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Ileana Wenetz3
Marcio Caetano4
Este artigo, escrita compartilhada por afetos e implicações entres pessoas que
ousam produzir a partir de suas singularidades, se apresenta como uma oportunidade
para pensar e problematizar as relações que se estabelecem nas redes de saberes que
incidem na formação docente e nos discursos que se fazem acontecer nos exercícios de
(des)aprendizagem que marcam as performatividades docentes e discentes e tensionam
os cânones curriculares que se buscam prescritivos, identitários e normativos na
con(form)ação de saberes e sujeitos-corpos da educação. Nesse exercício, buscamos nos
valer de paisagens curriculares como acontecimentos em salas de aulas, tomando-as
como experiências comuns, que nos permitem, em atos, (des)tecer alguns discursos-
forma-currículo que buscam imprimir formas normativas aos corpos e suas
performatividades. Bultler (2018) chama nossa atenção para o fato de que:
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Este artigo foi publicado no Livro “Qeer(i)zando currículos e educação: narrativas do encontro, pela
Editora Devires, 2020, sob minha organização de Marcio Caetano e de Maria da Conceição Silva Soares.
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Pós-doutor em Psicologia. Doutor em Educação. Professor Associado I do Centro de Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo na disciplina: Currículo e Formação docente. Professor
Permanente no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI/UFES). Coordenador
do Grupo de Estudo e Pesquisas em Sexualidades (GEPSs/UFES) e do Núcleo de Pesquisa em
Sexualidade (NEPS/UFES). Interesses de pesquisa: Produção de subjetividade, infâncias (des)viadas,
gênero, sexualidade e processos formativos de professores e trabalhadores culturais
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Pós-doutora no Programa Interdisciplinar de Ciências Humanas da UFSC. Professora Adjunta do
Departamento Ginástica do Centro de Educação Física e Deportes da Universidade Federal de Espírito
Santo (UFES). Professora da Pós-Graduação em Psicologia Institucional (UFES). Participante do
Laboratório de Estudos em Educação Física (LESEF) da UFES e participante do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Sexualidade (GEPSS). Tem experiência na área de Educação Física escolar, Estudos
antropológicos na Educação Física, Estudos Culturais e Gênero. Metodologia do Ensino. Atuando nos
seguintes temas: corpo, gênero, lazer, crianças e brincadeiras.
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Pós-doutor, com apoio do PNPD/CAPES, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), líder do Grupo de Pesquisa Políticas do Corpo e
Diferenças- POC’s- e coordenador do Centro de Memória LGBTI João Antônio Mascarenhas
(UFPel/UFES). Docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) onde também orienta investigações
desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Educação. Os seus temas de interesse e pesquisa são:
1. currículos e culturas; 2. masculinidade(s) e 3. população LGBT e 4. estudos decoloniais e subalternos.
Não podemos falar sobre um corpo sem saber o que sustenta esse corpo, e qual pode
ser a sua relação com esse apoio – ou falta de apoio. Desse modo, o corpo é menos
uma entidade do que um conjunto vivo de relações; o corpo não pode ser dissociado
das condições ambientais de infraestrutura da sua vida e da sua ação. Sua ação é
sempre uma ação condicionada, que é sentido do caráter histórico do corpo, além
disso, humanos e outras criaturas dependem do apoio da infraestrutura, de maneira
que isso expõe uma vulnerabilidade específica que temos quando ficamos sem
apoio, quando as condições de infraestrutura começa a se decompor, ou quando nos
encontramos radicalmente sem apoio em condições de precariedade (BUTLER,
2018, p. 72).
Na condição de andarilhos sem destinos, tateando corpus, perseguimos rastros e
marcas queer nos currículos como narrativas que nos ajudem a continuar nossa
caminhada com a proposição de (nos) fazer problemas com as questões que aqui
comparecem como desafio de pensamento e afecções com vidas que se (re)fazem em
suas infinitas singularidades. Revisitando-nos, retomamos artigos e livros que têm nos
inspirado para continuar a nos fazer problemas com estas vidas, as nossas, presenças
insubmissas e monstruosas na escola e na universidade. O texto busca, em duas seções,
se organizar e tecer, em redes, as aproximações com os estudos aos quais se filia,
afirmando, com isso, que também somos tramados e nos tramamos com esses discursos.
