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A invenção da infância

Ana Isabel Santos


30 de maio de 2012

O interesse na história da infância ocidental é um fenómeno relativamente recente - data


do séc. XX - e deu origem a variadas pesquisas com o intuito de se compreender quais as
concepções sobre a infância em diferentes épocas e lugares.
O primeiro uso conhecido da palavra infância data do final do séc. XIV. Do anglo-
francês enfaunce e directamente do latim infantia, traduz-se por período/estado inicial da
existência ou (literalmente) incapacidade de falar1.
Um dos primeiros autores a debruçar-se sobre o tema foi o historiador medieval Philippe
Ariès (1914-1984) na sua obra L’enfant et la vie sous l’Ancien Régime (1960), onde
defende que a infância é uma criação da sociedade e não um fenómeno natural/biológico,
na medida em que admite não existir o sentimento/ideia de infância durante a idade média.
Um dos métodos que Ariès utilizou para construir a sua concepção de infância foi a
análise de elementos iconográficos. O autor aponta que, até por volta do século XII, a arte
medieval ignorava a infância enquanto representação artística ou não a representava de
todo, o que indiciava não ter lugar ou existência própria nessa época, já que a sua ausência
muito improvavelmente se deveria a falta de habilidade ou incompetência dos artistas2.
Por outro lado, e até finais do séc. XIII, as crianças não tinham uma expressão particular
e a este propósito o autor analisa uma tela que representa uma cena do Evangelho de S.
Marcos, na qual Jesus diz “Deixai vir a mim as criancinhas”, e onde estas são representadas
por homens em tamanho reduzido, ou seja, as características físicas, tal como os traços do
rosto, a musculatura ou o porte físico, são as de homens3.
Segundo Ariès, é também através do traje que se pode observar que a idade média era
indiferente à infância. Não havia distinção entre a roupa usada pelos adultos e a das
crianças, à excepção da fase em que esta usava cueiros (faixa de tecido enrolada à volta do
corpo), sendo que, dentro de uma mesma condição social, as vestes eram iguais apenas
variando no tamanho4.
A indiferenciação de roupa poderia estar relacionada com o critério de dependência
económica utilizado para caracterizar a infância, em detrimento do critério biológico,

1
Cf. Dicionário online de etimologia: www.etymonline.com
2
http://viaweb.awardspace.com/fichas/historia%20social%20da%20crianca%20e%20da%20familia.pdf
3
http://jus.com.br/revista/texto/4542/a-invencao-da-infancia
4
http://viaweb.awardspace.com/fichas/historia%20social%20da%20crianca%20e%20da%20familia.pdf

1
considerando-se adulto quem se tornava independente e não por via da delimitação de
faixas etárias, como acontece actualmente5.
Ariès faz ainda uma análise ao nível dos jogos e brincadeiras, do comportamento sexual,
das práticas de saúde e da educação e moral, sempre encontrando forma de apresentar a
idade média como uma época onde a infância era considerada apenas um período de
transição, logo ultrapassado e cuja lembrança era logo perdida. A partir do momento em
que a criança tinha condições de viver sem o apoio da mãe ou de uma ama,
automaticamente se diluía na sociedade adulta.
Para o autor, é a partir do séc. XVI que a sociedade passa a olhar a criança de forma
diferente, estando dotada de personalidade e com particularidades especiais que necessitam
de cuidados específicos e adequados. A criança vai, deste modo, conquistando um espaço
próprio ao longo dos séculos seguintes até se afirmar completamente no séc. XVII6.
Mais uma vez, através da representação artística, Ariès aponta vários exemplos que
denotam a importância progressiva das crianças na sociedade, referindo que os retratos de
crianças sozinhas começaram a ser cada vez mais numerosos e comuns. No séc. XVII, a
criança ocupa, de facto, um lugar de destaque, como pode ser comprovado pelas inúmeras
cenas convencionais como sejam a lição de música, os grupos de meninos e meninas a ler,
desenhar ou brincar7.
Os exemplos apresentados passam por uma pintura de Rubens (1577-1640), no qual a
mãe segura a criança pelo ombro e o pai dá-lhe a mão, pelos quadros de Frantz Hals
(c.1580-1666), Antoon van Dyck (1599-1641) e Charles Lebrun (1614-1690), nos quais as
crianças se beijam, abraçam e entretêm o grupo de adultos sérios8.
Paralelamente à viagem pela história da arte e iconografia, o historiador francês refere
ainda que a indiferença que existia relativamente às crianças poderia estar relacionada com
a questão demográfica, nomeadamente os altos índices de mortalidade infantil9.
Se durante a idade média a mortalidade infantil era uma realidade e uma fatalidade
aceite na ordem natural das coisas, obrigando a encarar a perda como algo natural, nos
séculos seguintes passa a existir uma preocupação relativamente a este facto, tornando-se
algo a ser combatido, a fim de preservar os futuros cidadãos, aqueles que seriam
responsáveis pelos rumos da sociedade10.

