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OLHOS DE MEL, LÁBIOS DE FOGO

SILVANA BARBOSA
Capa: Cassia Reis

Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas,


fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
Conforme a lei 9.610/98, é proibida a reprodução e comercialização
desta obra sem a prévia autorização da autora.
SUMÁRIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V
CAPÍTULO VI
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
CAPÍTULO IX
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII
CAPÍTULO XIII
CAPÍTULO XIV
CAPÍTULO XV
CAPÍTULO XVI
CAPÍTULO XVII
CAPÍTULO XVIII
CAPÍTULO XIX
CAPÍTULO XX
CAPÍTULO XXI
CAPÍTULO XXII
CAPÍTULO XXIII
CAPÍTULO XXIV
França, século XVIII

OLHOS DE MEL, LÁBIOS DE FOGO


PRÓLOGO

— Mas, senhora, tem certeza que é seguro? — A criada estava de


olhos arregalados, com as mãos apertando ansiosamente as cordas da escada
que levavam ao interior do navio.
— Sim, Marguerite. O navio é seguro! E de que outra forma acha que
poderíamos chegar a Portugal? — Camille pegou o braço da criada, que por
sinal era também sua maior companheira. — Nós não temos mais nada e nem
ninguém aqui na França. A casa está sendo tomada e em breve ficaremos na
rua! Só Lucy e seu marido podem nos ajudar. Minha irmã já está nos
esperando!
A criada suspirou e entrou no navio a contragosto. Seu maior medo
provinha do fato de não saber nadar.
Agora estavam em alto mar, em meio a uma terrível tempestade, e
mesmo diante das enormes ondas que se formavam, Camille só conseguia
lembrar-se desse diálogo do dia anterior. Em que confusão elas se meteram!
Havia grande correria no convés, e Marguerite tremia a sua frente, agarrada a
uma trouxa improvisada que continha alguns bens pessoais.
— Vá para a amurada, Marguerite! A tripulação se encarregará de
colocá-la em um dos botes salva vidas e você se sentirá mais segura! —
gritou, tentando se fazer ouvir entre o ribombar dos trovões.
— E você?
— Eu me encontrarei com você logo! Vá agora!
Marguerite enfim conseguiu decidir-se. Correu até onde os marujos
ajudavam a descer os botes com passageiros, e logo foi colocada no próximo
salva-vidas disponível.
Camille iria atrás dela em breve, mas antes precisava certificar-se que
as passageiras do subsolo também estavam salvas. Havia descoberto as
mulheres por acaso, naquela manhã, em um passeio pelo convés. Ouviu um
falatório feminino vindo da parte de baixo e procurou sua origem. Encontrou
a passagem de descida trancada com uma porta gradeada.Um dos marujos
viu-a espiando pela fresta e pediu que se afastasse, explicando que lá
embaixo ficavam as acomodações dos passageiros pobres, que viajavam a
preços bem mais baixos do que usualmente se pagava naquele percurso, mas
que abriam mão do conforto.
— Mas por que a grade fica fechada? São escravos, ou bandidos, por
acaso?
— Não, são mulheres de vida fácil, senhora. Estão proibidas de
circular pelo navio, senão iriam assediar os passageiros e a tripulação, e
acabaríamos tendo problemas. Não se preocupe com elas, tem água, comida e
onde dormir. Só querem chegar logo ao seu destino.
Por lembrar-se daquela grade é que ainda não havia deixado a nau que
ia a pique.
Dirigiu-se ao capitão, que estava atrapalhado com um grupo de
crianças, e perguntou sobre o grupo do porão.
— Não se preocupe, senhorita! Um dos meus rapazes vai ajudar
àquelas mulheres. Venha, entre no bote!
A jovem ignorou-o, olhando a sua volta. Em meio aquele caos,
ninguém iria lembrar-se das pobres passageiras lá embaixo. Decidiu ela
mesma resgatá-las. Correu para a escada que levava ao subsolo. Mãos
acenavam apavoradas pelas grades. Camille encontrou a chave pendurada
próxima a entrada. Em um movimento brusco do navio, a grande chave
escorregou de sua mão, caindo numa poça funda e escura que se formava a
seus pés. O barco estava fazendo água! Jogou-se no chão, procurando
desesperadamente, enquanto ouvia as vozes aterrorizadas lá dentro pedindo
socorro. Finalmente encontrou a chave, e abriu a porta. As mulheres correram
para cima, atrás dela. Súbito, um grande clarão cortou o céu, e um estrondo
mais terrível do que todos os outros atingiu a noite. Camille sentiu a pressão
do vento em suas costas, e depois, fez-se o silêncio.
CAPÍTULO I

— Como ela está? — perguntou Jean Pierre, o dono da embarcação


que recolhera os náufragos do navio Saint Antoine, debruçando-se atrás do
seu capitão e do imediato, para observar a bela moça deitada na cama de sua
cabine. Estava com uma ferida bem feia no alto da cabeça, e que descia pela
metade da testa.
— Não está bom, Marquês Deschamps. Só quando estivermos em
terra poderei ter uma ideia da gravidade dos ferimentos dessa mocinha. Os
sinais vitais estão aqui, mas ela não apresenta reação nenhuma, é como se o
cérebro houvesse parado. — o médico de bordo, doutor Olivier, olhava a
paciente com tristeza.
— Pobrezinha... É tão bonita e jovem — lamentou o imediato.
— Quem será ela? Qual será seu nome?
Um marujo que estava à porta intrometeu-se:
— Tem mais de vinte prostitutas aqui do lado de fora querendo
notícias dela. O que vocês acham que ela é?
— Uma criada, talvez — retrucou o capitão. — Olhem esse rosto
angelical!
— Com essas roupas? Ela até usa joias! Acho que a explicação mais
fácil é que ela deve ser uma meretriz de luxo, e as outras a admiram —
insistiu o marujo.
— Ela não parece uma prostituta! — protestou o jovem imediato.
— E o que você entende dessas novas cortesãs que vem surgindo a
cada dia mais? Essa deve ser das mais caras, do tipo que um rei acolheria em
seu leito alegremente — redarguiu o marujo.
— É uma pena — lastimou o marquês Jean Pierre Deschamps. —
Achei-a tão linda!
— E qual mulher o libidinoso Jean Pierre não acha linda? — caçoou o
capitão de seu barco.
— Mas essa é linda de verdade.
— É impossível discordar.
E todos os homens dentro do camarote suspiraram por Camille.

***

Quando Camille abriu os olhos, descobriu-se deitada em um elegante


quarto. Os móveis eram escuros, e os lençóis bem claros, de linho. Mexeu-se
um pouco na cama e viu um homem sentado próximo a ela. Era um homem
muito bonito, de olhos claros como o mel, e cabelos do mesmo tom, lisos,
que desciam até o início dos ombros. Um dos cotovelos estava apoiado no
braço da cadeira, e sustentava seu queixo quadrado com uma mão grande e
forte.
O homem aproximou-se quando percebeu que ela havia acordado e o
estava olhando inquisitivamente com brilhantes olhos verdes.
— Você está bem?
A voz dele tinha um timbre baixo e agradável, que pareceu fazer algo
sacudir dentro de Camille. Ela demorou alguns segundos para responder,
ainda confusa com o ambiente onde se encontrava.
— Eu... Onde estou?
— Na minha casa. Sou Jean Pierre Walis, o marquês Deschamps.
Você foi vítima de um naufrágio, e meu navio a resgatou.
Algumas lembranças vagas surgiram em sua mente. Procurou erguer-
se contra os travesseiros, embora o corpo não colaborasse muito com seu
esforço:
— Ainda estou na França?
— Sim, por sorte eu estava voltando de uma viagem de negócios e
passei pela área onde seu navio afundou, resgatando várias pessoas.
— Não me lembro direito... Onde está Marguerite? — Ela tentou
erguer-se, mas a cabeça doeu. Pôs a mão no local onde doía, e descobriu um
curativo.
— Não retire o curativo — ele disse suavemente, sentando na beira da
cama e segurando-lhe a mão. — Você levou uma tremenda pancada na
cabeça. Imagino que tenha sido um pedaço de mastro quebrado que a atingiu,
depois de ser derrubado por um raio.
— E como me salvei após essa pancada?
— Você foi colocada sobre uma tábua larga e algumas amigas lhe
cercaram, formando uma amurada humana. Flutuaram assim até as
encontrarmos. Tiveram muito sorte.
— Algumas amigas? — Camille surpreendeu-se, já que a única
pessoa que conhecia a bordo era sua criada. O homem estava equivocado,
mas isso não importava, e sim onde podia estar Marguerite — Marguerite
veio procurar-me?
— Não sei se alguma delas se chamava Marguerite, ninguém se
identificou.
— Tem alguma outra mulher hospedada aqui?
— Não.
A cabeça de Camille começou a doer mais forte. Marguerite
apavorada, num barco à deriva, sem saber nadar, numa noite escura... Era um
terrível pesadelo.
— Meu Deus... E eu disse a ela que seria uma viagem segura...
O marquês franziu levemente o cenho, compartilhando a dor da
enferma:
— Essas coisas infelizmente acontecem.
— Ela entrou em um bote salva-vidas com outros passageiros. Eu vi.
Ele manteve um silêncio respeitoso, apenas admirando os incríveis
olhos verdes dela.
— O senhor acha — ela continuou a falar, com dificuldade, o nariz já
ficando rosado como prenúncio de que iria irromper em lágrimas a qualquer
momento — que ela pode estar morta?
Jean Pierre fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Infelizmente é uma possibilidade bem real. Os botes salva vidas...
— ele suspirou — sinto muito, poucas pessoas se salvaram naquele dia
fatídico. A tempestade foi muito violenta, e um barco pequeno em alto mar...
tem mínima chance.
— Oh, e é tudo minha culpa!
O marquês a abraçou carinhosamente.
— Não pode ser culpada por tempestades e ventanias. Muito menos
por um naufrágio.
— Mas ela só viajou por minha causa. É minha criada, porém antes de
tudo é minha amiga, ou era... Ah, antes eu a tivesse deixado arrumar outro
emprego!
Jean Pierre achou que era uma boa oportunidade para conhecer mais a
vida da mulher a quem acolhera, e que tomara uma boa parte de seus
pensamentos nos últimos dias.
— E porque resolveram viajar?
— Meu pai saiu em viagem há um ano e nunca mais voltou, adoeceu
durante o percurso e morreu. Minha mãe havia falecido bem antes disso. Eu
estava em dificuldades financeiras, e havia acabado de perder a casa. Parti
com o que pude carregar para tentar a vida em outro país. — Um soluço
escapou de sua garganta sem que pudesse controlar — E agora perdi mais
coisas ainda.
Ele deixou que ela chorasse à vontade, embalando-a em silêncio. Ao
notar que ela estava se acalmando, disse:
— A criada responsável pela casa, Violet, lavou seu vestido, que já
está seco e pendurado naquele armário, junto com outras coisas pessoais que
estavam amarradas em uma trouxa presa ao seu corpo. Violet e eu tomamos a
liberdade de desfazer o embrulho.
Camille esforçou-se para controlar suas emoções. Seus pais a
ensinaram a ser uma moça prática e era o que precisava ser agora. Desfazer-
se em lágrimas não traria Marguerite de volta, nem consertaria o passado.
Deveria concentrar-se um reunir forças para melhorar rápido, e seguir viagem
à casa da irmã, onde seu futuro a esperava. Procurou sorrir, tentando mostrar-
se agradecida ao seu salvador:
— Ah, obrigada.
— Um baú com roupas femininas foi resgatado por nós. Não sei se é
seu, pois havia várias passageiras a bordo, mas os vestidos deverão servir-lhe
bem.
Ela o observou melhor. Usava camisa branca, bufante, com os
primeiros botões abertos. Exalava um odor agradável e parecia muito
asseado. Identificou-o como o tipo sedutor que tanto preocupava sua irmã
Lucy. Seria aquele homem gentil e confortador um libertino da corte?
Aparentava tanta dignidade e honra... Um homem assim não poderia ser um
conquistador, poderia? E, se não, onde estaria sua esposa?
— E se esses vestidos não lhe servirem, ainda há outros na casa. —
Continuou ele, sem imaginar as divagações de Camille.
— De sua esposa, suponho.
Ele sorriu pela primeira vez. Um belo sorriso, de dentes claros e
regulares:
— Não sou casado. Vivo sozinho com os criados.
Camille sobressaltou-se. Estava hospedada com um nobre solteiro!
Toda a França já devia estar falando horrores sobre ela. Os vestidos a que ele
se referia na casa, deviam ter sido deixados por suas amantes, e ela seria
considerada por quem estava de fora como mais uma. Mas agora já era tarde,
e o mal já estava feito. Não adiantava tentar sair correndo nesse momento.
Quando estivesse em condições, agradeceria a hospitalidade e iria embora
para Portugal, onde as fofocas não teriam importância.
— Você ainda não me disse seu nome — ele falou, com os olhos
fixos nos dela.
— Camille Dubois, sua criada. — Inclinou graciosamente a cabeça,
baixando os olhos.
Os olhos dele pareceram brilhar mais diante do movimento delicado:
— Camille... Lindo nome. Não tão bonito quanto você mesma, é
lógico.
— O senhor é muito gentil.
— Não me chame de senhor, minha cara. Não devo ser muito mais
velho que você. Agora descanse mais um pouco.
Há quanto tempo estou aqui?
— Penso que faz cerca de uma semana.
— Isso tudo? Como tenho dado trabalho!
— Descanse e não se preocupe com sua estadia. Só desejo que se
recupere. — Brindou-a com um sorriso afável — Está com fome?
— Eu não sei... Acho que um pouco.
— Vou pedir que Violet lhe traga algo, pois ficou muito tempo sem se
alimentar de forma adequada.
E então lhe deu um inesperado beijo no rosto antes de sair.
Camille ficou absolutamente encantada por ele.
Não imaginava o quanto ele também já estava encantado.
CAPÍTULO II

Uma rápida batida na porta do quarto de Camille precedeu a entrada


de Jean Pierre.
Camille já se familiarizara com o jeito peculiar do marquês
Deschamps se anunciar antes de visitá-la, como fazia todas as manhãs, nos
últimos dias.
— Bom dia. Posso entrar? — ele indagou, com um sorriso.
— Claro que sim. Bom dia. — Camille retribuiu o sorriso. Já havia
trocado a camisola por um dos vestidos arrumados pela criada, e estava
recostada numa poltrona confortável próxima à janela, ansiosa pela visita
diária de seu belo e simpático anfitrião. O melhor momento de seu dia era
quando ele vinha vê-la, para conversar, jogar damas ou simplesmente ouvi-la
falar sobre sua vida em Lyon.
— Como está hoje?
— Um pouco melhor, creio. — As forças voltavam mais lentamente
do que gostaria. Cansava-se rápido, passava a maior parte do tempo
dormindo.
Jean Pierre sentiu-se feliz por merecer um sorriso de Camille.
Como desejara ver a jovem que resgatara inconsciente do terrível
naufrágio recuperar-se, abrir os olhos, falar com ele...
Todos os dias em que ficara parado diante da cama de Camille,
rezando por ela, suspirando por ela, sonhando mesmo acordado em tê-la sã ao
seu lado, e em seus braços... Sim, a cada dia fantasiava mais com sua bela
hóspede. Agora que a tinha diante de si, com seu olhar intenso e semblante
vivaz, e descobrira quanto era afável e feminina em sua fala e em seu gestual,
Jean estava radiante.
E, melhor do que tudo, Camille era receptiva a ele. Jean tinha
experiência o suficiente com as mulheres para captar um olhar de admiração
e desejo. A senhorita Dubois o olhava com cobiça. Uma cobiça discreta e
controlada, quase tímida, mas indisfarçável. Deveria fazer parte de seu
charme aquela postura um tanto comportada, talvez um pouco de teatro para
atrair um novo amante. Ele não se importava. Gostava do jogo.
—Já que precisa de repouso mais alguns dias, pensei em diminuir um
pouco seu tédio. — Assinalou os livros que tinha nas mãos. — Temo-me, no
entanto, que as opções de minha biblioteca não sejam as melhores para uma
dama...
Sentou-se numa poltrona próxima à de Camille, pondo os livros no
colo, e pegando cada um enquanto lhe mostrava as capas.
—Vejamos o que temos aqui... Um livro sobre navegação, um tratado
sobre comércio marítimo, um manual sobre normas e condutas do
comerciante marítimo, técnicas de nós de marinheiros, hum...
“Aperfeiçoando seu conhecimento náutico”...
Camille abafou uma risada.
Jean Pierre ergueu a cabeça e deu de ombros, com um sorriso
insinuante:
— Eu avisei que meus livros não eram adequados às damas.
Então ele retirou um livro mais fino da pilha à sua frente:
— No entanto...— Jean Pierre sacudiu o pequeno livro, triunfante. —
Minha irmã deu-me um livro de poesias, que só agora encontrei serventia e
vejo o quanto é formidável!
Dessa vez Camille não refreou sua risada.
— Formidável? — ela repetiu, ainda rindo.
O olhar de Jean Pierre era intenso, e a expressão sorridente e quase
infantil, havia se transformado. Ele a encarava, muito sério:
— Não, eu estava errado. Sua risada é que formidável, você é que
absolutamente formidável, minha querida.
Camille sentiu corar até a raiz dos cabelos. Baixou as vistas, para
evitar demonstrar ao marquês o quanto ele a estava afetando desde que se
viram pela primeira vez. Nunca um homem havia causado nela tão fortes e
contraditórias sensações. Desejava tocá-lo para descobrir se era tão quente e
forte quanto parecia, ao mesmo tempo que gostaria de ter forças para
levantar-se da cama e partir para Portugal, afastando-se de qualquer tentação
que Jean Pierre traria. Não tinha dúvidas quanto ao desejo que havia
estampado em sua face ao encará-la.
— Leio para você? — perguntou Jean, quase num sussurro.
— Por favor.
Jean Pierre limpou a garganta antes de começar a leitura. Disse a si
mesmo que não deveria seduzir uma mulher convalescente. Não. Poderia
atrapalhar sua recuperação. Nunca se perdoaria se causasse mal àquela
preciosidade por quem zelara com tanta dedicação e carinho.
Ainda era cedo demais para satisfazer seus desejos e fazer tudo o que
desejava com aquela mulher desde que a vira, ainda desacordada.
Mesmo ela sendo uma cortesã.
CAPÍTULO III