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Juntar palavras tem sido uma estratégia usada pelos Estudos com os Cotidianos como possiblidade de
ampliar sentidos e significados.
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Temos por objetivo aqui traçar autorias e pensamentos que nos ajudam a melhor dizer sobre as questões
que atravessam este artigo. Por isso, avisamos aos/às leitores/as que estrategicamente estamos fazendo
uso de longas citações com o objetivo de qualificar aqueles/as que nos oferecem chão para a nossa
caminhada. Com isso, acreditamos que estamos oferecendo pistas de leitura e interpretações para
ampliação desse estudo e do campo.
identidade: uma introdução às teorias de currículo” que as questões pós-estruturalistas e
os Estudos Queer apresentaram o direito à diferença nos discursos curriculares e, por
sua vez, como preocupação na formação docente. Nas incursões feitas com o
pensamento de Tomaz Tadeu da Silva, seguimos firmes apostando na força dos
currículos com atenção às práticas que nos permitem desconstruir, desconfiar, estranhar
e subverter suas normatividades. Esse autor, no livro anunciado, oferece-nos potentes
argumentos que ajudam a melhor compreender a força das questões queer com os
currículos. E diz:
[...] o termo queer funciona como uma declaração política de que o objetivo da
teoria queer é o de complicar a questão da identidade sexual e, indiretamente,
também a questão da identidade cultural e social. Através da estranheza, quer se
perturbar a tranquilidade da normalidade. [...] O queer se torna, assim, uma atitude
epistemológica que não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas
que se estende para o conhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer
significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas bem-comportadas de
conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é, nesse sentido, perversa,
subversiva, impertinente, irreverente, profana e desrespeitosa. [...] Tal como a teoria
queer, a pedagogia queer não se limitaria a introduzir questões de sexualidade no
currículo ou reivindicar que o currículo inclua materiais que combatam as atitudes
homofóbicas. É claro que uma pedagogia queer estimulará que a questão da
sexualidade seja seriamente tratada no currículo como uma questão legitima de
conhecimento e identidades. [...] A pedagogia queer não objetiva simplesmente
incluir no currículo informações corretas sobre a sexualidade; ela quer questionar os
processos institucionais e discursivos, as estruturas de significação que definem,
antes de mais nada, o que é correto e o que é incorreto, o que é moral e o que é
imoral, o que é normal e o que é anormal.[...] Um currículo inspirado na teoria queer
é um currículo que força os limites das epistemes dominantes: um currículo que não
se limita a questionar o conhecimento como socialmente construído, mas que se
aventura a explorar aquilo que ainda não foi construído. A teoria queer – esta coisa
estranha – é a diferença que pode fazer diferença no currículo (SILVA, 2015, p. 105-
109).
Com esse fragmento, de antemão, já vamos sendo avisados que os Estudos
Queer buscam fazer críticas e problemas à norma e à normatividade, venha ela de onde
vier, incluindo nisso as confortáveis identidades sexuais, sociais e, portanto, culturais.
Como força criadora, currículos formam paisagens como dunas. Fazendo-se e se
desfazendo em nossa presença, com a força do vento e daquelas pessoas que não se
conformam e gritam, driblam, debocham, produzem suas leituras e táticas, como bem
nos ensinou Certeau (1994), das ordens e normas que lhes são recomendadas e/ou
impostas. Estamos aqui para assombrar, diriam esses corpos rebeldes que
cotidianamente produzem performatividades de gênero estranhas ao lugar comum na
norma.
[...] quando tentamos mapear a geografia do sexo [...] ou quando tentamos ler a
sexualidade através de uma teoria favorita, um manual de instrução ou de acordo
com as visões dos chamados especialistas. Quando inserida no currículo escolar ou
na sala de aula universitária – quando digamos, a educação, a sociologia, a
antropologia colocam sua mão na sexualidade- a linguagem do sexo torna-se uma
linguagem na sexualidade – a linguagem do sexo torna-se uma linguagem didática,
explicativa e, portanto, dessexuada. Mais ainda: quando o tópico do sexo é colocado
no currículo, nós dificilmente podemos separar seus objetivos e fantasias das
considerações históricas de ansiedades, perigos e discursos predatórios que parecem
catalogar certos tipos de sexo como inteligíveis, enquanto outros tipos são relegados
ao domínio do impensável e do moralmente repreensível (BRIZTMAN, 2001, p.