5
http://jus.com.br/revista/texto/4542/a-invencao-da-infancia
6
http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/78PolyanaAparecidaRobertaSilva.pdf
7
ihttp://viaweb.awardspace.com/fichas/historia%20social%20da%20crianca%20e%20da%20familia.pdf
8
idem
9
Idem
10
http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/201715EspecialHistoriainfancia.pdf

2
A ideia de que, em determinados períodos da história, a personalidade da criança não era
reconhecida pode ser reforçada por um exemplo relatado por Pestana Ramos no artigo A
história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do séc. XVI: durante
o naufrágio da nau S. Tomé em que seguia D. Joana de Mendonça e sua filha, aquela,
perante a impossibilidade de a salvar, olhou para o céu e ofereceu-a a Deus em sacrifício.
Este caso não foi um episódio isolado, uma vez que as crianças não tinham prioridade de
embarque em caso de naufrágio11.
Grosso modo, é bastante interessante a leitura que Ariès faz sobre a descoberta da
infância, demarcando claramente duas concepções: a das sociedades pré-industriais e a que
despontou nos sécs. XV e XVI e veio a ganhar forma definida nas sociedades industriais12.
Enquanto que, na primeira, as trocas afectivas se davam em comunidades mais alargadas
que a família - envolvendo os vizinhos, amigos, criados, amas e outros parentes -, na
segunda observa-se que a família nuclear assume um lugar de excelência na socialização
das crianças, bem como o de afeição, especialmente em finais do séc. XVII e início do séc.
XVIII13.
Apesar das críticas aos métodos que Ariès usou para apresentar as suas conclusões sobre
o papel da infância na Europa a partir da época medieval14, há que reconhecer que existiu,
de facto, uma mudança de paradigma no que se refere à infância e ao modo como esta devia
ser encarada, particularmente a partir do séc. XVI.
Essas mudanças reflectiram-se ao nível da escola como instituição, da educação e do seu
papel na vida das crianças, onde a infância é encarada com particular atenção.
Em primeiro lugar, parte-se da ideia que a sociedade medieval não reconhecia a
educação como sendo uma acção intencional exercida pelos adultos sobre as crianças15.
Não obstante, no séc. XIV, a existência de um colégio hierarquizado lançou as bases
para se entender a escola como um meio de separar a criança do mundo adulto. Durante o

11
Pestana Ramos relata ainda que, nas embarcações que seguiam de Portugal para o Brasil, as crianças eram
usadas nas actividades de alto-mar, incluindo os trabalhos mais difíceis, uma vez que se consideravam na
escala hierárquica mais baixa entre os tripulantes e porque, tendo em conta a baixa esperança de vida, a sua
força de trabalho devia ser aproveitada ao máximo http://jus.com.br/revista/texto/4542/a-invencao-da-infancia
12
http://www.klickeducacao.com.br/2006/arq_img_upload/portacurtas/124/invencaodainfanciaconceicaoolivei
ra.pdf
13
idem
14
Uma das críticas mais notórias foi a do historiador Geoffrey Elton (1921-1994), que, quanto ao traje,
defendia que as crianças se vestiam de modo diferente dos adultos, acusando Ariès de considerar os seus
retratos como uma representação exacta da vida quotidiana, quando o que acontecia era aquelas vestirem
roupas de adultos como forma de melhorar o status da família. http://en.wikipedia.org/wiki/Philippe_Ariès

