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1.

A invenção da infância1
Os sinais da formação do sentimento de infância são encontrados na língua, nas
manifestações artísticas, nos jogos e brincadeiras, no comportamento sexual, nas práticas de
saúde e na ênfase à educação e à moral.
Em meados dos séculos XVI e XVII aconteceram mudanças económicas, políticas e
sociais, com reflexos na organização das famílias e das práticas educacionais que vigoravam
até então: as crianças cresciam no meio adulto e era na observação de suas actividades que
ocorria a aprendizagem.
A família passou a ser considerada um instrumento privilegiado de governo da
população e a ela foi atribuído o controlo das crianças. A escola foi criada como instituição na
qual a aprendizagem, como uma forma de educação, foi substituída por um aparelho de
aprender, ou seja, passa a se considerar válida apenas a aprendizagem que a escola
proporciona.
Até o século XVIII, não havia termos na língua francesa para diferenciar a infância, a
adolescência e a juventude. A palavra "enfant" (criança) representava, ambos, crianças ou
rapazes. Isso pode ser explicado: não era o critério biológico que distinguia as pessoas, sendo
que "ninguém teria a ideia de limitar a infância pela „puberdade‟. A dependência económica
marcava a ideia de infância: Só se saía da infância ao se sair da dependência. Daí a explicação
à algumas imagens e relatos do século XVI, segundo os quais, aos 24 anos, a criança é forte e
virtuosa.
Conforme Ariès (1981), que se consagrou como um estudioso da infância e da família,
o sentimento de infância surgiu nos primórdios de uma sociedade industrial, na qual as
aprendizagens formais passaram a ser de responsabilidade da instituição escolar, enquanto à
instituição familiar caberia o lugar da afeição.
O reconhecimento do critério de dependência económica para caracterizar a infância,
em detrimento ao critério biológico, gerou a seguinte situação: considerava-se adulto quem
não dependesse dos pais, ainda que mais jovem à outra pessoa que, contudo, fosse dependente
economicamente. Esta era considerada criança.
1.1. Começo do uso da Palavra Infância

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Para efectuar esse apontamento, recorremos à Philippe Ariès que em sua obra clássica, História Social
da Família e da Criança, identifica os sinais da emergência do sentimento de infância. A sua premissa básica é a
de não existir o sentimento de infância durante o Antigo Regime na Idade Média.
O primeiro uso conhecido da palavra infância data do final do séc. XIV. Do anglo-
francês enfaunce e directamente do latim infantia, traduz-se por período/estado inicial da
existência ou (literalmente) incapacidade de falar.
Um dos primeiros autores a debruçar-se sobre o tema foi o historiador medieval
Philippe Ariès (1914-1984) na sua obra L’enfant et la vie sous l’Ancien Régime (1960), onde
defende que a infância é uma criação da sociedade e não um fenómeno natural/biológico, na
medida em que admite não existir o sentimento/ideia de infância durante a idade média.
Seu objecto de estudo é basicamente a criança e a família na França Medieval. A
característica marcante desse período é o fato de que as crianças estão integradas no mundo
dos adultos, o que difere substancialmente da situação encontrada no século XVII, onde, ao se
reconhecer a necessidade de limitar a participação das crianças no "mundo dos adultos",
separa-se o espaço infantil do espaço destinado aos adultos.
Um dos métodos que Ariès utilizou para construir a sua concepção de infância foi a
análise de elementos iconográficos2. O autor aponta que, até por volta do século XII, a arte
medieval ignorava a infância enquanto representação artística ou não a representava de todo,
o que indiciava não ter lugar ou existência própria nessa época, já que a sua ausência muito
improvavelmente se deveria a falta de habilidade ou incompetência dos artistas.
Por outro lado, e até finais do séc. XIII, as crianças não tinham uma expressão
particular e a este propósito o autor analisa uma tela que representa uma cena do Evangelho
de S. Marcos, na qual Jesus diz “Deixai vir a mim as criancinhas”, e onde estas são
representadas por homens em tamanho reduzido, ou seja, as características físicas, tal como os
traços do rosto, a musculatura ou o porte físico, são as de homens. é também através do traje
que se pode observar que a idade média era indiferente à infância. Não havia distinção entre a
roupa usada pelos adultos e a das crianças, à excepção da fase em que esta usava cueiros
(faixa de tecido enrolada à volta do corpo), sendo que, dentro de uma mesma condição social,
as vestes eram iguais apenas variando no tamanho.
Ainda uma análise ao nível dos jogos e brincadeiras, do comportamento sexual,
das práticas de saúde e da educação e moral, sempre encontrando forma de apresentar a idade
média como uma época onde a infância era considerada apenas um período de transição, logo
ultrapassado e cuja lembrança era logo perdida. A partir do momento em que a criança tinha

2
Vocábulo usado para designar o significado simbólico de imagens ou formas representadas em obras
de arte. Também nomeia uma disciplina da História da Arte, dedicada a identificar, descrever, classificar e
interpretar a temática das artes figurativas.
condições de viver sem o apoio da mãe ou de uma ama, automaticamente se diluía na
sociedade adulta.
Para o autor, é a partir do séc. XVI que a sociedade passa a olhar a criança de forma
diferente, estando dotada de personalidade e com particularidades especiais que necessitam de
cuidados específicos e adequados. A criança vai, deste modo, conquistando um espaço
próprio ao longo dos séculos seguintes até se afirmar completamente no séc. XVII

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