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CURRÍCULOS COMO NARRATIVAS E ESTUDOS

QUEER: EMERGÊNCIAS QUE INTERROGAM A


EDUCAÇÃO1
Alexsandro Rodrigues2

Ileana Wenetz3

Marcio Caetano4

Este artigo, escrita compartilhada por afetos e implicações entres pessoas que
ousam produzir a partir de suas singularidades, se apresenta como uma oportunidade
para pensar e problematizar as relações que se estabelecem nas redes de saberes que
incidem na formação docente e nos discursos que se fazem acontecer nos exercícios de
(des)aprendizagem que marcam as performatividades docentes e discentes e tensionam
os cânones curriculares que se buscam prescritivos, identitários e normativos na
con(form)ação de saberes e sujeitos-corpos da educação. Nesse exercício, buscamos nos
valer de paisagens curriculares como acontecimentos em salas de aulas, tomando-as
como experiências comuns, que nos permitem, em atos, (des)tecer alguns discursos-
forma-currículo que buscam imprimir formas normativas aos corpos e suas
performatividades. Bultler (2018) chama nossa atenção para o fato de que:

1
Este artigo foi publicado no Livro “Qeer(i)zando currículos e educação: narrativas do encontro, pela
Editora Devires, 2020, sob minha organização de Marcio Caetano e de Maria da Conceição Silva Soares.
2
Pós-doutor em Psicologia. Doutor em Educação. Professor Associado I do Centro de Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo na disciplina: Currículo e Formação docente. Professor
Permanente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI/UFES). Coordenador
do Grupo de Estudo e Pesquisas em Sexualidades (GEPSs/UFES) e do Núcleo de Pesquisa em
Sexualidade (NEPS/UFES). Interesses de pesquisa: Produção de subjetividade, infâncias (des)viadas,
gênero, sexualidade e processos formativos de professores e trabalhadores culturais
3
Pós-doutora no Programa Interdisciplinar de Ciências Humanas da UFSC. Professora Adjunta do
Departamento Ginástica do Centro de Educação Física e Deportes da Universidade Federal de Espírito
Santo (UFES). Professora da Pós-Graduação em Psicologia Institucional (UFES). Participante do
Laboratório de Estudos em Educação Física (LESEF) da UFES e participante do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Sexualidade (GEPSS). Tem experiência na área de Educação Física escolar, Estudos
antropológicos na Educação Física, Estudos Culturais e Gênero. Metodologia do Ensino. Atuando nos
seguintes temas: corpo, gênero, lazer, crianças e brincadeiras.
4
Pós-doutor, com apoio do PNPD/CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), líder do Grupo de Pesquisa Políticas do Corpo e
Diferenças- POC’s- e coordenador do Centro de Memória LGBTI João Antônio Mascarenhas
(UFPel/UFES). Docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) onde também orienta investigações
desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Educação. Os seus temas de interesse e pesquisa são:
1. currículos e culturas; 2. masculinidade(s) e 3. população LGBT e 4. estudos decoloniais e subalternos.
Não podemos falar sobre um corpo sem saber o que sustenta esse corpo, e qual pode
ser a sua relação com esse apoio – ou falta de apoio. Desse modo, o corpo é menos
uma entidade do que um conjunto vivo de relações; o corpo não pode ser dissociado
das condições ambientais de infraestrutura da sua vida e da sua ação. Sua ação é
sempre uma ação condicionada, que é sentido do caráter histórico do corpo, além
disso, humanos e outras criaturas dependem do apoio da infraestrutura, de maneira
que isso expõe uma vulnerabilidade específica que temos quando ficamos sem
apoio, quando as condições de infraestrutura começa a se decompor, ou quando nos
encontramos radicalmente sem apoio em condições de precariedade (BUTLER,
2018, p. 72).
Na condição de andarilhos sem destinos, tateando corpus, perseguimos rastros e
marcas queer nos currículos como narrativas que nos ajudem a continuar nossa
caminhada com a proposição de (nos) fazer problemas com as questões que aqui
comparecem como desafio de pensamento e afecções com vidas que se (re)fazem em
suas infinitas singularidades. Revisitando-nos, retomamos artigos e livros que têm nos
inspirado para continuar a nos fazer problemas com estas vidas, as nossas, presenças
insubmissas e monstruosas na escola e na universidade. O texto busca, em duas seções,
se organizar e tecer, em redes, as aproximações com os estudos aos quais se filia,
afirmando, com isso, que também somos tramados e nos tramamos com esses discursos.

Currículo como narrativa e como campo de contestação: aproximações


com o dispositivo da sexualidade e os Estudos Queer

Muitas são as possibilidades de conversas críticas com o campo do currículo.


Escolas curriculares e proposições que buscam afirmar a vida com a educação não nos
faltam. Diante das inúmeras possibilidades de leitura e de resposta ao que se passa, nos
afeta e nos transforma em atos pedagógicos, cartografando as possibilidades que nos
convêm para os estudos curriculares, somos afetados pelas narrativas pós-estruturalistas
e dosnoscom5 cotidianos, na justa medida que nos permitem problematizar as forças que
não buscam igualdade, mas que perseguem as formas equitativas no entre dos discursos
e praticantes do currículo.

Se é possível fazermos escolhas, aqui trazemos um interlocutor dos estudos pós-


críticos de currículo que nos ajuda a pensar diferente. Tomaz Tadeu da Silva6, seja bem-
vindo! No Brasil, para muitos de nós, foi através de seu trabalho em “Documentos de

5
Juntar palavras tem sido uma estratégia usada pelos Estudos com os Cotidianos como possiblidade de
ampliar sentidos e significados.
6
Temos por objetivo aqui traçar autorias e pensamentos que nos ajudam a melhor dizer sobre as questões
que atravessam este artigo. Por isso, avisamos aos/às leitores/as que estrategicamente estamos fazendo
uso de longas citações com o objetivo de qualificar aqueles/as que nos oferecem chão para a nossa
caminhada. Com isso, acreditamos que estamos oferecendo pistas de leitura e interpretações para
ampliação desse estudo e do campo.
identidade: uma introdução às teorias de currículo” que as questões pós-estruturalistas e
os Estudos Queer apresentaram o direito à diferença nos discursos curriculares e, por
sua vez, como preocupação na formação docente. Nas incursões feitas com o
pensamento de Tomaz Tadeu da Silva, seguimos firmes apostando na força dos
currículos com atenção às práticas que nos permitem desconstruir, desconfiar, estranhar
e subverter suas normatividades. Esse autor, no livro anunciado, oferece-nos potentes
argumentos que ajudam a melhor compreender a força das questões queer com os
currículos. E diz:

[...] o termo queer funciona como uma declaração política de que o objetivo da
teoria queer é o de complicar a questão da identidade sexual e, indiretamente,
também a questão da identidade cultural e social. Através da estranheza, quer se
perturbar a tranquilidade da normalidade. [...] O queer se torna, assim, uma atitude
epistemológica que não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas
que se estende para o conhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer
significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem-comportadas de
conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é, nesse sentido, perversa,
subversiva, impertinente, irreverente, profana e desrespeitosa. [...] Tal como a teoria
queer, a pedagogia queer não se limitaria a introduzir questões de sexualidade no
currículo ou reivindicar que o currículo inclua materiais que combatam as atitudes
homofóbicas. É claro que uma pedagogia queer estimulará que a questão da
sexualidade seja seriamente tratada no currículo como uma questão legitima de
conhecimento e identidades. [...] A pedagogia queer não objetiva simplesmente
incluir no currículo informações corretas sobre a sexualidade; ela quer questionar os
processos institucionais e discursivos, as estruturas de significação que definem,
antes de mais nada, o que é correto e o que é incorreto, o que é moral e o que é
imoral, o que é normal e o que é anormal.[...] Um currículo inspirado na teoria queer
é um currículo que força os limites das epistemes dominantes: um currículo que não
se limita a questionar o conhecimento como socialmente construído, mas que se
aventura a explorar aquilo que ainda não foi construído. A teoria queer – esta coisa
estranha – é a diferença que pode fazer diferença no currículo (SILVA, 2015, p. 105-
109).
Com esse fragmento, de antemão, já vamos sendo avisados que os Estudos
Queer buscam fazer críticas e problemas à norma e à normatividade, venha ela de onde
vier, incluindo nisso as confortáveis identidades sexuais, sociais e, portanto, culturais.
Como força criadora, currículos formam paisagens como dunas. Fazendo-se e se
desfazendo em nossa presença, com a força do vento e daquelas pessoas que não se
conformam e gritam, driblam, debocham, produzem suas leituras e táticas, como bem
nos ensinou Certeau (1994), das ordens e normas que lhes são recomendadas e/ou
impostas. Estamos aqui para assombrar, diriam esses corpos rebeldes que
cotidianamente produzem performatividades de gênero estranhas ao lugar comum na
norma.

