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Seminário Medieval I

1. CONTEXTO DO AUTOR: apresentar perfil acadêmico / intelectual /


historiográfico do autor; fazer levantamento de sua produção.

• Introdução ao Livro

História da Vida Privada, obra idealizada por Michel Winock1, que inspirou
Phillipe Ariès2 e Georges Duby3 que durante o período em que estiveram na
EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales), reuniram textos de
diversos autores renomados, que resultaram em cinco volumes (volume 1: Do
império romano ao ano mil; volume 2: Da Europa feudal à renascença; volume
3: Da renascença ao século das luzes; volume 4: Da revolução francesa à
primeira guerra; volume 5: Da primeira guerra a nossos dias), lançados na
França pela Editions Du Seuil, em 1986 (dois anos após a morte de Ariés), e no
Brasil pela Cia das Letras, em 1989. E em 2009 com o Apoio do Ministério
Francês da Cultura, em virtude do ano da França no Brasil4, foi suprimido para
uma edição de bolso. Possui uma ampla análise das instituições privadas ao
longo da História Ocidental e Oriental Europeia.

O primeiro volume dessa coleção, intitulado Do Império Romano ao ano Mil,


organizado por Paul Veyne5, pontua cerca de oito séculos de história, do declínio
do Império Romano à Alta Idade Média ocidental e à Bizâncio dos séculos X e
XI. As partes abordadas neste trabalho (parte 2: Antiguidade Tardia e parte 4:
Alta Idade Média Ocidental), escritas por Peter Brown e Michel Rouche,

1 Michel Winock (Paris, 19 de março de 1937), historiador especialista em História


Contemporânea.
2 Philippe Ariès (Blois, 21 de julho de 1914 – Paris, 8 de fevereiro de 1984), um dos mais

influentes historiadores franceses do século XX


3 Georges Duby (Paris, 7 de outubro 1919 – Aix-en-Provence, 3 de dezembro de 1996) um dos

maiores medievalistas do século XX.


4 Realizado entre 21 de abril e 15 de novembro de 2009, foi organizado na França, pelo

Comissariado Geral Francês, pelo Ministério das Relações Exteriores e Europeias pelo
Ministério da Cultura e da Comunicação e por Culturesfrance; no Brasil, pelo Comissariado
Geral Brasileiro, pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério das Relações Exteriores, tinha o
objetivo de aprofundar as relações entre os dois países, no âmbito cultural, acadêmico e
econômico.
5 Paul Marie Veyne (Aix-en-Provence, 13 de junho de 1930), renomado arqueólogo e

historiador.
respectivamente. “ O livro reúne ensaios que examinam a vida cotidiana de
cidadãos e escravos, senhores e servos – sua sexualidade, o casamento, a
família, as diversas formas de moradia, as atitudes religiosas e as práticas
funerárias. Acrescidos de ilustrações, os textos compõem em seu conjunto um
fascinante panorama do aparecimento e das transformações da esfera privada,
dando um quadro dos comportamentos individuais e sociais no período
abordado”.6

• Autores

Peter Brown

Peter Robert Lamont Brown (1935, Dublin) é um historiador irlandês. Estudou


História na Universidade de Oxford, onde foi, de 1956 e 1975, lente de história
Antiga e Contemporânea. Brown que é proficiente em quinze idiomas, tornou-se
aos 32 anos de idade a maior autoridade sobre Agostinho de Hipona. Desde
então, tem produzido um fluxo contínuo de livros e artigos, e, presentemente, é
citado como o historiador mais destacado em Antiguidade tardia. Entre 1970 e
1975 lecionou História Medieval na Universidade de Merton, e de 1975 a 1978
coordenou a disciplina de História na Universidade Royal Holloway. Atualmente
é professor de História Contemporânea e Clássica na Universidade da Califórnia
em Berkeley. O estudo teológico de Peter Brown tem registrado um excelente
acolhimento por parte da crítica e do público interessado. Tem já uma vasta obra
ensaística publicada como: Agostinho de Hipona: uma biografia; O mundo da
antiguidade tardia: 150-750 d.C (1971/1989); O culto dos santos: a sua ascensão
e a sua função no cristianismo latino; Sociedade e a Antiguidade Sagrada (1982);
O corpo E a Sociedade: homens, mulheres e renúncia sexual no cristianismo
primitivo (1988); Autoridade e os Sagrados: aspectos da cristianização do mundo
Romano (1995); História da Vida Privada: do Império Romano ao ano mil
(capítulo 2).

6Livraria Cultura. História da Vida Privada: do Império Romano ao ano Mil. Disponível em:
<www.livrariacultura.com.br/p/livr.os/historia-da-vida-privada-v1-edicao-de-bolso-2745816 >.
Acesso em 22 junho 2017
Da qual se destacam os títulos: Agostinho de Hipona: uma biografia e O culto
dos santos: a sua ascensão e a sua função no cristianismo latino.

Michel Rouche

Nascido em 30 de maio de1934, em Paris capital da França, o historiador francês


Michel Rouche é professor emérito de história medieval na Universidade de
Sorbonne. Especialista da Alta Idade Média e antiguidade (sua pesquisa se
concentra no final da antiguidade e o estabelecimento de reinos "bárbaros" na
Idade Média, incluindo o reino visigodo). Professor de história e Doutor em Letras
lecionou na Universidade de Lille III, em seguida, na Sorbonne. Michel Rouche
também sediou o Instituto da Família, que cai sob a catedral Escola da diocese
de Paris.

Michel Rouche é o autor de muitos livros, incluindo: L'Aquitaine visigodos para


os árabes 418-781 (EHESS, 1979); Clovis (Fayard, 1996); Casamento e
Sexualidade na Idade Média (PUPS ed 2.000.); Universal Empires II-IV
séculos (Larousse, 2001);Choque de culturas Romanité, Germanity, o
cristianismo durante a Idade Média (ed norte., 2003); história da educação e
educação, Volume I (Perrin, 2003); História da Idade Média, Volume 1, sétimo
décimos séculos (Complex 2005); As origens do cristianismo, 30-451 (Hachette,
2007); A Idade Média, no Ocidente, com Jean-Philippe Genet e Michel Balard
(Hachette, 2008); Breve história do casal e da sexualidade (ed CLD
2008.); precursor Fulbert da Europa medieval (2008 PUPS ed.); e as raízes da
Europa: As empresas em Alta Idade Média, 588-888(Fayard, 2003); História da
vida privada, Volume 1: Alta idade média ocidental.
Como abordado acima, a obra “Clovis”gerou uma enorme repercussão sobre o
rei franco, causando consequências como a forte presença do historiador na
conferência internacional do ano de 1996, realizada em Reims para comemorar
o batismo de Clovis. Onde o Papa João Paulo II teve a oportunidade de
conversar e conhecer historiadores e cientistas agrupados em torno da referida
questão (promovendo um encontro entre a igreja e a ciência).

2. CONTEXTO DO DOCUMENTO:
Vida Privada

É evidente que o conceito de vida privada para as épocas analisadas neste


trabalho é diferente do conceito que se tem na atual sociedade contemporânea.
Enquanto hoje pode-se separar o privado do público, na Antiguidade Tardia e na
Alta Idade Média essa separação era inviável para as pessoas dessas épocas.

Já no prefácio do livro em questão Georges Duby relata os obstáculos


enfrentados para a elaboração do mesmo. Duby (2009, p.8) dirá que uma das
dificuldades seria: “não se desviar um vez mais para a vida cotidiana – a casa,
por exemplo, o quarto, o leito - , não cair numa história do individualismo, numa
história da intimidade”. Ele também relata que o espaço privado é diversificado
separando-o em três partes: “a morada, onde se confinava a existência feminina;
as áreas de atividades também privatizadas – a oficina, a loja, o escritório, a
fábrica; e, finalmente, os lugares propícios às cumplicidades e ao lazer
masculino, como o bar ou o clube”. (DUBY, 2009, p.9).

Contudo, é-nos também evidente esse conceito por toda a extensão dos
capítulos observados neste trabalho. Cabe citar, para enfatizar as mudanças
ocorridas ao longo do tempo, o que Duby (2009, p.9) também diz no prefácio já
citado: “Traços da vida privada se transformam incessantemente”. Logo, pode-
se traçar aqui as diferenças, não entre os autores, mas dos relatos feitos por eles
nos capítulos II e IV, pois os espaçamento temporal e local descritos por eles
influenciará no modus vivendi dos homens nas épocas já mencionadas.

Com relação a Peter Brown, percebe-se que, tratando da modificação do homem


cívico e da cidade para o homem religioso – membro da Igreja Católica – e do
“mundo”, relacionará, assim com Duby, o homem a seu ambiente público. Como
o mesmo relata falando sobre seu próprio escrito (2009, p. 215):

A cada curva encontramos a necessidade ancestral de uma


comunidade pública em que a existência do indivíduo privado é
totalmente impregnada pelos valores da comunidade e, nas condições
ideais, completamente translúcida a esses valores públicos.

Logo, deixa-se inferido, com esse trecho, que o homem da Antiguidade Tardia
não prevê e não consegue abster-se do ambiente público e da influência desses
meios em sua vida. Tal afirmação anacrónica não deve ser levada em
consideração.

