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história 1

da infância
A preocupação com o ser humano em seus
primeiros anos de vida ocupa um espaço
importante na sociedade contemporânea e
silveira, 2000
Aponta para o fato de que a sociedade
nas pesquisas científicas.
sempre está em movimento e, desse
Assim, surge a necessidade de investigar a
modo, a vivência da infância transforma-
origem dos significados levando em conta
se de acordo com os paradigmas do
o contexto no qual a infância emerge e suas
contexto histórico, ou seja, pensar na
relações sociais, econômicas, históricas,
infância é também articulá-la com outros
culturais e políticas, como condições
domínios como a escola, a família e a
determinantes para retratar uma imagem
sociedade.
da infância contextualizada.
A importância da criança dentro de uma
Conceito histórico-social comunidade varia conforme o período

de infância
Definir o termo infância é uma tarefa difícil,
histórico em que ela é considerada, uma
vez que cada período imprime na infância
uma significação específica, por vezes
que pode se diferenciar de acordo com o
atrelada às condições sociais, e não apenas
referencial que se escolhe.
à sua condição de ser biológica.
Segundo o dicionário, a infância é definida
como um "período de crescimento do ser
humano, que vai do nascimento até a
kuhlmann, 1998
puberdade". A criança, no mesmo A infância, sob essa ótica, registra-se como
dicionário, é definida como um "ser condição da criança, isto é, caracteriza-se
humano de pouca idade". como uma condição social e
Etimologicamente, o termo 'infância", em latim historicamente construída.
in-fans, significa sem linguagem.
Por sua vez, na tradição filosófica ocidental,
castro, 2010
não ter linguagem significa não ter Com efeito, a infância é um tempo
pensamento, não ter conhecimento, e não específico o qual todos vivenciam,
ter racionalidade, ou seja, a criança é entretanto, sempre se questionou qual era
compreendida como um ser menor, e o tempo exato de abrangência da infância
como alguém a ser adestrado, a ser e como era percebida esta criança.
moralizado, e a ser educado. Dessa forma, resgatar os antecedentes da
Percebe-se, no entanto, que a idade história é dar espaço a inúmeros documentos
cronológica não é suficiente para caracterizar que revelam o papel da criança
a infância. desempenhado na sociedade ao longo dos
A infância tem um significado genérico e esse anos.
significado está vinculado às transformações Tais documentos agem como porta-vozes da
sociais, pois cada sociedade tem seu próprio construção da história da infância e surgem
sistema de classes etárias que estão associadas como possibilidade para muitas reflexões
a um sistema de status e de papéis sobre a forma de como compreendemos e nos
desempenhados. relacionamos atualmente com a criança.
Conceito histórico-social 2
de infância
A importância da construção do conceito Assim, a infância passou a ser reconhecida
de infância teve um grande avanço com os como uma fase diferenciada do ciclo da
estudos do pesquisador francês Philippe vida e como algo novo na história da
Ariès, por ele ser o pioneiro nesta temática, humanidade.
com a publicação da obra História Social Confirma-se então, que a história da
da Criança e da Família, em 1960. infância só começou a ser narrada
Foi ele quem formulou um novo olhar recentemente, por consequência do
historiográfico para o sentimento de anonimato em que a criança viveu no
infância no mundo ocidental, mundo ocidental até o século XVIII.
demonstrando que foi uma concepção A infância como conhecemos hoje foi
socialmente construída durante a época uma criação de um tempo histórico e
moderna, e destacando aspectos desde a de condições socioculturais
determinadas, sendo um engano
consciência da infância até as ousar analisar todas as infâncias de
especificidades da criança, ou seja, aquilo todas as crianças com o mesmo
que a diferencia do adulto. enfoque. A compreensão da infância

phillipe ariès
historiador • 1914-1984
muda com o tempo e com os
diferentes contextos
econômicos, geográficos, e até
sociais,