A performatividade de gênero não caracteriza apenas o que fazemos, mas como o


discurso e o poder institucional nos afetam, nos restringindo e nos movendo em
relação ao que passamos a chamar de nossa própria ação. Para entender os nomes
pelos quais somos chamados são tão importantes para a performatividade quanto os
nomes pelos quais nos chamamos, temos que identificar as convenções que operam
em um amplo conjunto de estratégias de designação de gênero. Então podemos ver
como o ato de fala nos afeta e nos anima de uma maneira corporificada – o campo
da suscetibilidade e do afeto já é uma questão de um registro corpóreo de algum
tipo. De fato, a corporificação implicada pelo gênero e pela performance é
dependente das estruturas institucionais e dos modos sociais mais amplos
(BUTLER, 2018, p. 72).
Nesse sentido, o campo do currículo atravessado pelas questões queer estaria
intimamente implicado com o que ainda não sabemos e que, por isso, não se pode
antever enquanto marcas sociais. A experiência, como perspectiva de orientação da
existência, suscita performatividades, desejos e práticas, fragilizando as certezas
canônicas do currículo e denunciando que as regulações que operam sobre o corpo não
são capazes de extinguir a liberdade criativa: pré-requisito à sexualidade e à invenção de
si. É, neste ponto, que nos parece residir o temor e a proliferação discursiva e produtiva
sobre as sexualidades que insistem em se configurar nas narrativas curriculares. Suas
estreitas relações com a liberdade amedrontam a arrogância porque fragilizam sua
verdade absoluta e sua certeza estridente. A sexualidade não se determina com e pelas
regras da cultura, já nos disse Deborah Britzman (2001). Mesmo quando a cultura
hegemônica busca domesticalizar a sexualidade, a curiosidade nos leva à experiência,
que, por sua vez, leva-nos a outras infinitas performatividades criativas de estar no
mundo e com o mundo. A sexualidade é a própria alteridade. Essa questão novamente
nos lembra Deborah Britzman (2001), ao dizer que:

[...] quando tentamos mapear a geografia do sexo [...] ou quando tentamos ler a
sexualidade através de uma teoria favorita, um manual de instrução ou de acordo
com as visões dos chamados especialistas. Quando inserida no currículo escolar ou
na sala de aula universitária – quando digamos, a educação, a sociologia, a
antropologia colocam sua mão na sexualidade- a linguagem do sexo torna-se uma
linguagem na sexualidade – a linguagem do sexo torna-se uma linguagem didática,
explicativa e, portanto, dessexuada. Mais ainda: quando o tópico do sexo é colocado
no currículo, nós dificilmente podemos separar seus objetivos e fantasias das
considerações históricas de ansiedades, perigos e discursos predatórios que parecem
catalogar certos tipos de sexo como inteligíveis, enquanto outros tipos são relegados
ao domínio do impensável e do moralmente repreensível (BRIZTMAN, 2001, p.
90).
Com a presença queer, as narrativas hegemônicas e as formas-curriculares são
colocadas em suspensão, sobretudo, os modos de fabricação, classificação,
hierarquização e privilégios de identidades e conhecimentos. Ainda que, para os
Estudos Queer, as questões da sexualidade não deveriam ser curricularizadas nos
manuais da (boa) pedagogia e das perspectivas multiculturais liberais de
reconhecimento da diversidade, não significa que a sexualidade não mereça tratamento
responsivo e em espaços de práticas curriculares.
Nas possibilidades produtivas do poder e da resistência é que surgem outros
estilos de vida, invenções e subversões performativas. A potência criativa da
experiência preconizada pelas sexualidades é força capaz de gerar situações
irreversíveis aos discursos normatizadores e prescritivos da educação. Como nos
ensinou Weeks (1998), a sexualidade, na contemporaneidade, fala muitas linguagens,
dirige-se a muitos tipos de pessoas e oferece uma verdadeira cacofonia de distintos
valores e possibilidades de estar no e com o mundo.

Em situações mínimas de liberdade, as sexualidades, enquanto forças produtivas


de curiosidades e experiências, nos dão a instabilidade necessária para o desejo de
aprender e a paixão de ignorar tudo o que se interpõe no caminho da aprendizagem.
Quem de nós não conhece sujeitos que, mesmo com adversidades, apaixonados por uma
ideia, lançaram mão de conquistas já obtidas para alcançar seus objetivos? Sem dúvida,
a potencialidade pedagógica da sexualidade, aqui entendida como a curiosidade que
produz experiência, poderá fazer emergir outras configurações na prática da vida e, por
sua vez, nas narrativas curriculares. Não se trata de aprisioná-la nos discursos sobre o
ato sexual, mas ampliá-la para as práticas e experiências que, no prazer de produzir
criativamente a vida e, defendemos que, somente nela, aloque a invenção do
conhecimento de si e, através de si, o conhecimento do mundo presentes nos currículos.

Tomaz Tadeu da Silva (1996) generosamente nos ofereceu um fio político e


propositivo que nos ajudou a melhor compreender e também a tomar e desejar o
currículo como narrativa, texto e campo de disputa. Tensionando os modos
hegemônicos de se pensar e desejar currículos, com esse autor, somos convidados a:

[...] reconhecer o currículo como narrativa e reconhecer o currículo como


constituído de múltiplas narrativas significa colocar a possibilidade de desconstruí-
las como narrativas preferidas, como narrativas dominantes. Significa poder romper
a trama que liga as narrativas dominantes, as formas dominantes de contar histórias,
à produção de identidades e subjetividades sociais hegemônicas. As narrativas de
currículo devem ser desconstruídas como estruturas que fecham possibilidades
alternativas de leituras, que fecham as possibilidades de construção de identidades
alternativas. Mas as narrativas podem também ser vistas como textos abertos, como
histórias que podem ser inventadas, subvertidas, parodiadas, para contar histórias
diferentes, plurais, múltiplas, histórias que se abram para a produção de identidades
e subjetividades contra hegemônicas, de oposição (SILVA, 1996, p. 177).
Reconhecer os currículos como narrativas em disputa, negociações e assombros
se faz acompanhar das dimensões de poder e de resistências que percorrem o tecido
curricular e as redes de significados que ali, em ato, diante do acontecimento, são
produzidas e (des)tecidas nas práticas educativas. Silva (1996), a esse respeito, nos dirá:
As narrativas são cruzadas pelas linhas de poder, mas elas não existem num campo
tranquilo de imposição. Ao contar histórias contaminadas pelos significados
dominantes, elas tentam estabelecer e fixar identidades hegemônicas. Entretanto, as
identidades e subjetividades sociais existem num terreno de indeterminação, num
terreno de significados flutuantes. Os significados produzidos e transportados pelas
narrativas não são nunca fixos, decididos de uma vez por todas. O terreno do
significado é um terreno de luta e contestação. Há, assim, uma luta pelo significado
e pela narrativa. Através das narrativas, identidades hegemônicas são fixadas,
formadas e moldadas, mas também contestadas, questionadas e disputadas. [...]
Podemos entender o conceito de narrativas para muito além daqueles gêneros
formalmente conhecidos como tais: o romance, o conto, o filme, o drama. Existem
muitas práticas discursivas não reconhecidas formalmente como narrativas, mas que
trazem implícita uma história, encadeiam eventos no tempo, descrevem e
posicionam personagens e atores, estabelecem um cenário, organizam os fatos num
enredo ou trama. Para todos os efeitos, funcionam como narrativas (SILVA, 1996, p.
176).
Percebemos, nessa incursão entre Estudos Queer, currículo como narrativa e
relações de poder, que Tomaz Tadeu da Silva buscou inspirações nas ideias de/em e
com o poder desenvolvidas por Michel Foucault (2006). Assim, qualifica as relações
nada harmoniosas que se fazem acontecer entre os sujeitos nas negociações com o
campo do currículo e suas narrativas. Nas escolas, os sujeitos são produzidos
discursivamente nas tramas curriculares num terno (des)monte. E, por sabermos das
disputas entre narrativas e existências singulares fora do centro do currículo, como
praticantespensantes, alteramos a paisagem curricular e disputamos os seus efeitos. A
tática carregada de astúcias e leituras monta e (des)monta os currículos, conhecimentos
universais e sujeitos de conhecimentos canonizados. O deboche, a leitura autoral e a
desconfiança da verdade arrogante tornam-se a tática das posições ordinárias. Nelas, nas
margens dos currículos, redes de saberes e poderes se efetuam na materialidade dos
corpos, via processos infindáveis de significação e negociação. Por isso:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só
funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em
rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica
aos indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 2006, p. 183).
Imprimindo desde aqui a concepção de currículo e poder com as quais nos
filiamos, seguimos nossas intenções de escrita. A escrita endereçada, sobre o que temos
feito de nós, nas relações que estabelecemos com as narrativas curriculares vividas em
espaços-tempos educativos, faz funcionar exercícios de pensamento que nos deslocam
em andanças implicadas a favor das práticas curriculares queer, em ato, com vidas
demasiadamente reais que nos oportunizam encontros potentes com (des)aprendizagens
entre corpo, gênero e o dispositivo da sexualidade que se constitui como uma
engrenagem de extrema importância para a compreensão do desejo de norma através do
dispositivo-curricular. Em uma entrevista de Foucault, de 1977, melhor podemos
compreender a concepção estratégica do dispositivo da sexualidade. Em suas palavras:

O que eu tento descobrir sob esse nome é, primeiramente, um conjunto


decididamente heterogêneo, que comporta discursos, instituições arranjos
arquitetônicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, em resumo: do dito, tanto
do não dito, eis o elemento do dispositivo. O dispositivo propriamente é a rede que
se pode estabelecer entre esses elementos. [...] o dispositivo é exatamente a natureza
do laço que se pode existir entre estes elementos heterogêneos. [...] por dispositivo
entendo uma espécie – digamos − de formação, que, em um determinado momento
histórico, teve por função maior responder a uma urgência. O dispositivo tem, pois,
uma função estratégica dominante. [...] Eu disse que o dispositivo era de natureza
estratégica, o que supõe que se trata aí de uma manipulação de relações de força,
seja para desenvolvê-las em uma direção, seja para bloqueá-las, ou para estabilizá-
las. Utilizá-las. O dispositivo está, então, sempre inscrito em um jogo de poder, mas
sempre ligado também, a um ou alguns limites de saber, que nascem dele, mas
também o condicionam. É isto o dispositivo: estratégias de relações de forças
suportando tipos de saber e suportadas por eles (FOUCAULT, 2014, p. 45).
Com essa explicação de Foucault sobre dispositivo, é possível pensar o currículo
como dispositivo, compreendendo-o como suporte de tipos, saberes e poderes. Ele
responde às urgências de um tempo e dele se busca estrategicamente se valer como
prática e discurso de dominações hegemônicas. E como a sala de aula é palco por onde
desfilamos em exercícios políticos de atenção com a novidade da vida, trazemos
narrativas de corpos-sujeitos-estudantes, sem nenhuma pretensão de qualificá-los no
eixo da informação e informante. As narrativas selecionadas para compor conosco este
artigo não precisam de um sujeito-autor para se tornarem credíveis. Isso porque não
temos como intenção a verdade moderna e nem a necessidade de produção de um
sujeito narrador entendido como produtor da realidade. “Nessa perspectiva, nada é, tudo
se torna. Tudo é devir. Não somos, não estamos no mundo, mas nos tornamos com o
mundo, completando-o” (SOARES, 2013, p. 740). As narrativas, como tudo que até
aqui já fora dito, não passam de ficções, fabulações, modos de narrar e de praticar as
experiências vividas e de criar os seus significados. Essas narrativas são suas e nossas e,
por poderem existir como nossas, elas assumem o sentido de experiência. Será que esse
modo de lidar com o sujeito que narra e suas narrativas poderia ser a potência dos
Estudos Queer? Apenas uma questão! Eis que um de nós se põe a narrar:

Para mim não tem nada de novo, o desejo e a publicização dos adeptos da
famigerada cura gay. Passei por esta tentativa de correção ainda muito jovem. Nunca
me senti doente. Logo não entendo este papo de reorientação da sexualidade. Tinha
11 anos de idade, o ano era 1981. Iniciava meus estudos na quinta série do colegial
numa escola católica e bem tradicional de minha região. Meu pai estudara naquela
escola. Para ele, estudar naquela escola era motivo de honra e de distinção.
Acordava muito cedo para fazer a pequena viagem diária. Todos os dias, antes da
sirene tocar, avisando que já era hora de formar a fila, lá já estava eu. De prontidão!
Corpo soldado, esperando a reza do dia e a cantoria do hino nacional, para em
seguida, quase que marchando, adentrar a sala de aula e esperar a autorização do
professor para que pudéssemos nos sentar em nossas carteiras fixadas, parafusadas
ao chão. Naquela época duplas se dividiam em uma mesma carteira. Foi ali, naquela
carteira parafusada ao chão, que, pela primeira vez, coloquei minhas mãos nervosas
no peruzinho de meu primeiro namoradinho. Este segredo de criança, eu levo
comigo para o túmulo. Escola nova, colegas novos, professores e professoras novos.
Lá estava eu, em silêncio, de cabeça baixa, fazendo de tudo para não ser visto na
escola e pela escola. De cabeça baixa, olhando para o chão, de poucas palavras e
sorriso curto, procurava chegar e sair da escola sem ser visto. Observava tudo e a
todos! Em minhas observações tateava a escola e as crianças. Sabia também que era
observado. Olhos pontudos a todo instante a mim. Eles faziam questão de me dizer
sem palavras que algo estava errado. Flechas saíam dos olhos das crianças e de
professores da escola. Aqueles olhares que me liam, eram aterrorizantes. Desviava-
me de tudo e de todos. Não queria ter problemas na escola. Mas, sabia sem saber
que eu era o problema da escola. Sabia que até o fim da oitava série ali estudaria.
Em poucos dias consegui mapear com quem poderia fazer amizade na escola.
Algumas meninas da minha sala estavam mais abertas a novas amizades e afetos.
Não sei explicar, mas parecia que entre eu e as meninas, as alianças afetivas
aconteciam. Quanto aos meninos?!?! Eu tinha dúvidas. Em minhas observações
logo catei que seria perigoso me aproximar de um grupo de meninos da sétima série.
A sétima série da escola era famosa em algazarras e pela falta de respeito com as
crianças mais novas e com os professores. Tinha um garoto, desses marrentos,
desses que fazendo graça e produzindo risada, faz a vida de alguns virar um inferno.
Tinha receio desse menino! Um certo dia, entre a reza e o hino nacional, fui
empurrado para a fila das meninas. Antes mesmo que pudesse voltar para a fila dos
meninos da quinta-série, ouvi o primeiro grito da bocarra do garoto monstruoso da
sétima série: “mulheeeeeeeeeeerzinha!”, “Olhem a mulherzinha da quinta-série”
−ouvi o segundo grito. Em um coro, meninos e meninas, gritavam juntos:
“Mulherzinha! Mulherzinha! Mulherzinha! Meu armário foi escancarado pela
timidez. De garoto tímido, fui visto pelos meninos e meninas da escola como
mulherzinha. Não me aguentei, comecei a chorar. A professora responsável pela
organização da fila apenas me disse: “Engole o choro, garoto. Menino não chora!”.
Em soluço, voltei para a fila dos meninos da quinta-série. A mulherzinha da escola
que acabara de nascer para aqueles meninos e meninas, gradativamente, foi
desaparecendo e um outro menino (fe)menino, aparecia. Os problemas de
relacionamento na escola foram crescendo. Fui me tornando uma criança que
aprendeu a bater e a falar palavrões. Ainda que apendendo a me defender da injúria
e dos atos violentos daquelas crianças, não recebia o passaporte de entrada no clube
dos meninos. Bater e xingar não era suficiente. Não conseguia decifrar os códigos
daqueles meninos e nem muito menos imprimi-los em meu corpo. Aqueles meninos
tinham a capacidade de alterar os códigos de gênero e de masculinidades todas as
vezes que deles me aproximava. Me parecia ser um ideal inalcançável para mim,
ainda que me esforçasse todos os dias. Parecia que meu corpo se negava àquelas
aprendizagens. Não deu outra, em pouco tempo, lá estavam meus pais sob
orientação da escola me levando à psicóloga. Fiquei, da quinta série a oitava série,
sendo levado aos serviços de psicologia e à igreja. Um mix de saberes da psicologia
e da igreja colavam em meu corpo. O pecado sobre o que eu não sabia me rondava.
Me castigava e era castigado todos os dias na escola sob os olhares que educam. As
torturas só acabaram quando fui para o Ensino Médio e fui estudar na capital. Hoje,
passando quase quarenta anos, compreendo que aquela atenção buscava me fazer
heterossexual e ou homossexual de um certo tipo. Homossexual desses bem aos
modos familiares. Gostava de ir à psicóloga. Sua presença me ajudava a enfrentar
meus medos e a me fortalecer como pessoa. Ela driblava meus pais e me ajudava a
sofrer menos com este mundo perverso. De vez em quando, ouvia de meus pais que
a psicóloga era fraca e que, por falta de profissionais da área na cidade, me
manteriam sobre sua atenção. Aqui, com meus quase cinquenta anos de idade,
distante daquele (fe)menino, compreendo que na escola não aprendemos somente os
conteúdos escolares. Alguns conteúdos da escola, como o de ser menino de um certo
tipo, são mais fortes que os conteúdos de português, matemática, geografia, história,
educação física. (Fragmentos de sala aula – narrativas de um estudante).
Ao pensar nas interpelações que a narrativa nos provoca e estabelecendo com ela
pactos de dororidades7, sentimos que os corpos já nascem conspurcados pela cultura. Já
se originam “cirurgiados” pelas tecnologias discursivas curriculares precisas que irão
orientar e validar as formas adequadas e impróprias das performatividades de gênero,
conforme nos convidou a pensar Berenice Bento (2006). Na lógica imperativa da
normalidade curricular, a criação performativa de nossos corpos dependerá de
complexas redes de regulação e de astúcias. Não existe corpo performativo livre de
intervenções heteronomativas.

Ao longo do desenvolvimento da criança por meio da pluralidade de interações, a


criança aprende nos jogos de gênero, as performatividades que ela significará como
masculino ou feminino. Estas aprendizagens serão fundamentais, à medida que
através dela, as crianças adquirem as ferramentas básicas para se relacionar
socialmente adequada aos valores androcêntricos e heteronormativos. As lógicas
androcêntricas de desqualificação do feminino não representam somente o
movimento de alocar determinada performatividade masculina na centralidade
cotidiana da vida. Elas se tornam prisões, empobrecidas de criações, que aliadas à
heteronormatividade buscam legitimar a violência, sempre aliada à norma,
investidas nas performatividades dissidentes. Existe uma estreita ligação entre a
misoginia, o androcentrismo e a heteronormatividade que se entrecruzam para o
domínio do patriarcado. A heteronormatividade, ao se conectar intrinsecamente com
as lógicas androcêntricas e misóginas, busca sustentar por meio da cultura
universalizada, também nos currículos, a reprodução do sistema binário. Ele é “o
componente ideológico central de todos os sistemas de dominação na sociedade
ocidental” (hooks, 2015, 198, p. 68).
O pensamento dualístico torna-se, na experiência narrada, o eixo central das
opressões. Uma característica fundamental dessa construção é a categorização do sujeito
balizada em sua diferença. Outra característica dessa construção é que a diferença
heterodesignada não é complementar. Suas metades são dicotômicas, distintas e
essencialmente opostas. Esse quadro desmascara o discurso de igualdade na diferença e
subordina uma metade a outra dicotomicamente definida. A dicotomia é a estratégia
política de governo dos valores androcêntricos, heteronormativos e misóginos sobre a
vida. “A diferença de oposição dicotômica invariavelmente implica relações de

7
Entendemos que todo conceito carrega um mundo de significados e significantes. Ele não é estático e
pressupõe redes de reflexão, críticas coletivas, discursos em disputa, significados culturais e
ressignificações individuais pelos usos de seus praticantes. Logo, o conceito não é algo acabado, pronto,
imutável e descolado do seu espaçotempo. Ele é fundamentalmente circular. Segundo Vilma Piedade
(2017), “dororidade quer falar das sombras. Da fala silenciada, dentro e fora de nós”. Originada com o
feminismo negro para refletir as alianças entre mulheres negras que vivenciam a intersecção de opressões,
“dororidade” nos convida a pensar as alianças, sentidos e táticas coletivas produzidas com as experiências
opressivas.
superioridade e inferioridade, relações hierárquicas que se enredam com economias
políticas de dominação e subordinação” (COLLINS, 2016, p. 107-108) presentes nas
pedagogias que buscam naturalizar a existência inteligível do gênero que tatua o corpo
naquilo que Butler (2018) nos diz:

[...] em primeiro lugar e acima de tudo, dizer que o gênero é performativo é dizer
que ele é um certo tipo de representação; o aparecimento do gênero é
frequentemente confundido com um sinal de sua verdade interna ou inerente; o
gênero é induzido por normas obrigatórias que exigem que nos tornemos um gênero
ou outro (geralmente dentro de um enquadramento estritamente binário); a
reprodução de gênero é, portanto, sempre uma negociação com o poder; e por fim,
não existe gênero sem essa reprodução das normas que no curso das suas repetidas
representações corre o risco de desfazer ou refazer as normas de maneiras
inesperadas, abrindo a possibilidade de reconstruir a realidade de gênero de acordo
com novas orientações (BUTLER, 2018, p. 72).
As considerações de Butler nos levam a pensar que inúmeras pedagogias
ensinam aos sujeitos, ao longo de sua trajetória, por meio das mais diversas instituições
e interações, a se constituírem ainda dicotomicamente. Contudo, ainda com a autora,
somos levados a refletir que essas etapas formativas não são sequenciais, contínuas ou
iguais e, de modo algum, determinantes. Pensamos que isso decorra do fato de que os
campos culturais e históricos que conformam os sujeitos são implicados de conflitos,
interesses e capazes de produzir múltiplos sentidos que, nem sempre, são convergentes
em noções dicotômicas. É nesse sentido que acreditamos em possibilidades que
destituam a lógica heteronormativa e androcêntrica do binarismo que nos chamaram a
atenção Collins (2016) e Hooks (2015).