Na manhã seguinte Jean passou pelo quarto de Camille e viu, pela


porta entreaberta, que ela estava de pé junto à janela.
O fato de vê-la fora da cama lhe deu uma sensação de formigamento.
Era uma figura bela, mesmo abatida e com evidente perda de peso, Camille
mantinha a elegância típica de uma mulher bem formada de corpo.
Cumprimentou-a da porta:
— Bom dia. Está melhor hoje, pelo que vejo.
— Oh, sim, obrigada. Seu médico veio ver-me hoje bem cedo. É um
senhor muito gentil.
— Ah, o doutor Olivier é um homem muito bom. Ele me acompanha
nas viagens mais longas e foi quem lhe prestou os primeiros socorros.
— Sorte minha ser resgatada e ainda tratada por um médico. Não é
usual que os donos do navio se preocupem em viajar levando um doutor
junto.
— Eu não sou muito de seguir padrões. Acho sensato cuidar bem da
minha tripulação. Encontrar bons funcionários não é fácil, e as pessoas
gostam de ser valorizadas. Assim todos ficam satisfeitos.
— Boa perspectiva.
Deschamps estava satisfeito. O médico havia lhe dito que Camille
estava se recuperando muito bem, e que já poderia fazer um pouco de
exercício. Jean quase saltou de alegria. Só de pensar no tipo de exercício que
ele e Camille podiam praticar juntos, seu corpo se excitava de maneira
assustadora.
A jovem usava um vestido verde esmeralda, combinando com seus
olhos da mesma cor. A luz do Sol provinda da janela parecia fazer-lhe uma
moldura.
— Eu estava admirando seu belo jardim, marquês.
Jean Pierre entrou no quarto.
— Não é nenhum pátio de Versalhes, mas me orgulho dele. — Ficou
bem próximo a ela, ambos olhando para as plantas lá embaixo, no primeiro
piso. — Gostaria que eu lhe levasse para sentir o aroma das flores?
— Eu apreciaria muitíssimo!
O marquês lhe ofereceu a mão erguida, e ela depositou suavemente
seus dedos sobre os dele, deixando-se conduzir por Jean Pierre. O contato
com a pele daquele homem, mesmo num toque tão suave, causou um ligeiro
estremecimento em Camille. Ele percebeu, pois a olhou de soslaio, a sombra
de um sorriso no canto dos lábios. Porém não disse uma palavra.
Desceram as escadas e seguiram por um corredor pouco iluminado. O
coração da moça pareceu saltar ao passar com Jean Pierre por aquela área
escura. Ele diminuiu o passo, e ela foi obrigada a fazer o mesmo. Imaginou-o
parando para beijá-la naquele recanto onde não poderiam ser vistos, mas ele
continuou a conduzi-la até chegarem aos jardins. O fato daquela profusão de
cores e aromas das plantas surgir logo depois de alguns segundos
caminhando em quase total escuridão, aguçava ainda mais os sentidos. Era
um pátio maravilhosamente alegre, e várias borboletas completavam o
cenário encantador.
— É lindo! Você tem muito bom gosto!
— Sim, eu tenho mesmo bom gosto — ele respondeu, olhando direto
para os olhos dela.
Camille retirou a mão de sobre a dele e caminhou um pouco pela
alameda principal.
— Gostaria de sentar-se comigo? — Convidou, indicando um banco
comprido, de onde se podia admirar as flores e os arbustos.
Ela aceitou de bom grado. Ele sentou-se ao seu lado com cuidado,
apoiando as mãos no banco e deslizando o pé esquerdo em frente ao outro, e
descendo suavemente, devido às calças justas que usava. A jovem pegou-se
olhando indiscretamente o volume que se destacava na parte da frente
daquelas calças. O rapaz acompanhou seu olhar e sorriu jovialmente, dando
de ombros:
— Apenas uma roupa justa demais, eu acho.
A moça sentiu o rosto ficar quente, e desviou os olhos rapidamente.
Tentou se distrair:
— Há muito tempo mora aqui?
— Sim, antes pertenceu a meus pais. Agora é minha por herança.
— E não tem outros familiares?
— Tenho uma irmã mais velha, Antonieta, que me deu aquele livro de
poesia. Ela detém a maior parte do dinheiro da família, e me ajuda
financeiramente se eu precisar.
— E é necessário?
— Ultimamente não. Com minha parte da herança comprei dois
navios e com eles faço negócios. Mercadorias, claro, não escravos.
— E os negócios têm prosperado?
— Muito. Estou prestes a aumentar a frota. — Olhou-a de uma forma
que Camille não conseguiu entender — Sou um homem rico, sabia?
— Soube que estava bem de vida ao ver como é grande a sua morada.
Não tenho como agradecer o que fez por mim, salvando-me a vida e
recebendo-me em sua casa enquanto me restabeleço.
— Imaginarei uma forma de você agradecer-me mais tarde.
Ele falou com simplicidade, sem nenhum olhar sugestivo
acompanhando a frase, mas a jovem se sentiu desconfortável com o
comentário. Estar na casa de um homem solteiro já era complicado, mas estar
com um homem como o marquês podia ser mais complicado ainda. E ela não
gostaria de ficar ouvindo insinuações masculinas.
— É muito tranquilo aqui — disse ela, tentando disfarçar o
constrangimento que sentia.
— Venha ver as rosas. Elas ficam na outra alameda. — Ergueu-se,
puxando-apela mão, sem cerimônia. A jovem deixou-se levar, perigosamente
atraída por ele.
Pararam junto a um lindo canteiro de rosas. O marquês arrancou uma
delas e prendeu nos cabelos negros de Camille. Enquanto ele ajeitava a flor,
ela o olhava fixamente.
Jean deteve-se naquele olhar insistente, e admirou o rosto angelical.
As mãos que antes tocavam os cabelos deslizaram para o rosto, e ele
lentamente puxou o rosto dela para aproximá-lo do seu.
Beijou-a docemente a princípio, mas logo sua língua percorreu seus
lábios, obrigando-a a abri-los. O beijo se tornou mais intenso, e as mãos
desceram até a cintura da moça, puxando-a até que se encostasse no seu
peito. Camille deixou-se envolver totalmente pelo momento. Percebeu uma
das mãos masculinas subindo até seus seios, e acariciando-os por cima do
vestido, enquanto que com o outro braço Jean Pierre mantinha seus corpos
unidos. Não conseguia e nem desejava afastar-se dele, por mais que sua
mente gritasse que estava cometendo um terrível erro.
Ouviram Violet chamar-lhes a distância:
— O chá está pronto, como pediu, senhor Jean Pierre! Está no jardim?
O rapaz soltou Camille a contragosto. Afastaram-se com um sorriso
cúmplice.
— Bem, vamos entrar antes que Violet chame outra vez. — Ele
convidou.
Ao passarem pelo corredor sombrio dessa vez, Jean Pierre parou e
roubou-lhe mais um beijo. Não se demoraram, porém, para não serem
flagrados pela criada.
Tomaram chá com bolo e biscoitos amanteigados conversando
alegremente. Camille sentia-se feliz como há meses não acontecia. O homem
a sua frente era bonito, divertido, bem educado e muito desejável, uma
companhia perfeita. Ela sentia que estava se apaixonando, mesmo tendo
acabado de conhecê-lo. E ele havia gostado dela também!
— Preciso fechar alguns negócios hoje. Devo voltar para casa bem
tarde. Fique à vontade, minha cara.
Jean Pierre fez uma reverência e afastou-se, colocando um chapéu
elegante na cabeça. Camille lamentou que a despedida não fosse selada com
mais um beijo.
CAPÍTULO IV

Acordou no meio da noite sentindo uma mão afagar-lhe os cabelos


soltos. Sentou-se, alerta, e divisou a forma de Jean Pierre ao seu lado na
penumbra. Fechou imediatamente o decote da camisola com o punho.
— Posso passar a noite aqui? — seus rostos estavam bem próximos, e
ela sentiu que o hálito dele cheirava a bebida alcoólica.
— Jean Pierre, andou bebendo?
— Sim. — Ele a beijou, e Camille afastou o rosto, assustada.
— Por favor, vá para o seu quarto.
— Não estou com a menor vontade de sair daqui — Jean beijou-a no
pescoço — Você cheira tão bem, Camille...
Ela levantou-se e tentou retirá-lo de sua cama, de forma gentil, mas
firme:
—Vamos lá, eu o acompanho até seus aposentos.
— E ficará lá comigo? — ele perguntou, levantando-se meio trôpego.
Camille não respondeu. Levou-o a seu quarto e o pôs deitado. Ele
logo adormeceu, e ela o cobriu.
Deu uma boa olhada no aposento. Era um quarto maior que o dela,
com móveis bonitos de mogno escuro e cortinas claras. Próximo a cama,
sobre um criado mudo, ficava um lindo candelabro para velas de cera, que
Violet havia deixado acesas já sabendo, provavelmente, que ele regressaria
bem tarde. A cama com dossel completava o ambiente acolhedor e sensual,
combinando com o dono da casa. Apagou as velas com um sopro antes de
sair.
Ao voltar a seu próprio quarto passou a chave na porta antes de deitar-
se.
CAPÍTULO V

Camille desceu para o café da manhã na varanda por sugestão de


Violet, para que esticasse as pernas e tomasse mais ar. Não viu nenhum sinal
de seu anfitrião.
Olhou para a criada que agora a servia, e sentiu-se agradecida por sua
presença austera na casa, silenciosamente zelando por sua saúde. Gostaria de
conversar com ela como fazia com Marguerite, mas não sabia direito o que
falar. Violet, que devia ter apenas alguns anos a mais do que ela própria,
pareceu notar a sua ansiedade, e puxou conversa:
— O senhor Jean Pierre não se levantou ainda. Deve ter chegado bem
tarde ontem.
— Ele sempre faz isso?
— Nos últimos dias andou comportado, aguardando o seu despertar.
Ele havia me pedido para avisar caso acordasse sem tê-lo por perto, mas por
coincidência a senhora voltou à consciência justamente no turno dele.
— Turno?
— Ah, sim, eu e ele nos revezávamos em vigília.
— Muito obrigada,Violet. Eu não sabia disso.
— Não precisa agradecer. Estávamos preocupados de verdade. O
doutor não sabia dizer por que não acordava logo. Sinceramente, tive medo
que não acordasse nunca mais. E quase não conseguíamos fazê-la engolir
alguma coisa, o patrão sempre insistindo com os líquidos, pelo menos. A
senhora emagreceu muito com isso.
— Não imaginava quanto trabalho havia dado a vocês.
— Pois foi assim. Ah, ontem à tarde vieram duas senhoras à porta
perguntando se já estava melhor, mas não quiseram entrar. Ficaram muito
felizes por saber que finalmente havia acordado.
— Duas senhoras?
— Sim. Desde que chegou, o mordomo atende diariamente mulheres
que desejam saber sobre sua saúde. Elas surgem em horários diferentes, até o
anoitecer. A senhora é bem estimada por suas amigas.
— Minhas amigas... Não tenho amigas por aqui. Só tinha Marguerite,
mas ela morreu no naufrágio.
Violet a olhava com jeito surpreso:
— Ah, mas a senhora têm amigas, sim. Será que não se lembra delas?
Acho que precisa descansar mais. Quando o patrão acordar, direi a ele que
ainda não está bem recuperada, que está com lapsos de memória. Lembra-se
do dia do acidente?
— Lembro-me da gritaria, da escuridão, da tempestade. Vi
Marguerite entrar em um bote. Mas depois disso tudo fica vago, confuso.
— E eu achei que seria bom que circulasse um pouco pela casa, mas
agora penso que deveria voltar a seu leito. Levarei o almoço em seu quarto.