mesmo com as peculiaridades


Segundo relata Ariès (1981), a infância foi individuais (Ariès, 1981).
um conceito historicamente construído e
a criança, por muito tempo, não foi vista condições
como um ser em desenvolvimento, com
características e necessidades próprias, e precárias
sim como um adulto em miniatura. Por volta do século XII, as condições gerais
Este autor considera a infância como uma de higiene e saúde eram precárias,
invenção da modernidade, constituindo-se situação que contribuía para elevar o
numa categoria social construída índice de mortalidade infantil.
recentemente na história da humanidade, Porém, mesmo se as crianças
onde a emergência do sentimento de sobrevivessem aos primeiros anos de vida e
infância, como uma consciência da atingissem certa idade, ainda assim, não
particularidade infantil, é decorrente de possuiriam identidade própria, só vindo a
um longo processo histórico, não sendo tê-la quando conseguissem realizar
uma herança natural. atividades semelhantes àquelas
Essa afirmação desencadeou grandes desempenhadas pelos adultos.
mudanças na compreensão da infância, já Sendo assim, os cuidados especiais que as
que ela era pensada como uma fase da crianças deveriam receber, ou mesmo quando
vida, como qualquer outra. os recebiam, eram destinados apenas aos
reconhecimento da primeiros anos de vida e reservados aos que
possuíam uma situação socialmente e
infância financeiramente privilegiada.
As mudanças sociais, políticas e econômicas Dos adultos que cuidavam das crianças,
ocorridas na época pós-medieval, geraram não se exigia nenhuma preparação, e esse
subsídios para a percepção moderna da cuidado era realizado pelas chamadas
infância, compreendida como campo da vida criadeiras, amas de leite ou mães
social específico. mercenárias.
Conceito histórico-social 3
de infância
Obviamente, isto não significa negar a Porém, só a partir do século XVII foi possível
existência social das crianças, significa seu reconhecimento em maior número
reconhecer que, antes do século XVI, a onde as representações da infância
consciência social não admitia a divergiam muito da realidade, onde as
existência autônoma da infância como crianças eram representadas com
uma categoria diferenciada do gênero expressões de adultos, musculosas e
humano. vestidas com trajes de adulto.
Uma vez passado o estrito período de
De acordo com Ariès, "a criança deixava os
dependência física da mãe, esses
cueiros, ou seja, a faixa de tecidos que era
indivíduos se incorporavam plenamente ao
enrolada em torno de seu corpo, ela era
mundo dos adultos.
vestida como os outros homens e mulheres
a Igreja de sua condição".

No século XIII, atribuía-se à criança modos de Isto demonstra o quanto as crianças não
pensar e sentimentos anteriores à razão e aos tinham valor, e a infância era
bons costumes. desconhecida, considerada apenas como
Era tarefa dos adultos desenvolver nela o um período de transição, que logo se
caráter e a razão, e de modo semelhante, a ultrapassava.
Igreja procurava cumprir a tarefa de
educação, colocando-as a serviço do
as seis etapas de acordo
monastério.
Tais costumes podem ser observados
com o século XVII
Foi durante o século XVII que se generalizou o
facilmente através da arte e iconografias hábito de pintar nos objetos e nas mobílias da
que retratam este século. casa uma data solene para a família. Constata-
O sentimento de infância, presente na se que foi na Idade Média que as idades da
sociedade moderna, nem sempre foi vida começaram a ter importância.
valorizado durante a idade média. Durante esse período, então, existiam seis
Praticamente inexistia esse sentimento, etapas de vida:
tanto da infância como da adolescência,
primeira idade
fato que perdurou até o século XVIII.
Nesse período, a criança logo que do nascimento aos 7 anos.
apresentasse algum desenvolvimento segunda idade
misturava-se ao mundo dos adultos, dos 7 anos aos 14 anos.
participando de atividades semelhantes, terceira idade
como festas, jogos e brincadeiras. dos 14 anos aos 21 anos.
A família na Idade Média não tinha a quarta idade • juventude
função afetiva que tem hoje, "era uma dos 21 anos aos 45 anos.
realidade moral e social, mais que quinta idade • senectude
sentimental". referente à pessoa que não era velha, mas que
vestimenta já tinha passado da juventude.
sexta idade • velhice
Nos séculos XVI e XVII existia uma
consciência de que as percepções de uma dos 60 anos em diante até a morte.
criança eram diferentes das percepções dos As três primeiras eram etapas não
adultos. valorizadas pela sociedade.
Conceito histórico-social 4
de infância
Somente a partir da quarta idade, as Difundiu a ideia da tábula rasa para o
pessoas começariam a ser reconhecidas desenvolvimento infantil e de que a criança
socialmente. nascia apenas como uma folha em branco, na
Tais etapas alimentavam desde esta época, qual, se poderia inscrever o que se quisesse.
a ideia de uma vida dividida em fases.