Entretanto, voltando o olhar para o capítulo IV, escrito por Michel Rouche, nota-
se a modificação do ambiente público pela presença dos recém-chegados que
por sua vez possuíam diferentes forma de se estabelecer na Alta Idade Média
Ocidente. Trabalhando com visigodos, burgúndios, carolíngios, merovíngios e
outros povos chamados vulgarmente de bárbaros, o autor traçará diferenças
entre eles e será visível uma diferenciação para como os dois capítulos aqui
observados. Enquanto o autor do capítulo II enfoca na Antiguidade Tardia e
estende-se do Ocidente ao Oriente, o segundo relatará a vida privada já sob
maior influência dos povos bárbaros.

Mais perguntas do que respostas

Ao apresentar a obra o historiador francês Georges Duby afirma que um dos


principais objetivos da coleção é suscitar no leitor o desejo de um
aprofundamento sobre o estudo da vida privada (2009, p. 8):
O que se segue apresenta, com efeito, mais perguntas do que
respostas. Esperamos ao menos que aguce as curiosidades e
incite outros pesquisadores a continuar o trabalho, desbravar
novos trechos, se aprofundar em outros que superficialmente
aplainamos.

A obra por abordar uma ampla gama de conteúdos, da história europeia


ocidental e oriental, num longo espaço temporal, não permite aos autores um
aprofundamento em todos os temas. Ao afirmar que a obra possui “mais
perguntas do que respostas”, Duby deixa claro que o primeiro passo para o
estudo da vida privada foi dado, ficando a desejo do leitor a busca em outras
fontes e/ou o desenvolvimento de pesquisas voltadas para a vida privada, dando
continuidade à obra já iniciada e realizando o objetivo de Duby e Ariès,
organizadores da coleção e dos diversos autores que participaram do projeto.

• 2.1. Problemas e temáticas centrais da obra: recortes e objetos de análise.

Na obra há a abordagem seis assuntos principais para o desenvolvimento do


estudo, Religião; Hierarquia; Cultura; Moral; Sexualidade e Mulher, a partir
desses pontos Peter Brown e Michel Rouche, retratam a vida privada do período
medieval.

RELIGIÃO

A Idade Média é uma época histórica extremamente religiosa. Independente do


povo, espaço ou tempo, a que se referem os autores dos capítulos em questão,
é evidente que a vida privada do medievo é influenciada por uma religiosidade
convicta e debates exegéticos que refletiram no modus vivendi7 daqueles que a
constituem.

Inicialmente, tomando partido pelo capítulo II denominado Antiguidade Tardia,


escrito por Peter Brown, deve-se mencionar o recorte de tempo e espaço que o
mesmo traça para análise. Analisando quatro séculos, “entre o reinado de Marco
Aurélio (161–180) e o de Justiniano (527–565) ” (BROWN, 2009, p. 214) pode-
se observar também o espaço que ele analisa: do Império Romano do Ocidente
ao do Oriente. Transpondo de uma realidade de um homem cívico da época dos
Antoninos à realidade do homem bom cristão, membro da Igreja católica da
Idade Média ocidental.

A religiosidade nesse período refletia em aspectos do modo de vida do homem


medieval tal como a educação, sexualidade, moral, solidariedade e afirmação
das hierarquias, tanto no ambiente eclesiástico quanto no meio familiar, de forma
que esse não venha possuir um “coração duplo”, mas um “coração simples”,
perdido pelo distanciamento de Deus e do próximo retirando-se para zonas
pérfidas8.

Mencionando a ascensão do cristianismo na cidade mediterrânea fala-se de uma


ruptura parcial do judaísmo. A convicção de Paulo, por exemplo, já no primeiro
século leva o mesmo a pregar para diversos povos um “banho purificador”, que
consistiria, segundo ele, “em despojar-se das ‘vestes’ de todas as categorias
religiosas e sociais anteriores e ‘revestir-se’ de Cristo” (BROWN, 2009, p. 231),
ou seja, desde esse século já se teria um “confronto” da cristandade para com
os pagãos e os judeus, principalmente no que diz respeito à missão de pregar
as escrituras em línguas para todos, como pode ser entendido em uma das
cartas escritas à comunidade de Corinto: “Deus não é gerador de confusão, mas
de paz; como em todas as Igrejas dos santos9” ( BROWN, 2009, p.234).

7 Tradução: Modo de Viver;


8 BROWN, Peter. Antiguidade Tardia. In: ARIÈS, Philippe; Duby, Georges; VEYNE, Paul
(Orgs). História da Vida Privada – Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Schwarcz,
2009. p. 230;
9 1ª Carta de Paulo aos Coríntios, capitulo 14, versículo 13;
Cabe citar também uma apropriação da Igreja daquilo que pertencia às atitudes
morais já estabelecidas pelos pagãos e judeus, as quais serão diferenciadas pela
insistência com que são adotadas e colocadas em prática.

Contudo, a igreja firma-se com sua moral religiosa por meio de uma
extraordinária importância da concepção dada a três temas: o pecado, a pobreza
e a morte, cujos conceitos relacionavam-se com o homem medieval, o qual
acarreta em uma maior aceitação e adequação desses para com os
ensinamentos religiosos dados a esses temas.

Em primeira instância, com relação ao pecado, o texto deixará exposto o


seguinte: “As fronteiras mais firmes no interior do grupo (assembleia de
pecadores) são aquelas que o pecado traça. ” (BROWN, 2009, p. 251). Sabendo
que a concepção de pecado está estreitamente ligada à concepção de
“Duplicidade do coração”, que é a corrupção do homem perante Deus e a Igreja,
é evidente que estará também relacionada à distância social e a afirmação de
uma hierarquia estabelecida no grupo cristão, a qual punha o pecador na última
camada dessa hierarquia, totalmente marginalizado e humilhado perante o grupo
a que pertence.

Em segunda instância, a pobreza sofrida por alguns pertencentes da sociedade


medieval possuía uma importância social, religiosa, simbólica e de
exemplaridade para com os demais que não possuíam a mesma situação e
tinham um poder aquisitivo maior que esses. Consequentemente, até a questão
da solidariedade entra em questão, pois quando se dá esmolas não se dá para
que o corpo cívico da sociedade se estabeleça, mas para que os “superiores”
sejam vistos de maneira realmente acima e sintam-se melhor colocados no
ambiente eclesiástico:
Tal anonimato precisamente os transforma em remédio para os
pecados dos membros mais afortunados da comunidade cristã.
Pois a esmola aos pobres constitui uma parte essencial da longa
reparação dos penitentes e o remédio normal para os pecados
"veniais", como a preguiça e os pensamentos impuros e fúteis,
que não demandam penitência pública. (BROWN, 2009, p. 252)
A condição miserável dos pobres recebe pesada carga de
significados religiosos. Eles representam o estado do pecador
que diariamente precisa do perdão de Deus. [...] tal simbolismo
era indispensável para despertar a empatia graças à qual o
citadino, habituado a ver essas desagradáveis ruínas humanas
como exceções ameaçadoras para a regra da antiga
comunidade cívica de cidadãos, concede ao pobre a privilegiada
posição de símbolo da miserável condição da humanidade da
qual participa seu eu que é pecador. A esmola torna-se uma
analogia poderosa da relação de Deus com o homem pecador.
(BROWN, 2009, p. 252 - 253)

Em terceira e última instância, já com relação à morte, é perceptível que na


época vigente, onde a cultura helenística ainda se encontra viva e a parcela da
Igreja não tão forte, encontramos, através de dados arqueológicos e fontes
primárias mencionadas pelo autor, evidencias de que a sociedade nesse instante
não encontra unanimidade no que se refere a parte religiosa da morte: “A
surpreendente variedade de inscrições funerárias pagãs e da arte funerária pagã
testemunha uma sociedade pouco rica em opiniões comuns referentes à morte
e ao além.” (BROWN, 2009, p. 256)
Entretanto, no que se refere à moral cristã da prática da sexualidade, Peter
Brown (2009, p.238) ao citar Galeno10 deixa-nos a pensar em um desprezo para
com a morte equiparando esse desprezo com o a moderação em matéria de
coabitação dos cônjuges:
Seu desprezo pela morte a cada dia nos é evidente, assim como
sua moderação em matéria de coabitação. Pois elas se
constituem não só de homens como também de mulheres que
durante toda a vida se abstêm de coabitar; contam-se entre eles
igualmente indivíduos que, pela autodisciplina e pelo
autocontrole, se elevam à altura de autênticos filósofos.

Posto isso, através desse trecho pode-se observar não só uma indiferença para
com a morte, mas um pudor para com a coabitação entre os casais que,

10Médico e filósofo romano de origem grega. Talvez o mais talentoso médico investigativo do
período romano
assegurando uma determinada moral religiosa se aproximaram da Igreja por
meio de seus ensinamentos que na verdade provêm de uma apropriação do que
era pagão ou judaico como dito anteriormente.