90).
Com a presença queer, as narrativas hegemônicas e as formas-curriculares são
colocadas em suspensão, sobretudo, os modos de fabricação, classificação,
hierarquização e privilégios de identidades e conhecimentos. Ainda que, para os
Estudos Queer, as questões da sexualidade não deveriam ser curricularizadas nos
manuais da (boa) pedagogia e das perspectivas multiculturais liberais de
reconhecimento da diversidade, não significa que a sexualidade não mereça tratamento
responsivo e em espaços de práticas curriculares.
Nas possibilidades produtivas do poder e da resistência é que surgem outros
estilos de vida, invenções e subversões performativas. A potência criativa da
experiência preconizada pelas sexualidades é força capaz de gerar situações
irreversíveis aos discursos normatizadores e prescritivos da educação. Como nos
ensinou Weeks (1998), a sexualidade, na contemporaneidade, fala muitas linguagens,
dirige-se a muitos tipos de pessoas e oferece uma verdadeira cacofonia de distintos
valores e possibilidades de estar no e com o mundo.
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só
funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de
alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em
rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição
de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica
aos indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 2006, p. 183).
Imprimindo desde aqui a concepção de currículo e poder com as quais nos
filiamos, seguimos nossas intenções de escrita. A escrita endereçada, sobre o que temos
feito de nós, nas relações que estabelecemos com as narrativas curriculares vividas em
espaços-tempos educativos, faz funcionar exercícios de pensamento que nos deslocam
em andanças implicadas a favor das práticas curriculares queer, em ato, com vidas
demasiadamente reais que nos oportunizam encontros potentes com (des)aprendizagens
entre corpo, gênero e o dispositivo da sexualidade que se constitui como uma
engrenagem de extrema importância para a compreensão do desejo de norma através do
dispositivo-curricular. Em uma entrevista de Foucault, de 1977, melhor podemos
compreender a concepção estratégica do dispositivo da sexualidade. Em suas palavras:
Para mim não tem nada de novo, o desejo e a publicização dos adeptos da
famigerada cura gay. Passei por esta tentativa de correção ainda muito jovem. Nunca
me senti doente. Logo não entendo este papo de reorientação da sexualidade. Tinha
11 anos de idade, o ano era 1981. Iniciava meus estudos na quinta série do colegial
numa escola católica e bem tradicional de minha região. Meu pai estudara naquela
escola. Para ele, estudar naquela escola era motivo de honra e de distinção.
Acordava muito cedo para fazer a pequena viagem diária. Todos os dias, antes da
sirene tocar, avisando que já era hora de formar a fila, lá já estava eu. De prontidão!
Corpo soldado, esperando a reza do dia e a cantoria do hino nacional, para em
seguida, quase que marchando, adentrar a sala de aula e esperar a autorização do
professor para que pudéssemos nos sentar em nossas carteiras fixadas, parafusadas
ao chão. Naquela época duplas se dividiam em uma mesma carteira. Foi ali, naquela
carteira parafusada ao chão, que, pela primeira vez, coloquei minhas mãos nervosas
no peruzinho de meu primeiro namoradinho. Este segredo de criança, eu levo
comigo para o túmulo. Escola nova, colegas novos, professores e professoras novos.
Lá estava eu, em silêncio, de cabeça baixa, fazendo de tudo para não ser visto na
escola e pela escola. De cabeça baixa, olhando para o chão, de poucas palavras e
sorriso curto, procurava chegar e sair da escola sem ser visto. Observava tudo e a
todos! Em minhas observações tateava a escola e as crianças. Sabia também que era
observado. Olhos pontudos a todo instante a mim. Eles faziam questão de me dizer
sem palavras que algo estava errado. Flechas saíam dos olhos das crianças e de
professores da escola. Aqueles olhares que me liam, eram aterrorizantes. Desviava-
me de tudo e de todos. Não queria ter problemas na escola. Mas, sabia sem saber
que eu era o problema da escola. Sabia que até o fim da oitava série ali estudaria.