15
http://www.klickeducacao.com.br/2006/arq_img_upload/portacurtas/124/invencaodainfanciaconceicaoolivei
ra.pdf

3
séc. XVI e XVII, a separação de classes pelas idades – às quais eram atribuídos professores
específicos -, constitui-se como uma das medidas pedagógicas mais inovadoras de sempre,
denotando uma consciencialização das particularidades da infância, adolescência e
juventude16. Esta iniciativa de divisão em classes vigora ainda hoje nos sistemas
educacionais contemporâneos.
Até ao séc. XVII, apenas o sexo masculino tinha acesso à escolarização e, a partir do
século seguinte, a escola única passou a ser substituída por um sistema de ensino duplo, em
que cada ramo correspondia a uma condição social, ou seja, existia o liceu/colégio para os
burgueses (secundário) e a escola para o povo (primário). Este último era um ensino mais
curto e só passou a igualar o outro em termos de duração após as revoluções sociais
ocorridas entretanto17.
Apesar das mudanças que se davam no âmbito da educação, a preocupação educativa
não era propriamente uma novidade. Já entre gregos e romanos na Antiguidade Clássica, a
educação de crianças e jovens do sexo masculino tinha por objectivo formar o cidadão ou o
soldado-cidadão, numa clara perspectiva de que a criança tinha um papel social a cumprir.
Tome-se como exemplo o cidadão da República de Platão, que era educado com o
propósito de criar uma sociedade perfeita18.
Segundo Nóvoa, a reaparição da preocupação educativa ocorre devido ao renascimento
comercial e cultural no ocidente, dando origem a um novo modo de vida e a uma
civilização urbana, dos quais a burguesia era o porta-voz19.
Para a sociedade medieval, a concepção de futuro estava no mundo depois da morte e,
portanto, a ideia de que a natureza e a humanidade podiam ser transformadas não lhes era
familiar. Em oposição a esta visão, surge a acção revolucionária da burguesia, apoiada num
conceito de plasticidade, que revela um mundo moldável, um homem capaz de se
transformar e de construir uma sociedade diferente20.
Poder-se-á, então, afirmar o nascimento de uma infância e de uma escola moderna neste
contexto? Poder-se-á concluir, por analogia com a Antiguidade Clássica, que o objectivo da
escolarização moderna passa a ser formação do cidadão do Estado-Nação? De que modo se
podem considerar “novas” as transformações que ocorreram no campo educativo, a partir

16
Está-se a referir às revoluções ocorridas em Inglaterra e França, em 1649 e 1789, respectivamente.
http://viaweb.awardspace.com/fichas/historia%20social%20da%20crianca%20e%20da%20familia.pdf
17
idem
18
http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/201715EspecialHistoriainfancia.pdf
19
http://www.klickeducacao.com.br/2006/arq_img_upload/portacurtas/124/invencaodainfanciaconceicaoolivei
ra.pdf
20
idem

4
da idade média, com especial enfoque na infância? Ou de que forma é que aquilo que,
aparentemente, parece ser a redefinição da infância enquanto etapa de vida primordial na
formação intelectual, moral e física do adulto impulsionou essas mudanças?
Um dos pontos de partida para tentar responder a estas questões passa por analisar o
discurso pedagógico de alguns autores em diferentes épocas, de modo a perceber as
concepções de infância subjacentes ao seu pensamento e as repercussões ao nível
institucional.
Um dos primeiros pensadores a destacar a infância como o período chave de formação é
Erasmus de Roterdão (1469-1536), considerado por alguns autores como o maior
intelectual do séc. XVI.
Considerando a infância como o primeiro passo para a consolidação da vida adulta, o
autor sublinha a importância desta ser bem conduzida, de modo a propiciar uma boa
formação, quer nos estudos, no trabalho ou na vida familiar, devendo-se assegurar o bom
desenvolvimento do carácter e das características individuais das crianças21.
Em relação aos estudos, Erasmus era de opinião que o mestre (equivalente ao professor)
deveria respeitar a individualidade do aluno, ensinando-o a compreender, em vez de repetir
fórmulas, de modo a que a memória desempenhasse o seu papel sem dificuldade quando
estimulada pelo entendimento22.
No seguimento, a figura que se vem a destacar no séc. XVII é Comenius (1592-1670),
tido como um dos maiores pedagogos de todos os tempos, e, eventualmente, o primeiro
pedagogo de sempre, em especial quando se considera que a sua produção intelectual teve a
educação como matéria e ponto fulcral.
Uma das suas ideias mais inovadoras relaciona-se com o conceito de formação universal
e de que a escola deve ensinar tudo a todos, um conceito de escola democrática, que marca
uma nova postura e um ideal a perseguir nos séculos seguintes23.
Na sua obra de referência – Didáctica Magna (1657) -, sublinha a importância de uma
educação sensata e prudente a partir de tenra idade, já que os espíritos devem ser