Além desses fatores relevantes para o período da Antiguidade Tardia, têm-se


também as divergências exegéticas para com a Cristandade do Oriente e do
Ocidente, lembrando novamente que o autor trata de um espaçamento local que
vai de Constantinopla à Hipona no que concerne ao debate teológico traçado por
dois bispos consideravelmente relevantes para esse período. São eles: João
Crisóstomo e Agostinho.

O primeiro altamente defensor do monasticismo e do modelo de “homem do


deserto” retira-se da cidade “para viver com os ascetas nas colinas que
circundam a Antioquia” (BROWN, 2009, p.259). Tal será sua influência que o
papel da Igreja será obscurecido nas cidades pelo modelo radicalista dos
homens acima citados. Já o segundo, no Ocidente deixará o “deserto” e Bizâncio
para constatar novas perspectivas frente à sexualidade e a natureza humana
baseando-se em conceitos acerca de discussões levando em consideração
Adão e Eva e o declínio do homem. A respeito dessas divergências Teológicas
podemos citar, por exemplo, o desaparecimento da sexualidade da imaginação
do homem de “coração simples”, enquanto para o Bispo Oriental o retiro para o
deserto auxiliaria nessa perda de pensamentos voltados ao sexo, para o Bispo
Ocidental tal sentimento seria necessário à natureza humana.

Doutra forma, tomando partido para o capítulo IV denominado Alta Idade Média
Ocidental, escrito por Michel Rouche, deve-se mencionar que o mesmo,
especialista em “povos bárbaros”, partirá da helenização da Alta Idade Média
para traçar aspectos relativos à vida privada neste período.

Sendo assim, observando a subjetividade da religiosidade neste período,


levando em consideração a diversidade de povos e crenças, diz-se também de
uma pertinente variabilidade da moral, dos costumes e da cultura.

Com relação ao Monastério, esse passou a ser mais aceito “como espaço de
paz e trampolim para a eternidade” (ROUCHE, 2009, p. 422). O mesmo também
foi essencial em alguns aspectos para com o estrangeiro. Devendo ser esse local
“construído, se possível, de tal forma que todo o necessário – quer dizer, a água,
o moinho, o jardim e os vários ofícios – funcione no interior do mosteiro, de modo
que os monges não sejam obrigados a correr para todos os lados lá fora, pois
não é bom para a sua alma” (ROUCHE, 2009, p. 422), esse local passa a ser o
ponto de refúgio para os que vêm de longe. O que de certa forma é primordial
para o assentamento de uma comunidade defendida por Bento de Nursia.

Com relação aos Eremitas, Michel Rouche relata que a doutrina de Bento
permanecia crítica (2009, p. 423) “o isolamento nada tem da misantropia feroz
do homem superior que despreza a podridão moral dos seus contemporâneos”.
Esse isolamento seria perigoso, pois vivendo sozinho não seria protegido por um
espírito familiar vigente neste período.

Entretanto, o estabelecimento desses monastérios não exclui, como observado,


a presença pagã no Ocidente. Uma vez observado pela cristandade aspectos
pagãos, muitas vezes, essa se apropriará desses mesmos aspectos. Como pode
ser visto com relação às comilanças: “A causa inevitável dessas comilanças
pantagruélicas era um pressuposto religioso pagão reforçado pelo cristianismo.
A prática germânica das refeições comemorativas dinásticas tem sua origem nas
refeições sacrificais pagãs” (ROUCHE, 2009, p. 436).

HIERARQUIA

A sociedade medieval era bem hierarquizada como nos mostrou o livro. Seja na
questão de gênero, seja no poder econômico ou em sua nacionalidade "Seja
qual for a cidade, o fato fundamental da sociedade do Império Romano é a
convicção de que existe uma distância social intransponível entre os notáveis
"bem-nascidos" e seus inferiores." (BROWN, 2009, p.216)

O Império Romano afim de se destacar e criar maior distância dos considerados


inferiores, investiu em educação e cultura com o claro objetivo de exercer essa
distância social afastando-se cada vez mais de um possível "contágio" moral. O
trecho do tópico Os "Bem-Nascidos" traduz bem essa problemática. "As classes
superiores procuram diferenciar-se das inferiores através de um estilo de cultura
e vida moral cuja mensagem mais vibrante é que não pode ser partilhado pelos
outros." (BROWN, 2009, p.216)
A distância social entre a elite e seus inferiores era importante para que não
ocorresse esse ‘contágio’ moral de emoções anormais e atos inadequados, um
exemplo é o argumento/relato que Brown usa na página 219 (2009):

Condena-se espancar um escravo num acesso de raiva. Não


porque se trata de cometer um ato desumano contra um irmão
humano, mas porque tal rompante representa uma ruptura
da autoimagem harmoniosa do homem "bem-nascido". A
irrupção de uma violência anormal constitui uma forma de
'contágio moral' que leva o senhor a comportar-se com um
escravo de modo tão incontrolado quanto o do próprio escravo.

O livro também trata da sexualidade na visão de Agostinho de Hipona relata


como a hierarquia esbarra nas relações sexuais e como na verdade ela é a base
de toda uma questão conjugal que envolve a busca pelo prazer entre homens e
mulheres, determinadas muitas vezes pelo status e gênero dominante.

Há uma distinção entre duas civilizações, baseada na hierarquia de gênero


utilizada pelos povos, “Os romanos pensam em termos de igualdade de sexos,
enquanto os germanos os hierarquizam em benefício dos homens. ” (ROUCHE,
2009, p. 463)

Em outro trecho, Brown (2009, p. 251), consegue retratar, nitidamente, a


postura hierárquica da Igreja Católica perante seus fiéis:
Por ocasião da solene subida dos fiéis para participarem do
"alimento místico", evidencia-se a hierarquia estabelecida no
grupo cristão: os bispos e o clero são os primeiros a se adiantar,
seguidos pelos fiéis castos dos dois sexos; os últimos de todos
são os leigos casados. Num espaço especialmente designado
no fundo da basílica, muito longe da abside, ficam os
"penitentes", cujos pecados os excluíram dos atos de
participação tão concretos.

O trecho na página 252, Peter Brown relata momentos em que o grupo cristão
se distancia das noções hierárquicas para alcançar seu princípio de igualdade
perante os próprios fiéis:
Às vezes a hierarquia do saeculum e a igualdade perante o
pecado se chocam, e as consequências são memoráveis: em
Cesareia, Basílio recusa as oferendas do imperador herético
Valente; em Milão, Ambrósio coloca o imperador Teodósio no
meio dos penitentes — o senhor do mundo despojado de seu
manto e do diadema — por haver ordenado o massacre da
população de Tessalônica.

MORAL

Um dos temas e problemáticas centrais do livro é a questão da moral na


sociedade medieval, em que é apresentada sua construção e conexões com
outras problemáticas, tais como: a mulher, a sexualidade, a igreja, a cultura e a
hierarquia na idade média.

Em primeiro plano, para o entendimento da citada problemática, é necessário


abordarmos a definição da palavra ‘moral’. Que se resume em um agrupamento
de regras adquiridas através da educação, cultura, tradição e cotidiano que
orientam o comportamento humano dentro de uma sociedade específica.

A ‘distância social’ é um dos temas muito abordados no livro, permitindo entender


de que maneira os ‘bem-nascidos’ conseguiam se distanciar moralmente de
seus inferiores; como Peter Brown (2009, p. 216) relata no trecho a seguir:

A evolução mais sensível do período romano é a discreta


mobilização da cultura e da educação moral para afirmar tal
distância. As classes superiores procuram diferenciar-se das
inferiores através de um estilo de cultura e vida moral cuja
mensagem mais vibrante é que não pode ser partilhado pelos
outros. Elas criaram uma moral da distância social,
estreitamente ligada à cultura tradicional posta à disposição das
elites em suas cidades. No próprio seio dessa cultura e da moral
que a acompanha reside a necessidade de assimilar as regras
concretas do intercâmbio entre pessoas das classes superiores
na condução dos negócios públicos da civitas.

Consequentemente, os próprios filósofos acreditavam em uma restrita produção


intelectual entre a classe superior. Acrescido à ideia de que a educação literária
ajuda na constituição do indivíduo, o controle da linguagem embasa o caráter
moral do mesmo. Aumentando, ao longo dos anos, a discrepância entre as
classes; enquanto o ‘bem-nascido’ é moldado por uma longa e restrita educação,
o seu inferior sempre esteve em posição de ‘contagiar’ o ‘bem-nascido’ com
anomalias emocionais e morais; como apresentado por Brown nos trechos a
seguir:

Ali o estudante será integrado ao grupo de seus pares, jovens


da mesma condição com relação aos quais sempre terá tantas
obrigações como para com seu professor. O conteúdo da
educação, bem como a forma e o lugar em que lhe é inculcado,
visa a formar um homem versado nos officia vitae [misteres da
vida], experiente nas técnicas tradicionais e solenes que devem
preencher a vida de um indivíduo da classe superior [...]
Considera-se a educação literária como parte de um processo
de educação moral mais íntimo e exigente. [...] Ao menos tanto
quanto o controle da linguagem, o controle muito estudado da
postura constitui a marca do homem "bem-nascido" na cena
pública. (2009, p. 217)

[...] Aquilo que quase se poderia chamar de "hipocondria moral"


forma uma sólida barreira entre as elites e seus inferiores. A
pessoa harmoniosa, formada por uma longa educação e
moldada pela pressão constante de seus pares, vive
perigosamente, supõe-se. Está exposta à ameaça sempre
presente de "contágio moral" por emoções anormais e por atos
tidos como inadequados a sua posição pública, mas bem-
aceitos como habituais na sociedade inculta de seus inferiores.
(2009, p.218)

Sendo o próprio filósofo, um representante de prestígio no interior da elite, atrela-


se o ideal de que o mesmo, nunca considerou a ideia de dirigir-se às massas;
como relatado a seguir por Peter Brown (2009, p. 224):

Situamos num contexto preciso o papel do filósofo e das ideias


morais oriundas dos círculos filosóficos durante o século II: a
necessidade que as classes superiores sentem de uma
solidariedade mais estreita e de meios de controle mais íntimos
sobre seus inferiores. O filósofo é o "missionário moral" do
mundo romano.