Em poucos dias consegui mapear com quem poderia fazer amizade na escola.
Algumas meninas da minha sala estavam mais abertas a novas amizades e afetos.
Não sei explicar, mas parecia que entre eu e as meninas, as alianças afetivas
aconteciam. Quanto aos meninos?!?! Eu tinha dúvidas. Em minhas observações
logo catei que seria perigoso me aproximar de um grupo de meninos da sétima série.
A sétima série da escola era famosa em algazarras e pela falta de respeito com as
crianças mais novas e com os professores. Tinha um garoto, desses marrentos,
desses que fazendo graça e produzindo risada, faz a vida de alguns virar um inferno.
Tinha receio desse menino! Um certo dia, entre a reza e o hino nacional, fui
empurrado para a fila das meninas. Antes mesmo que pudesse voltar para a fila dos
meninos da quinta-série, ouvi o primeiro grito da bocarra do garoto monstruoso da
sétima série: “mulheeeeeeeeeeerzinha!”, “Olhem a mulherzinha da quinta-série”
−ouvi o segundo grito. Em um coro, meninos e meninas, gritavam juntos:
“Mulherzinha! Mulherzinha! Mulherzinha! Meu armário foi escancarado pela
timidez. De garoto tímido, fui visto pelos meninos e meninas da escola como
mulherzinha. Não me aguentei, comecei a chorar. A professora responsável pela
organização da fila apenas me disse: “Engole o choro, garoto. Menino não chora!”.
Em soluço, voltei para a fila dos meninos da quinta-série. A mulherzinha da escola
que acabara de nascer para aqueles meninos e meninas, gradativamente, foi
desaparecendo e um outro menino (fe)menino, aparecia. Os problemas de
relacionamento na escola foram crescendo. Fui me tornando uma criança que
aprendeu a bater e a falar palavrões. Ainda que apendendo a me defender da injúria
e dos atos violentos daquelas crianças, não recebia o passaporte de entrada no clube
dos meninos. Bater e xingar não era suficiente. Não conseguia decifrar os códigos
daqueles meninos e nem muito menos imprimi-los em meu corpo. Aqueles meninos
tinham a capacidade de alterar os códigos de gênero e de masculinidades todas as
vezes que deles me aproximava. Me parecia ser um ideal inalcançável para mim,
ainda que me esforçasse todos os dias. Parecia que meu corpo se negava àquelas
aprendizagens. Não deu outra, em pouco tempo, lá estavam meus pais sob
orientação da escola me levando à psicóloga. Fiquei, da quinta série a oitava série,
sendo levado aos serviços de psicologia e à igreja. Um mix de saberes da psicologia
e da igreja colavam em meu corpo. O pecado sobre o que eu não sabia me rondava.
Me castigava e era castigado todos os dias na escola sob os olhares que educam. As
torturas só acabaram quando fui para o Ensino Médio e fui estudar na capital. Hoje,
passando quase quarenta anos, compreendo que aquela atenção buscava me fazer
heterossexual e ou homossexual de um certo tipo. Homossexual desses bem aos
modos familiares. Gostava de ir à psicóloga. Sua presença me ajudava a enfrentar
meus medos e a me fortalecer como pessoa. Ela driblava meus pais e me ajudava a
sofrer menos com este mundo perverso. De vez em quando, ouvia de meus pais que
a psicóloga era fraca e que, por falta de profissionais da área na cidade, me
manteriam sobre sua atenção. Aqui, com meus quase cinquenta anos de idade,
distante daquele (fe)menino, compreendo que na escola não aprendemos somente os
conteúdos escolares. Alguns conteúdos da escola, como o de ser menino de um certo
tipo, são mais fortes que os conteúdos de português, matemática, geografia, história,
educação física. (Fragmentos de sala aula – narrativas de um estudante).