Um corpo educado em perspectiva binária– impossibilidades na linha


do horizonte e a (des)construção queer
Neste exercício, os Estudos Queer comparecem como força que nos ajuda a
problematizar as identidades, os corpos e seus efeitos na produção de redes de
significados em torno dos marcadores de gênero e sexualidade. Sobre identidades, mais
uma vez, recorremos a Michel Foucault (2014), quando, prevendo o perigo de suas
confortáveis estabilidades, salientou:

[...] o movimento homossexual precisa mais, hoje, de uma arte de viver do que uma
ciência ou de um conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é
sexualidade. A sexualidade faz parte de nossas condutas. Ela faz parte da liberdade
de que gozamos neste mundo. A sexualidade é algo que nós criamos nós mesmos –
ela e nossa própria criação, muito mais do que a descoberta de um aspecto secreto de
nosso desejo. Devemos compreender que, com nossos desejos, através deles, se
instauram novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de
criação. O sexo não é uma fatalidade: ele é uma possibilidade de chegar a uma vida
criadora. [...] Não temos que descobrir que somos homossexuais. [...] Devemos
antes criar um modo de vida gay, um torna-se gay. [...] o mundo considera que a
sexualidade constitui o segredo da vida cultural criadora: ela é mais um processo
que se inscreve na necessidade, para nós, hoje de criar uma nova vida cultural sob o
pretexto de nossas escolhas sexuais. [...] Devemos, ainda, eu penso, dar um passo a
frente. E creio que um dos fatores dessa estabilização será a criação de novas formas
de vida, de relações de amizades, na sociedade, na arte, na cultura, novas formas que
instaurarão através de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas. Devemos não
somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente como
identidade, mas como força criadora (FOUCAULT, 2014, p. 251-252).
E o que seriam esses modos de vida queer? Respostas que caminham com as
dúvidas que instabilizam certezas e produzem experiências, o modo de vida queer não
gruda nas identidades inventadas que hoje reconhecemos nos limites das existências
bichas, sapatas, giletes, gays, lésbicas, bissexuais, heterossexuais, intersexuais,
transexuais e/ou travestis. Elas produzem limites e a vida queer insiste em quebrá-las.
Um modo de vida que, como nos convida Foucault (2014), pensamos nós, se faz
acontecer na abertura para novos estilos de vida e de organização. Dizer isso não é dizer
que não precisamos de políticas de alianças produzidas pelas marcas das dororidades
cotidianas, como nos ensina Vilma Piedade (2017). Para driblar essa lógica, como
astúcia política, buscamos, nos estudos e políticas queer, modos de debochar das
verdades, como disse Spago (2018, p. 33): “ela está incessantemente em desacordo com
o normal, a norma, seja a heterossexualidade dominante ou a identidade gay/lésbica. É
categoricamente excêntrico, a-normal”. “As críticas queer à normatividade não podem
negligenciar a capacidade de os discursos e saberes dominantes se apropriarem da
subversão e de contê-la” (SPAGO, 2018, p. 46).
De acordo com Miskolci (2009), os Estudos Queer emergiram, nos Estados
Unidos, nos anos de 1980. Originários da Filosofia e Crítica Literária, eles ganharam
status após debates ocorridos nas universidades da Ivy League8. Foi a partir de uma
conferência no estado da Califórnia - EUA, em fevereiro de 1990, que Teresa de
Lauretis utilizou a expressão Queer Theory para denominar o investimento queer com
os estudos gays e lésbicos que, em termos políticos, não tardou para que denotasse uma
alternativa crítica aos movimentos assimilacionistas que centravam seus ativismos no
campo das sexualidades. Teresa Lauretis (2019) nos diz que a

[...] ideia para teoria queer era a de começar um diálogo crítico entre lésbicas e gays
sobre sexualidade e nossos respectivos históricos sexuais. Eu queria que, juntos,
quebrássemos os silêncios que tinham sido erguidos nos “estudos de gays e lésbicas”
sobre questões da sexualidade e suas relações com gênero e raça (por exemplo, o
silêncio em volta de relacionamentos inter-raciais e interétnicos). Na minha cabeça,
as palavras teoria e queer juntavam em uma expressão o objetivo político da crítica

8
Grupo de oito universidades do Nordeste dos Estados Unidos da América de maior prestígio científico
nos Estados Unidos.
social com o trabalho conceitual e especulativo envolvido na produção de discursos.
A teoria queer tinha possibilidade de desenhar outro horizonte discursivo, outra
maneira de pensar o aspecto sexual. Poderíamos, com ela, chegar a um
entendimento melhor de especificidades e parcialidades ou mesmo das nossas
respectivas histórias, assim como do que significa para nós, como grupo, algumas
dificuldades comuns [...] (LAURETIS, 2019, p. 399-400).
Sobre isso Miskolci (2009) complementa:

No que concerne aos movimentos sociais identitários, as análises queer apontam


para o fato de que eles operam a partir das representações sociais vigentes e
expressam a demanda de sujeitos por reconhecimento. Isto contrasta claramente com
a proposta teórica queer de apontar as fraturas nos sujeitos, seu caráter efêmero e
contextual, mas o papel do queer não é desqualificar os movimentos identitários,
antes apontar as armadilhas do hegemônico em que se inserem e permitir alianças
estratégicas entre os movimentos que apontem como objetivo comum a crítica e
contestação dos regimes normalizadores que criam tanto as identidades quanto sua
posição subordinada no social (MISKOLCI, 2009, p. 152).
Os Estudos Queer propõem o rompimento com a perspectiva cartesiana ou
iluminista de um sujeito unificado como a base ontológica do conhecimento. Assim,
independentemente de suas variações, eles debatem a possibilidade de entender que o
sujeito seja provisório, circunstancial e interseccionado pelas marcas que o posicionam
socialmente. Nesse sentido, sendo as redes de significados produzidas em torno dos
marcadores de diferenças, a exemplo de gênero, sexualidade e raça, dimensões desse
sujeito em trânsito, eles são entendidos como dispositivos históricos de poder.

Ainda que seja possível nomear e qualificar o sujeito e o pensamento, os Estudos


Queer se ocupam de ações engajadas e indisciplinares com os modos de ser/estar e
desejar a identidade. Devemos, assim como Foucault (2014), desejar a identidade não
como forma, mas como tática política de desestabilidade da dualidade ocidental que nos
provocou a pensar Hooks (2015). Assim, ela assume feições de procedimento, processo,
diferença e prática agnóstica que podem favorecer a amizade como modo de vida.