Tornando- se necessário a provação de um indivíduo de classe superior, a provar


constantemente tamanha distância social por meio de um excelente código de
comportamento, gerando diversas preocupações morais, tais como: as relações
com os inferiores e as relações sexuais; como relatado no trecho a seguir,
outrora já citado como um parâmetro da hierarquia existente na sociedade
(BROWN, 2009, p.219):

Condena-se espancar um escravo num acesso de raiva. Não


porque se trata de cometer um ato desumano contra um irmão
humano, mas porque tal rompante representa uma ruptura da
autoimagem harmoniosa do homem "bem-nascido". A irrupção
de uma violência anormal constitui uma forma de "contágio
moral" que leva o senhor a comportar-se com um escravo de
modo tão incontrolado quanto o do próprio escravo.

Acredita-se, veementemente, na diferença entre homens e mulheres. O livro


aborda a fraqueza moral das mulheres e a grande tendência masculina de “perda
de calor” que podem ser expostas em cena pública, baseando-se no ideal de
“contágio moral”; como abordado nos trechos a seguir (BROWN, 2009, p.220):

Embora se possa estabelecer seguramente a diferença entre


homens e mulheres — no caso da mulher pelo baixo nível de
"calor" e pela consequente fraqueza moral de seu temperamento
—, o homem ativo não se beneficia de semelhante segurança.
Sempre pode perder "calor". Uma descarga sexual excessiva
pode "resfriar-lhe" o temperamento, e a perda de seus recursos
se revelaria então com impiedosa clareza, através de uma perda
de entusiasmo na cena pública. [...] Não depende da
sexualidade em si, mas baseia-se, antes, na sexualidade como
fonte possível de ‘contágio moral’. Através da "efeminação",
supostamente resultante de prazeres sexuais excessivos com
parceiros de ambos os sexos, a complacência sexual pode, com
efeito, corroer a superioridade incontestada do ‘bem-nascido’.

Atrelando-se ao fato da análise entre homens e mulheres, o cristianismo


inicialmente, repudia o segundo casamento, pois se acredita que praticando
essa atitude, o homem se coloca em posição de incapacidade, pois não era
capaz, nem mesmo, de comandar uma mulher.

Conectando-se com a temática da sexualidade, a nudez não era considerada um


ato exibicionista, mas sim uma marca de condição social em cenário público;
como abordado no trecho a seguir (BROWN, 2009, p.222):

A postura de um homem, nu ou vestido, é a verdadeira marca


de sua condição, uma marca tanto mais convincente quanto
minimizada. Para as mulheres, a vergonha social que haveria
em se exibir de modo inconveniente constitui uma preocupação,
não o simples fato de se mostrar nua: a nudez diante dos
escravos é moralmente tão insignificante quanto a nudez diante
dos animais; e a exibição física das mulheres das classes
inferiores constitui outro sinal de sua desregrada inferioridade
em relação aos poderosos.

A moral do mundo romano tardio é completamente repensada ao longo da


ascensão do cristianismo, trazendo consigo a construção de um homem
socialmente vulnerável (os anexos que os filósofos apresentavam como
novidade, somado a experiências morais antigas da elite, transformaram- se nas
mãos dos mestres cristãos, no embasamento das exigências a respeito de todas
as classes). Sendo construído em um mundo de experiências sociais, gerando
consequências como a transformação da figura do imperador como um guardião
da moral privada, embora seja a Igreja que detenha a verdadeira posse dos
ideais moralistas sociais; como relatado por Brown nos trechos a seguir:

Passar das elites do período antonino do século II e do começo


do século III d. C. ao mundo do judaísmo tardio a partir do século
II a. C. equivale a deixar para trás uma moral tranquilamente
arraigada no sentimento da distância social e penetrar no mundo
de uma nação aflita. (2009, p. 228)

Daí o paradoxo da ascensão do cristianismo como força moral


num mundo pagão. Essa ascensão altera profundamente a
textura moral do mundo romano tardio. Contudo os dirigentes
cristãos pouco inovam em matéria de moral. O que fazem é
muito mais crucial. Criam um novo grupo cuja excepcional
insistência na solidariedade em face de suas tensões internas
garante que seus membros pratiquem o que os moralistas
pagãos e judeus já começaram a pregar. (2009, p. 234)

Entretanto é a Igreja cristã que se apossa dessa nova moral e a


submete a um sutil processo de mudança, tornando-a ao mesmo
tempo mais universal em sua aplicação e muito mais íntima em
seus efeitos sobre a vida privada do crente. Os cristãos adotam
uma variante melancólica de moral popular para facilitar a busca
obstinada de novos princípios de solidariedade que visam a
incutir ainda mais profundamente no indivíduo o sentimento do
olhar de Deus, o medo do julgamento divino e um forte
sentimento de compromisso na coesão da comunidade religiosa.
(2009, p. 237-238)

O livro relata que a ascensão do cristianismo também construiu um indivíduo


socialmente vulnerável, tornando a penitência e o casamento meios eficazes de
cristianizar a vida privada, sendo a penitência uma revelação do progresso da
consciência moral.

O livro também aborda as diversas noções morais sobre os povos germânicos -


embora relate uma moralidade constituída por uma unidade - idealizando de
certa forma uma constituição de “noções morais” unitárias; como a noção de
adultério, divórcio, insultos e penitências. Um exemplo das divergências entre os
mesmos é o relato sobre as ofensas, onde há certa limitação dos romanos sobre
a punição por ofensa proferida em público, enquanto os germanos acreditavam
que o insulto era destrutivo; como relatado no trecho a seguir (ROUCHE, 2009):

Para os germanos, o insulto sempre é destrutivo porque se volta


para as virtudes privadas que o ideal social e a moral paga
preconizam. O cúmulo da desonra é o qualificativo de
prostituída: 45 soldos. (p. 490)
Entre os burgúndios a noção de adultério estende-se à moça e
à viúva que se unem a um homem de livre e espontânea
vontade. São então consideradas maculadas e tornam-se
infames. Os francos aplicam o termo ao homem livre que se
diverte com a escrava de outro. Se a união se torna pública,
acarreta a escravidão para o culpado; igualmente para a mulher
livre em situação análoga. Assim, ao aspecto sórdido do
adultério acrescenta-se a mácula servil. A conotação moral é
idêntica, sexual e socialmente falando. (p. 462)

A Igreja teve, pois, de tolerar o divórcio por mútuo consentimento


e, particularmente, aqui o divórcio iniciado pela mulher, mesmo
que os bárbaros o considerassem imoral e escandaloso. (p. 464)

É abordado também, o crescimento do individualismo, o desacordo entre o


coração e o corpo, a vulnerabilidade social do indivíduo em sociedade e outras
diversas problemáticas que envolvem a moral: “A vida cotidiana era suja, a vida
privada devia ser também, por contaminação, e o moralismo podia florescer”
(ROUCHE, 2009, p. 519), e também abordado no trecho a seguir:

Do Estado, propriedade privada, à Igreja privada o círculo se


fecha. Do político ao religioso, a Alta Idade Média é a época forte
das individualidades, da recusa do abstrato e dos grandes
horizontes, dos pequenos grupos e das comunidades de
calorosa afetividade. A instintividade constitui o valor primeiro:
voracidade, rapacidade são as duas mamas de um mundo ávido
de viver e gozar. O corpo e o coração estão em desacordo. A
natureza parte para o assalto da cultura. O animal fascina o
homem. O corpo é venerado, mutilado ou torturado. Só a
violência permite sobreviver. A morte está atrás de todos.
(BROWN, 2009, p. 531)

CULTURA

Uma das questões mais abordadas no livro trata-se sobre a cultura da sociedade
europeia, por volta de oito séculos (especificamente no capítulo 2 do II ao V
século e no capítulo 4 do V ao VIII século) . Em Roma a cultura e até mesmo a
religião derivaram quase inteiramente dos gregos, ou seja, Roma não era menos
helenizada que outras cidades. Os códigos de comportamento eram também
muito importantes, pois estes se referiam ao corpo, no entanto, as roupas da
época antonina não tinham tanta importância quanto nas épocas posteriores.
Porém, durante o reinado de Constantino e seus sucessores, houve uma grande
mudança nos códigos de conduta, a veste passa a ter grande importância e é
utilizada para enaltecer a importância da hierarquia; como o autor relata no
trecho a seguir:
A veste discreta e uniforme da época clássica, comum a todos
os membros das classes superiores- a toga de harmonioso
drapeado, símbolo da dominação inconteste de uma classe de
nobres intercambiáveis-, é abandonada em favor de uma roupa
concebida como uma heráldica, criada para expressar as
divisões hierárquicas no seio das classes superiores. ”
(BROWN, 2009, p. 246)

No Oriente bizantino o sistema permanece o mesmo, e pouco a pouco vai mudar


completamente; o helenismo torna-se o principal. O uso de roupas costuradas é
geral, elas continuam muito amplas. Todos usam o mesmo estilo de roupa, o que
difere são as botinas de couro ou tamancos, que são usadas segundo o nível
social; como apresentados no trecho a seguir:

Não há diferença nenhuma entre os galo-romanos e os francos.