Ao pensar nas interpelações que a narrativa nos provoca e estabelecendo com ela
pactos de dororidades7, sentimos que os corpos já nascem conspurcados pela cultura. Já
se originam “cirurgiados” pelas tecnologias discursivas curriculares precisas que irão
orientar e validar as formas adequadas e impróprias das performatividades de gênero,
conforme nos convidou a pensar Berenice Bento (2006). Na lógica imperativa da
normalidade curricular, a criação performativa de nossos corpos dependerá de
complexas redes de regulação e de astúcias. Não existe corpo performativo livre de
intervenções heteronomativas.
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Entendemos que todo conceito carrega um mundo de significados e significantes. Ele não é estático e
pressupõe redes de reflexão, críticas coletivas, discursos em disputa, significados culturais e
ressignificações individuais pelos usos de seus praticantes. Logo, o conceito não é algo acabado, pronto,
imutável e descolado do seu espaçotempo. Ele é fundamentalmente circular. Segundo Vilma Piedade
(2017), “dororidade quer falar das sombras. Da fala silenciada, dentro e fora de nós”. Originada com o
feminismo negro para refletir as alianças entre mulheres negras que vivenciam a intersecção de opressões,
“dororidade” nos convida a pensar as alianças, sentidos e táticas coletivas produzidas com as experiências
opressivas.
superioridade e inferioridade, relações hierárquicas que se enredam com economias
políticas de dominação e subordinação” (COLLINS, 2016, p. 107-108) presentes nas
pedagogias que buscam naturalizar a existência inteligível do gênero que tatua o corpo
naquilo que Butler (2018) nos diz:
[...] em primeiro lugar e acima de tudo, dizer que o gênero é performativo é dizer
que ele é um certo tipo de representação; o aparecimento do gênero é
frequentemente confundido com um sinal de sua verdade interna ou inerente; o
gênero é induzido por normas obrigatórias que exigem que nos tornemos um gênero
ou outro (geralmente dentro de um enquadramento estritamente binário); a
reprodução de gênero é, portanto, sempre uma negociação com o poder; e por fim,
não existe gênero sem essa reprodução das normas que no curso das suas repetidas
representações corre o risco de desfazer ou refazer as normas de maneiras
inesperadas, abrindo a possibilidade de reconstruir a realidade de gênero de acordo
com novas orientações (BUTLER, 2018, p. 72).
As considerações de Butler nos levam a pensar que inúmeras pedagogias
ensinam aos sujeitos, ao longo de sua trajetória, por meio das mais diversas instituições
e interações, a se constituírem ainda dicotomicamente. Contudo, ainda com a autora,
somos levados a refletir que essas etapas formativas não são sequenciais, contínuas ou
iguais e, de modo algum, determinantes. Pensamos que isso decorra do fato de que os
campos culturais e históricos que conformam os sujeitos são implicados de conflitos,
interesses e capazes de produzir múltiplos sentidos que, nem sempre, são convergentes
em noções dicotômicas. É nesse sentido que acreditamos em possibilidades que
destituam a lógica heteronormativa e androcêntrica do binarismo que nos chamaram a
atenção Collins (2016) e Hooks (2015).
[...] o movimento homossexual precisa mais, hoje, de uma arte de viver do que uma
ciência ou de um conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é
sexualidade. A sexualidade faz parte de nossas condutas. Ela faz parte da liberdade
de que gozamos neste mundo. A sexualidade é algo que nós criamos nós mesmos –
ela e nossa própria criação, muito mais do que a descoberta de um aspecto secreto de
nosso desejo. Devemos compreender que, com nossos desejos, através deles, se
instauram novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de
criação. O sexo não é uma fatalidade: ele é uma possibilidade de chegar a uma vida
criadora. [...] Não temos que descobrir que somos homossexuais. [...] Devemos
antes criar um modo de vida gay, um torna-se gay. [...] o mundo considera que a
sexualidade constitui o segredo da vida cultural criadora: ela é mais um processo
que se inscreve na necessidade, para nós, hoje de criar uma nova vida cultural sob o
pretexto de nossas escolhas sexuais. [...] Devemos, ainda, eu penso, dar um passo a
frente. E creio que um dos fatores dessa estabilização será a criação de novas formas
de vida, de relações de amizades, na sociedade, na arte, na cultura, novas formas que
instaurarão através de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas. Devemos não
somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente como
identidade, mas como força criadora (FOUCAULT, 2014, p. 251-252).