primeira concepção real jean-jacques rousseau filósofo • 1712-1778


de infância Para Rousseau, existia a ideia de natureza boa,
pura e ingênua da criança, e da necessidade
Ainda no século XVII, nas classes
de respeitá-la e deixá-la livre para que a
dominantes, surgiu a primeira concepção
natureza pudesse agir no seu curso normal,
real de infância, a partir da observação dos
favorecendo o pleno desenvolvimento
movimentos de dependência das crianças
saudável das crianças.
muito pequenas.
O adulto passou, então, pouco a pouco, a Já em relação às concepções românticas da
preocupar-se com ela como um ser infância, apresentaram as crianças como
dependente e fraco. portadoras de sabedoria, sensibilidade, e
Comenta o autor, que ultrapassar esta fase estética apurada, necessitando que se
da vida só para quem saísse da criassem condições favoráveis para o seu
dependência, ou pelo menos dos graus pleno desenvolvimento.
mais baixos de dependência, desse modo a Assim, cabe destacar, que o tratamento
palavra infância passou a designar a diferenciado remetido à infância aparece
primeira idade de vida, a idade da entre os séculos XVI e XVIII.
necessidade de proteção, que perdura até Até essa época a educação das
os dias de hoje. crianças confundia-se com sua
Percebe-se, portanto que até o século XVII, inclusão nas atividades da sociedade
e nos espaços públicos, porém com a
a ciência desconhecia a infância, não havia
Revolução Industrial e a conseqüente
lugar para esta na sociedade, fato urbanização, inicia-se o processo da
caracterizado pela inexistência de uma família nuclear extensa do período
expressão particular a ela. feudal (Rabuske, Oliveira & Aripini,
2005).
Só então, a partir das ideias de proteção,
amparo, dependência, que surge a
infância. As crianças passaram a ser vistas século XIX
como seres biológicos, que necessitavam Já no século XIX inaugura-se uma visão de
de grandes cuidados e de uma rígida criança sem valor econômico, mas de valor
disciplina, a fim de transformá-las em emocional inquestionável, criando uma
adultos socialmente aceitos. concepção de infância plenamente aceita no
século XX.
século XVIII
Ao analisar o século XVIII, a emergência social
Na verdade, como é possível perceber,
"a história cultural da infância tem
da criança nesse século aconteceu devido às seus marcos, mas também se move
obras de John Locke, Jean Jacques Rousseau por linhas sinuosas com o passar dos
séculos: a criança poderia ser
e dos primeiros românticos.
considerada impura no início do

john locke filósofo • 1632-1704


século XX tanto quanto na alta Idade
Média".
(Heywood, 2004, p. 45).
Conceito histórico-social 5
de infância
Pode-se então afirmar que, a mudança de A partir de então, o conceito de
paradigma no que se refere ao conceito de infância se evidencia pelo valor do
amor familiar: as crianças passam
infância está diretamente ligada ao fato de dos cuidados das amas para o
que as crianças sempre foram controle dos pais e, posteriormente,
consideradas adultos imperfeitos. da escola, passando pelo
Sendo assim, essa etapa da vida seria de acompanhamento dos diversos
especialistas e das diferentes
pouco interesse, visto que "somente em
ciências como Psicologia,
épocas comparativamente recentes veio a Antropologia, Sociologia, Medicina,
surgir um sentimento de que as crianças Fonoaudiologia, Pedagogia, dentre
são especiais e diferentes, e, portanto, outras tantas (Frota, 2007, p.152).
dignas de ser estudadas por si sós"
(Heywood, 2004, p.10). rousseau
particularização da Foi através de Rousseau que a criança
começou a ser vista de maneira
infância
O que se observou no ocidente foi o
diferenciada do que até então existia, uma
vez que ele propôs uma educação infantil
movimento de particularização da infância, sem juízes, sem prisões e sem exércitos.
ganhando forças a partir do século XVIII, a Assim, a partir da Revolução Francesa, em
esse respeito: 1789, modificou-se a função do Estado e,
A família sofre grandes transformações e com isso, a responsabilidade para com as
criam-se necessidades sociais nas quais a crianças e o interesse por elas.
criança será valorizada enormemente, A partir desse momento os governos
passando a ocupar um lugar central na começaram a se preocupar com o bem-
dinâmica familiar. estar e com a educação delas.