***

Camille passou o resto do dia no quarto. À noite, quando Violet bateu


à porta, trazendo seu jantar, entrou seguida por Jean Pierre, que parecia
preocupado.
— O que houve, caríssima? Violet contou-me que teve uma recaída.
— Não exatamente — replicou a moça, admirando o belo homem a
sua frente, elegantemente vestido com uma sobrecasaca vinho que descia até
um pouco abaixo dos quadris. A calça justa de cintura alta era encerrada com
um nobre cinto de fivela dourada que brilhava tanto quanto os botões de seu
colete. Desviou os olhos para concentrar-se melhor no que dizia, a presença
marcante dele turvava-lhe a mente. — Eu me sinto bem. Só não consigo me
lembrar de algumas coisas.
Ele também parecia sofrer de alguma perda de memória, pois nada em
sua atitude demonstrava constrangimento por enfiar-se em sua cama na noite
anterior, pensou Camille.
— Talvez seja só uma questão de tempo para lembrar-se. Ou talvez eu
possa ajudá-la.
Ele sentou-se na cama, enquanto a hóspede jantava em uma mesinha
no canto do quarto. A criada pediu licença e retirou-se, tendo o cuidado de
manter a porta entreaberta, em sinal de recato por haver um casal solteiro lá
dentro.
— Sim, talvez possa então ajudar-me. Violet contou que desde que
cheguei, sua casa vem sido visitada insistentemente por diferentes mulheres
que desejam saber sobre meu restabelecimento. Quem são elas?
— Ah, são as prostitutas — respondeu calmamente, os olhos de mel
colados nos dela.
— As prostitutas?
— Aquelas que você salvou do naufrágio.
— O que?
— Pelo que eu soube, elas viajavam no subsolo do navio, em cabines
destinadas à última classe. Esqueceram-nas trancadas e você as libertou. Se
não fosse por sua causa, todas estariam mortas no fundo do mar.
— Oh! — Camille arregalou os olhos de espanto. Não se lembrava
disso.
— Sim, e parece que elas contaram o caso para outras amigas, e no
final das contas todas as prostitutas da França agora a endeusam. Você é a
rainha delas.
Um tom de voz estranho, indecifrável. Novamente Camille sentiu o
desconforto que havia surgido pela primeira vez quando conversavam no
jardim.
— Então aquela tábua em que eu estava quando fui encontrada, na
verdade foi improvisada por elas? Elas me acudiram?
— Sim. A preocupação delas com sua saúde é natural, viram a
madeira cair sobre você. Pensaram que morreria, e isso não pareceria muito
justo, certamente. Agora que despertou, elas devem ficar sossegadas.
— Desculpe por precisar receber essas mulheres à sua porta.
Ele arqueou as sobrancelhas:
— Acha que me importo porque são prostitutas? Não sou
preconceituoso, não precisa se preocupar, Camille.
O olhar dele havia mudado. Ela gostaria de entender o que se passava
em sua mente, mas não teve coragem de perguntar, pois temia que a resposta
não lhe fosse agradável.
Jean Pierre sentia as emoções em conflito. A noite passada demorara-
se mais do que o necessário entre seus amigos, procurando conter a ansiedade
que se abatera sobre ele ao pensar que aquela noite teria Camille em seus
braços, finalmente. No entanto, ao invés de acalmá-lo, a bebida havia
acabado por atrapalhar seus planos. Sua investida ao quarto da cortesã fora
desastrosa, e quando pensou que a seduziria em sua cama, acabara dormindo.
Vergonhoso. Mas isto não era nada diante do fato da mulher desejada agora
se comportar como não lembrasse que era uma meretriz. Era só o que faltava!
Um pouco de jogo de gato e rato era apreciado para valorizar uma conquista,
mas fingimento era algo que ele nunca apreciara.
— Gostaria de companhia essa noite, Camille? Aqui, com você?
Camille tremeu. A pergunta, feita de forma tão inesperada e crua, não
deu-lhe tempo de pensar em uma resposta imediata. Tentou não interpretá-la
de forma maliciosa:
— Penso que já está me fazendo companhia essa noite, enquanto
janto.
Jean Pierre sorriu, um tanto frio. Aborrecia-o que novamente Camille
se comportasse como uma atriz...
— Não falo de companhia à mesa, mas sim na cama, meu bem.
Talvez prefira a minha, bem mais ampla que a deste quarto...
Ela enrubesceu. A pergunta era mesmo de cunho sexual. Camille não
podia acreditar! Haviam acabado de se conhecer! Ele a julgara mal por
conceder-lhe o beijo no jardim, sabia que não deveria tê-lo deixado tocar-lhe
os seios!
Respondeu com um nó na garganta, profundamente decepcionada:
— Não vai partilhar a cama comigo. É melhor que se vá com seus
amigos boêmios.
Os lábios do marquês estavam retesados:
— Pensei que estávamos indo bem, ontem.
— Eu também pensei. Obviamente nós dois nos enganamos.
Ele levantou-se e percorreu a pequena distância que o separava de
Camille. Ela sentiu o coração disparar com a proximidade dele.
— Tem certeza que não quer que eu fique?
Conseguiu murmurar a resposta:
— Tenho certeza.
Jean Pierre deu-lhe as costas murmurando alguma coisa. E parecia
que a moça ouviu-o dizer: “então vou procurar outra prostituta”.
Ela não conseguia entender tamanha mudança de atitude. O príncipe
havia acabado de se transformar em sapo.
CAPÍTULO VI

Camille estava tendo sérios problemas para amarrar novamente seu


espartilho. Fora tentar afrouxá-lo porque o achou demasiado apertado hoje.
Ficar diante de Jean Pierre à mesa essa manhã já seria desconfortável o
bastante, e não precisava sentir-se sufocada para piorar tudo. Conseguira
desamarrar o cordão após insistentes tentativas, mas laçá-lo de volta sozinha
parecia tarefa impossível. Com alívio ouviu a porta abrir e fechar atrás dela.
— Ah, que bom que você está aqui, Violet! Sei que me ajudou a
amarrar o espartilho ainda há pouco, mas estava deveras incômodo. Já
consegui afrouxá-lo o suficiente, pode apenas amarrar para mim?
Sentiu Violet aproximando-se por trás dela e prendendo as pontas do
cordão com um laço, sacudindo-a levemente com o ajuste.
— Ah, muito obrigada!
— Por nada. Eu preferiria ajudá-la a retirar o espartilho, mas...
Camille virou-se, horrorizada. Jean Pierre estava bem junto a ela.
Vendo-a com roupas de baixo!
— Como ousa entrar sem bater à porta?
— Mas que ingrata! Acabei de ajudar-lhe!
Camille pestanejou. A voz suave e enrouquecida dele, combinada
com a proximidade de seus intensos olhos, desmontaram-na. Ele aproveitou o
momento de trégua e continuou:
— Tenho certeza que seu corpo é maravilhoso, e que não precisa usar
essa peça desconfortável para moldá-lo.
A moça não sabia o que dizer, e nem se movia, os olhos verdes muito
abertos, pregados nele. Jean Pierre aproximou seus lábios dos dela bem
lentamente, dando-lhe um beijo suave. Ao mesmo tempo empurrou-a com
delicadeza para a cama, enquanto os beijos iam ficando mais intensos.
O marquês inclinou-se sobre ela, buscando desamarrar os laços da
calça que Camille vestia. As mãos experientes já estavam deixando-a quase
nua quando se deu conta do que estava prestes a acontecer. Protestou,
empurrando-o. Jean não a libertou imediatamente, insistindo um pouco mais
com os beijos e carícias. Mas ela novamente protestou, dessa vez segurando a
mão que já se insinuava por dentro de sua roupa íntima.
Jean Pierre por fim parou, levantando-se frustrado. Perguntou
rispidamente:
— Há um homem esperando por você em Portugal?
— Decerto que há! — Referia-se a seu cunhado, Gerárd, que
provavelmente estava monitorando todos os navios vindos da França a fim de
escoltá-la até sua casa.
— Ele deve ser mesmo muita coisa! — Saiu do quarto batendo o pé.
Voltou-se mais uma vez, para anunciar — O desjejum está na mesa, desça
logo!
Camille estava atordoada com aquela agressividade. Terminou de
vestir-se e tomou o café da manhã junto com o marquês, mas ele nem sequer
olhou para ela. Durante todo o dia, quando se encontravam no jardim ou à
mesa de refeições, ele evitou dirigir-lhe a palavra, e à noite saiu sem
cumprimentá-la.
A moça dormiu chorando.
***

Na manhã seguinte Camille recusou o desjejum. E preferiu almoçar


no quarto, pouco tocando na comida. O doutor Olivier veio trocar-lhe o
curativo e anunciou que o corte estava quase cicatrizado.
À tardinha estava tomando banho de banheira quando ouviu a porta
abrir-se sem que batessem antes. Jean Pierre entrou e cumprimentou-a tirando
o belo chapéu tricórnio da cabeça. Puxou uma cadeira, sentando-se em frente
a ela. Esticou as pernas calçadas com botas de couro de cano longo e apoiou-
as na beirada da banheira.
Camille soltou um grito assustado e afundou-se mais na água,
puxando a espuma para perto do corpo.
— Não bate na porta antes de entrar?
— Julguei ter batido. — Mentiu, descaradamente.
— Retire-se, por favor.
— Não. A casa é minha.
Onde estava o nobre gentil que a acolhera? Quem era esse de olhar
lascivo e voz rude?
Camille bufou. Não queria travar uma batalha com o homem que
salvara a sua vida, mas se ele pensava que ela aceitaria passivamente seus
maus modos, estava enganado. Levantou o queixo, e respondeu, com a voz
mais firme possível:
— Não vou incomodar por muito mais tempo, marquês. O médico diz
que em breve poderei partir. Então poderá ficar mais à vontade para circular
em “sua casa” — frisou, com desdém.
— Fique o tempo que precisar. Sua presença embeleza minha casa. —
As palavras não condiziam com o olhar, agora frio. Aproximou mais a
cadeira, espiando dentro da banheira. Colocou a mão na água, e Camille se
encolheu. Ele percebeu o susto dela.
— Não seja tola. Só estou verificando se a água está fria. Não quero
que pegue um resfriado. — Sorriu.
— Não deseja é que eu lhe dê mais trabalho.
— Eu não disse isso. Como foi o seu dia?
— Tudo bem — ela respondeu, tentando parecer natural mesmo
estando nua numa banheira, com aquele homem lindo e sedutor ao seu lado.
— E o senhor, teve um bom dia?
—Voltamos ao “senhor”... Tive um bom dia, bem lucrativo. — Ele
não fazia menção de sair da sala de banho.
— Está aguardando para usar a banheira?
— É um convite para que eu entre aí com você?
— Não falei nada disso!
Jean Pierre deu de ombros. À vontade, como se estivessem numa
sala de estar, e não na intimidade de um quarto de banhos, comentou:
— Minha mãe era de origem austríaca e nos ensinou que devemos
tomar banho diariamente, um hábito pouco usado há algum tempo atrás.
— Minha família sempre incentivou banhos diários. Higiene é saúde
— retrucou ela.
— Compartilhamos um hábito em comum... Acha que eu poderia lhe
causar algum problema se tomássemos banho juntos?
— Tenho certeza que causaria!
Ele deu uma risada, e o rosto bonito ficou mais gentil:
— Camille, o que você tem de bonita, tem de estranha. Gostaria que
soubesse que a sinceridade é um dom que eu aprecio.
— Eu também.
— De verdade?
— Sim.
— E tem algo mais a me dizer, além disso?
— Não sei do que está falando.
— Quem é você, Camille?
— Eu já disse. Sou uma moça que perdeu seus bens e que vai em
busca de uma vida nova.
— É lamentável que tenha feito essa escolha.
— Não sei por quê.
Camille tinha a impressão de que não falavam da mesma coisa.
Ele a observava com os olhos semicerrados:
— Acha bom o que está fazendo com sua vida?
— Eu viverei muito bem a minha vida, obrigada.
— Claro, a escolha é sua, se pode realmente conviver com ela.
— Sim, eu escolho aonde ir.
— E com quem ir.
Ela franziu o cenho:
— Certamente.
Jean Pierre estava furioso, de uma forma que espantava a ele mesmo.
O que aquela jovem adorável estava pensando ao decidir partir para outro
país ao encontro de um amante, como uma dama sem valor, sendo tão
inteligente, como sabia que ela era? Não era realmente preconceituoso, não
julgava-se superior, mas não conseguia aceitar o desperdício que seria uma
jovem culta, de boa família, entregar-se a uma vida em que seria nada mais
que um brinquedo nas mãos de homens ricos e certamente de baixa moral.
Talvez até violentos!
Jean Pierre coçou o queixo, preocupado. Ouvira diversos relatos de
belas cortesãs que sofreram nas mãos de seus “protetores”. Deveria falar
sobre isso com Camille, ou soaria como uma tentativa desesperada demais
para seduzi-la? Melhor trazer o assunto à baila num outro momento futuro,
afinal agora contava com sua proteção, na segurança da mansão dos
Deschamps.
E se era mesmo uma prostituta de luxo, porque negava a ambos a
oportunidade de um envolvimento, quando era óbvio que se desejavam?
Conter sua ira estava se tornando uma prova difícil. Nunca fora um homem
agressivo, mas agora tinha vontade de pegar Camille e sacudi-la. Depois
cobri-la de beijos, despir-se, e fazer amor com ela até que ambos
desmaiassem de cansados.
— Você poderia sair agora? — Camille perguntou, aborrecida.
Jean Pierre voltou seu olhar à bela sereia na banheira.
— Poderia, mas não vou sair.
— Então pode pegar a toalha para mim, por favor?
— Posso. — Pegou a toalha, mas ficou com ela na mão.
Camille engoliu em seco.
— Pode me entregar?
— Não.
— Jean Pierre...
— Repita meu nome outra vez. Gosto da forma que você diz.
— Jean Pierre, por favor, me passe a toalha.
— Venha buscar, querida... — ele falava com voz macia.
— Jean Pierre, me dê logo essa toalha! — ela gritou, enfim.
Ele sacudiu a toalha, sorrindo:
— Está bem aqui!
— Por que está fazendo isso comigo? — Camille choramingou.
— Parece óbvio, não é? Quero vê-la nua. Quero ver se é tão
encantadora sem roupas quanto é quando está vestida.
— Não pretendo exibir meu corpo para você. Vai ficar cansado de
esperar, pois não levantarei daqui.
— Verifiquei a temperatura da água agora a pouco, lembra? Em breve
estará tão fria que você não terá escolha a não ser levantar-se. Então será
como ver a deusa Vênus emergir das espumas do mar... Pretendo esperar esse
acontecimento. E não tenho pressa.
Camille suspirou. Ele estava certo. A água já estava esfriando e ela
não aguentaria muito tempo imersa no gelado. Além disso, a espuma estava
se dissipando, e seus seios ficariam visíveis logo, e depois também todo o
resto poderia ser visto por ele, mesmo que continuasse na banheira.
Felizmente não precisou esperar que isso acontecesse. Violet bateu na
porta e entrou. Espantou-se de ver que o patrão estava ali sentado, e olhou-o
com ar de censura.
— Vim ver se deseja mais água quente, senhora.
— Obrigada, Violet. Mas só preciso mesmo de uma toalha.
Violet tomou a toalha da mão de Jean Pierre sem a menor cerimônia,
e a entregou a Camille, tapando a visão do marquês e permitindo que a moça
já saísse enrolada da banheira.
— Você é uma estraga prazer, Violet — Jean resmungou.
— Sempre às ordens, senhor. Vamos, senhorita?
As duas passaram lançando um olhar gélido ao homem sentado na
cadeira, e saíram do aposento.

***

— Você o enfrenta, Violet!


— Minha mãe trabalhava para a mãe dele, então crescemos juntos na
mesma casa. Eu o respeito como patrão, mas não lhe passo a mão na cabeça.
Ele gosta assim mesmo do meu trabalho.
— Como ele é, Violet?
— É desregrado, mas tem bom coração.
— Ele já tentou com você... Bem... Você sabe...
— Ah, não, senhora. O fato de termos sido companheiros de
brincadeiras na infância nos deu um certo sentimento fraterno, e ele toma
conta de mim. E disse que só saio daqui casada. Ele zela pela minha
integridade, mas não zela pela dele próprio. É irônico.
A criada ajudou Camille a vestir-se.
— Violet, gostaria de jantar no quarto mesmo, se possível.
— Sim, senhora.
Violet era discreta, e não fez comentário ao que lhe devia ter parecido
óbvio: Camille queria manter distância de Deschamps.
Camille estava vermelha de vergonha, consciente que o assédio do
marquês era ostensivo, e não se deteria nem diante dos criados. Melhor evitá-
lo até que pudesse partir.
Depois do jantar, que não conseguiu engolir e devolveu intocado à
criada, trancou-se no quarto. E demorou a conseguir pegar no sono.
CAPÍTULO VII