E o que seriam esses modos de vida queer? Respostas que caminham com as
dúvidas que instabilizam certezas e produzem experiências, o modo de vida queer não
gruda nas identidades inventadas que hoje reconhecemos nos limites das existências
bichas, sapatas, giletes, gays, lésbicas, bissexuais, heterossexuais, intersexuais,
transexuais e/ou travestis. Elas produzem limites e a vida queer insiste em quebrá-las.
Um modo de vida que, como nos convida Foucault (2014), pensamos nós, se faz
acontecer na abertura para novos estilos de vida e de organização. Dizer isso não é dizer
que não precisamos de políticas de alianças produzidas pelas marcas das dororidades
cotidianas, como nos ensina Vilma Piedade (2017). Para driblar essa lógica, como
astúcia política, buscamos, nos estudos e políticas queer, modos de debochar das
verdades, como disse Spago (2018, p. 33): “ela está incessantemente em desacordo com
o normal, a norma, seja a heterossexualidade dominante ou a identidade gay/lésbica. É
categoricamente excêntrico, a-normal”. “As críticas queer à normatividade não podem
negligenciar a capacidade de os discursos e saberes dominantes se apropriarem da
subversão e de contê-la” (SPAGO, 2018, p. 46).
De acordo com Miskolci (2009), os Estudos Queer emergiram, nos Estados
Unidos, nos anos de 1980. Originários da Filosofia e Crítica Literária, eles ganharam
status após debates ocorridos nas universidades da Ivy League8. Foi a partir de uma
conferência no estado da Califórnia - EUA, em fevereiro de 1990, que Teresa de
Lauretis utilizou a expressão Queer Theory para denominar o investimento queer com
os estudos gays e lésbicos que, em termos políticos, não tardou para que denotasse uma
alternativa crítica aos movimentos assimilacionistas que centravam seus ativismos no
campo das sexualidades. Teresa Lauretis (2019) nos diz que a
[...] ideia para teoria queer era a de começar um diálogo crítico entre lésbicas e gays
sobre sexualidade e nossos respectivos históricos sexuais. Eu queria que, juntos,
quebrássemos os silêncios que tinham sido erguidos nos “estudos de gays e lésbicas”
sobre questões da sexualidade e suas relações com gênero e raça (por exemplo, o
silêncio em volta de relacionamentos inter-raciais e interétnicos). Na minha cabeça,
as palavras teoria e queer juntavam em uma expressão o objetivo político da crítica
8
Grupo de oito universidades do Nordeste dos Estados Unidos da América de maior prestígio científico
nos Estados Unidos.
social com o trabalho conceitual e especulativo envolvido na produção de discursos.
A teoria queer tinha possibilidade de desenhar outro horizonte discursivo, outra
maneira de pensar o aspecto sexual. Poderíamos, com ela, chegar a um
entendimento melhor de especificidades e parcialidades ou mesmo das nossas
respectivas histórias, assim como do que significa para nós, como grupo, algumas
dificuldades comuns [...] (LAURETIS, 2019, p. 399-400).
