada. Naquela mesma bibliografia, fica em
relevo ainda o fato de que as idéias, os sentimentos e a valorização atribuídos à infância foram bastante
distintos dos de hoje, sendo que as variações são de origens diversas, as quais vão de fatores econômicos a
influências políticas, determinantes das diversas concepções de infância existentes.
A infância foi vista durante muito tempo como uma fase humana inferior àquela que lhe servia de
referência, a idade adulta. A compreensão da infância como etapa do desenvolvimento do ser humano, uma
faixa etária diferenciada, com interesses e cuidados próprios é fenômeno relativamente recente e remonta à
Idade Média (cf. ZILBERMAN, 1982, p. 15). Essa revalorização da infância só foi possível em virtude da
própria reorganização da idéia de grupo familiar surgida a partir do fim do feudalismo:

Com a decadência do feudalismo, desagregam-se os laços de parentesco que eram um dos


respaldos deste sistema, baseado na centralização de um grupo de indivíduos ligados por elos
de sangue, favores, dívidas ou compadrio, sob a égide de um senhor de terras de origem
aristocrática. Da dissolução dessa hierarquia nasceu e difundiu-se um conceito de estrutura
unifamiliar privada, desvinculada de compromissos mais estreitos com o grupo social e
dedicada à preservação dos filhos e do afeto interno, bem como de sua intimidade
(ZILBERMAN, 1982, p. 16).

Philippe Ariès, em sua História social da criança e da família (1986), fornece, por meio da análise de
pinturas, antigos diários de família, testamentos, igrejas e túmulos, um panorama do surgimento 1 e evolução do
sentimento de infância e de família que vai desde a Idade Média até a Idade Moderna. Segundo Ariès, a
sociedade dos Séculos XVII e XVIII via mal a criança e pior ainda o adolescente:

A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem
ainda não conseguia bastar-se: a criança então, mal adquiria algum desembaraço físico era logo
misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se
transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que
talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das
sociedades evoluídas de hoje. [...] A passagem da criança pela família e pela sociedade era
muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar
a sensibilidade (ARIÈS, 1986, p.10).

*
1
Segundo Ariès, esse sentimento da infância já teria existido na Grécia antiga. Ao se observar a iconografia dessa época, percebe-se
nitidamente a idealização de sua graça e redondeza de formas. A figura de Eros é, sem dúvida, a melhor ilustração desse fato.
1
Segundo Peres (1999), no final da Idade Média, na França, o termo enfant designava não só o putto –
a criancinha nua, um revestimento de Eros helenístico – mas também o adolescente (a adolescência se
confundia com a infância) e a criança mal-educada. Além dessas designações, o termo também significava, nos
séculos XIV e XV o mesmo que valet, valeton, garçon, vocábulos estabelecidos nas relações feudais ou senhoris.
“Ligava-se, assim, a idéia de infância à noção de dependência” (PERES, 1999, p. 23).
O século XVIII testemunhou mudanças na antiga ordem de valores quanto à infância. Com a ascensão
da burguesia e à medida que a sociedade se industrializava e se modernizava, mediante a aquisição de novos
recursos tecnológicos, a criança e a família assumiam novo posto, tornando-se o lugar de afeição necessária
entre os cônjuges, o que se exprimiu, sobretudo, na importância atribuída a partir de então à criança e à sua
educação.
Antes, “esta faixa etária não era percebida como um tempo diferente, nem o mundo da criança como
um espaço reservado” (ZILBERMAN, 1982, p.15). A criança, vista agora como um indivíduo que merece
consideração especial, acaba por se tornar o eixo norteador a partir do qual se organiza a família. Segundo Ariès
(1986, p. 120), o sentimento da família, desconhecido na Idade Média, emergido nos séculos XVI e XVII, e
expresso com vigor definitivo no século XVIII, é então inseparável do sentimento de família.
A criança, que outrora seria enviada para outros lares para ser educada; agora, permanece no seio da
família genitora. Não mais é objeto da mesma rudeza, pois a concepção da criança como detentora de uma
fragilidade natural que resulta de sua situação biológica em formação, de sua dependência física e financeira,
gerou uma série de cuidados e uma maior atenção dada a ela. Este comportamento dos adultos em relação às
crianças, que permanece até os dias de hoje, é traduzido no termo “paparicação”.
A concepção da criança como um indivíduo com falta de experiência, dotado de uma inocência
natural, com índole frágil e dependente gerou um novo tipo de distanciamento de adultos e crianças, só que
agora para uma “chamada à razão”: um movimento apelidado de “moralização”, que começou a ser exercido
pela escola (cf. KRAMER, 1987).
A educação passou a ter uma maior importância e a escola a servir como modeladora, corretora,
manipuladora. Esta foi incentivada pela burguesia ascendente, o que resultou num aperfeiçoamento do sistema
escolar:

A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. [...] A despeito das muitas
reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa
espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio.
Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como os dos loucos, dos
pobres e das prostitutas), que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de
escolarização (ARIÈS, 1986, p. 11).

Os estudos de Kramer (1987) e Peres (1999) discutem o sentimento moderno de infância apresentado
por Ariès, sentimento este que resulta em atitudes contraditórias que caracterizam o comportamento dos adultos
até os dias de hoje: preservar e moralizar, ou seja, a inocência a ser resguardada e a ignorância a ser abolida. O

2
interesse pela infância não se revela mais através de brincadeiras e distrações e sim da preocupação com seu
desenvolvimento psicológico e moral.
Em textos do fim do século XVI e início do XVII proliferavam observações sobre a psicologia infantil.
Segundo Ariès, isso se dava porque “tentava-se penetrar na mentalidade das crianças para melhor adaptar a seu
nível os métodos de educação” (1986, p. 163). É o início, ao que tudo indica, da “psicopedagogia” (PERES,
1999, p. 26).
Mas o que se percebe é que, em todo tempo, a imagem da criança torna-se a imagem projetada pelo
adulto:

Se a imagem da criança é contraditória, é precisamente porque o adulto e a sociedade nela


projetam, ao mesmo tempo, suas aspirações e repulsas. A imagem da criança é, assim o reflexo
do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos. Mas este reflexo não é ilusão; tende, ao
contrário, a tornar-se realidade. Com efeito, a representação da criança assim elaborada
transforma-se, pouco a pouco, em realidade da criança. Esta dirige certas exigências ao adulto e
a sociedade, em função de suas necessidades essenciais. O adulto e a sociedade respondem de
certa maneira a essas exigências: valorizam-nas, aceitam-nas, recusam-nas e as condenam.
Assim, reenviam à criança uma imagem de si mesma, do que ela é ou do que deve ser. A
criança define-se assim, ela própria, com referência ao que o adulto e a sociedade esperam
dela. [...] A criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e
temem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem, eles próprios, ser e
temem tornar-se. (CHARLOT apud ZILBERMAN, 1982, p.19).

O que podemos observar, segundo os estudos de Ariès (1986), Kramer (1987), Peres (1999) e
Zilberman (1982), é que, durante boa parte da história humana, as crianças eram insignificantes para os adultos.
Mesmo achando-as “engraçadinhas”, estes viam-nas como servis, inferiores, dependentes etc. e quando elas
começam a receber atenções, nota-se logo a necessidade de ter com elas cuidados especiais para moldá-las,
segundo a concepção do adulto: o adestramento dado através da educação.
Com os estudos da psicopedagogia, debruçou-se sobre a análise da influência desse período da vida
humana para os seguintes, entendendo-se a infância como estágio crucial para a formação do indivíduo; etapa
esta a ser estudada, analisada e melhor assistida.

Referências:

ARIÈS, Philipe. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2 ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1986.
KRAMER, Sonia. A Infância e sociedade: o conceito de infância. In: A política do pré-escolar no Brasil. 3 ed.
Rio de Janeiro: Dois pontos, 1987. p. 15-47
PERES, Ana Maria Clark. A criança e o estilo. In: O infantil na literatura. Belo Horizonte: Miguilim, 1999.
ZILBERMAN, Regina. A criança, o livro e a escola. In: A literatura infantil na escola. São Paulo: Global,
1982.

Você também pode gostar