21
http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/78PolyanaAparecidaRobertaSilva.pdf
22
idem
23
Do ponto de vista da história da educação e das ideias pedagógicas, o séc. XVII surge como um ponto de
viragem (ou de ruptura) com a matriz ocidental definida a partir da sofística grega e confirmada no período
helenístico: verifica-se a defesa do realismo (tal como preconizado em Erasmus, onde a educação se orienta
para o estudo das coisas e não para o verbalismo característico da educação ocidental), a criação do método
(leva à criação da Didáctica onde se reúne o saber pedagógico) e a utilização das línguas nacionais como
línguas de educação e cultura (AMADO, 2007).

5
preservados das corrupções do mundo, pois é muito mais fácil aprender de início os bons
exemplos do que desaprender os males contraídos por uma má educação24.
Por conseguinte, o autor compara a escola a um jardim, no qual as crianças devem
crescer como plantas e que o mestre deve seguir o exemplo do jardineiro que cuida das
plantas conforme as suas necessidades.
Não obstante, Comenius defendia que o lar deveria ser a primeira escola, bem como
estar presente em todas as casas, sublinhando a importância do “regaço materno”. Essa
escola materna devia ser entendida como a escola da infância (abarcando o período dos 0
aos 6 anos)25.
Só fruindo desta educação materna é que seria possível à criança aprender os valores que
a fariam progredir nos estádios seguintes (puerícia, adolescência e juventude), procurando
tornar-se homens instruídos, regrados e piedosos26.
No séc. XVIII, Rousseau (1712-1778) rompe definitivamente com a concepção de que a
criança era um adulto em miniatura (homunculus), destacando que a infância tem uma
especificidade própria que merece um cuidado educativo especial27.
Uma das grandes diferenças relativamente a Comenius, e que constitui o epicentro da
sua revolução pedagógica, é a convicção de que a infância é um estado indispensável, com
valor próprio, finalidade própria e predestinado, obviamente, a ser seguido pelo estado
adulto, mas com uma utilidade diferente de o preparar ou preparando-o apenas na medida
em que o antecede.
Por outro lado, Rousseau assume uma posição contrária à de Comenius no que concerne
a natureza do Homem, ou seja, rejeita os termos da antropologia cristã em que este
acreditava e que era marcada por um pessimismo essencial assente na convicção que o
homem era perverso por natureza.
Obviamente, esta linha de pensamento tem consequências no modo como vem a
conceber a educação. O autor diz que a primeira educação deve ser negativa, protelando-se

24
idem
25
Comenius divide em quatro partes distintas o período de tempo entre a infância e a idade viril ( 0 aos 24
anos: infância, puerícia, adolescência e juventude), com 6 anos para cada uma e escolas respectivas (idem).
26
idem
27
De modo sumário, o séc. XVIII caracteriza-se, filosoficamente, pelo Iluminismo – onde se valoriza a
educação enquanto instrumento qualificador da Razão (capacidade humana por excelência); politicamente, na
primeira parte, pelo Absolutismo e, mais especificamente, do despotismo esclarecido, que deseja o bem do
povo sem este, e que no campo da educação se resultou na restrição da instrução a uma elite, contrariando a
sua própria ideia de universalização da educação, e, na segunda parte, pela Revolução Francesa, que muda
radicalmente a fotografia da época com o acesso do povo ao governo e que anuncia o direito e o dever de
todos à educação, como meio de afirmação da burguesia e do capitalismo; pedagogicamente, misturam-se a
instrução racionalista e sensorial com o naturalismo e idealismo na educação, bem como a educação
individual e da educação nacional (idem)