Sobre isso Miskolci (2009) complementa:
Professor, o Senhor sabe que sou um homem trans. Sempre fui um menino. Fico
ainda muito assustado em ver que nossas Universidades não estão preparadas para o
acolhimento de outros corpos e subjetividades não conforme com o cisheterosistema
e na lógica da identidade normativa para o corpo, o desejo e o prazer. Os discursos
de inclusão aqui são maravilhosos. Nos mostram nas aulas a história de luta pela
inclusão da deficiência. Das lutas e conquistas das mulheres na educação e nos
avanços e conquista do povo negro. Nos ensinam sobre escolas democráticas e do
direito à igualdade e à diferença. Agora veja bem, não vivo a Universidade
intensamente. Fica me parecendo ainda que a inclusão é um debate que aqui se faz
para os outros, os estudantes da Educação Básica. Ainda me assusta professor ver as
plaquinhas nos banheiros nos informando sobre banheiros referendando homens e
mulheres ou o gênero masculino e feminino. Atrevidamente entro nos banheiros de
homens e para o gênero masculino. Entro, sabendo que de lá poderei não sair. Sou
um homem trans, logo estou autorizado a entrar no banheiro de homens e me
reconheço no gênero masculino. Mas, a história não é bem assim. Entro nesses
banheiros sem uma política de existência na universidade. Já não me é suficiente a
política do nome social e do reconhecimento de meu gênero na certidão de
nascimentos e em outros documentos. Ainda que gozando destes direitos e deles não
abrindo mão, pois reconheço a luta das pessoas trans e travestis, sei que nada disso
garante dignidade para meu corpo. Quando vou ao banheiro aqui da Universidade,
sinto olhos sexistas e transfóbicos me vigiando. Penso que não tenho a
passabilidade9 necessária para o trânsito neste espaço. Sou sempre promessa e
assombro. Tenho medo. Me acompanhe ao banheiro, professor. Quero que veja o
que eu sinto. Veja, professor, sou um homem com vagina e faço xixi sentado. Não é
todo banheiro que chego que tem portas nos reservados. Todas as vezes que chego
no banheiro e vejo a ausência de portas fico me perguntando o que os arquitetos,
engenheiros e sanitaristas pensam sobre os corpos que usam banheiros. Fico me
perguntando por que o corpo do homem e seu pênis precisam ser expostos. É o pênis
que lhes garantem existências. Engenheiros, arquitetos e sanitaristas deveriam saber
das subjetividades e identidades que não se conformar ao destino que deram aos
nossos corpos. (Fragmentos de sala aula – narrativas de um estudante)
9
A passividade traduz como uma pessoa trans pode ser inteligível às performatividades de gênero no
nosso universo normalizado ocidental. "Passar" é o mesmo que ser reconhecido na vida cotidiana como
alguém que está de acordo com as normas. Passar, para algumas pessoas trans, é um aspecto fundamental,
seja à prevenção da violência ou para a satisfação pessoal.
O estudante, acionando saberes de experiência feitos, ressoa através de uma
maquinaria que faz o corpo, gênero e sexualidade nos apresentarem incoerências. Em
sua narrativa, não reivindica nada, apenas coloca em cena a precariedade da vida e de
um corpo fora da forma heterocentrada, como nos diz Judith Butler (2018) sobre os atos
performativos de gênero. A autora nos oferece o seguinte argumento:
Estava tudo bem em minha casa. Eu, minha filha, minha mãe e meu pai. Minha
namorada frequenta minha casa. Tudo bem até aí. Em minha casa, toda forma de
amor é legitima e deve ser respeitada. As coisas nunca compareceram nos processos
educativos de minha casa, como um ponto da agenda dos afetos e desejos. Estas
questões foram comparecendo e foram tomando forma do acolhimento familiar.
Minha filha desde sempre soube que vivo um relacionamento lésbico. Lésbico
porque esta classificação diz dos afetos entre duas mulheres. Não precisava ter este
nome, nem outro nome, nem nome. Para que serve esses nomes que nos classificam
e hierarquizam nossas vidas. Serve apenas para dizer que somos menos, imperfeitos
e monstruosos. A régua que nos medem, nos mede a partir de seu sistema métrico de
privilégios da heterossexualidade tradicional. Nem me lembro que sou lésbica.
Minha filha tem apenas cinco anos de idade. Você sabe, né, as crianças pequenas
não são preconceituosas, elas lidam muito bem com o mundo e com as pessoas em
suas singularidades. Nunca foi uma questão para minha filha a presença de um
homem para que pudesse chamar de pai. Até que um certo dia, na escola, numa
atividade aparentemente trivial, o problema da ausência do pai passa a existir. A
professora, cheia das boas intenções pedagógicas, pede às crianças que desenhem
suas famílias e que falem sobre elas. Minha filha então nos desenhou. Lá estava eu,
minha namorada e meus pais. Minha filha no centro e os adultos de seu ciclo
familiar à sua volta. Simples assim! Na hora que minha filha foi falar para a
professora e para as crianças sobre seu desenho, a presença de minha namorada
ganhou destaque na conversa entre as crianças. Algumas crianças, educadas de
outras maneiras e vivendo outras experiências de família, achavam que minha filha
havia cometido um erro sobre a presença de minha namorada e buscavam corrigir
minha filha dizendo que mulher namora com homem. E ela, dizia, sem nenhum
constrangimento: “minha mãe é mulher e namora mulher, minha avó é mulher e
namora meu avô que é homem e eu sou criança e não namoro”. A professora, atenta
ao que se passava como acontecimento, diante um currículo que não se controla,
porque vivido por sujeitos encarnados, observava as problematizações das crianças.