No outro dia recusou a refeição matinal e o almoço. Não quis sair do


quarto até a tarde, quando a beleza do jardim a atraiu. Estava admirando as
flores quando Jean Pierre aproximou-se.
Sobressaltou-se quando a figura máscula pôs-se diante dela .
— Camille, minha criada falou que tem se alimentado mal há algum
tempo e passou a maior parte do dia de hoje trancada no quarto, sem permitir
nem mesmo que ela entrasse para cuidar de você. Esqueceu que está
convalescendo e precisa alimentar-se? — A expressão e a voz dele eram
surpreendentemente gentis.
Camille piscou, surpresa.
Ele continuou, num tom brincalhão:
— Além disso, os homens não gostam de mulheres magras demais.
Por favor, dê-me a chave do quarto. — Abriu a mão em direção a Camille.
— Não.
— Dê-me a chave, é para seu próprio bem. Deixe Violet cuidar de
você e pare com essa bobagem de não alimentar-se.
— Eu vou me alimentar, então. Mas a chave fica comigo.
Ele lhe deu seu mais belo sorriso:
— Quer manter a chave do quarto para impedir que Violet entre ou
que eu entre, afinal?
A jovem sentiu o rubor nas faces.
Jean Pierre aproximou-se ainda mais, sua voz agora um doce
sussurro:
— Minha querida, adoro quando a vejo ruborizada. Como consegues?
Isso indica que é mesmo por minha causa que quer a porta trancada. Tem
medo de mim ou tem medo de si própria? Não entendo porque resiste aos
meus carinhos.
Suas mãos entrelaçaram as dela.
— Acha que eu seria capaz de machucá-la se entrar em seu quarto?
— Não...
— Então vamos, minha querida, dê-me a chave.
Ela cedeu. Soltou-se dele e tirou a chave lentamente de dentro do
decote e lhe entregou.
— Que belo esconderijo tem aí...
Ela baixou os olhos, sentindo ruborizar novamente. Jean ergueu-lhe o
queixo.
— Está usando essa área espetacular de forma inadequada. Posso
pensar em coisas muito melhores a serem feitas aí.
Beijou-a com a mesma doçura que sempre se iniciavam seus beijos, e
que sempre faziam Camille amolecer. Enlaçou-a, tocando suas costas. A
jovem sentiu a pressão do corpete relaxar e percebeu que seus seios
começavam a escapulir de dentro do vestido. O marquês havia conseguido
habilmente soltar os cordões de sua roupa. Quando os mamilos emergiram do
decote, túrgidos, ele suspirou, admirando-os:
— Como eu supunha, são magníficos.
Sua boca beijou-os com avidez.
Camille gemeu, deliciada. Abraçou-o.
— Camille, eu a desejo tanto...
E como ela também o desejava! Em seus braços não conseguia pensar
com clareza. Nunca havia sido tocada dessa forma antes. Não era considerado
de bom tom mulheres solteiras abraçarem rapazes, e nem mesmo caminhar de
mãos dadas com eles. Mas Jean tocava-lhe as mãos, a cintura, as costas...
Abraçava-a com frequencia, e agora... Agora lhe despia e beijava não
somente sua boca e pescoço, mas também seus seios! Ela estava sem fôlego
enquanto ele tentava erguer sua comprida saia, de várias camadas.
— Tanto tecido... — resmungou ele. — O que acha de irmos para o
meu quarto? Lá poderemos nos desfazer dessas roupas.
As palavras dele tiveram o poder de despertá-la do torpor em que se
encontrava. O encanto quebrara. Deu um passo atrás, balbuciando:
— Não vamos estragar tudo, marquês — enquanto falava, procurava
arrumar o decote. — Isso não vai acontecer.
— E por que não?
Ela arregalou os olhos verdes.
— Porque sou uma moça direita!
Ele estourou em uma risada sarcástica:
— Está falando sério?
Ela ficou confusa com a ironia:
— O senhor é mesmo um libertino! — Correu para dentro de casa, o
mais distante possível dele.
Jean Pierre estava quase fora de si. Como ela podia resistir às suas
investidas? O que havia de errado com ele? Sabia que sua aparência agradava
às mulheres, e que Camille sempre tremia em seus braços. Por que ela não se
entregava logo, já que estava acostumada a isso? Até quando ia fingir que era
uma mulher honesta? Temia tanto assim que ele a botasse para fora por ser
meretriz ou será que desejava que ele lhe pagasse os serviços quando já lhe
cedera hospedagem? Não iria, de jeito nenhum, pagá-la por favores de
alcova. Queria sucesso na conquista e não iria desistir até possuí-la. Se ela
queria fingir algo que não era, era mesmo muito hipócrita!
Correu atrás dela subindo de dois em dois os degraus que levavam aos
quartos e alcançou-a quando já estava entrando em seu aposento. Segurou seu
braço com brusquidão:
— Não fuja de mim, Camille!
— Largue-me! Não sei quem és tu, mas não se parece em nada com o
homem que me recebeu em sua casa, o cavalheiro que se preocupava com
meu bem estar! Afinal, porque me acolheste? Pensa que só porque estou aqui
hospedada sou obrigada a ceder a teus caprichos masculinos? Uma mulher
tem direito de escolha, também!
— Então acha que não sirvo para você? É muito exigente, sabia?
Ele a apertava com tanta força que Camille começou a sentir medo.
— Pretende me forçar? Pois só mesmo à força me fará deitar com
você!
Jean Pierre arregalou seus belos olhos, ofendido:
— Nunca precisei forçar mulher nenhuma a deitar-se comigo, e nem
farei isso com você! — Largou seu braço, bruscamente. — É muito sonsa!
Deixa a toda hora que eu te beije e te acaricie e depois finge que não gosta.
Que jogo é esse que tu fazes?
— O jogo é teu! Você que me beija, e abusa de mim!
Ele riu:
— Eu abuso? Essa conversa é totalmente absurda!
Pararam de discutir, e se encararam como dois gladiadores em uma
arena, prestes a se enfrentar em luta braçal.
Por segundos intermináveis mantiveram-se assim, os olhos brilhando
de raiva, os peitos ofegantes acalmando-se pouco a pouco.
Jean respirou fundo, e falou em voz pausada, já se controlando:
— Eu não vou mais tocar em você, se quer realmente assim.
Camille suspirou, puxando o ar dos pulmões com força antes de falar:
— Agradeço por isso — respondeu a moça, o coração desacelerando.
O marquês suspirou, e ergueu as mãos, num sinal de rendição e paz:
— Ia dizer-lhe, antes, no jardim, que tenho convites para ópera hoje à
noite. Gostaria de acompanhar-me?
Camille titubeou. O homem sem dúvida a deixava confusa. Agora
parecia tão tranquilo e controlado... Respirou fundo antes de responder:
— Sinceramente, não sei se devo.
— Não te preocupes, não existem camas no teatro. — Ele gracejou.
— No jardim também não, mas isso não te atrapalhou.
Os dois sorriram, diminuindo a tensão.
— Serei um cavalheiro antes, durante e depois da ópera.
— Porque quer levar-me?
— Quero exibi-la — ele falou sem preâmbulos. — És a mulher mais
bela da França, a dama mais linda de Paris.
— E o que dirá a teus amigos sobre mim?
— O que quiseres que eu diga.
— Não me apresentará como tua amante, não é?
— Você é minha amante?
— Não.
— Então por que eu diria isso? — Jean Pierre indagou, com
simplicidade.
Camille deu de ombros. Pigarreou, antes de continuar:
— Pode me apresentar apenas como tua hóspede, como uma amiga?
— Sim, como quiser.
— Pensarão que é meu pretendente. É isso que deseja que pensem?
Que estás me fazendo a corte?
— Sim. Exatamente. Que a quero. Muito.
Camille desviou o olhar.
— Você é bem sincero.
— Eu disse que aprecio a sinceridade.
— Está me cortejando mesmo?
Ele lhe sorriu enviesado. Um Ar de malícia em seu rosto:
— Parece que sim.
Camille sacudiu a cabeça, contendo um sorriso. Jean a desarmava
com seus modos. Perguntou, bem baixinho, sem encará-lo:
— Sempre tenta levar as damas para sua cama?
— Depende da dama — ele respondeu, também em voz baixa.
— E eu sou do tipo que gostaria de levar a sua cama?
Os olhos dele brilharam.
— Certamente. Mas sugiro que pare com tantas perguntas, antes que
briguemos de novo. A não ser que agüente as conseqüências de ouvir todas as
minhas respostas.
Camille pensou um pouco. Será que gostaria mesmo de saber tudo
que ele pensava sobre ela? Achava que não. Por alguma razão, que ela
ignorava, ele não a tratava com o respeito devido a uma moça de família.
Temia ouvir, direto da boca do homem amado, que não a achava digna pelo
fato de viajar sozinha, ou de não ter mais um pai, ou por não possuir bens.
Não suportaria,além das intimidades, ser tratada com desprezo por ele.
— Está bem, chega de perguntas.
— Bem, estou sacudindo a bandeira da paz! Que tal irmos à ópera?
— Irei contigo à ópera, se me responder apenas a mais uma pergunta,
com sinceridade.
Jean lhe deu um sorriso travesso:
— Não importará se não te agradar da resposta?
— Não importará. Só quero que responda.
— Então pode perguntar.
— Disseste que não tocará mais em mim, se assim eu quiser.Significa
que posso ficar tranqüila, e isso valerá para sempre?
— Não. Mas valerá para hoje.
Ela esfregou a testa, sem saber se devia rir ou lamentar-se.
— Você disse que queria uma resposta sincera... — retorquiu,
adivinhando-lhe os pensamentos.
— É verdade, eu disse. Irei à ópera, mas não sei se tenho a roupa
adequada.
— Venha comigo.
Ela o seguiu até outro quarto de hóspedes. Havia um armário cheio de
belos vestidos, e muitas joias sobre uma penteadeira.
— Fique à vontade — disse ele, fazendo um gesto amplo com a mão.
— E se a dona de um desses belos vestidos encontrar-se comigo na
ópera? Não quero ser humilhada por uma de tuas amantes.
— Isso seria impossível. Esses vestidos e essas joias pertenciam à
minha mãe.
— Oh, me perdoe por ter sido tão indelicada... — Desculpou-se,
constrangida por sua gafe.
— Não há porque se desculpar, como você poderia adivinhar?
Escolha um vestido, estou certo que qualquer um deles lhe servirá. Minha
mãe conservou um belo corpo até a morte.
— Minha mãe também teve um belo corpo até morrer.
— Isso é um bom sinal. Não morreremos gordos. — Gracejou ele.
Ela riu.
— Ai, que comentário terrível!
— É verdade. — Ele riu também, satisfeito por estarem conseguindo
manter-se num mesmo recinto sem discutir, e sem o clima de tensão que
sempre os cercava. — Gostou de algum vestido?
— São todos lindos! Alguma sugestão?
— O vermelho.
— Que assim seja. Acho que é mesmo o mais bonito de todos.
— Use também esse conjunto de rubis. Eles combinam.
Jean Pierre veio por trás de Camille e colocou um lindo colar de
pedras vermelhas em seu pescoço. Sussurrou próximo ao seu ouvido:
— Deseja que eu lhe ajude com o vestido?
Ela tremeu:
— Você disse...
Jean não estragaria a impressão de paz que sentira antes, portanto
resignou-se.
— Está bem, eu deixarei o quarto. Experimente à vontade. Sairemos
depois do jantar.
CAPÍTULO VIII

O marquês engoliu em seco ao ver Camille descendo as escadas.


Estava lindíssima. O vestido de brocado vermelho caía-lhe extremamente
bem, o colo perfeito valorizado pelo precioso colar de rubis. Violet lhe havia
feito um penteado da moda, que dava destaque ao rosto de porcelana e
deixava bem visíveis os brincos de pedras. E os lábios carnudos estavam
vermelhos na mesma tonalidade do vestido: rubro como o sangue. Lábios que
pediam para serem beijados!
— Está encantadora! Nunca vi mulher mais bonita que você!
— Também está bonito! Gostei muito de seu fraque e de seu cabelo
preso com a fita de cetim! Acho que estamos combinando!
— A intenção é que nós combinemos. — Piscou o olho para ela.
— Marquês! — Repreendeu-o.
— Eu sei, nada de mãos atrevidas e avanços indesejados! —
Aproximou-se, admirando a nuca exposta, tão perto que ela podia sentir seu
hálito quente e agradável. — Mas as palavras, estão liberadas?
— Vamos logo, antes que eu mude de ideia!
A expressão dele ficou subitamente séria:
— Antes preciso lhe pedir uma coisa.
Camille suspirou.
— O que seria?
— Ficarei comportado, mas tu também ficarás. Não admitirei que
aceite galanteios de outro homem, ou qualquer coisa do gênero.
— Por que eu aceitaria?
— Diz-me tu o porquê.
— Não compreendo. Quer que eu vá ou não?
— Sim, quero.
Não diria a ela, já que ela mais uma vez não admitiu, mas temia
que Camille encontrasse alguém mais rico que ele, e enfim se mostrasse
como a meretriz cara que realmente era.