6
ao máximo o ensinamento da verdade e da virtude e preservando as crianças do vício e do
espírito do erro, deixando amadurecer nelas a infância28.
Por conseguinte, Rousseau defende a educação da criança através de um retorno à
natureza, que incentiva a expressão das suas tendências naturais, em vez de as reprimir.
Segundo o autor, o verbalismo vigente na educação tradicional da época deveria ser
substituído pelo realismo, despertando na criança a curiosidade pelos vários fenómenos que
as rodeavam e, por consequência, o desejo de aprender, que funcionaria como motor da sua
educação29.
No entanto, uma das premissas desta educação natural (ou realista) na infância consistia
em não resolver de imediato os problemas que se colocavam às crianças, mas sim deixar
que elas os resolvessem e compreendessem por si próprias30.
O autor lança, assim, as bases para um dos modelos pedagógicos adoptados no séc. XX
e que à data se apelidou de inovador: a Escola Nova ou Educação Nova31.
A Escola Nova surge como reacção ao conceito de escola oitocentista, centrada no seu
papel perante a sociedade industrial e marcada por conteúdos definidos em função da
sociedade capitalista, caracterizada pela massificação e por métodos pedagógicos que
apostavam na quantidade dos destinatários, independentemente das suas características
individuais32.
Em que consistia a novidade dessa escola, apesar dos seus princípios terem sido
advogados por Rousseau dois séculos antes na obra Emile, ou l’education (1762)?
As contribuições de vários pedagogos deram origem a trinta princípios que esta
educação deveria respeitar33 e que, segundo Nóvoa, podem ser resumidos em cinco ideias-
chave34:
1. A escola nova é um laboratório de pedagogia prática que procura servir de referência para o
sistema público de ensino; funcionando preferentemente em regime de internato e situada numa zona
rural, a escola nova procura criar uma ambiência saudável e de proximidade com a natureza
(excursões, acampamentos, criação de animais, trabalhos agrícolas, ginástica natural, entre outras);

28
idem.
29
http://www.pesquisa.uncnet.br/pdf/educacaoInfantil/PENSAMENTO_PEDAGOGICO_ROUSSEAU_EDU
CACAO_%20INFANCIA.pdf
30
É claro que isto deixava ao educador uma difícil tarefa: a criança precisava de ser respeitada no seu mundo,
mas ao mesmo tempo havia a necessidade de disciplinar progressivamente os seus desejos. O adulto não
deveria escravizar a criança nem se deixar escravizar (SANTOS, 2003).
31
Pestalozzi (1746-1826) e Tolstoi (1828-1910) foram dois grandes seguidores das ideias de Rousseau e
também contribuiram para o aparecimento de novas ideias sobre os processos educativos em contraposição à
educação dita tradicional na época (SANTOS, 2003).
32
ALVES, 2010.
33
Os grandes autores da Educação Nova foram Férrière, Dewey, Claparéde, Décroly, Cousinet, Montessori,
Kerschensteiner e Freinet (SANTOS, 2003).
34
ALVES, 2010, p. 169.