Todos usam uma camisa de linho até os joelhos e uma túnica de
mangas curtas ou compridas (é a atual biaude de Auvergne),
calças com faixas ajustadas às pernas pouco abaixo dos joelhos
e botinas de couro ou tamancos, segundo o nível social.
(ROUCHE, 2009, p. 441)

O grande indicador de diferenças sociais é a qualidade dos tecidos, o uso das


armas e das joias utilizadas. Nudez só existe em momentos apropriados como:
banho e na hora de dormir. Os banhos romanos restringiram-se, cada vez mais
aos enfermos.
“Os príncipes carolíngios trocavam de roupa e tomavam banho no sábado. Cada
sexo tinha seus rituais e seus instrumentos de toalete presos ao cinto: pente,
fórfice e pinças de depilação. ” (ROUCHE, 2009, p. 441)
O corte de cabelo também era de grande importância, pois ele informava a
posição social de cada um, e o significado também mostrava a hierarquia e o
poder.
Os francos, assim como seus reis, usam cabelos compridos- os
romanos os cortam à altura da nuca-, deixando livres a nuca e a
testa, e depilam o rosto. Os escravos e os eclesiásticos, porém,
devem raspar a cabeça, padres e monges mantendo apenas
uma coroa de cabelos ou, como os irlandeses, uma mecha que
vai de orelha à outra. O simbolismo é evidente: os cabelos
longos significam força, virilidade e liberdade. Se os escravos
veem sua condição assim indicada, os clérigos demonstram com
isso que pertencem a Cristo. ” (ROUCHE, 2009, p. 441)

Enquanto os cabelos femininos não deviam ser mexidos, deviam permanecer


presos com alfinetes e permanecerem intactos.
A nudez também possuía muitos significados para diferentes vertentes. Para os
cristãos a nudez significava uma afirmação de sua condição de criatura boa mas
dependente de Deus, antes do pecado ou sem este. O nu cristão representa um
ser criado; o nu pagão, um ser procriador. No entanto, a nudez começou a se
tornar algo que poderia trazer problemas, então um padre de Narbonne um dia
disse ter tido uma visão, onde Cristo pedia que ele lhe vestisse.
Obviamente a sensibilidade da época começava a recusar esse
espetáculo que parecia indecente e até perigoso, pois Cristo
corria o risco de ser adorado pelas mulheres como um deus da
fertilidade, à maneira de Príapo ou, mais tarde entre os vikings,
de Freyr, cujas representações em postura itifálica não
deixavam dúvida sobre sua função. (ROUCHE, 2009, p.442 e
443)
A alimentação era muito relevante para os costumes da época, as refeições
constituíam verdadeiros rituais religiosos. As refeições da noite eram as mais
importantes, mais importantes até do que as refeições do meio-dia. Dividir uma
refeição com outra pessoa a tornava intocável. Participar dos banquetes une a
comunidade e os coloca em uma ligação com os deuses, pois havia o sentido de
regeneração e fonte de vida. Através dessas importantes refeições criaram
pratos que até hoje são utilizados na maioria dos países, como retrata Rouche,
(2009, p. 433)
Os francos inventaram a sopa, cozido de carne com pão
molhado servido no início da refeição.
[...] Entre os galo-romanos, o equivalente é o purê de legumes
secos, o pulmentum. Em seguida vêm carnes com molho e
grelhadas: de vaca, carneiro, porco e caça. O conjunto é
acompanhado de couve, nabo e rabanete e temperado com
alho, cebola, especiarias, pimenta, cominho, cravo, canela,
nardo, pimentão amarelo, noz-moscada- tidos como
ingredientes que facilitam a digestão.
[...] enquanto uns tinham a necessidade de fazer refeições
exageradas, outros faziam jejum por questões religiosas.
[...] em comparação, é fácil compreender que o jejum não
constituía uma necessidade higiênica, mas um contravalor
religioso destinado a denunciar o culto do estômago.
[...] Um monge de Bordeaux “não se alimentava nem mesmo de
pão e bebia apenas a cada três dias uma taça de tisana”. Pois
alguns bebiam ainda mais do que comiam.

O vinho era uma das bebidas principais, pois o vinho era o único tônico que
estava à disposição de todos. A comilança não era um privilégio dos ricos, era
para todos, até mesmo os escravos participavam. Não se trata de um
comportamento comum somente a sociedade merovíngia, mas também a da
época carolíngia. Havia recomendações para a alimentação dos monges, pois
os mesmos necessitavam de uma alimentação diferenciada.
São Columbano – que recomendava a seus monges comer
“raízes [nabos, rabanetes etc.], legumes secos, farinha cozida
com um pequeno biscoito, para que o estômago não pesasse e
o espírito não se asfixiasse [...] Em média cada monge consome
por dia 1,7 quilos de pão (mas cada monja, 1,4 quilos),1,5 litros
de vinho ou cerveja, de setenta a cem gramas de queijo e um
purê de lentilhas ou grão-de-bico de 230 gramas (133 para as
monjas).

A alimentação dos homens e mulheres desta época era o dobro do que hoje
consideramos necessário a uma pessoa de atividade média e um terço a mais
do que trabalhadores braçais precisam. Eles entendiam que somente pratos
pesados e muito exagerados poderiam alimentar de uma forma mais resistente.
No total, as rações chegavam a 9 mil calorias.
Tratava-se de um regime normal, e os camponeses,
trabalhadores braçais, também o praticavam. Pois quando havia
festa, todos se excediam. [...] demandavam longas digestões
acompanhadas de sestas, arrotos e flatulências expressas de
maneira mais sonora possível, pois constituíam prova de boa
saúde e de deferência ao anfitrião. ” (ROUCHE, 2009, p. 435)

Esses banquetes não tinham nada de luxuosos, eles não eram nada mais do
que uma grande comilança, uma luta contra a sensação de fome sempre
presente por causa da falta de bons hábitos alimentares. Alguns deles tinham
uma espécie de raiva dos médicos, já que os mesmos lhe proibiam de comer as
carnes assadas, pelo fato de que estavam com algum tipo de doença sanguínea.
A causa inevitável dessas comilanças pantagruélicas era
um pressuposto religioso pagão reforçado pelo
cristianismo. [...] ademais, comer muito garantia a força
genética e geradora. Destinadas a assegurar a salvação
física e espiritual da família carolíngia, essas fabulosas
comezainas, acompanhadas de orações obrigatórias,
consolidavam a estabilidade dos reis e perenizavam a
sucessão. (ROUCHE, 2009, p. 436)
Na época, suas mentalidades não permitiam diferenciar a mente do corpo,
portanto, pensavam que a barriga estufada dos monges correspondia ao ventre
cheio da rainha.
Esse verdadeiro culto do excesso alimentar próprio de homens
e mulheres que só sabem experimentar sensações fortes
desaparece ao longo do século X nas refeições diárias, porém
os banquetes que duravam dois ou três dias continuaram
existindo. (ROUCHE, 2009, p. 436)