***

A ópera escolhida pelo marquês era sobre uma historia de amor entre
o deus Júpiter e a ninfa Io, e se chamava “Isis”. Estava fazendo sucesso junto
ao público. Enquanto Camille debruçava-se no camarote, encantada com o
que estava sendo contado, Jean Pierre divertia-se com a quantidade de
binóculos voltados para ela. A jovem parecia ser mais interessante do que o
que estava sendo apresentado no palco. Ele inclinou-se para falar-lhe mais de
perto, a fim de se fazer ouvir em meio ao som dos cantores.
— Todo o teatro está interessado em ti. Você é a dama mais bonita
aqui presente.
Ela olhou em volta, vagamente.
— Parece que estão curiosos.
Ele sorriu, provocante:
— Dou a você esse colar de rubis, se der um sorriso malicioso e
morder os lábios como quem ouve um galanteio erótico.
Camille deu uma risada, surpreendida com o pedido inesperado.
— Mas isso também serve... — O sorriso dele se expandiu ao vê-la
dando a risada. Era espetacular. Precisou se conter para não aprisioná-la em
seus braços mais uma vez, coroando-a com um beijo intenso. — Você é
impressionante!
Camille não se deu conta do olhar cobiçoso do marquês ao seu lado.
Respondeu com naturalidade, olhando-o rapidamente antes de voltar sua
atenção novamente ao palco:
— Achei graça em tua proposta louca. Por que eu precisaria receber
um pagamento para sorrir ou para fazer qualquer outra coisa? Ainda por cima
um colar valioso, que pertenceu a sua mãe! Que ideia!
Jean franziu o cenho, intrigado. Ela rejeitou o colar de rubis! Que tipo
de cortesã dispensa um presente caro?
Ela interpretou o silêncio dele erroneamente:
— Agora que demos a eles assunto para toda semana, posso assistir a
ópera, não é mesmo?
— Sim, claro, Camille. Não incomodarei mais.
No intervalo, Jean Pierre levou sua convidada para circular fora do
camarote. Logo que saíram para o corredor, encontraram-se com Constance
Césaire. Ela era uma das cortesãs mais caras e mais bonitas da França, de
olhos azuis e cabelos louros platinados. Porém, não era tão bela quanto
Camille. Ao ver o marquês e sua acompanhante aproximarem-se, parou para
cumprimentá-los amigavelmente. Jean ansiava intimamente por esse
encontro, queria saber se elas já se conheciam pessoalmente ou apenas de
ouvir falar. No entanto, nada no comportamento cordial entre elas durante as
apresentações demonstrou um conhecimento prévio.
— Como é linda, senhorita! — disse Constance, sinceramente. Não
era uma mulher dada a afetações ou inveja. Seu comportamento perante todos
era sempre afável, mesmo que certas pessoas a ignorassem ou a tratassem
com frieza, em razão de sua posição junto a sociedade. — Oh, vejo que seus
cabelos escondem um curativo. Machucou-se hoje?
— Oh, não. A pancada já foi há alguns dias, estou melhorando.
Obrigada — Camille respondeu, com cortesia, sorrindo no final.
Ela não citou a história do naufrágio, observou Jean. Se contasse, com
certeza Constance imediatamente saberia que falava agora com a Rainha das
prostitutas da França, e lhe faria uma longa reverência. Ou seu rosto
demonstraria o temor de perder seu posto.
Despediram-se. Logo um grupo de ruidosos e belos rapazes se
aproximou. Jean Pierre lhes lançou um olhar de advertência, que os amigos
pareceram entender. Aproximaram-se educadamente:
— Boa noite, marquês Deschamps!
— Boa noite, senhores. Essa é a senhorita Camille Dubois.
Um por um os companheiros boêmios de Jean Pierre se apresentaram:
— Fabien LeBlanc, a seu dispor.
— Barão Bernard Lumière, seu criado.
— Alberte de Cezane, encantado.
— Enrique Florian, absolutamente encantado!
Ela os cumprimentou com uma ligeira mesura, baixando os olhos ao
inclinar a cabeça. Esforçou-se para não parecer muito simpática, e ofender
Jean Pierre. Os cavalheiros a admiravam sem sequer piscar.
— Senhor marquês, incomodar-se-ia que eu voltasse ao camarote?
Sinto-me um pouco cansada. — Pediu ela, imaginando acertadamente que
aqueles eram os amigos de farra do marquês, e preferindo evitá-los.
— Vou acompanhá-la. — Prontamente respondeu.
— Não é necessário, converse com seus amigos um pouco. Com
licença.
A jovem voltou ao camarote, e os homens cercaram o marquês.
— Que moça espetacular!
— Onde achaste essa beldade?
— Ela está hospedada em minha casa.
— Então é verdade o que andam dizendo, que tem uma moça
morando com você! — exclamou Alberte. — E não disseste para nós!
— Ela não mora comigo, ela é minha hóspede.
Os amigos trocaram olhares cúmplices antes de voltarem a
bombardear Jean.
— Só dormem juntos... — replicou Florian.
— Também não.
— Ela apenas faz sexo contigo! — Todos riram.
— Não fazemos sexo. — Jean Pierre sorriu
Os rapazes silenciaram, um tanto perplexos.
— Bem, então... — LeBlanc passou a mão nos cabelos, com
expressão confusa.
— Ela sofreu um acidente. Eu a acolhi. E ela tem ficado em minha
casa desde então.
— Oh, Deus! É uma dama de família! — exclamou Florian.
— Seriamente, Jean? — Outro indagou, sobressaltado.
O barão Lumière ficou sério:
— Por que você fez isso, Jean Pierre?
— Por que fiz o que?
— Você sabe. Antes se falava de uma moça vivendo em sua casa, mas
era só especulação, e nem nós, teus amigos, achávamos que era sério. Agora
você deu a ela rosto, nome e sobrenome! Sabe muito bem que circular com
ela à noite irá destruir-lhe a reputação de moça direita. Por que faz isso a uma
jovem tão bela e delicada?
Os amigos de Jean estavam quietos agora, aguardando uma resposta.
Enrique Florian quebrou o silêncio:
— A não ser que a reputação não tenha importância, e que ela não
tenha uma a zelar. Afinal, de onde ela veio?
— Ah, mas agora não importa mais de onde ela veio, não é mesmo?
Depois de se hospedar alguns dias com um homem solteiro, ainda por cima
um com a fama de Jean Pierre, sua má reputação a precederá em todos os
cantos da França. A menos que já esteja noiva ela não arrumará mais nenhum
pretendente decente depois dessa história. — Insistiu o barão, visivelmente
aborrecido.
— E o que isso te importa? — questionou o marquês.
— Não está certo, e sabe disso. Ela não parece uma rameira.
— Eu não disse que era.
— Mas ela sabe que você assim a faz parecer? — perguntou Alberte.
— Não faço, não. Vocês é que pressupõem. Eu só quis trazer uma
bela mulher à ópera!
— Quis exibi-la! — retorquiu Fabian — Que coisa feia, Jean!
— Ela é uma prostituta? — indagou Enrique rispidamente e com
expressão irritada. — Porque se for, com certeza quero-a depois que você
terminar de usá-la.
Jean Pierre agora estava furioso:
— Não quero mais conversar com vocês! Acabarei por fazer alguma
besteira! — deu-lhes as costas, e entrou no camarote. Havia três rapazes
sentados a volta de Camille.
A fúria de Jean Pierre explodiu:
— Saiam agora! Como se atrevem a dirigir-se a uma dama sem seu
acompanhante presente?
— Marquês, viemos cumprimentá-lo — respondeu um deles,
assustado.
— Estávamos apenas o aguardando. — O outro defendeu-se.
— Muito bem, já falaram comigo. Agora, saiam.
Os rapazes saíram, cumprimentando Camille com uma mesura.
O marquês olhou para a moça, raivoso:
— Não lhe pedi que se comportasse?
— Não fiz nada! Eles acabaram de entrar aqui à sua procura!
— Sabe muito bem que eles vieram atrás de você! Eles já a haviam
visto da plateia! Aproveitaram que eu não estava aqui.
— Céus, eles não fizeram nada! Ninguém me faltou com o respeito!
— E o que você entende sobre respeito?
— Com certeza mais do que você, que não demonstrou ter um pingo
dele todos esses dias! Nunca vi uma pessoa com comportamento mais
disparatado do que o teu! Você não se decide se é um homem distinto ou um
doido completo!
Ele sentou-se ao lado dela, esfregando as têmporas:
— Lamento meus modos.
Jean estava abalado com a reprimenda que havia levado de seus
melhores amigos. Quem eram eles para julgar seu comportamento? Eram tão
lascivos quanto ele, talvez até piores. Eles reclamavam de seu modo de agir
porque não sabiam quem Camille era realmente, mas ele sabia, não sabia?
Por que zelar pela reputação de uma cortesã?
O problema é que as atitudes dela não condiziam com as de uma
prostituta. Agora estava realmente irritado com aquele fingimento sem
propósito. Iria acabar com isso de uma vez por todas, ele a forçaria a se
mostrar de verdade, a qualquer custo.
— Gostaria de ir embora — disse ela, aborrecida.
— Vamos assistir a ópera até o final, como o combinado. Eu ficarei
calado.
— A sua ira está pairando aqui. Não conseguiremos aproveitar a
ópera dessa forma.
— Você é muito sensível, minha cara. Vou me controlar, aproveite o
espetáculo.
Jean Pierre manteve-se calado, porém a raiva que sentia vinha em
ondas, erguendo-se a todo instante. Mas de onde vinha e para onde ia tanta
raiva? Seria contra seus amigos, contra Camille, contra os admiradores da
platéia ou contra ele mesmo?
Ainda cumprimentaram alguns conhecidos ao fim da ópera, e depois
seguiram na carruagem em silêncio. O marquês agradeceu secamente a
companhia de Camille ao chegarem à mansão, mas ela não respondeu,
seguindo direto para o quarto de hóspedes.
CAPÍTULO IX

Ela sonhara com seus falecidos pais. E com Marguerite, que havia
sido tragada pelo mar por culpa sua. Ficou deitada na cama por algum tempo,
com os olhos abertos a fitar o teto. Sentia-se vazia. As únicas pessoas que
ainda se importavam com ela, Lucy e Gerárd, viviam em outra parte do
mundo, acreditando que ela estava bem, hospedada com alguma vizinha em
Lyon. Se soubessem que ela estava na capital, alojada na casa de um homem
que diariamente a assediava ou ofendia, ficariam loucos. Mas o que Camille
poderia fazer nessas circunstâncias? Ficara dias desmaiada, sem alimentar-se,
e o corte na cabeça ainda não estava bem fechado. Viajar debilitada em uma
longa excursão de navio seria um sério risco
E, além disso, o restante de suas economias, as joias da família que
não serviram para o pagamento de dívidas, e a prataria que havia sobrado,
jaziam agora dentro de um baú nas profundezas do oceano. Como pagaria a
passagem? Precisaria de muita coragem para pedir um empréstimo ao
marquês, e podia adivinhar que esse negócio lhe seria muito, muito caro. E
estava um tanto apaixonada por ele, apesar de tudo. Odiava-se por isso, por
gostar daquele devasso que tirava-lhe do sério a hora que desejasse. Mesmo
com todo o risco que ficar ao seu lado trazia, gostava de conversar com ele,
quando se mostrava divertido e rápido com as palavras. Voltar à sua cidade
natal também estava fora de questão, pois não tinha mais nada lá. Sentia-se
como uma marionete do destino, sem forças ou ânimo para lutar diante da
sucessão de coisas ruins que vinham lhe acontecendo já há algum tempo.
Ah, como se sentia oca, como que entorpecida... Por que não havia
morrido no lugar de Marguerite? A morte teria sido um alívio, o fim de seu
sofrimento, da humilhação de um amor impossível.
Tomou a refeição matinal trazida por Violet a contragosto, somente
para evitar uma manifestação negativa por parte do dono da casa. Sabia que
se não comesse, a criada contaria ao patrão e ele viria com tudo para cima
dela. E invariavelmente, em um embate com Jean Pierre, Camille acabava
seminua ou humilhada, ou ainda as duas coisas juntas.
Quando foi informada de que Jean Pierre havia saído para fechar
negócios com lojistas do outro lado da cidade, sentiu-se mais à vontade para
passar o dia na cama. Não tinha vontade de levantar-se, o sonho com os entes
queridos trazendo-lhe uma terrível saudade dos tempos felizes, quando
passava as tardes brincando com a irmã ou com algumas amigas das
residências vizinhas. E agora quem não estava morto, havia se casado e ido
embora. Camille sobrara. Seu pai havia partido em viagem antes de acertar-
lhe algum casamento, e morrera doente pelo caminho. E ela, sozinha,
endividada e inexperiente nos negócios financeiros, não era atraente para os
pretendentes ricos, e nem se interessava pelos pretendentes mais pobres do
que ela. Aliás, nenhum rapaz de sua cidade a interessava. A irmã e o cunhado
sugeriram que ela poderia arranjar um bom marido português graças a sua
beleza, talvez até um nobre da corte, e essa era uma das razões de sua
viagem, mas no momento estava sem amigos, sem pretendentes, sem
família...
Sentia-se doente e com pena de si mesma.
Olhava o entardecer descer pela janela próxima ao leito, quando ouviu
batidas na porta. Pediu que a pessoa do outro lado entrasse, mas não ergueu-
se do leito.
Estava tão apática que pouco lhe importava quem estava entrando.
Jean Pierre entrou, sorridente e lindo, usando uma casaca marrom
com botas de cano longo da mesma cor. Trazia um vaso de flores exóticas na
mão.
— Boa tarde! Percebeste que bati na porta antes de entrar, dessa vez?
Estive fechando negócios perto do mercado das flores e vi esse espécime,
belo como tu. Achei que as folhas têm um tom de verde semelhante à cor dos
seus olhos. E as flores são diferentes de tudo que costumamos ver por aí.
Ele era surpreendente! Como um homem podia ir de um extremo ao
outro com tanta rapidez? Camille gostaria de saber quantas facetas tinha o
marquês.
— Obrigada, são lindas. Pode deixar na mesinha?
Ele aproximou-se, franzindo as sobrancelhas ao vê-la com olhos tão
vermelhos e inchados. Preocupava-se com ela. Havia pensado em Camille
toda a manhã, e entendido que seu comportamento no dia anterior não
ajudaria a conquistá-la. Havia algo naquela francesinha bonita que o fazia
comportar-se dos modos mais absurdos, confundindo-o a ponto de dizer
tolices impensadas e agir de maneira pouco peculiar. Agora vê-la tão abatida
o arrasava de vez.
— O que aconteceu? Andou chorando?
Ela virou para o outro lado, sem responder.
— Camille, esteve chorando o dia inteiro?
— Sonhei com meus pais essa noite. Sonhei com um tempo sem
preocupação, em que eu era apenas uma filha amada e paparicada, e vivia na
companhia de Lucy e Marguerite. Esses tempos estão muito distantes...
Ela pôs-se a chorar novamente, um choro cansado, sem soluços ou
escândalo, apenas um rolar de grossas lágrimas que pareciam sem fim.
Jean Pierre sentou-se a seu lado na cama, abrindo-lhe os braços:
— Venha aqui, Camille.
Ela virou-se e aceitou ser reconfortada por aquele abraço. Ele repetiu
a cena do primeiro dia em que se conheceram, apenas sendo gentil, silencioso
e respeitador. Continuou chorando, o peito sacudindo contra o coração dele,
num compasso combinado e confortador. A calma foi dominando-a bem
lentamente, e o aconchego era tão agradável, que acabou adormecendo junto
a Jean. Acordou horas mais tarde, já próximo ao horário da ceia,
descobrindo-o também adormecido, ao seu lado. O movimento dela o
despertou.
Estavam agora deitados frente a frente, se encarando, em um
momento que parecia mágico, distante de tudo a volta.
Parecia que estarem juntos era tão certo, tão perfeito...
O coração lhe dizia que aquele homem era seu destino, seu refúgio...
desejava-o com intensidade, com amor.
Então Camille aproximou-se do marquês no leito, oferecendo-lhe os
lábios.
O beijo reacendeu o fogo de Jean Pierre. Ele grudou-se nela, a boca
logo explorando-lhe a orelha,percorrendo o pescoço, e descendo cada vez
mais.
O vestido ia sendo retirado à medida que ele a beijava. Na altura do
umbigo o marquês descobriu, maravilhado, que ela não estava usando calças
ou ceroulas, e que não havia mais nada ali que o impedisse de possuí-la
rapidamente. Ela estava na cama, nua e solícita, e finalmente seria sua.
Camille sabia que ele estava novamente passando muito dos limites, e
dessa vez não somente com o consentimento dela, mas também com seu
incentivo, já que se oferecera a ele tão docilmente. Uma parte dela gritava
que precisava impedir a consumação daquele ato, e outra parte ansiava
desesperadamente por sua conclusão. Os beijos e as mãos de Jean não
permitiam que pensasse com clareza, seu corpo estava mole, derretendo por
completo no fogo da paixão que aquele homem maravilhoso lhe acendia.
O marquês despiu-se, afastando as pernas da jovem deitada, para
enfim possuí-la.
Camille nunca havia estado com um homem nu, e foi diante da
impressionante nudez de Jean Pierre que ela teve medo, e desistiu do que
estava fazendo, buscando desvencilhar-se mais uma vez.
Ela tentou fugir, flexionando as pernas e rolando na cama, evitando
que ele ficasse por cima. Jean, por sua vez, entendeu aquilo como um tipo de
jogo, e rolou junto com ela, forçando-a para baixo dele. O rolar de corpos,
tensos e excitados, durou alguns minutos, até que finalmente a força física do
marquês a subjugou, e Camille ficou derrotada, por baixo dele, extremamente
vulnerável e de olhos assustados. Ele pressionou a cintura dela com firmeza
contra os lençóis, para que não tentasse mais fugir e sorriu:
— Chega de brincadeira, meu bem, pois não aguento mais. Estou
totalmente louco por você, mas não tenha medo, pois não danificarei a
mercadoria. Teu amante jamais saberá que foi tocada por outro.
Amante? Mercadoria? Do que ele estava falando? Agora é que ele não
iria mesmo possuí-la! Pôs as duas mãos nos ombros dele e empurrou-o longe,
com toda a força de seu corpo, levantando-se com um pulo.
— O que? — ele gritou surpreso — Me repele novamente? Não
mesmo! Estou cansado desse fingimento!
Ele tentou forçá-la a deitar-se novamente, mas Camille se debateu
vigorosamente, já chorando, e ele acabou por soltá-la, praguejando.
— Você é mesmo louca! Você me provocou, você me queria! Estava
cheia de desejo há um minuto atrás e agora me repeles cheia de não-me-
toques? O que há com você, afinal? Essa é a última vez que deixarei passar.
Mas, na próxima vez que aceitar meus beijos e minhas mãos no teu corpo,
terá que ir até o fim, e saciar meus desejos! E pare com esse choro ridículo de
agora, porque não fiz nada que tu não quiseste! Eu não iria lhe violentar!!
Pegou suas roupas e saiu furioso, batendo a porta com violência. A
criada estava passando no corredor e sobressaltou-se ao ver o patrão andando
nu em pêlo.
— Feche os olhos, Violet! — gritou ele, irritado, e pouco se
importando de estar sem roupas. Entrou em seu próprio quarto novamente
batendo portas.
Camille vestiu-se ainda tremendo, e enfiou-se debaixo dos lençóis.
Brincara com fogo dessa vez, e admitiu ter cometido um grande erro ao
baixar a guarda e deixar tanta intimidade acontecer na cama. Não devia ter
permitido que as coisas chegassem aquele ponto e sabia que se fosse outro
homem, teria sido violentada. Ainda bem que por mais irritado que o
marquês tivesse ficado, era um homem nobre. E havia outro fator
preocupante. Ela não entendia nada de homens nus, só havia visto o pai sem
roupas uma vez, por uma fresta do quarto, ao trocar de roupas. Comparou
aquela nudez rapidamente com a de Jean Pierre, e o marquês parecia... Bem,
parecia... muito maior. Era mais sensato mantê-lo longe.
Mas por quanto tempo seria? A situação era perigosa, e a qualquer
momento sairia do controle. Em breve ela iria embora, e precisava levar a sua
dignidade junto. E o marquês julgava que ela tinha um amante! Ela era
virgem, será que ele não percebia? Porque outra razão não teria cedido se não
fosse ainda imaculada? Como poderia chegar em Portugal sem a valiosa
virgindade exigida pelos nobres daquele país e conseguir um bom marido?
Sim, porque evidentemente não era casamento o que o marquês Deschamps
queria dela. E não podia se dar ao luxo, de num rompante, entregar-se a Jean,
mesmo que o amasse. Por mais desejosa que estivesse de cair nos braços dele
e conhecer todas as delícias que o nobre demonstrava saber muito bem, ainda
não tinha perdido todo seu juízo.
Gostaria de simplesmente sumir! As coisas para ela pareciam piorar
cada vez mais!
CAPÍTULO X

Jean Pierre andava de um lado para o outro no quarto, tal qual fera
enjaulada. Como aquela mulher podia novamente rejeitá-lo? O que havia de
tão sério com o mantenedor dela que a impedia de entregar-se a outro mesmo
tão longe de seus olhos? Seria esse homem algum tipo perigoso? Que tipo de
contrato ela havia feito com seu amante? E se ele era assim possessivo,
porque não a mandava buscar? Desejava que Camille fosse logo embora!
Sim, se ela fosse embora, sua angústia enfim acabaria. Mas antes que ela
partisse, faria com que admitisse sua condição de prostituta e parasse de
tentar confundi-lo. Iria colocá-la no seu devido lugar, a maldita.
Ah, Camille não deixava seus pensamentos, enlouquecia-o mais a
cada dia. Seu rosto, sua risadas, sua voz... mesmo quando suas respostas eram
ríspidas, ainda assim Jean a admirava. Oh, Senhor Deus... ele amava aquela
mulher! E não podia aceitar passivamente estar apaixonado por uma
mentirosa sem escrúpulos!
Uma dama que vendia o corpo a quem pagasse mais... Era terrível!
A não ser que ela quisesse mudar de vida...
Ora, é claro que quereria.
O rosto de Jean Pierre foi se iluminando enquanto as ideias iam
surgindo em sua mente.
Então...
Então talvez ele pudesse fazer algo para mudar o destino de ambos.
Sim, era o que faria.