Se a identidade é somente um jogo, se ela é somente um procedimento para


favorecer relações, relações sociais e relações de prazer sexual que criarão novas
amizades, então, ela é útil. Mas, se a identidade se torna o problema maior da
existência sexual, se as pessoas pensam que devem desvendar sua identidade própria
e que essa identidade deve tornar-se a lei, o princípio, o código de sua existência; se
a questão que elas apresentam perpetuamente é: “Essa coisa é conforme a minha
identidade”?, então penso que elas voltarão a uma espécie de ética muito próxima
da virilidade heterossexual tradicional. Se devemos nos situar em relação à questão
da identidade, deve ser enquanto somos seres únicos. Mas as relações que devemos
manter com nós mesmos não são relações de identidade; elas devem ser relações de
diferenciação, de criação, de inovação. É muito fastidioso ser sempre o mesmo. Não
devemos excluir a identidade, se é pelo viés da identidade que as pessoas encontram
prazer, mas não devemos considerar essa identidade como uma regra universal
(FOUCAULT, 2014, p. 255).
Esses enredamentos de conhecimentos identitários que operam no campo do
discurso, nos efeitos de linguagem, na materialidade e promessa do corpo poderão nos
ajudar a colocar em circulação, como exercício político com a escrita, o que buscamos
afirmar com a educação, ou seja, o direito de expansão de vidas que não nos pertencem
e, por não nos pertencerem, só nos cabe com elas conviver e (des)aprender
continuamente. Nessa perspectiva, convocar exercícios queer, diante dos currículos
vividos no acontecimento, seria uma atenção em ato cujas normas de gênero e
sexualidade entram em colapso. Judith Butler (2013), pensamento astuto e provocativo
dos Estudos Queer, muito nos ajuda sobre as questões de gênero, quando nos provoca a
pensar que:

[...] o gênero é uma identidade tenuemente construída no tempo, instituído num


espaço externo por meio de repetição estilizada de atos. O efeito do gênero se
produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente como
forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos
constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero. Essa formulação tira
a concepção do gênero do solo de um modelo substancial da identidade, deslocando-
a para um outro que requer concebê-lo como uma temporalidade social constituída.
Significamente, se o gênero é instituído mediante atos internamente descontínuos,
então a aparência de substância é precisamente isso, uma identidade construída, uma
realização performativa em que a plateia social, incluindo os próprios atores, passa a
acreditar, exercendo-a sob a forma de uma crença. O gênero também é uma norma
que nunca pode ser completamente internalizada: o interno é uma significação de
superfície. E as normas do gênero são afinal fantasísticas, impossíveis de incorporar.
Se a base da identidade de gênero é a repetição estilizada de atos ao longo do tempo,
e não uma identidade aparentemente sem suturas, então a metáfora espacial de uma
base é deslocada e se revela como configuração estilizada, a rigor, uma
corporificação do tempo com marca de gênero. Mostrar-se-á então que o eu do
gênero permanente é estruturado por atos repetidos que buscam aproximar o ideal de
uma base substancial de identidade, mas revelador, em sua descontinuidade
ocasional, de falta de fundamento temporal e contingente dessa base. É precisamente
nas relações arbitrárias entre atos que se encontram possibilidades de transformação
do gênero, na possibilidade da incapacidade de repetir, uma deformidade, ou uma
repetição parodística que denuncie o efeito fantasístico da identidade permanente
como uma construção politicamente tênue. [...] O fato de a realidade do gênero ser
criada mediante performances sociais continuas significa que as próprias noções de
sexo essencial e de masculinidade e feminilidade verdadeiras ou permanentes
também são constituídas, como parte da estratégia que oculta o caráter performativo
do gênero e as possibilidades performativas de proliferação das configurações de
gênero fora das estruturas restritivas da dominação masculinista e da
heterossexualidade compulsória (BUTLER, 2013, p. 200-201).
Concordamos com Butler (2013) naquilo que ela diz sobre gênero. Assim como
ela, também o pensamos como repetição estilizada de nós mesmos. A ilusão de um eu
marcado pelo gênero temporal socialmente constituído como crença e que, portanto,
nunca pode ser completamente internalizada e incorporada. Ao mesmo tempo em que
concordamos com os atos performativos, também compreendemos que é de tanto se
repetir a meio do caminho que a maquinaria de gênero entra em curto-circuito na
constituição de masculinidades e feminilidades, apresentando-nos, no deboche que o
corpo ocupa, fraturas de nós mesmos. Ainda que estejamos obrigados a (re)produzir as
normas de gênero, a vigilância panóptica algumas vezes cochila e nos abre a
possibilidade de desviar o percurso heterodesignado. A possibilidade de a regulação
errar o alvo está sempre presente nas representações hegemônicas de gênero. O que
cotidianamente experimentamos é que os discursos normalizadores de gênero erram o
alvo. Se o gênero vem a nós por meio de normas que cortam nossos corpos e os tornam
inteligíveis, como nos convida Butler (2013), ele reside em nós como uma fantasia em
que somos produto e produtor.

Um corpo, plano comum da precariedade, marcado com os efeitos de gênero e


sexualidade, em ações de existir e expandir que não capitaliza, não se cria sozinho. Sua
ação é limitada e condicionada com o seu tempo e depende da infraestrutura, das redes
de apoio, de políticas para existir e co-existir. Em uma das aulas, em que um dos autores
se colocava em conversas curriculares sobre vulnerabilidade, precariedade da vida e
plano comum do vivo, pôde-se ouvir de uma estudante:

Professor, o Senhor sabe que sou um homem trans. Sempre fui um menino. Fico
ainda muito assustado em ver que nossas Universidades não estão preparadas para o
acolhimento de outros corpos e subjetividades não conforme com o cisheterosistema
e na lógica da identidade normativa para o corpo, o desejo e o prazer. Os discursos
de inclusão aqui são maravilhosos. Nos mostram nas aulas a história de luta pela
inclusão da deficiência. Das lutas e conquistas das mulheres na educação e nos
avanços e conquista do povo negro. Nos ensinam sobre escolas democráticas e do
direito à igualdade e à diferença. Agora veja bem, não vivo a Universidade
intensamente. Fica me parecendo ainda que a inclusão é um debate que aqui se faz
para os outros, os estudantes da Educação Básica. Ainda me assusta professor ver as
plaquinhas nos banheiros nos informando sobre banheiros referendando homens e
mulheres ou o gênero masculino e feminino. Atrevidamente entro nos banheiros de
homens e para o gênero masculino. Entro, sabendo que de lá poderei não sair. Sou
um homem trans, logo estou autorizado a entrar no banheiro de homens e me
reconheço no gênero masculino. Mas, a história não é bem assim. Entro nesses
banheiros sem uma política de existência na universidade. Já não me é suficiente a
política do nome social e do reconhecimento de meu gênero na certidão de
nascimentos e em outros documentos. Ainda que gozando destes direitos e deles não
abrindo mão, pois reconheço a luta das pessoas trans e travestis, sei que nada disso
garante dignidade para meu corpo. Quando vou ao banheiro aqui da Universidade,
sinto olhos sexistas e transfóbicos me vigiando. Penso que não tenho a
passabilidade9 necessária para o trânsito neste espaço. Sou sempre promessa e
assombro. Tenho medo. Me acompanhe ao banheiro, professor. Quero que veja o
que eu sinto. Veja, professor, sou um homem com vagina e faço xixi sentado. Não é
todo banheiro que chego que tem portas nos reservados. Todas as vezes que chego
no banheiro e vejo a ausência de portas fico me perguntando o que os arquitetos,
engenheiros e sanitaristas pensam sobre os corpos que usam banheiros. Fico me
perguntando por que o corpo do homem e seu pênis precisam ser expostos. É o pênis
que lhes garantem existências. Engenheiros, arquitetos e sanitaristas deveriam saber
das subjetividades e identidades que não se conformar ao destino que deram aos
nossos corpos. (Fragmentos de sala aula – narrativas de um estudante)

9
A passividade traduz como uma pessoa trans pode ser inteligível às performatividades de gênero no
nosso universo normalizado ocidental. "Passar" é o mesmo que ser reconhecido na vida cotidiana como
alguém que está de acordo com as normas. Passar, para algumas pessoas trans, é um aspecto fundamental,
seja à prevenção da violência ou para a satisfação pessoal.
O estudante, acionando saberes de experiência feitos, ressoa através de uma
maquinaria que faz o corpo, gênero e sexualidade nos apresentarem incoerências. Em
sua narrativa, não reivindica nada, apenas coloca em cena a precariedade da vida e de
um corpo fora da forma heterocentrada, como nos diz Judith Butler (2018) sobre os atos
performativos de gênero. A autora nos oferece o seguinte argumento:

[...] reconhecer um gênero muitas vezes envolve reconhecer uma determinada


conformidade corporal com uma norma, e as normas são até certo ponto compostas
de ideais que nunca são completamente vivíveis. Então ao reconhecer um gênero,
uma pessoa reconhece a trajetória de um determinado esforço para viver um ideal
regulado, um ideal cuja corporificação completa sem dúvida sacrificaria alguma
dimensão da vida criatural. Se qualquer um de nós se torna um ideal normativo de
uma vez por todas, isso significa que superamos um esforço, todas as
inconsistências, todas as complexidades, isto é, perdemos alguma dimensão crucial
do que é estar vivo. O gênero hipernormativo pode chutar algumas criaturas vivas
para escanteio. Mas algumas vezes é o hiper que funciona com e contra esta falha
constitutiva com deliberação, tenacidade e prazer, com um sentido de retidão; ele
pode ser um caminho para criar novos modos de vida transgêneros dignos de serem
apoiados (BUTLER, 2018, p. 47).
Essa necessidade ilimitada de nomeação também se inscreve em resposta aos
limites impostos pela Modernidade às suas sexualidades e ao empobrecimento da
heterossexualidade como status de referência. Esse emaranhado de formas influencia
nos modos como nos percebemos, nos articulamos e nos narramos em nossas redes de
sociabilidades. Com infinitas possibilidades e estilos de vida, o locus heterossexual, por
sua fragilidade, se constituiu como um corpo que o torna discursivamente rígido. A
dissidência se constitui, mais profundamente, como uma declaração de guerra ao
esquema essencialista que marcou o Ocidente: o Ser, o Deus, a Família e o Estado.
Queiramos ou não, a ontologia é o ponto de partida dessas táticas políticas da
dissidência. A dissidência é o avatar dos Estudos Queer nas narrativas curriculares. A
experiência que segue nos ajuda a refletir sobre isso:

Estava tudo bem em minha casa. Eu, minha filha, minha mãe e meu pai. Minha
namorada frequenta minha casa. Tudo bem até aí. Em minha casa, toda forma de
amor é legitima e deve ser respeitada. As coisas nunca compareceram nos processos
educativos de minha casa, como um ponto da agenda dos afetos e desejos. Estas
questões foram comparecendo e foram tomando forma do acolhimento familiar.
Minha filha desde sempre soube que vivo um relacionamento lésbico. Lésbico
porque esta classificação diz dos afetos entre duas mulheres. Não precisava ter este
nome, nem outro nome, nem nome. Para que serve esses nomes que nos classificam
e hierarquizam nossas vidas. Serve apenas para dizer que somos menos, imperfeitos
e monstruosos. A régua que nos medem, nos mede a partir de seu sistema métrico de
privilégios da heterossexualidade tradicional. Nem me lembro que sou lésbica.
Minha filha tem apenas cinco anos de idade. Você sabe, né, as crianças pequenas
não são preconceituosas, elas lidam muito bem com o mundo e com as pessoas em
suas singularidades. Nunca foi uma questão para minha filha a presença de um
homem para que pudesse chamar de pai. Até que um certo dia, na escola, numa
atividade aparentemente trivial, o problema da ausência do pai passa a existir. A
professora, cheia das boas intenções pedagógicas, pede às crianças que desenhem
suas famílias e que falem sobre elas. Minha filha então nos desenhou. Lá estava eu,
minha namorada e meus pais. Minha filha no centro e os adultos de seu ciclo
familiar à sua volta. Simples assim! Na hora que minha filha foi falar para a
professora e para as crianças sobre seu desenho, a presença de minha namorada
ganhou destaque na conversa entre as crianças. Algumas crianças, educadas de
outras maneiras e vivendo outras experiências de família, achavam que minha filha
havia cometido um erro sobre a presença de minha namorada e buscavam corrigir
minha filha dizendo que mulher namora com homem. E ela, dizia, sem nenhum
constrangimento: “minha mãe é mulher e namora mulher, minha avó é mulher e
namora meu avô que é homem e eu sou criança e não namoro”. A professora, atenta
ao que se passava como acontecimento, diante um currículo que não se controla,
porque vivido por sujeitos encarnados, observava as problematizações das crianças.
Segundo relatou a professora quando fui buscar minha filha, a questão sobre o
namoro entre iguais a fez pensar sobre tudo o que ela não havia pensado sobre
outras configurações familiares. Afinal, ela nem sabia que eu vivia um romance
lésbico. Hoje, já sei. Quando eu chegar numa escola nova, já vou logo avisar à
escola que namoro com mulheres. A escola, penso eu a partir de minha experiência,
precisa saber. Mas saber, não para criar um programa de acolhimento de pais, mães
dissidentes. Mas para desenvolver uma atenção ao direito à diferença. Diante
daquele fato, a professora da escola, juntamente com toda equipe pedagógica e sob
minha autorização e também orientação, convidou os pais e mães para pautarmos, na
prática pedagógica da escola, outras formas de famílias e afetos. Para surpresa, os
pais e mães, aceitaram o tema como componente curricular e, naquela reunião,
descobrimos que outras pais e mães viviam relacionamentos homoafetivos. Não
estava sozinha. A multiplicidade de afetos apareceu na escola. A escola soube de
nós. Passamos a existir na escola e no currículo escolar. Fico preocupada com minha
filha e com outras crianças que não vivem suas vidas em família heterocentradas!
Espero que ela possa ter, ao longo de seu processo formativo, professores sensíveis e
escolas acolhedoras. Mas... quando isso não acontecer... lá estarei de corpo inteiro
como mãe, educadora, mulher. E, se preciso for, como lésbica. (Fragmentos de sala
aula – narrativas de um estudante)
O debate sobre a categoria “família” vem substancialmente ocupando espaço na
definição política de cidadania no Brasil. De um lado, existem setores que exigem a
consanguinidade como linha determinante da aliança parental e, de outro, movimentos
sociais que defendem a necessidade de considerar o entendimento das pessoas sobre
seus arranjos, ampliando-a para além da consanguinidade e/ou do sistema legal que a
rege. Contudo, independente das posições, a concepção subjetiva que circula nas escolas
sobre os arranjos familiares está baseada nos inúmeros discursos que transitam nas
pedagogias culturais, a exemplo das linguagens midiáticas, religiosas, redes sociais,
cinematográficas, televisivas ou curriculares, para citar apenas alguns recursos, torna-se
particularmente central aos subsídios individuais à construção de verdades sobre a
família.