SEXUALIDADE

A sexualidade é abordada de diversas maneiras no decorrer das épocas. Com o


estabelecimento do Cristianismo, as doutrinas da Igreja foram moldando a visão
da sociedade em relação à sexualidade. “ De todas as batalhas dos cristãos, o
combate pela castidade é o maior. Aqui a luta é constante e a vitória, rara. Com
efeito, a continência é a grande guerra.” (BROWN, 2009, p. 283 – citação de
1200) O casamento romano nos primeiros séculos da era Cristã era algo privado,
pois não havia nenhum ato escrito (a não ser em caso de a prometida possuir
dote) e mediador para concretizar o casamento.11
Não havia distinção entre o amor heterossexual e o amor homossexual, contudo,
julgava-se o fato de um superior se deitar com um inferior, principalmente de
maneira passiva, o que poderia corroer a superioridade dos bem-nascidos.
Essas restrições morais se aplicavam somente à classe superior.
Aos bem-nascidos a nudez pública era sinônimo de luxo, como já abordado na
questão da Moral, destacava-se a nudez atlética símbolo de imponência,
herança da cultura helênica. Os banhos públicos serviam como reuniões cívicas
entre os pares. “A nudez diante de um escravo é moralmente tão insignificante
quanto a nudez diante de animais”. (BROWN, 2009, p. 222).
Com a ascensão do cristianismo, uma nova moral sexual é imposta, o medo do
julgamento divino passa a guiar os crentes. Cresce nos séculos II e III, uma nova
moral sexual onde a coabitação diminui entre homens e mulheres, através da
renúncia sexual total, a partir das análises de Galeno. Aos que se unem em
matrimonio, há uma ênfase na busca da harmonia conjugal e a eximia
reprovação à uma segunda união, até mesmo de viúvos, pois a esses era
reservada a missão de dedicar-se até o fim da vida de atividades na Igreja. Aos
homens a segunda união era motivo de vergonha, pois o mesmo não teria sido
capaz de comandar a primeira esposa. O repúdio à segunda união tinha por
objetivo aproximar o homem de Deus e separá-lo dos pagãos.
Para a manutenção da castidade os homens passaram a se casar mais novos,
pois assim era possível, dentro do casamento, seus desejos serem controlados.
Tanto homens, quanto mulheres eram preparados para a vida matrimonial. Os
casamentos eram preferencialmente entre cristãos, o que dificultava de certa
forma a escolha dos cônjuges.
Essa abnegação sexual se reflete intimamente nos sacerdotes cristãos, diferente
das outras grandes religiões monoteístas, onde o casamento é essencial para
os líderes religiosos, pois significa sinal de sabedoria, no cristianismo a negação
total aos desejos da carne, denota uma entrega total a Deus. Baseando-se nos
escritos bíblicos, em que os apóstolos de Jesus deixam tudo para segui-lo12, Os
sacerdotes escolhidos entre os casados teriam de deixar suas famílias para
exercer a função eclesiástica, como pode ser verificado na página 440 desse
livro, onde Michel Rouche relata que Urbicus, ao se tornar bispo abandona sua
esposa.
Diante dessa problemática, Bispos e Sacerdotes se reuniram no Concilio
regional de Elvira – região próxima à Granada, na Espanha –, em 304, para
regulamentar as normas eclesiásticas da região. Nesse Concilio, a primeira lei

11 VEYNE, Paul. O Império Romano. In: ARIÈS, Philippe; Duby, Georges (Orgs). História da
Vida Privada – Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Schwarcz, 2009. p. 43-44;
12 Evangelho de Lucas, capitulo 5, versículos de 9 ao 11;
sobre o celibato sacerdotal é publicada, sob a rubrica Sobre os bispos e ministros
(do altar) que devem ter continentes com suas esposas:
Se está de acordo sobre a proibição total, válida para bispos,
sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados
ao serviço do altar, que devem se abster de suas esposas e não
gerar filhos; quem fizer isso deve ser excluído do estado
clerical.13 (Cânon 33)

O celibato sacerdotal era enormemente exercido pelos monges do Oriente, ao


se isolarem da sociedade para manterem constante contemplação e adoração a
Deus, os religiosos eremitas, se desapegavam de todos os seus bens para
buscarem o paraíso, “ A supressão da sexualidade ou, mais humildemente, a
retirada da sexualidade significa um estado de disponibilidade decidida com
relação a Deus e ao outro, ligado ao ideal da pessoa de ‘coração simples’”.
(BROWN p. 242).
Os monges adquirem enorme prestigio na sociedade e passam a ditar a
educação moral das cidades, segundo o entendimento de alguns monásticos, só
seriam elevadas ao céu, as almas que na terra preservassem a castidade,
enquanto outros monges entendem que o ato sexual dentro do casamento não
rompe a ligação com Deus e é uma prova de preservação da castidade, “Afinal,
Deus cria e forma a criança; e o ato sexual, graças ao qual os parceiros lhe
fornecem o material de seu ato criador” (BROWN, 2009, p. 281).
Contudo ao ato sexual eram impostas diversas regras, tais como datas e
momentos em que o ato poderia ocorrer, “doravante os cristãos evitam com
cuidado as relações sexuais nos dias proibidos pela Igreja – principalmente o
domingo, a vigília das grandes festas religiosas e durante a Quaresma –, pois
temem os efeitos genéticos de tais infrações ao código de decoro público. ”
(BROWN, 2009, p.282)
No Ocidente, Agostinho, Bispo de Hipona, compreende o ato sexual como a
plenitude conjugal e sua alegria é perpetuada através dos filhos concebidos
através da ação, mesmo que haja nela prazer intenso. Pois todo esse prazer é
derivado da concupiscência do homem ao pecado14, como relata Brown (2009,
p. 283):
Os homens e as mulheres, os “bem-nascidos”, seus inferiores e
os “homens do deserto”, de maneira menos sinistra, porém tão
inelutável quanto aos homens casados “no mundo”, todos
participam de uma fraqueza universal e primitiva: uma natureza
sexual herdada de Adão e Eva sob sua forma desmembrada.
Nenhuma renúncia pode elevar alguém acima dessa natureza;
nenhum código laboriosamente interiorizado pode mais do que

13 STICKLER, Alfons. Celibato eclesiástico: História e fundamentos teológicos. Traduçãp


Padre Anderson Alves. Disponível em: < www.presbiteros.com.br/site/celibato-eclesiastico-
historia-e-fundamentos-teologicos-2/ > Acesso em 16 junho 2017;
14 Conceito Cristão que denomina a inclinação do homem ao pecado herdadas de Adão e Eva;
contê-la. E tal desmembramento agora é apresentado como
sintoma privilegiado, porque singularmente íntimo e apropriado,
da condição humana: o homem como ser sexual tornou-se o
menor denominador comum da grande democracia dos
pecadores reunidos na Igreja Católica.

A partir desse ideal, Santo Agostinho une concepções mundanas e monásticas


dentro da doutrina da Igreja.
Na alta idade média, a nudez outrora símbolo de soberania passa a ter um
significado sexual e genital, nunca adquirido, “ A nudez só existe em dois casos:
durante o banho e na hora de dormir” (ROUCHE, 2009, p. 441). A nudez entre
os cônjuges só era permitida no leito onde os mesmo procriariam, nesse sentido
o nu se tornava sagrado. Os batismos deixam de ser realizados com os
nascentes na Igreja nus e aos poucos o sacramento realizado por imersão 15 se
torna raro. As imagens de Cristo desnudo, para que não passasse a ser adorado
pelas mulheres como um Deus da fertilidade, passam a ser cobertas nas partes
genitais. Compreendendo essa problemática, a reforma monástica de Bento de
Núrsia, recomenda os monges a dormirem vestidos.

MULHER

A obra apresenta como eram vistas, como suas atitudes eram julgadas e qual
era sua importância no âmbito social.

É levantada a questão da importância da mulher no final da Republica e no


começo do Império, onde as mulheres eram consideradas seres periféricos
como Brown (2009, p. 223) relata no trecho a seguir, que as "criaturinhas", se
referindo às mulheres, não tinham nenhuma importância na política que era
majoritariamente masculina;

As mulheres dos homens públicos eram tratadas como seres


periféricos que não contribuíam em nada — ou bem pouco —
para o papel público de seus maridos. A conduta dessas
"criaturinhas" e as relações com o esposo não tinham grande
interesse para o mundo exclusivamente masculino dos políticos.

15O batismo por imersão seguia o modelo utilizado por João Batista, descrito nos evangelhos,
esse se dava através do mergulho total do batizado na água;
"As 'criaturinhas' podiam fazer o que quisessem desde que não interferissem no
jogo sério da política masculina." (BROWN, 2009, p. 223)

Outra problemática encontrada no livro é a questão hierárquica da mulher na


Igreja, que independente de sua condição financeira não teria acesso ao poder
público dessa instituição. A verdadeira posição pública da mulher na região
Mediterrânea era como protetora dos pobres, cuidando dos doentes e dos
estrangeiros nos hospitais. Desfrutava dessa rara posição que a vida pública
poderia oferecê-la, ocorrendo claramente uma segregação entre os sexos dentro
da Igreja. Como apresentado no tópico Mulheres Ricas da página 254, a vida
da mulher era hierarquizada e dominada pelo homem já na Idade Média.

Um objeto de análise que traduz bem essa questão que está no capítulo 4 que
é a pergunta que Michel Rouche faz na página 442; "O corpo feminino, portanto,
constituiu um tabu? Por quê?" Podemos responder com os fatos apresentados
na obra, como faremos a seguir;

No mundo Mediterrâneo Oriental, “as mulheres eram evitadas e quando estavam


menstruadas eram proibidas da eucaristia” (BROWN,2009,p. 275). Isso nos
mostra como o corpo feminino era sim um tabu, mas não só o corpo em si, toda
a figura da mulher era sempre interpretada como uma verdadeira incógnita que
poderia fazer o bem e o mal. O casamento precoce era muito comum aos jovens
de ambos os sexos, como já relatado acima, e existia uma norma que limitava
quando e como as relações sexuais deveriam ser realizadas pelos conjugues
pois envolviam questões de religiosas que poderiam afetar até a saúde do feto.
Eles acreditavam que se não ocorresse a abstinência por exemplo, durante os
dias festivos da Igreja, a criança poderia nascer com alguma deficiência pois
sofreria um castigo divino. Peter Brown retrata essa prática nos seguintes
trechos:

A crença surpreendentemente tenaz de que o decoro das


classes sociais superiores observado nas relações sexuais
contribui para gerar crianças 'bem concebidas', cheias de saúde,
dóceis e de preferência do sexo masculino, reveste-se de uma
concepção nova do ato sexual como um momento de disjunção
inevitável com os aspectos racionais, ou sociais, da pessoa. [...]
Os casais cristãos continuam a crer em seus médicos; de
qualquer modo, só um ato de amor caloroso e agradável pode
lhes dar as crianças que justificam os fatos sexuais aos olhos do
clero celibatário. Doravante os cristãos evitam com cuidado as
relações sexuais nos dias proibidos pela Igreja — principalmente
o domingo, a vigília das grandes festas religiosas e durante a
Quaresma —, pois temem os efeitos genéticos de tais infrações
ao novo código de decoro público. (2009, p. 281 - 282)

A sociedade medieval também associava epidemias e desastres físicos à força


divina pois o corpo humano era a representação do bem e do mal.