***
Comiam a refeição em silêncio. Camille havia evitado o marquês pela
manhã, mas na hora do almoço ele havia exigido sua presença à mesa. Teve
medo que ele invadisse seu quarto, então preferiu obedecer. Sentia o corpo
ainda sensível e dolorido pelo acontecido no dia anterior, e o desconforto era
tão grande quanto a opressão em sua cabeça. Não tinha apetite. Apesar de
perceber que a comida estava deliciosa, mal conseguia engoli-la. Mastigava o
que havia no prato apenas para evitar uma reação negativa de Jean Pierre.
Assim que terminaram, quando fez menção de levantar-se, ele agarrou sua
mão, forçando-a a continuar à mesa.
— Ouça-me, Camille. Parece muito jovem... E é muito bonita...
Ela sentia seus dedos doerem ante a pressão exercida pela mão forte
de Jean. Ele ignorava a tentativa que ela fazia para fugir desse aperto.
Camille começou a sentir medo:
— Está me machucando de verdade. Por favor...
Mas Jean Pierre não se apercebia da brusquidão de seu toque, tão
focado estava em organizar as palavras que havia treinado durante toda a
manhã para repetir agora. Tinha dificuldade para se manter controlado, e
conseguir aparentar uma frieza que de forma alguma sentia.
— Diga-me, minha querida— ele falou, ignorando a queixa de
Camille— porque não escolheste casar e fazer algum rapaz feliz? Por que
escolheste ser prostituta?
A pergunta pegou-a de surpresa, mais violenta que uma bofetada, bem
pior que a dor que estava sentindo no punho.
— O... O que diz?
— Não precisa mais fingir, nem tentar continuar a me fazer de tolo.
Soube desde o início que era uma cortesã de luxo, mas a hospedei assim
mesmo, para que se recuperasse do naufrágio. Não vi problema na sua
profissão. Não precisava temer que a botasse para fora só por ser meretriz. O
que me incomoda é que não admite quem é.
— Por que pensa que sou meretriz?
— Tuas amigas prostitutas disseram. Aquelas que tu salvaste.
— Minhas amigas prostitutas... Então elas disseram que eu sou uma
delas?
Ele pareceu um pouco desconcertado e afrouxou o aperto de mão por
um minuto, enquanto pensava.
— Bem, não com palavras, realmente. Falaram da sua atitude, que
você arriscou sua vida abrindo-lhes a porta quando o navio já estava indo a
pique.
— Então meu ato de bondade qualifica-me como prostituta... — a voz
dela soou amarga. Começou a compreender o porquê dos modos dele, de sua
insistência para seduzi-la, da fúria ao ter suas vontades negadas.
Jean Pierre passou a acariciar o pulso de Camille com a ponta do
dedo. O misto de carinho e dor era inquietante, abalando ainda mais o frágil
equilíbrio em que ela se encontrava.
— Teve pena daquelas prostitutas porque tinha afinidade com elas, já
que tem a mesma necessidade primária. Salvou-as porque são da mesma
espécie — ele replicou, calmamente.
— E ainda diz que não é preconceituoso... Qual seria essa necessidade
primária?
— Ser sustentada por um homem.
— Eu não preciso ser sustentada por um homem!
— E o que está fazendo agora, na minha casa? Nesse exato momento
vive às custas de um homem, esqueceste?
Camille começou a tremer de raiva e indignação, e seu rosto ficou
vermelho. Vociferou:
— Eu não sou prostituta!!!!
Ele riu, debochado:
— E que outro nome daria ao que fazes com teu corpo em troca de
dinheiro?
Camille estava atordoada. Gritou em resposta:
— Deixarei sua casa imediatamente e partirei para Portugal! Não
aceitarei mais suas ofensas!
— Ótimo! Já devia ter ido mesmo para os braços de teu senhor rico!
Mas como irá pagar sua viagem? — Jean Pierre parecia divertir-se com a
raiva dela.
— Pagarei com meus brincos de esmeralda, aqueles que eu usava
quando me achou à deriva.
Jean Pierre fez expressão de pouco caso:
— Essas pedrinhas não serão suficientes para pagar uma passagem de
alta classe. A não ser que queiras viajar com tuas companheiras rameiras
numa cabine de porão. Nesse caso, reze para que não haja outro naufrágio, ou
se acontecer, que pelo menos haja a bordo uma meretriz em ascensão tão
generosa quanto você foi, e que abra a porta para salvar-lhe.
Camille tentou esbofeteá-lo, mas Jean segurou-lhe o pulso, fechando a
mão com violência sobre a dela. Agora retinha as duas com firmeza.
— Mas eu posso financiar-lhe a passagem. — Acrescentou, com voz
condescendente.
Camille franziu as sobrancelhas, mas concordou com um gesto firme.
— Eu lhe darei meus brincos e meu broche de pérolas como garantia.
Ao chegar a meu destino providenciarei o envio do restante do pagamento em
moedas de ouro.
— Não quero tuas joias e nem as moedas de ouro do teu cliente.
O olhar dele era duro, e a jovem sentiu faltar ar a seus pulmões,
adivinhando o teor do que lhe seria dito.
— Quero que esse teu jogo de gato e rato acabe. Esse será o
pagamento, Camille: passarás uma noite comigo, a saciar-me na cama, de
todas as formas que eu pensar e quiser, mostrando-me o quanto és valiosa, e
eu te comprarei uma passagem de primeira classe, cedendo-lhe também
alguns vestidos para que desfiles, gloriosa, ao lado do teu homem. E eu a
pagarei, mesmo que não aprecie teus serviços. Mas acho que vou apreciar
muito...
Camille estava petrificada com o choque que havia levado ao ouvir a
proposta de Jean Pierre. Sabia que ele lhe diria alguma coisa terrível, mas não
imaginava que sentiria cada palavra dita como um corte em sua alma. Ouvir
aquilo da boca do homem amado era decepção demais. Como o havia
desejado antes? Como havia pensado, por um momento que fosse, que eles
poderiam ter alguma chance juntos? Ele não acreditava nela, e nem lhe dava
chance de defesa.
Fitou-o com as lágrimas brilhando nos cílios, sem força para escapar
dos olhos. Oh... Camille percebia seu choro morrendo, como ela se sentia
morrer naquele instante.
— Tens tempo para pensar, o quanto achar necessário. Como já disse
antes, sua presença embeleza minha casa, e não me importo que fique o
tempo que quiser. Mas acho que gostarás de ver-se livre de mim, já que não
me comporto sempre como um cavalheiro, e vou continuar lhe assediando até
que cedas. Poderá ser cansativo fugir de mim o tempo todo... Aliás, diz-me,
não sou tão asqueroso para vós, não é verdade? Talvez eu seja até mais jovem
e bonito que o homem que a aguarda no Porto.
Camille estava arrasada demais para tentar uma defesa. E ele ainda
prendia suas mãos, que pareciam estar dormentes. Desviou os olhos, fitando
o vazio. Para que dar-se ao trabalho de explicar que o homem que a esperava
era o marido de sua irmã, e como um irmão mais velho para ela? Apenas
concordou com a cabeça, murmurando cansada:
— És mais bonito e mais jovem do que ele.
Ah, se seu cunhado Gerárd soubesse como estava sendo humilhada!
Com certeza desafiaria o marquês para um duelo.
Jean Pierre sorria. Um tipo de sorriso indecifrável, mas que parecia
sem alegria, falso. Soltou-lhe as mãos.
Camille flexionou os dedos, olhando-os perdidamente enquanto o
sangue voltava a circular, trazendo-lhes cor. Dor física era a mais nova
aflição que aquele homem lhe causava. Sentia todo o amor por ele escoar,
perdendo-se em palavras de desconfiança e humilhação. Não suportava
encará-lo e não aguentaria ficar mais um minuto em sua presença. Levou as
mãos às têmporas, sentindo-as latejar.
— Posso levantar-me agora? — perguntou humildemente. — Gostaria
de ir para meus aposentos. Sozinha.
— Ah, sim. Pode me chamar quando resolver aceitar minha
companhia. E não se preocupe, não lhe deixarei marca nenhuma na pele
branca. A não ser que tu queiras...
Camille deixou a sala com uma expressão tão derrotada que Jean
Pierre sentiu o coração apertar-se. Quase correu atrás dela, para ajoelhar-se
diante dela e pedir-lhe que esquecesse aquela proposta horrível. Para abraçá-
la e contar-lhe que estava tão apaixonado que já não dormia direito, não
comia direito, não pensava direito. Que seu corpo doía, que estava em
constante estado de excitação e insatisfação, desesperado pelo dela. No
entanto, conteve-se.
Estava tenso por tê-la chantageado, mas precisava levar aquela
história adiante, pois acreditava que apenas uma noite em seus braços a faria
apaixonar-se por ele. Mostrar-se-ia tão amoroso e terno, que Camille jamais
desejaria trocá-lo por outro. Então Jean pediria que ela deixasse tudo para
trás e ficassem juntos. Camille aprenderia a amá-lo, pois ele possuía amor
suficiente para os dois. Antecipando este momento, sorriu para si mesmo.
Uma coisa lhe trazia satisfação naquele momento: saber que pelo
menos fisicamente levava vantagem sobre seu rival. Seu rival... Sim, iria
vencer aquela disputa, e salvar sua amada de um futuro de incerteza,
vergonha e vazio.
Seriam felizes, tinha certeza.

***

Camille subiu as escadas bem lentamente, sentindo como se


carregasse um peso nas costas. A criada estava saindo de seu quarto, levando
os lençóis para lavar.
— Precisa de alguma coisa, senhorita?
— Sim, Violet. Por favor, traga-me papel e pena. Preciso com
urgência enviar uma carta.
CAPÍTULO XI

À noite Camille resolveu não jantar, e nem comer coisa alguma. Já


não se importava mais se sua falta de apetite incomodaria seu anfitrião.
Estava bem recuperada, e uma olhada no espelho havia sido suficiente para
que descobrisse o corte na testa já praticamente fechado. Havia enviado uma
carta a seu cunhado Gerárd, pedindo que ele fizesse chegar a suas mãos uma
passagem de navio para Portugal. Ela explicou em poucas linhas o naufrágio
e a perda de seus bens, e disse estar hospedada em uma casa amiga, tendo o
cuidado de omitir a quem a casa pertencia, e o assédio sofrido. Deveria ter
feito isso antes, mas admitia agora que a esperança de que Jean Pierre viesse
a realmente querer um compromisso com ela a havia prendido naquela casa.
Podia sair a qualquer hora, mas não o fez, por uma vã ilusão. Também não
tinha a quem pedir ajuda na capital. Nem as gratas prostitutas poderiam
ajudá-la, se ainda não houvessem tentado viajar novamente, pois não
conseguiriam mantê-la a salvo de homens inescrupulosos, bem piores que o
marquês.
Era realista quanto aos pensamentos masculinos diante de sua
aparência, embora não conseguisse enxergar em si mesma a beldade que
olhos admirados demonstravam que era. Sabia que podia correr perigo sem a
proteção de uma família ou de um marido.
Sentou-se em uma cadeira próxima a janela e aguardou o sono
chegar, esfregando as mãos e os pulsos ainda doloridos. Sentia um profundo
alívio porque ia embora daquela casa em alguns dias, e uma profunda tristeza
por ter seus sonhos de amor destruídos, e porque nunca mais veria o belo
rosto de Jean.
***

Na manhã seguinte Camille descobriu que as flores que Jean Pierre


havia lhe dado estavam murchando. Não pretendia levar nada que ele lhe dera
para sua nova casa em Portugal, então pegou o vaso de planta para
transplantá-lo ao jardim. Estava saindo do quarto no momento em que Jean
Pierre passava por sua porta.
Ele se aproximou, os olhos de mel atentos, procurando desvendar-lhes
os pensamentos:
— Bom dia, Camille. Não quis jantar ontem por quê?
— Não tive fome e nem desejo algum de ficar em sua companhia —
ela ia falando enquanto se encaminhava para a escada, — não vou mais
partilhar as refeições com o senhor. Ontem mesmo enviei uma carta a
Portugal e solicitei que me fosse enviada uma passagem de navio. Assim que
chegar às minhas mãos, irei embora.
Jean Pierre levou um choque. Segurou-a pelo braço, o desespero
oprimindo seu peito diante daquela notícia:
— Que dizes? Então é assim? Exijo saber agora o nome do teu
amante! Quem é esse homem tão poderoso, o rei de Portugal?
— Não há amante nenhum, e nunca houve! Solte-me!
Camille deu um puxão com violência, para desvencilhar-se do
marquês, e a força empregada para soltar-se desequilibrou-a na beira da
escada.
A jovem agitou os braços no ar, em busca de um apoio inexistente.
Naquele segundo se encararam. Sumiu a raiva, substituída pela
surpresa e a compreensão da fatalidade prestes a acontecer.
Os olhos de ambos se arregalaram de susto e terror.
Jean fez uma tentativa para esticar-se e segurá-la, porém Camille
escapuliu-lhe pelos dedos, e ele nada pode fazer a não ser descer correndo os
degraus atrás dela, aos gritos, enquanto a via rolar envolta em montes de
tecido do vestido que usava, e com o vaso de cerâmica espatifando-se junto
com ela pelo caminho. Ao chegar ao pé da escada descobriu, horrorizado, que
a amada jazia inconsciente no assoalho do salão, com uma poça de sangue
em volta de sua cabeça, cercada de cacos, terra, e flores.
CAPÍTULO XII