Ressalte-se que, no momento da realização da tarefa, a concepção de família que


circulou nas práticas curriculares da escola ainda utilizava o modelo hegemônico. Desse
modo, argumenta-se que os Estudos queer podem colaborar, através de suas práticas,
para a desnaturalização e desconstrução de conceitos, de discursos e de valores pautados
na hegemonia heteronormativa, androcêntrica e misógina.
Tomamos os Estudos Queer para problematizar e questionar os sentidos de
verdade que circundam a normatividade. Entendemos que eles recusam a naturalidade
das coisas e a normalidade da heteronorma (MOITA LOPES, 2008). Ao problematizar e
interrogar as verdades normatizadoras da sexualidade, gênero, raça e classe social, os
Estudos Queer nos oferecem uma alternativa de compreensão dos desafios
desestabilizadores das narrativas curriculares que fazem circular na sala de aula aquilo
que Guacira Louro (2004) nos diz como sendo:
[...] uma pedagogia e um currículo queer se distinguiriam de programas
multiculturais bem-intencionados, em que as diferenças (de gênero, sexuais ou
étnicas) são toleradas ou são apreciadas como curiosidades exóticas. Uma pedagogia
e um currículo queer estariam voltados para o processo de produção das diferenças e
trabalhariam, centralmente, com a instabilidade e a precariedade de todas as
identidades. Ao colocarem em discussão as formas como o outro é construído,
levariam a questionar as estreitas relações do eu com o outro. A diferença deixaria
de estar lá fora, do outro lado, alheia ao sujeito, e seria compreendida como
indispensável para existência do próprio sujeito: ela estaria dentro: fazendo sentido,
assombrando e desestabilizando o sujeito. Ao se dirigir para os processos que
produzem as diferenças, o currículo passaria a exigir que se prestasse atenção ao
jogo político aí implicado: em vez de meramente contemplar uma sociedade plural,
seria imprescindível dar-se conta das disputas, das negociações e dos conflitos
constitutivos das posições que os sujeitos ocupam (LOURO, 2004, p. 48-49).
Ao questionarmos os cotidianos, somos conduzidos a estranhar os saberes que
neles circulam. Esse movimento nos exige a curiosidade e a capacidade de experimentar
com os outros e outras e com os demais que vivem e/ou estão na escola. Ao
consideramos a perspectiva com que é pensada a queerização do currículo, esta não se
limita a propor, no currículo, informações sobre a sexualidade. Isso historicamente vem
sendo feito, se consideramos os conteúdos binários que reiteram a heterossexualidade
normativa ou normalidade da homossexualidade. A queerização das narrativas
curriculares se propõe a questionar os processos institucionais e discursivos com as suas
estruturas de significação que definem as expectativas sociais e determinam as posições
dos sujeitos nos cotidianos das existências. A queerização das narrativas curriculares
abre a discussão do que consideramos imutável. As críticas dos Estudos Queer aos
modelos binários inspiram batalhas contra os modelos epistemológicos modernos que
governam na área da educação. Nesse sentido,

[...] uma pedagogia e um currículo conectados à teoria queer teriam de fazer mais
do que incluir temas ou conteúdos queer; ou mais do que se preocupar em construir
um ensino para sujeitos queer. [...] Tal pedagogia não pode ser reconhecida como
uma pedagogia do oprimido, como libertadora ou libertária. Ela escapa dos
enquadramentos. Evita operar com os dualismos, que acabam por manter a lógica da
subordinação. Contrapõe-se, seguramente, à segregação e ao segredo
experimentados pelos sujeitos diferentes, mas não propõe atividades para seu
fortalecimento nem prescreve ações corretivas para aqueles que os hostilizam
(LOURO, 2004, p. 52).
O convite à reviravolta epistemológica proporcionada pelos Estudos Queer que
nos foi enviado por Tadeu Tomaz da Silva e Guacira Lopes Louro ultrapassa os limites
em torno do debate das sexualidades. Ele perturba as convencionalidades do pensar e
conhecer porque é fundamentalmente subversivo e provocador à norma, desloca e
descentra o sujeito do conhecimento canonizado nas narrativas curriculares
enquadradas.

Ao criticar os dualismos, a queerização do currículo ou currículo queer mantém


a lógica da insubordinação como tática de ocupação da escola. Antes, a pretensão de ser
a resposta apaziguadora aos conflitos que emergem com as performatividades abjetas e
monstruosas que perturbam os currículos, a queerização quer desmantelar o regime e a
lógica que justificam e fixam as posições reconhecidas. Ao ignorar como tática o
conhecimento certo como resposta ao conflito, os currículos queer alocam o
conhecimento como uma questão interminável.

Para não concluir, não gostamos de nada fechar


Propusemo-nos, neste artigo, problematizar as relações que se estabelecem nas
redes de saberes que incidem na formação docente e nos discursos que têm lugar nos
momentos de (des)aprendizagens que marcam as performatividades docentes e
discentes e tensionam os currículos que pretendem ser descritivos, identitários e
normativos na constituição de saberes entre sujeitos-corpos da educação. Conversamos
e apostamos no espaço escolar e nos currículos pós-estruturalistas para repensar os
modos de educar e conformar nossos atos pedagógicos que nos constituem, no sentido
de construir diversas maneiras de operar para uma pretendida equidade.

Trouxemos o termo queer para falarmos do direito e da diferença nos


currículos, atentos para subverter e estranhar a normatividade denotando um currículo
em um processo contínuo e modificável com/e a partir dos sujeitos e linguagens que os
constituem. Mas esses mesmos currículos podem, simultaneamente, se tornar
normativos, identitários e performáticos fixando corpos, gêneros e sexualidades que as
conformam, operando com um discurso de poder institucional, heteronormativo e
conservador.

Nessa visão conservadora, o discurso da verdade e a certeza colocam-se como


legitimados e cristalizados enrijecendo a possibilidade de operar a diferença, a liberdade
e a experiência sendo, não possibilidades de vivência e de aprendizagens, mas formas
estaques de apropriação cultural na qual formas de sexualidade não terão
espaços/condições de possibilidades. Assim, é preciso destacar as possibilidades de o
currículo ter uma outra forma de existência, operando com referências que nos
permitam repensar uma pedagogia que inclua diversas subjetividades, inclusive pensar
na potencialidade pedagógica da sexualidade como curiosidade pela experiência,
compreensão dos outros sentidos/significados e nas práticas que podem configurar
novos estilos curriculares.

A queerização do currículo sugere a desnaturalização, o questionamento e a


dúvida como táticas criativas para pensar a existência. O currículo, nesse aspecto, se faz
assumidamente orgânico, ao oferecer a oportunidade de investigar os dramas, as tramas,
as paixões e as necessidades da vida cotidiana e de seus conhecimentos. Nesse contexto
político em que o verbo pensar está cada vez mais vazio de ação e de redes de
significados, favorecido pela intensa proliferação de discursos salvacionistas, talvez seja
necessário, primordialmente, determo-nos na dimensão pedagógica do que significa
pensar para nós. Ao fim, não seria nas vidas criativas que vale a pena viver?

Procuramos operar com um novo viés político do currículo como narrativa,


texto, campo de disputa e negociações produzindo múltiplos acontecimentos nas tramas
das práticas educativas para pensar uma escola/um currículo endereçado que permita
identificar as táticas de promoção de práticas curriculares universais. Nesse sentido,
ouvimos as narrativas de vivências escolares das margens, invisíveis, que permitam
identificar as estratégias dos discursos e os mecanismos da exclusão das práticas
pedagógicas permeadas por dominações/saberes hegemônicos, destacando nessa
negociação: o deboche, as interpelações, as intervenções, o controle, os insultos, o
autogoverno, os olhares, o enquadramento e as perversidades da norma dicotômica
heterossexual.

Para pensarmos em quais vidas criativas vale a pena viver, promovemos um


currículo permeável a uma lógica não binária, problematizando os discursos verdadeiros
e absolutos sobre identidades sexuais e de gênero. Mas como podemos observar isso nas
nossas práticas curriculares cotidianas? Tentamos responder a isso operando com uma
lógica decolonial e debochando das verdades universais através de dois exercícios: a
preocupação da historiografia queer, na qual se pretendia um diálogo crítico entre
lésbicas e gays sobre sexualidade, sem desqualificar os movimentos identitários, mas
cientes das armadilhas do pensamento hegemônico, cartesiano e iluminista e
discorrendo sobre as identidades como tática política de desestabilidade da dualística
ocidental.

E, em um segundo exercício, ouvindo narrativas subalternas para discernir os


procedimentos, processos e práticas agnósticas que promovam amizades e alianças
como modo de vida. Trazemos, com esse objetivo, a narrativa possível das
maternidades lésbicas como formas de expansão da vida e das práticas pedagógicas que
constituem nosso possível (sim!) currículo escolar, que tenha espaços para o
acontecimento, para outras maneiras de educação e de organização de viver perante um
currículo que não controlamos totalmente (pois não pretendemos), mas que seja
flexível, aprendendo sobre a forma como uma criança vivencia o mundo: aberta à
exploração, curiosa ao novo conhecimento e lidando com as pessoas nas suas
singularidades.

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