As leis franco-sálios tiveram seu destaque na obra, Michel Rouche abordada em


vários tópicos, temas baseados nas multas e nas outras formas de punições
apresentadas na Lei Sálica. Como exemplo nas páginas 442-443;

A lei dos franco-sálios era terrível quanto aos delitos que


envolviam toda a concepção pagã do corpo: se um homem livre
tocava a mão de uma mulher, devia pagar quinze soldos; o braço
até o cotovelo, trinta; acima do cotovelo, 35; e, se chegasse ao
seio, 45 soldos! O corpo feminino, portanto, constitui um tabu.
Por quê? Os textos de alguns penitenciais revelam que durante
cerimônias pagãs a moça ou a mulher se desnudava
completamente a fim de provocar a fecundidade dos campos, a
chuva etc. Tocar uma mulher significava, portanto, atentar
contra o processo da vida. O homem e a mulher só podiam
ficar nus num único lugar: aquele onde procriavam, o leito. Então
o nu era sagrado.

E também abordando temas como o divórcio, o estupro e a castração;

Como sempre, essa adoração pagã do corpo inevitavelmente


comporta seu contrário: o ódio e o medo do corpo. De fato, a Lei
Sálica é obrigada a castigar o estupro e a castração. Mais
adiante veremos o que acontece com o estupro, mas é curioso
observar que nem a lei romana nem a dos burgúndios
punem esse ato, enquanto Carlos Magno foi obrigado a
acrescentar um artigo suplementar contra os que
praticavam a castração, obrigando-os a pagar uma multa de
cem a duzentos soldos, que subia para seiscentos se o castrado
fosse um antrustião. Assim, o costume não havia desaparecido
no século VIII, e no inconsciente coletivo dos francos a castração
equivalia à morte, mesmo prevendo-se nove soldos para o
médico que cuidasse da vítima.

Os francos viam a mulher unicamente com a função de procriação, um objeto de


análise desse fato é a lei franca que Rouche (2009, p. 449) menciona;

Quem matar uma jovem livre em idade de procriar deverá


pagar seiscentos soldos — o mesmo que para um antrustião
—, mas pagará apenas duzentos se eliminar uma mulher
que já passou da menopausa. Quem bater numa mulher
grávida e com isso provocar-lhe a morte, pagará setecentos
soldos de multa; se apenas sobrevier um aborto, a multa cairá
para cem. No fim do século VI o rei Gontran incluiu mais uma
cláusula, provavelmente porque tal espécie de delito se
multiplicava: seiscentos soldos pela morte de uma mulher
grávida e mais seiscentos se o feto for o de um menino.

Mais um indicio de como o medievo seguia à risca a hierarquia de valores. A


mulher só teria direito de ser protegida sob a condição de estar inata pois sua
pureza era um fator decisivo sociedade: "tudo finalmente converge para que a
mulher só seja levada em consideração enquanto mãe, enquanto genitrix
[genitora]." (ROUCHE, 2009, p.449)

Abordando temas como o corpo feminino, que era um tabu ente os francos, e
como a mulher "corrompida" não valia mais nada na sociedade e como cada
povo tinha uma punição específica para o estupro, o incesto e a mulher adúltera:

A mulher espontaneamente adúltera destrói a autenticidade de


seus filhos e suprime o carisma do sangue. O estuprador ou
raptor é severamente punido, mas o adúltero não. Nos dois
primeiros casos, com efeito, ele afeta diretamente o poder dos
chefes de parentela, enquanto no segundo não causa nenhum
dano a sua própria parentela, e os filhos que gerou na mulher
adúltera pertencem ao marido. Enfim e sobretudo, ele não se
macula com a própria copulação. A mulher, em contrapartida,
é culpada de um verdadeiro crime, pois oblitera o futuro.
Contrariamente à do homem, sua vida privada é totalmente
pública, por causa das consequências que pode provocar.
(ROUCHE, 2009, p.463)

A mulher adúltera em alguns casos era queimada viva ou era submetida ao


chamado ordálo da água, onde com uma grande pedra presa ao pescoço ela era
lançada no rio. Se flutuasse era inocentada.

Mais que a violação ou o rapto — que apesar de tudo podem


acabar levando ao casamento, pois um e outro são atos do
homem —, o adultério constitui uma verdadeira profanação da
mulher e da descendência, portanto da sucessão vindoura. Toda
união que despreza as condições sociais é impensável, porque
dissolve a sociedade, da mesma forma que a mulher
espontaneamente adúltera destrói a autenticidade de seus filhos
e suprime o carisma do sangue. (ROUCHE, 2009, p. 462-463)

Mais uma diferença desse regime entra homens e mulheres é a questão da


autoridade/hierarquia familiar (patriarcado) pois o homem tinha direito por
exemplo como apresentado no trecho da página 463, de expulsar a mulher de
casa se ela tivesse cometido adultério, aborto ou violação de sepultura, mas se
a mulher resolver expulsar o marido, ela poderia ser estrangulada. Porém em
alguns aspectos ela poderia repudiar o marido como em casos de assassinato e
violação de sepultura, "A inferioridade da mulher e da criança deve-se à
onipresença da violência privada." (ROUCHE, 2009, p. 502)

As leis germânicas de modo geral sempre desfavoreceram a figura feminina, um


objeto de análise desse fato é a questão da viúva poder casar-se de novo, um
processo que geralmente era dificultado pelo fato dessas mulheres serem
independente e poderosas, sendo algo que incomodava a sociedade em si pois
a visão do homem sobre a figura feminina era de um ser vulnerável e perigoso
que precisava de proteção. Os francos por exemplo estipulavam ao segundo
esposo o pagamento da parentela da mulher por três soldos de ouro. Isso só nos
mostra como a mulher nunca era vista como um ser independente e que o seu
respeito só era aceito quando o homem podia exercer seu poder sobre ela, ou
seja, nunca era livre.
Então a mulher era vista ao mesmo tempo como fonte de inspiração, danação,
fraqueza e até fonte da origem do amor que na Alta Idade Média era considerado
destruidor e a partir disso podemos ver qual era o seu papel social frente a
sociedade medieval no que tange a família, a sacralidade e o corpo.

"Para muitos a mulher continuava um mistério, ora benéfico, ora maléfico,


fonte de felicidade e de desgraça, pureza assustadora mas impureza
destrutiva." (ROUCHE, 2009, p.472)

• 2.2. Argumentação das hipóteses (pelo autor): de que forma sustenta sua
argumentação.
Os autores sustentam suas afirmações baseados numa vasta fonte
historiográfica relatada no livro, compostas de fontes primárias e grandes obras
especializadas. Cabe ressaltar que os autores, ao abordarem de maneira
superficial uma vasta gama de assuntos, não transparecem sua opinião sobre
os mesmos, deixando a critério do leitor esse juízo.
Os argumentos são concisos e de fácil entendimento do leitor especializado ou
até mesmo leigo. O que de certa forma facilitou a divulgação e sucesso da obra
junto ao público.

• 2.3. As fontes primárias pesquisadas: de que forma analisa e discute


empiricamente (metodologia).

A metodologia de uso das fontes primárias analisadas pelos autores dos


capítulos II e IV, Peter Brown e Michel Rouche, respectivamente, dá uma
certificação para com a veracidade do texto descritivo que eles produzem. Essas
fontes vão desde escritos da época até achados arqueológicos que confirmam
alguns fatos narrados.

Com relação ao primeiro autor pode-se dizer que suas fontes são deveras
religiosas, pois, sendo esse especialista em Agostinho, traçará suas análises a
partir do seu conhecimento. Entretanto, não se limitará a este, mas ampliará com
aspectos de outros escritos, tal como a Bíblia Cristã e a arqueologia. Podendo
ser encontrados trechos como a seguir:
Observador das comunidades cristãs do fim do século II, o
médico Galeno se surpreende com sua austeridade sexual: "Seu
desprezo pela morte a cada dia nos é evidente, assim como sua
moderação em matéria de coabitação. Pois elas se constituem
não só de homens como também de mulheres que durante toda
a vida se abstêm de coabitar; contam-se entre eles igualmente
indivíduos que, pela autodisciplina e pelo autocontrole, se
elevam à altura de autênticos filósofos (p. 238).