7
2. A escola nova pratica o sistema de coeducação dos sexos, estimulando as relações sociais e a
cooperação entre rapazes e raparigas;
3. A escola nova concede uma particular atenção aos trabalhos manuais, encarados não apenas
numa dimensão técnica, mas sobretudo como um poderoso meio de educação intelectual; todo o ensino
deve organizar-se a partir de métodos activos que estimulem o gosto pelo trabalho e a criatividade;
4. A escola nova procura desenvolver o espírito crítico, através da aplicação do método científico,
baseando o ensino em factos e experiências, na actividade pessoal da criança e nos seus interesses
espontâneos; é desejável uma conjugação entre actividades de trabalho individual e momentos de
trabalho colectivo;
5. O quotidiano da escola nova alicerça-se no princípio da autonomia dos educandos, isto é numa
educação moral e intelectual que não se exerce autoritariamente de fora para dentro, mas antes de
dentro para fora, graças à experiência e ao desenvolvimento gradual do sentido crítico e da liberdade; o
sistema disciplinar, bem como a educação da consciência moral e da razão prática, devem fazer-se no
quadro desta perspectiva.
É neste contexto que se salientam os trabalhos manuais educativos como a primeira
prática pedagógica inovadora a ser introduzida, ainda no último quartel do séc. XIX. A
partir dos anos 20 do século seguinte, as inovações mais destacadas foram a
correspondência escolar, a imprensa escolar (como novo espaço de participação social, a
par das associações e clubes), o cinema educativo, a formação de grupos de trabalho de
composição variável ao longo do ano e as actividades escolares para além das aulas (visitas
de estudo, conferências proferidas pelos alunos, jogos lúdico-desportivos)35.
Mais uma vez, e na senda da concepção de Rousseau sobre a infância, fica vincado que a
educação da criança se deve fazer através da sua actividade pessoal, tendo como pano de
fundo o conceito de liberdade – no sentido de respeito pela personalidade da criança e da
sua livre expressão, sem impor nem fazer cumprir um determinado programa curricular.
Tendo em conta as mudanças de paradigma da educação referidas, pode-se, de forma
simplista, apontar dois olhares distintos sobre a infância: antes e depois de Rousseau.
No primeiro caso, constata-se que o período da infância era um estádio de transição sem
valor e o que estava em causa era a criação do homem a partir da criança, preparando-a
para vir a desempenhar o seu papel na sociedade e vendo-a apenas como o futuro homem.
No segundo, passa a existir uma valorização e respeito pela infância, atribuindo-lhe
importância plena e lugar de destaque, não como uma preparação para a vida mas como a
vida em si mesma.
Refira-se, no entanto, que Comenius também defendia uma concepção de infância mais
alerta para as necessidades e capacidades específicas das crianças e foi, aliás, este facto que

35
SANTOS, 2003.

8
o levou a empreender um trabalho imenso de transformação dos programas e dos métodos
de ensino, de forma a que a educação fosse mais agradável e que a aprendizagem se
tornasse mais fácil.
No entanto, uma das principais diferenças era que a educação levada a cabo na infância
tinha como objectivo formar o homem para ingressar na sociedade, ao passo que, a partir de
Rousseau, se atendia à natureza psicológica da criança e às tendências do seu
desenvolvimento. Estas mudanças tiveram por base a evolução no campo das ciências
humanas como o caso da psicologia e da sociologia, especialmente ao longo do séc. XIX e
início do séc. XX que, sem dúvida, muito contribuíram para adicionar referências à
compreensão da infância enquanto etapa fulcral da vida.
Fazendo ponte com o ponto de partida deste texto, pode-se considerar que, ao longo dos
séculos, a infância vem sendo reinventada, sendo-lhe atribuída diferentes roupagens
consoante os contextos sociais, políticos e económicos vigentes que, por sua vez, estão
entrelaçados com as questões da educação.
Neste quadro de evolução, será correcto considerar, tal como Ariès, que a infância é uma
construção recente, um produto da modernidade?
A posição desse autor é que a descoberta da infância começa no séc. XIII, evoluindo nos
sécs. XIV e XV, tornando-se significativa no séc. XVI e com grande expressividade a partir
do séc. XVII.
De certa forma, e como foi referido atrás, estabelece uma linha divisória entre a
concepção de infância antes e depois do séc. XVI, sendo que a segunda evolui para a
concepção que se estabelece nas sociedades industriais no início do séc. XVIII e em
expansão no séc. XIX.
Aparentemente, o que parece marcar a diferença está relacionado com os sintomas de
transformação da cultura ocidental a partir do séc. XVI. Os processos sociais e económicos
associados à consolidação do mercado capitalista e à afirmação da burguesia como classe
dominante parecem ter tido forte influência no papel das crianças na sociedade.
Analisando esta questão do ponto de vista da educação, verifica-se, de facto, que a
representação da infância ficou cada vez mais complexa ao longo da história, se se
considerar como ponto de partida o papel da criança na sociedade desde a Antiguidade
Clássica. O que se salienta é o facto de terem surgido ideias novas que, com especial
expressão a partir do séc. XVII e XVIII, foram contribuindo para a redefinição da infância
enquanto fase da vida.