Jean Pierre aguardava ansioso que Camille acordasse, repetindo a si


mesmo que era um bastardo e um idiota. Passara a noite sentado numa
cadeira diante da cama dela, como havia feito repetidas vezes, ao resgatá-la
do naufrágio e trazê-la para sua casa. Pedia a Deus que dessa vez a tortura
não durasse tanto, e ela acordasse logo. Por sorte suas preces foram ouvidas,
e sua adorada estava despertando, ao mesmo tempo em que a luz do Sol ia
surgindo através da janela.
De um pulo aproximou-se da cama, a respiração parecia presa e o
coração, travado.
— Camille, você está bem?
Ela o encarava, os olhos verdes de uma tonalidade estranhamente
mortiça, perdidos em sua face pálida, preocuparam ainda mais o marquês.
— Por favor, fale comigo, minha querida. Está sentindo dor?
— Não. — Ela o olhava fixo, sem emoção.
Ele soltou sonoramente o ar dos pulmões, aliviado.
— Ah, graças a Deus!— Sorriu.
Estava um tanto trêmulo pelo susto e pela ansiedade das últimas
horas. Se não fosse o monte de tecido aliviando a queda de Camille... nem
gostava de pensar como tudo poderia ter acabado...
Jean procurou explicar o que havia acontecido, em voz baixa e
pausada:
— Você rolou as escadas. O corte na testa reabriu, o vaso de flores
que segurava quebrou-se, e um pedaço cortou a sua sobrancelha direita.
Perdeu muito sangue, fiquei apavorado, Camille. Então mandei chamar o
doutor Olivier. Ele veio bem rápido. Depois de verificar a sua cabeça, ficou
preocupado com o fato de você rolar a escada, e bater muitas vezes com o
corpo nos degraus.
Jean Pierre a encarava, e a tensão surgiu em sua voz, enquanto sua
face demonstrava constrangimento. Em contrapartida, a expressão de Camille
era de total passividade, o olhar perdido como se não o ouvisse.
— O doutor achava que se você estivesse grávida, isso poderia ser
perigoso para você ou para o bebê. — Jean fez uma pausa para respirar
fundo. — Eu expliquei para ele que não havia bebê nenhum, que nós não
tínhamos tido nenhuma relação durante todo o tempo que você estava aqui,
mas ele não acreditou nem um pouco em mim.
— Imagino como seja um pré-julgar — respondeu ela, secamente.
Jean procurou ignorar a acidez da resposta. Continuou:
— Então o doutor pediu que Violet ficasse no quarto enquanto lhe
fazia um exame mais íntimo. Bem, algum tempo depois ele veio falar comigo
que estava tudo bem, e que não poderia mesmo estar grávida... já que ainda é
virgem.
— Surpresa! — ela exclamou, sem a menor alegria.
O rosto de Jean era uma máscara de tristeza de dor:
— Me perdoe, Camille, por favor, me perdoe! Porém vou reparar o
terrível erro que cometi! — Retirou do bolso da casaca uma pequena caixa
onde havia um anel de ouro cravejado de diamantes. Ajoelhou-se diante dela,
colocando-lhe o anel no dedo. — Case-se comigo, minha querida...
Ela finalmente piscou, mas não baixou os olhos para ver o anel,
continuou olhando diretamente para o rosto de Jean. E também não
respondeu. O marquês voltou a falar:
— Sei que a minha atitude no almoço de ontem pode ter parecido
terrível, mas eu imaginava que, se era prostituta, o único jeito de fazê-la
largar a vida fácil era lhe dando uma noite de amor inesquecível.
— Vida fácil... Quem foi o idiota que inventou essa expressão?
Ele ficou alerta com a interrupção dela. Teve a sensação que Camille
explodiria a qualquer instante. Ansioso, voltou a falar:
— O que eu ia dizendo, Camille, era que imaginava que ao
amanhecer você estaria tão apaixonada por mim, que abriria mão do seu
amante rico e aceitaria ficar comigo. Por essa razão fiz aquela proposta
descabida.
— Diga-me, você então já pensava em casar comigo?—perguntou ela,
num tom de voz tão neutro que alarmou ainda mais Jean Pierre.
— Sim.
— Desde ontem já tinha esse anel?
Ele não podia mentir.
— Sim.
— Por que não me propôs casamento ontem, ao invés de propor-me
trocar uma passagem de navio por uma noite entre seus lençóis?
Jean Pierre também se perguntara isso hoje. Arrependia-se
profundamente de tudo que havia dito. Gaguejou um pouco antes de falar:
— Eu... Já disse, porque imaginava que seu cliente fosse melhor que
eu.
— Você imagina coisas demais, heim, Jean Pierre? — Finalmente
olhou para o anel em seu dedo. Possuía um diamante grande no meio, e
outros bem delicados ao lado, cobrindo meia aliança. Olhou também as
pequenas marcas arroxeadas que a pressão exercida pelos dedos dele havia
deixado em sua pele branca na noite anterior.
Jean Pierre seguiu seu olhar, e acariciou lentamente as manchas
escuras, que compreendeu terem sido causadas por ele.
— Camille, por favor, acredite-me, nunca mais a magoarei, nunca
mais lhe causarei dor. Jamais fui bruto, eu... errei tremendamente e estou
verdadeiramente arrependido. Juro que...
— Nunca me deixará ir embora, não é mesmo? — ela o interrompeu.
— O que quer dizer? — perguntou ele, sentindo pisar em ovos.
— Sempre fui uma prisioneira em tua casa. Trouxe-me para cá mal
intencionado desde o primeiro instante, quando descobriu que eu não tinha
mais ninguém no navio.
— Não! Não foi assim! — Estava aturdido com o tom angustiado da
voz dela.
— Me enredaste na tua teia, e eu fui ficando cada vez mais refém de
teus caprichos. E tu sabias também que eu não tinha condições nem físicas e
nem financeiras de partir. Inventaste, para aplacar tua própria consciência
diante dos abusos a mim dirigidos, que eu era mulher vulgar, uma vagabunda
sem família que precisava vender o corpo para sobreviver.
— Pelo amor de Deus, não diga isso! Vejo que a pancada te fez mal à
cabeça!
— E agora, que não conseguiste teus intentos, procura prender-me
com uma aliança, porque queres ganhar sempre, não importa a que preço. O
grande marquês Deschamps é incapaz de aceitar um não como resposta.
Jean Pierre sacudia a cabeça, negando com veemência.
— Camille, não faça isso comigo... Isso não é verdade! Não se trata
de uma mera conquista! Eu gosto mesmo de você!
— Mas eu não gosto do senhor. Aceitará casar mesmo assim comigo?
— Aceitarei — respondeu ele, de imediato.
— Por quê? Não há outras mulheres na França, bonitas e dóceis?
— Eu só tenho olhos para você. Posso fazê-la apaixonar-se por mim,
se me der uma chance.
Camille meneou a cabeça, e sua voz soou mais baixa:
— Eu cheguei a amá-lo, mas você destruiu tudo. Por essa razão
escrevi para meu cunhado, pedindo uma passagem de navio.
— Seu cunhado? É ele o homem de quem eu tinha tanto ciúme?—
estava surpreso.
— Sim. Gerárd, marido de minha irmã Lucy. Eles foram viver em
Portugal em função de uma grande herança em terras, além de um pequeno
castelo, que meu cunhado recebeu de um parente distante.
— Você não me disse isso. — Jean sentia-se o pior dos homens.
— Que diferença faria? Eu disse que não era prostituta, e você
ignorou.
— Eu fui um estúpido, mas verá que posso ser um bom marido —
respondeu o marquês, veemente.
Ela deu de ombros:
— Está bem, eu aceito casar com você.
Ele sorriu e depositou-lhe um beijo nos lábios.
Camille não retribuiu o suave toque, e nem o olhou nos olhos.
Sacudiu a mão, num gesto displicente:
— Agora me deixe sozinha, preciso descansar. Não se preocupe, que
não morrerei dormindo, pois nem pra morrer eu sirvo, pelo visto.
— Camille, não aguento te ouvir falar desse jeito... Preferiria ouvir
teus gritos ou teu choro!
— Nunca mais me verás chorar. E saia logo daqui, antes que eu lhe
devolva esse anel.
Jean Pierre suspirou, levantando-se e saindo do quarto. Faria o
possível e o impossível para consertar as coisas entre eles. Porém no
momento não havia muito mais a ser feito. Havia conquistado uma pequena
vitória com a aceitação de Camille, e sabia que não devia tentar impor-se
mais. Era mais sensato não insistir com a conversa, e deixar que o tempo
curasse as feridas.

***

Próximo ao horário do almoço, Camille levantou-se da cama,


dispensou o espartilho, já que estava mesmo muito magra, e colocou um
vestido azul simples e bonito, que estava no baú resgatado do naufrágio.
Sentia-se melhor, sem dores no corpo e sem a angústia que a afligia no dia
anterior, ao ser chantageada por Jean. Ainda estava contrariada com a sua
situação, mas havia vislumbrado algumas possibilidades ao ser pedida em
casamento pelo marquês. Uma das possibilidades seria a vingança, a
possibilidade de desprezá-lo como noivo, e como marido. Ela o deixaria crer
que se casariam, e o abandonaria às vésperas da união. Se ele de fato a
amasse, sofreria com isso. Seria bom.
Outra possibilidade era que a parceria entre ambos pudesse dar certo,
do ponto de vista material, e ela teria enfim a tão sonhada paz financeira, já
que Deschamps tinha posses. Muito prático. Nada romântico. Porém, buscar
um marido em Portugal também não era. Tinha consciência agora, mais do
que nunca, que para uma mulher não havia muita opção para um futuro
tranquilo se não houvesse nascido muito rica.
De qualquer modo, enquanto não escolhia entre casamento ou
vingança, estava decidida a não se mostrar infeliz para mais ninguém, por
pior que se sentisse intimamente. E, no final das contas, agora as coisas
estavam realmente às claras. O pior já passara.
Desceu as escadas com cuidado e dirigiu-se à cozinha da mansão. Se
iria mesmo unir-se ao dono da casa, era justo que conhecesse melhor os
empregados, fosse para manter uma farsa ou levar o compromisso adiante.
Bateu a porta de leve e entrou. A cozinheira, uma senhora pequena chamada
Adele com quem já havia falado uma ou duas vezes, sobressaltou-se ao vê-la.
— Posso ajudá-la, senhorita? Tem algum pedido especial a fazer?
— Não, Adele, vim apenas conhecê-la melhor, conversar um pouco.
— Oh... Bem, não sei o que dizer.
— Posso contar-te um segredo? — perguntou Camille, em tom
confidencial, que fez a velha cozinheira aproximar-se para ouvir melhor.
— Sim, senhorita.
— Fiquei noiva hoje de teu patrão.
— Ah, mas que alegria! — Ela bateu palmas. — Preciso fazer um
bolo por isso!
— E eu vou ajudar! — Sorriu Camille. Depois que a família
desembestara em franca ruína financeira, os afazeres do lar tornaram-se uma
rotina. Não era novidade cozinhar, embora não fosse nenhuma especialista na
área.
Em pouco tempo as duas conversavam como velhas amigas. Violet
entrou na cozinha, atraída pelas vozes animadas.
— Senhorita, se precisava de algo devia ter me pedido!
— Ah, sente-se, Violet. Eu e Adele estamos fazendo um bolo, aliás,
três. Ela quer camadas de sabores diferentes.
Violet sentou-se, desconfiada.
— Ela já sabe, senhorita? — perguntou a cozinheira, apontando para a
criada de quarto.
— Não sei se ele contou para ela. Violet, Jean Pierre contou-lhe que
me pediu em casamento?
— O que? — A criada abriu um grande sorriso de felicidade — Ele
resolveu casar!? Céus! Nesse caso, também quero ajudar a fazer esse bolo!
As risadas chamaram a atenção do mordomo Andrès, que mantinha-se
sempre austero a um canto. Ele entrou, e se encolheu timidamente, próximo a
um dos armários de louça.
— Venha cá, Andrès, não seja tão tímido. Olhe, a mademoiselle vai
ser nossa patroa! — chamou Violet.
— Parabéns! Estou muito feliz pela senhora!
E pôs-se ele também a conversar. A conversa descontraída fez com
que esquecessem a hora do almoço, até que Jean Pierre apareceu à porta.
Ele surgiu com semblante carrancudo, prestes a reclamar da
barulheira, mas quando avistou Camille a sorrir, suja de farinha, no meio do
alegre grupo, não pode deixar de abrir um largo sorriso de alívio.
— Então é aqui que minha noiva se esconde?
Os criados ficaram imediatamente sérios e constrangidos.
— Por favor, fiquem à vontade, não quero estragar a conversa.
— Estamos fazendo um bolo em homenagem a seu noivado, senhor
— explicou Violet.
— Por que não vem ajudar, também? — chamou Camille, só para
provocá-lo.
Jean não se fez de rogado e aceitou o convite:
— Está bem. Tem um avental sobrando?
— Nada disso! Eu não estou usando avental, porque você usaria?
— Mas, minha querida, assim vou sujar a casaca!
Mal havia terminado de falar e Camille plantou as duas mãos, brancas
de farinha, na roupa dele.
Jean estava estupefato:
— Ah, Camille!! Como posso sair para trabalhar depois disso?
Os empregados estavam sorrindo da travessura de Camille e da
expressão surpresa do marquês.
— Deixe de bobagem, é apenas farinha! Depois é só trocar de roupa
novamente! Venha ajudar logo!
Jean Pierre resignou-se e começou a ajudar. Mil vezes ficar sujo de
farinha do que ser atingido por ofensas ou, pior do que qualquer desprezo que
ele merecesse, o silêncio magoado de Camille. Não desperdiçaria aquele
momento de descontração por causa de uma roupa suja quando dispunha de
várias outras. Observou a noiva, que movia-se com desenvoltura no
ambiente, como se já fosse dona da casa. Deu-lhe um beijo rápido no rosto e
voltou-se para a cozinheira:
— Mãos à obra, então. Que devo fazer?
Logo estavam todos conversando e trabalhando animadamente. O
dono da casa resolveu cancelar os compromissos do dia, e abriu um vinho
para beber com os criados, em comemoração. Quando o bolo ficou pronto,
comeram-no na cozinha mesmo. Depois Camille agradeceu a todos, e saiu do
aposento, seguida pelo noivo.
— Estou muito feliz por vê-la alegre. — Ele percebia, com alívio, o
brilho dos olhos dela começando a voltar.
— Não aguentava mais me sentir tão deprimida. Mas não se deixe
enganar: não vou facilitar as coisas para o senhor. Seremos um casal feliz em
público, mas não serei boazinha em particular.
— Aceito o desafio. Farei você voltar a me amar, e me tratará em
particular ainda melhor do que em público.
— Boa sorte, então. —Deu-lhe as costas e subiu as escadas.
O noivo subiu atrás dela.
—Vou acompanhá-la. A senhorita é muito propensa a acidentes.
— Se não tivesse me segurado e ofendido, eu certamente não teria
caído da escada. Agora tenho mais uma cicatriz na face.
Jean forçou-se a manter-se tranquilo. Apenas replicou:
— Me desculpe por isso também. Será consolo suficiente dizer-lhe
que essas marcas vão sumir com o tempo, e mesmo com elas você continua
linda?
Camille voltou-separa ele na porta do quarto:
— Quero a chave de volta. Hoje.
— Não.
— Se pretende realmente casar comigo, terá que colaborar para que as
coisas dêem certo entre nós. Isso quer dizer que quando eu lhe pedir uma
coisa simples como a chave do meu quarto de volta, o senhor deve
simplesmente dizer ”sim, querida” e me entregar a maldita chave!
— Não se altere, Camille. Eu lhe entregarei a “maldita chave”. Que
dramática é você! Mas deve parar com essa história de me chamar de senhor
quando estamos sozinhos. — Aborreceu-se.
— E não és mesmo o meu senhor?
— Não, Camille, não sou teu senhor e nem teu dono. Sou teu noivo.
Faço minhas as tuas palavras: se quiseres que dê certo entre nós, colabore!
— Está bem, não o chamarei mais de senhor.
— A chave está no meu quarto, venha comigo — retrucou ele,
visivelmente contrariado.
— Acha que cairei nessa armadilha?
— Que armadilha?— Voltou-se, espantado.
— Entrar no seu quarto.
O marquês sorriu diante da desconfiança.
— Tens medo de ficar a sós comigo em um quarto? Acha que poderá
evitar isso até quando? — Aproximou-se dela. — Afinal, onde acha que
ficarás depois de nossas núpcias?
— Se pensa que aceitarei deitar-me contigo na mesma cama que tu
dormiste com todas as meretrizes da cidade, está enganado. Serei tua esposa,
e não tua concubina.
— Ora! O que uma aliança não faz a uma mulher, não é mesmo? Quer
mandar em mim? — Ele já falava num tom acima.
— Acaso queira realmente uma noite de núpcias comigo, meu caro
marquês, comprará uma cama nova!
— Está sendo ridícula!— Explodiu.
— E está gritando comigo!
Ele esfregou o rosto, tentando controlar-se:
— Desculpe. Se for de teu agrado, comprarei uma nova cama.
Gostaria de acompanhar-me até meu quarto para que eu lhe devolva a chave?
Ela o seguiu, apreensiva.
O quarto estava sombrio, com as cortinas cerradas. Jean Pierre nem se
incomodou em abri-las, e foi em direção a uma escrivaninha pesada ao lado
da cama. Camille seguiu-o no escuro, mas não estava ainda familiarizada
com os objetos do quarto, e a penumbra não permitiu que percebesse um
tapete no chão. Tropeçou e quase cairia, se não fosse a agilidade do marquês
em segurá-la.
Ele sorriu ao ampará-la:
—Dessa vez consegui segurá-la.
O marquês a reteve nos braços por algum tempo, e a jovem não tentou
desvencilhar-se. Então ele a beijou, e Camille entregou-se ao beijo sem
reservas.
—Agora dê-me a chave — falou secamente, ao fim do beijo.
Jean surpreendeu-se com o comportamento dela após se beijarem tão
ardorosamente. Encontrou a chave na gaveta e a entregou para sua noiva.
Camille agradeceu e saiu depressa, sem olhá-lo mais uma vez. Se o
fizesse, perceberia o misto de preocupação e espanto em seu olhar.