De fato, a infância e a criança tornaram-se objetos de estudos e de saberes de diferentes áreas,


constituindo-se num campo temático de natureza interdisciplinar, independentemente da
forma como era analisada e do posicionamento teórico que se tinha sobre ela, a infância
tornou-se visível como um estatuto teórico.
Compreende-se então, que com a evolução nas relações sociais
que se estabeleceram na Idade Moderna, a criança passa a ter
um papel central nas preocupações da família e da sociedade.
A nova percepção e organização social fizeram com que os laços
entre adultos e crianças, pais e filhos, fossem fortalecidos. A partir
deste momento, a criança começa a ser vista como indivíduo
social, dentro da coletividade, e a família tem grande
preocupação com a sua saúde e a sua educação.
A ciência moderna, ao elaborar um conjunto de características
sobre a criança, reconhece a infância como um momento do
desenvolvimento humano, abrindo campo para vários estudos e
orientações no cuidado e educação desse grupo etário: o
universo infantil.
Entretanto, a análise permite afirmar que a preocupação com a
criança encontra-se presente somente a partir do século XIX,
tanto no Brasil como em outros lugares do mundo.
Conceito histórico-social 6
de infância no Brasil
Resgatar a história social da infância no Dentre os primeiros registros encontrados
Brasil é um fato recente. sobre este tema, enfatiza-se a iniciativa dos
No Brasil, a compreensão da infância jesuítas.
parece ter realmente começado no século
XIX, intensificando-se nos séculos
os jesuítas
No século XVI, estes implantaram um
seguintes.
sistema de educação direcionado aos
Portanto, é recente a preocupação dos
povos indígenas e tinha o propósito de,
historiadores brasileiros sobre este tema, e
através do convívio com a doutrina a ser
apesar da História da Criança ter alçado
difundida pelos jesuítas, promover
destaque nos últimos anos, ainda está
mudanças nos costumes da população
muito presa aos temas da história
indígena, considerados inadequados na
contemporânea.
visão da Colônia e da Igreja.
De fato, apenas a partir do ano de 1991 surgiu Os cuidados especiais na infância eram
a primeira publicação na historiografia que se limitados e as regras e recomendações
propôs a escrever a história da criança acerca da vida e educação das crianças
brasileira. Esta obra foi organizada por Mary eram determinadas, principalmente, pela
Del Priore e reuniu uma coletânea de textos, Igreja.
de diversos autores, sob o título de História da Neste contexto, intensificaram-se as
Criança no Brasil. intervenções médicas nas questões de

mary del priore


historiadora • 1952
saúde e higiene e, consequentemente, os
cuidados dedicados à infância e à família.
Ocorreu com o foco na questão da
Em seu trabalho, Del Priore analisou como mortalidade infantil e nas recomendações
o sentimento de valorização da criança, de cuidados com as crianças.
corrente na Europa Moderna, identificado
por Ariès, esteve presente na prática medidas higienistas-
educativa dos missionários jesuítas no
Brasil Colônia.
eugênicas
Assim, um processo a ser enfatizado na área de
A infância, para estes, era vista como o
atendimento à infância no Brasil e no mundo,
momento oportuno para a catequese, pois
caracteriza-se por medidas higienistas-
seria o período em que se daria a
eugênicas, emergentes no fim do século XIX e
aprendizagem de princípios e valores que
início do século XX.
seriam adotados e seguidos por toda a vida Embora o higienismo e a eugenia
A constatação da crescente valorização advenham de movimentos
social da criança, que culminou no que diferentes e de circunstâncias
históricas e proposições teóricas
Ariès (1981) denominou descoberta da
próprias, suas idéias se aproximaram
infância, teve como fontes elementos e se sobrepuseram às políticas e
provenientes da cultura europeia. práticas sociais brasileiras.
(Boarini & Yamamoto, 2004).
Os processos de colonização, em terras Nesta época que a infância ganha maior
das Américas e da África, são repletos de visibilidade, pois é definida como objeto de
demonstrações das influências dos intervenções públicas, devido à maior
modelos europeus nas práticas sociais das valorização da mão-de-obra num mundo
populações colonizadas. capitalista e industrial.
Conceito histórico-social 7
de infância no Brasil
século XX Desse modo, os comportamentos e
atitudes socialmente construídos
Assim, no século XX, com o desenvolvimento adquiriram um caráter de lei, como
tecnológico e a mobilidade geográfica, o pode ser observado com a
instauração do Estatuto da Criança e
discurso científico médico-psicológico
do Adolescente, no Brasil, em 1990.
tornou-se o referencial para as práticas A criança deve ser vista como um ser
direcionadas ao cuidado infantil passando a completo, biopsicossocial, por isso, é
orientar a relação pais-filhos. preciso intensificar a
A ênfase atribuída, no século XX, às interdisciplinaridade dos estudos da
infância.
responsabilidades e ao papel do adulto em
relação à criança aconteceu a partir da Neste sentido, observa-se o aumento do
institucionalização da Declaração interesse de investigadores brasileiros na
Internacional dos Direitos da Criança, no realização de estudos destacando a
ano de 1959. importância da criança .

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