9
Segundo Norodowski36, o nascimento da infância moderna começa com o afastamento
da criança da vida quotidiana dos adultos, contribuindo para a sua confirmação como novo
corpo, o que vai de encontro às novidades introduzidas pelos pedagogos referidos atrás e
cujos conceitos vigoram ainda na actualidade37.
Assim entendido, o conceito de infância moderna implicou a ruptura total com o que se
praticava, inaugurando um futuro no qual se torna um objecto emblemático e alvo de
atenção por parte de vários campos do saber. Esta mudança de rumo adveio da preocupação
das sociedades em potencializar o seu presente, uma vez que as crianças enquanto futuros
cidadãos poderiam contribuir para uma nova forma de civilização e para uma nova
construção de si próprios.
Por outro lado, o caminho inaugurado por Rousseau no séc. XVIII, alicerçado na sua
nova visão sobre a infância e, por consequência, em novos ideais pedagógicos, ainda hoje
se constitui de relações e negociações complexas, num diálogo constante entre tempos
modernos e tradição.
Tome-se como exemplo, e já em pleno séc. XX, a Escola Nova, herdeira dos princípios
desse pensador. Apesar dos inúmeros aspectos inovadores, nunca conseguiu romper em
definitivo com a estrutura organizacional do modelo escolar dominante, dito tradicional.
Verifica-se que, mesmo reconhecendo o valor pedagógico das suas ideias e de algumas
serem a base de reformas entretanto adoptadas, as mudanças são um processo complexo e
demorado. É possível que este modelo pedagógico tenha ainda muito que oferecer a um
sistema educativo que se vai tornando necessário “pós-modernizar”, para que continue a
potenciar a idade de ouro do Homem: a infância.

Citações bibliográficas
ALVES, Luís, “República e Educação: dos princípios da Escola Nova ao Manifesto dos
Pioneiros da Educação”, Revista da Faculdade de Letras – História – Porto, III Série,
vol.11 (2010), pp.165-180.
AMADO, Casimiro, História da Pedagogia e da Educação: guião para acompanhamento
das aulas. Évora: Universidade de Évora, 2007.

36
Autor das obras Infância e Poder: confirmação da pedagogia moderna (2001) e Comenius e a Educação
(2004).
37
http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/78PolyanaAparecidaRobertaSilva.pdf

10
DOURADO, Ana, “História da Infância e Direitos da Criança”,
<http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/201715EspecialHistoriainfancia.pdf>, acesso em
10.05.2012.
OLIVEIRA, Maria, “Parecer pedagógico para o documentário A invenção da infância de
Liliana Sulzbach”,
<http://www.klickeducacao.com.br/2006/arq_img_upload/portacurtas/124/invencaodain
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SANTOS, Luís, A Educação Nova, a Escola Moderna e a construção da Pessoa:
desenvolvimento, cidadania, educação e liberdade, Dissertação de Mestrado, Lisboa:
FCT/UNL, 2003.
SANTOS, Almir, “O Pensamento Pedagógico de Rousseau e a Educação na Infância”,
http://www.pesquisa.uncnet.br/pdf/educacaoInfantil/PENSAMENTO_PEDAGOGICO_
ROUSSEAU_EDUCACAO_%20INFANCIA.pdf, acesso em 10.05.2012.
SEGUNDO, Rinaldo, “A invenção da Infância: pressupostos para a compreensão do
Direito da Criança e Adolescente”, <http://jus.com.br/revista/texto/4542/a-invencao-da-
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SILVA, Polyana, “Cotidiano da Educação Infantil: uma reconstrução histórica”,
<http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/78PolyanaAparecidaRobertaSilva.p
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MORRONE, Ligia, “Ficha de leitura do livro História Social da Criança e da Família de
Philippe Ariès”,
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S/a, “Philippe Ariès”, <http://en.wikipedia.org/wiki/Philippe_Ariès>, acesso em
08.05.2012.

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