Segundo relatou a professora quando fui buscar minha filha, a questão sobre o
namoro entre iguais a fez pensar sobre tudo o que ela não havia pensado sobre
outras configurações familiares. Afinal, ela nem sabia que eu vivia um romance
lésbico. Hoje, já sei. Quando eu chegar numa escola nova, já vou logo avisar à
escola que namoro com mulheres. A escola, penso eu a partir de minha experiência,
precisa saber. Mas saber, não para criar um programa de acolhimento de pais, mães
dissidentes. Mas para desenvolver uma atenção ao direito à diferença. Diante
daquele fato, a professora da escola, juntamente com toda equipe pedagógica e sob
minha autorização e também orientação, convidou os pais e mães para pautarmos, na
prática pedagógica da escola, outras formas de famílias e afetos. Para surpresa, os
pais e mães, aceitaram o tema como componente curricular e, naquela reunião,
descobrimos que outras pais e mães viviam relacionamentos homoafetivos. Não
estava sozinha. A multiplicidade de afetos apareceu na escola. A escola soube de
nós. Passamos a existir na escola e no currículo escolar. Fico preocupada com minha
filha e com outras crianças que não vivem suas vidas em família heterocentradas!
Espero que ela possa ter, ao longo de seu processo formativo, professores sensíveis e
escolas acolhedoras. Mas... quando isso não acontecer... lá estarei de corpo inteiro
como mãe, educadora, mulher. E, se preciso for, como lésbica. (Fragmentos de sala
aula – narrativas de um estudante)
O debate sobre a categoria “família” vem substancialmente ocupando espaço na
definição política de cidadania no Brasil. De um lado, existem setores que exigem a
consanguinidade como linha determinante da aliança parental e, de outro, movimentos
sociais que defendem a necessidade de considerar o entendimento das pessoas sobre
seus arranjos, ampliando-a para além da consanguinidade e/ou do sistema legal que a
rege. Contudo, independente das posições, a concepção subjetiva que circula nas escolas
sobre os arranjos familiares está baseada nos inúmeros discursos que transitam nas
pedagogias culturais, a exemplo das linguagens midiáticas, religiosas, redes sociais,
cinematográficas, televisivas ou curriculares, para citar apenas alguns recursos, torna-se
particularmente central aos subsídios individuais à construção de verdades sobre a
família.
[...] uma pedagogia e um currículo conectados à teoria queer teriam de fazer mais
do que incluir temas ou conteúdos queer; ou mais do que se preocupar em construir
um ensino para sujeitos queer. [...] Tal pedagogia não pode ser reconhecida como
uma pedagogia do oprimido, como libertadora ou libertária. Ela escapa dos
enquadramentos. Evita operar com os dualismos, que acabam por manter a lógica da
subordinação. Contrapõe-se, seguramente, à segregação e ao segredo
experimentados pelos sujeitos diferentes, mas não propõe atividades para seu
fortalecimento nem prescreve ações corretivas para aqueles que os hostilizam
(LOURO, 2004, p. 52).
O convite à reviravolta epistemológica proporcionada pelos Estudos Queer que
nos foi enviado por Tadeu Tomaz da Silva e Guacira Lopes Louro ultrapassa os limites
em torno do debate das sexualidades. Ele perturba as convencionalidades do pensar e
conhecer porque é fundamentalmente subversivo e provocador à norma, desloca e
descentra o sujeito do conhecimento canonizado nas narrativas curriculares
enquadradas.
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