A missão de são Paulo (de 32 a 60, aproximadamente) e dos


outros ‘apóstolos’ consiste em "reunir" os gentios num novo
Israel colocado à sua disposição no fim dos tempos pelo
messianismo de Jesus (p. 231).

Paulo escrevia à comunidade de Corinto que ‘Deus não é


gerador de confusão, mas de paz; como em todas as Igrejas dos
santos. (Primeira Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 14,
versículo 33) (p. 234).

Pensamos num notável grego, Opramoas, que cobriu seu


túmulo com cartas de governadores romanos elogiando-lhe as
generosidades cívicas, e na mensagem de um humilde pedreiro
que pede desculpa pela qualidade dos versos de seu epitáfio!
Esses túmulos constituem a alegria dos leitores de epitáfios
gregos e romanos, mas o desespero do historiador das religiões
que gostaria de retirar deles uma doutrina coerente sobre o além
(p. 256).

Todavia, o segundo autor, Michel Rouche, não foge do mesmo objetivo de


Brown, mas na mesma perspectiva propõe uma análise de suas fontes que por
vezes são religiosas. Ambos fazem uso de citações de Bispos. Enquanto o
primeiro além de Agostinho faz uso das citações de João Crisóstomo o segundo
analisa por diversas vezes as de Gregório, Bispo de Tours:

Também Gregório de Tours, o excelente observador da


monarquia e da sociedade nova, em sua História eclesiástica
dos francos faz questão de reservar o termo república para o
Império Romano do Oriente. (p. 408).

Gregório de Tours relata o caso de um arquiteto que perdeu


repentinamente a memória de sua arte. (p. 420).

Essa obra de carpintaria devia realmente ainda ser um luxo, pois


as escavações permitiram reconstituir as verdadeiras cabanas
habitadas pelos camponeses, ‘miseráveis habitações […]
cobertas de folhagem’, como dizia Gregório de Tours. (p. 431).

Além disso, utilizando de uma das diretrizes da Escola de Annales16, o mesmo


emprega o conhecimento de outras ciências como a Antropologia para analisar
a constituição da demografia do local que observa no tempo desejado:

Com efeito, certos estudos da população de toda uma aldeia dos


século V ao VIII reforçam essa constatação. A análise
antropológica de Luc Buchet sobre o cemitério de Frénouville,
na Normandia, permite reconstituir a demografia da época,
confirmada por outros estudos parciais no norte da França
(p.446).

Essas diretrizes da Escola Annales podem ser compreendidas a partir do


seguinte trecho, retirado do livro: “Dicionário Temático Do Ocidente
Medieval”, escrito por Jacques Le Goff e Jean-Clauder Schmitt

Entre os grandes canteiros abertos pela Escola de Annales, três


são particularmente mais inovadores: 1) o dos sistemas de
parentesco, no qual se sobressai a influência de Antropologia
estrutural de Claude Lévi-Strauss, e da história das mulheres,
continente por muito tempo injustamente ignorado e ao qual
Georges Duby consagrou suas últimas publicações; 2) a história
dos corpos, cujas principais orientações articulam-se em torno
dos comportamentos alimentares e vestimentas, as relações

16 Grupo de historiadores franceses que se constitui a partir do periódico Annales d’histoire;


amorosas, as atitudes face à doença, ao sofrimento e à morte;
3) os sistemas de representações, enfim, que constituem o
coração, o “núcleo duro” das mentalidades, deste imaginário
medieval que Jacques Le Goff foi um dos primeiros a explorar,
enquanto Jean-Claude Schmitt propunha uma Idade Média dos
gestos e das imagens. De seu lado, Georges Duby passou do
estudo do mundo rural do Ocidente medieval ao mergulho das
mentalidades medievais evocadas por meio das produções
artísticas e estéticas do tempo das Catedrais.

4. AVALIAR AS CONTRIBUIÇÕES DA OBRA: RELEVÂNCIA À


HISTORIOGRAFIA SOBRE IDADE MÉDIA E POSIÇÃO DO GRUPO

A obra História da Vida privada, por sua abrangência, seriedade e


funcionalidade, tornou-se um best-seller tanto junto ao público leigo como ao
especializado.17
As Críticas em especial ao livro I (Do império Romano ao ano mil) foram positivas
em vários países, como pode-se notar a seguir:

França 18

Mais l’histoire de la vie privée est aussi celle d’un conflit permanent avec la
sphère publique, que la montée en puissance de l’Etat moderne depuis le Moyen
Âge a rendue de plus em plus agressive à son egard: perspectives três neuves,
qui invitent le lecteur à une réflexion d’actualité sur les menaces que les
techniques nouvelles font peser sur as propre vie privée. Thomas Ferrier

Porém a história da vida privada é também aquela que de um conflito


permanente com a esfera da pública que a chegada ao poder do Estado
moderno desde a Idade Média tornou, por sua vez, mais e mais agressiva

17 GOULART; Michel. 5 livros da série História da Vida Privada. Disponível em <


www.historiadigital.org/livros/5-livros-da-serie-historia-da-vida-privada/ > Acesso em 22 junho
2017
18 Amazon. Histoire de vie privee:de l’empire romain a I’na mi. Disponível em :

<https://www.amazon.fr/Histoire-vie-priv%C3%A9e-LEmpire-
romain/dp/2020364174/ref=sr_1_15?s=books&ie=UTF8&qid=1498057297&sr=1-
15&keywords=histoire+de+la+vie/ > Acesso em 21 junho 2017
perspectivas muito novas que convidam o leitor a uma reflexão da atualidade
sobres as ameaças que as técnicas novas fazem pesar sobre sua própria vida
privada.

Reino Unido19

This is a long, demanding and very rewarding book. If the remaining four volumes
are of this quality, the series will indeed, as the editors claim, be “a milestone in
historical research”. Jane F. Gardner “ Times Higher Education Supplement”

É um livro longo, exigente e muito gratificante. Se o restante dos quatro volumes


são da mesma qualidade a série de fato, como afirma os editores é um marco
para a pesquisa histórica.

Estados Unidos20

The first volume is one of the most arresting, original, and rewarding historical
surveys to be published in many years, and its value is enhanced by the hundreds
of illustrations, which presente almost every conceivable detail of private life as it
was lived in the centuries. Bernand Knox – The Atlantic

O primeiro volume é um dos mais impressionantes, originais e gratificantes da


pesquisa histórica a ser publicado em muitos anos, e seu valor é reforçado pelas
centenas de ilustrações, que apresentam quase todos os detalhes concebíveis
da vida privada, tal como era ao vivo nos séculos.

19 Amazon. History of pivate life: from pagan Rome to Byzantium. Disponível em:
<https://www.amazon.co.uk/d/Books/History-Private-Life-Pagan-Rome-Byzantium-
Veyne/0674399757/ref=sr_1_8?s=books&ie=UTF8&qid=1498057797&sr=1-
8&keywords=history+of+private+life > Acesso em 21 junho 2017
20Amazon. History of pivate life: from pagan Rome to Byzantium. Disponível em: <

https://www.amazon.com/History-Private-Life-Pagan-
Byzantium/dp/0674399749/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1498058070&sr=1-
1&keywords=history+of+private+life > Acesso em 21 junho 2017
Together these five compact volumes cover much of the history of the classical
world, and do so with both ease and authority. Washington Post Book World

Juntos esses cinco volumes compactos conseguem cobrir grande parte da


história do mundo clássico, e ainda consegue ser feito com facilidade e
autoridade.

A Book winch makes the reader thnk, teasing and encouraging with spicy details,
long views, a capacity for the unexpected insight. Now for something completely
different. Jasper Griffin – London Review of Books

Um livro que faz o leitor pensar, o provocando e encorajando com picantes


detalhes, em longa vista, uma capacidade para o discernimento inesperado. Por
agora algo completamente diferente.

CONCLUSÃO

O primeiro volume da coleção História da vida privada, intitulado do Império


Romano ao ano mil, nos mostra as mudanças paulatinas e longas do tempo
desde o fortalecimento do Estado até a queda do Império Romano.

Nós capítulos estudados (Antiguidade Tardia e Alta Idade Média Ocidental)


percebe-se a grande importância de assuntos como: bem-nascidos e inferiores,
mulheres e homens, Igreja e Estado. E partir dessas antíteses podemos concluir
que a sociedade medieval é a base de construção de toda uma cultura ocidental
que temos até a atualidade. O homem, a cidade e principalmente a Igreja deram
a direção para a construção de toda uma Era, no que tange a hierarquia, a moral,
a sexualidade e a mulher que sofreram profundas influências da Antiguidade
Tardia como apresenta o livro. Nos mostra a relevância da vida privada medieval
para a historiografia, para o entendimento de toda uma estrutura social desde as
valorizações dos bens pessoas, as concepções do sagrado, do seus medos e
segredos até a percepção das mudanças lentas e bruscas ao longo do tempo
que podem ser percebidas nos dias de hoje. No capítulo sobre a Alta Idade
Média Ocidental o autor desvenda traços antropológicos para analisarmos a
origem da vida privada romana e germânica e suas características durante o
processo de urbanização.

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