***

O jovem marquês teve dificuldade para conseguir dormir à noite. Não


conseguia deixar de pensar em Camille, tão próxima e ao mesmo tempo tão
distante dele. Desejava-a como nunca havia desejado antes uma mulher, e a
amava mais do que tudo, mas será que conseguiria realmente fazê-la amá-lo
novamente? Ou será que só conseguiria dela apenas um pouco de volúpia?
Deschamps não poderia saber que sua noiva também estava tendo uma noite
difícil e insone, e que lutava para odiá-lo, mas só conseguia pensar em estar
nos seus braços novamente.
CAPÍTULO XIII

Ele despertou com o chamado urgente de Violet, batendo de forma


nervosa na porta. Levantou-se ainda sonolento, pois só conseguira realmente
adormecer quase ao clarear do dia:
— É algum incêndio, Violet? — perguntou, abrindo a porta ainda de
camisolão.
— Quase isso, senhor. Sua irmã chegou e o está aguardando na
biblioteca.
— Antonieta? — Jean Pierre trocou rapidamente de roupas e desceu
as escadas com rapidez. Sabia que era questão de tempo a irmã surgir em sua
residência por causa de Camille, mas não sabia se estava apto o suficiente
para encarar o embate que fatalmente teria com ela antes mesmo de tomar o
desjejum.
Antonieta o aguardava na biblioteca, analisando o recinto em busca de
alguma novidade. A bela figura, altiva e austera, doze anos mais velha do que
Jean Pierre, ainda evocava ao marquês lembranças da infância, e mesmo
agora, já um homem feito e independente financeiramente, fazia-o sentir-se
apenas um menino. Ela ergueu uma das sobrancelhas ao vê-lo, os olhos cor
de mel, mais claros ainda que os dele, acusadores.
— Como vai, meu irmão?
— Ótimo. —Beijou-lhe a face. — Que surpresa! Não pensei em vê-la
tão logo. Fez boa viagem?
— Fiz uma viagem um pouco louca e desabalada. Como deve deduzir
pelo horário de minha chegada, passei a noite viajando para chegar logo aqui.
Eu estava na fronteira da Suíça, em casa de uma amiga, quando veio parar em
meus ouvidos que tu mantinhas uma mocinha hospedada em tua casa há
vários dias. Ninguém sabia dizer de quem se tratava, apenas que ela era de
uma beleza sem par, e que se fosse alguma cortesã, todos saberiam. Logo
percebi que a moça não era de Paris. Vim imediatamente, com intenção de
impedir-te de arruinar a reputação dessa jovem, mesmo sabendo que já o
fizeste apenas pelo fato de mantê-la sob teu teto. Espero, pela alma de nossos
pais, que apenas a reputação esteja abalada, e que não tenhas também a
afligido com abusos físicos.
— Abusos físicos? Enlouqueceu? Acha que eu torturaria uma moça?
E ainda por cima na minha casa?
— Sabe que falo de outro tipo de abuso. Tua fama de libertino
ultrapassa fronteiras. Muitas vezes, ao citar-te como meu irmão, acabo por
ouvir gracejos e galanteios dos mais inconvenientes. Devem me julgar
parecida contigo!
— Antonieta, posso não ser um bom exemplo, mas lamento que isso
atinja você, eu não sabia. Diga-me o nome desses atrevidos, irei
pessoalmente acertar as contas.
— Não sejas tolo! Achas que não sei me defender de um homem?
Nossa mãe me ensinou como mantê-los com as mãos longe, até que
finalmente me casei com Henri. Pena que a vida militar sempre o mantenha
tão distante, o que me obriga várias vezes a circular sozinha, e aí que
encontro esses tipos semelhantes a você! Mas não é sobre mim que vim falar,
e sim sobre teu comportamento. Quem é essa moça e de onde vem?
— Chama-se Camille Dubois, e é de Lyon. Ela estava em uma
viagem para Portugal quando seu navio sofreu um naufrágio. Eu a trouxe
para cá porque estava muito ferida.
— Tua casa é um hospital, agora?
Jean Pierre estava perturbado com a impaciência e intolerância da
irmã. Respirou fundo antes de responder. Mal sabia ele que estava sendo
observado pela fresta da porta por sua noiva, que se deliciava ao vê-lo ser
destratado implacavelmente pela irmã mais velha. Camille havia escutado o
alvoroço da criada Violet, e descido silenciosamente para ver do que se
tratava. Era interessante para ela descobrir que Antonieta tinha o mesmo
caráter irascível do marquês, porém o dominava totalmente.
— Não é um hospital, mas o doutor Olivier vinha sempre vê-la e
trocava seus curativos.
— Preocupou-se em procurar a família dela? —Antonieta não havia
se sentado, e com isso obrigava ao marquês a manter-se também de pé, o que
o deixava ainda mais desconfortável.
— Não sabia sequer seu nome...
— Preocupou-se em procurar a família dela? — insistiu Antonieta.
— Não.
— Ah! — A irmã do marquês sacudiu a cabeça com tanta fúria, que
Camille pensou que seu penteado alto se desfaria. — E agora que sabes quem
ela é, já procuraste a família?
— Ela é órfã.
— Deus! Você se aproveitou de uma órfã! Não tens limite, Jean
Pierre? Foi isso que nossa mãe te ensinou a fazer, marquês Deschamps?
— Como me julgas mal, Antonieta!
— Eu o julgo mal? Julgo-te exatamente como tu és. Terá coragem de
olhar dentro dos meus olhos e dizer-me que não tentaste te aproveitar dessa
moça? Terá coragem de manter o olhar firme e garantir-me que não passaste
dos limites com ela?
Ele não a encarou, mantendo-se em silêncio resignado.
— Oh, Jean Pierre, teu silêncio é a confirmação de meus temores!
Traga-me já essa mocinha! Se ela confirmar que tu abusaste dela, tu poderás
dar adeus ao dinheiro que me pediste emprestado para comprar o novo navio
de tua frota! Eu não vou premiar teu ato leviano!
Jean Pierre empertigou-se. Não iria permitir ser tratado como um
menino levado, nem ser punido como um. Assumiu um ar severo ao encarar a
irmã:
— Antonieta, antes de mais nada, devo avisar-te que fiz de Camille
minha noiva. Já estou providenciando os papéis, e nos casaremos em breve.
O rosto de Antonieta imediatamente abrandou. Sua expressão tornou-
se suave e animada:
— O que? Que me dizes? Vai realmente se casar?
Jean Pierre sorriu, sentindo-se em terreno mais firme:
— Vou, sim. Verás que minha noiva é linda, gentil e bem educada.
Antonieta soltou um grito entusiasmado:
— Pois já a amo! Mande a criada chamá-la, nesse instante!
Camille pôs a mão no coração, sobressaltada, correu para seu quarto e
ficou a espera do chamado para descer. Ouviu batidas na porta.
— Entre!
Quando a porta abriu-se, não era a criada quem havia vindo buscá-la,
e sim o próprio Jean Pierre. Camille imaginou que ele devia estar realmente
preocupado com a opinião da irmã.
— Jean Pierre, que coisa fantástica! Você realmente aprendeu a bater
nas portas antes de entrar!
— Muito engraçado. Pena que não estou com bom ânimo para
brincadeiras. Vim buscá-la para conhecer minha irmã Antonieta.
— Ah, estou louca para conhecê-la! Tenho tantas coisas para dizer-
lhe. Poderei passar o dia inteiro contando-lhe em detalhes sobre minha
agradável estadia aqui!— falou com um sorriso mordaz.
O marquês deteve-a antes que saísse do quarto:
— Camille, por favor, não se esqueça que agora sou teu noivo. Pense
no nosso futuro. Preciso que minha irmã me empreste o dinheiro que falta
para comprar um navio maior e melhor do que os que eu já tenho, para que
agüente as viagens mais longas e difíceis. Não quero dispor de minhas
reservas financeiras para este investimento. Se Antonieta souber do meu
comportamento, não me dará nada. E então precisarei pegar um empréstimo
com alguém que me cobrará juros altíssimos. Não seria nada bom para os
negócios.
Camille deu um pequeno sorriso:
— É interessante o que as pessoas se prestam a fazer por dinheiro,
não é mesmo? Fala-se mal das prostitutas, mas ninguém percebe o quanto
vende a si próprio no dia a dia.
Jean ficou rubro de raiva. Seus olhos se estreitaram:
— Como ousa falar assim comigo? Assumiu mesmo o papel de santa
padroeira das rameiras francesas, e agora sai a defendê-las?
— Também me lembrarei de contar a Antonieta o título que me deste!
O marquês soltou um bufo, frustrado. Fechou os olhos, contando até
três para controlar-se.
— Camille, espere.
A noiva baixou os olhos, indecisa por um instante. Não podia permitir
que Jean Pierre descobrisse que a chama do amor por ele não se extinguira
por completo, como supunha.
Pressentindo sua vulnerabilidade, Jean segurou Camille pela cintura,
detendo-a mais uma vez:
— Desculpe-me. Não sei o que acontece, mas parece que acabo me
excedendo todas as vezes em que estou com você. Ultimamente estou sempre
precisando pedir desculpas por falar algo errado, por agir errado. Você deve
contar à Antonieta toda a verdade sobre a forma que lhe tratei, isto será justo.
— Não precisa se fingir de coitado. Não contarei a sua irmã sobre seu
comportamento ora mal educado, ora libidinoso, e nem sobre aquela sua
proposta. Mas não farei isso por você, e sim por mim mesma. Como ela me
qualificaria sabendo que mesmo depois das coisas que você me fez, consinto
em continuar na mesma casa contigo, e ainda ser sua noiva?
— E porque consentes, Camille?
Agora ele estava próximo demais, as mãos ainda retendo-a pela
cintura. Camille se sentia perturbada com aquela aproximação. Demorou um
pouco a responder:
— Porque você é rico, é bonito, me dará filhos fortes e poderá nos
sustentar tranquilamente.
— E porque tu me amas, mesmo eu sendo um atrevido com você.
Aceitaste casar comigo porque cada vez que toco em seu corpo, sentes
desfalecer. Quer tanto entregar-se a mim que tens ódio de quanto descontrole
eu lhe causo.
Ela não conseguia falar, pregada nos olhos dele. O coração tão
disparado que parecia ribombar pelo aposento.
—É tão forte o teu desejo quanto o meu, Camille, e nem tens forças
para negar. Quero tanto possuí-la, que me dá até dor física! E foi assim desde
a primeira vez que a vi, deitada em minha cama no camarote do navio. E
quando abriste teus olhos maravilhosos, ali naquele leito, desejei lançar-me a
ti cobrindo-a de beijos. Já pedi desculpas pelo engano que cometi, mas não
posso pedir desculpas por desejá-la. Em algum momento terás que esquecer o
passado para que possamos viver o presente e encarar o futuro.
Por um momento, ninguém falou. Apenas encararam-se, absorvendo o
impacto das palavras ditas.
Até Camille quebrar o silêncio:
— Solte-me, Jean Pierre, para que eu possa conhecer minha cunhada.
Ela já deve estar impaciente. — Empurrou firmemente as mãos do noivo, e
saiu do quarto.
Afastou-se sem voltar a encará-lo, porém mesmo de costas podia
sentir a intensidade daquele olhar.
CAPÍTULO XIV

Jean Pierre desceu as escadas atrás dela, e abriu-lhe a porta de


carvalho da biblioteca, introduzindo-a ao recinto. Antonieta os aguardava
sentada no belo sofá de três lugares com espaldar trabalhado, que dava um ar
familiar à biblioteca antiquada.
— Antonieta, minha irmã, essa é Camille, minha noiva.
Antonieta sorriu, estendendo as duas mãos para a jovem a sua frente,
que logo as pegou.
— Ah, senta-te aqui comigo! Mas é tão linda! Que prazer conhecê-la!
— A mim também causa prazer conhecê-la! E a senhora também é
muito bonita. Quando Jean Pierre falava-me da irmã, julgava que fosse mais
velha... No entanto, é muito jovem!
— Mas que gentileza! Obrigada, sou realmente bem mais velha que
Jean, porém minha família tem boa pele. Parecer mais jovem me alegra, mas
alegra ainda mais o meu marido.
Camille riu. Gostou muito da cunhada.
— E não venhas me chamar de senhora, Camille, pois em breve
seremos irmãs. Deixe-nos a sós, Jean Pierre, estou certa que tens algo melhor
a fazer do que escutar a conversa de mulheres.
O marquês fez uma mesura, e deixou a biblioteca, ansioso pela
refeição matinal, e satisfeito por ver que elas já estavam se tornando amigas.
Antonieta esperou que o rapaz saísse para voltar a falar com a jovem
cunhada:
— Conte-me agora, querida, como meu irmão tem se comportado
com você.
— Se não fosse por vosso irmão, estaria morta. Eu viajava para a casa
de minha irmã em Portugal, quando houve uma forte tempestade em alto mar
e a nau em que estava não aguentou. A tripulação começou a colocar os
passageiros nos salva-vidas, mas esqueceu-se de umas pobres mulheres que
viajavam no subsolo. Fui ajudá-las. Até hoje não me recordo exatamente o
que aconteceu, mas parece que um pedaço de madeira atingiu minha cabeça
enquanto eu corria no convés. As senhoras que ajudei retiraram-me do navio
e improvisaram uma jangada, até que Jean Pierre nos achou à deriva e nos
içou para sua embarcação. Fiquei desacordada vários dias, e ele velou por
mim junto com Violet, revezando-se dia e noite. Quando despertei, foi ele
quem eu vi assim que abri os olhos. Consolou-me por perder minha melhor
amiga, e enxugou pacientemente minhas lágrimas. Foi tão gentil e bondoso
comigo, que não havia como não apaixonar-me.
Antonieta ouvia a tudo, sem piscar, interessadíssima.
— Oh, mas que história impressionante! E meu irmão se portou
mesmo como um cavalheiro! Estou surpresa, pois sempre o julguei tão mal!
Está apaixonada por ele realmente?
— Eu o amo de todo o meu coração. Sou louca por ele — respondeu
Camille, admitindo para a cunhada o que não queria admitir para si mesma, e
que não gostaria que o noivo descobrisse.
— E ele a respeitou?
— Sou virgem, Antonieta. Essa é a sua resposta. — Dessa forma
Camille não precisava mentir, pois a resposta certa à pergunta seria dizer
“nem um pouco”.
— És virgem? Oh! És virgem!!!— A irmã do marquês estava agora
ainda mais impressionada. — Ele não abusou de ti! Como meu irmão está
mudado! Ah, graças a Deus por você ter surgido na vida dele! Oh, desculpe,
sei que sofreu muito para chegar até aqui e eu digo “graças a Deus que
surgiu”, parece que estou dando graças pelo seu acidente, mas não foi isso
que quis dizer. É que estou tão feliz porque meu irmãozinho finalmente criou
juízo!
Camille sorriu para a mulher bonita a seu lado. A semelhança física
com Jean já era suficiente motivo para que gostasse dela, mas a cunhada era
também uma pessoa de bom coração, e daria uma ótima amiga.
— Será que sua irmã de Portugal virá ao casamento?
— Não tenho certeza. E você, virá com seu marido e os filhos?
— Claro! Não perderíamos esse casamento por nada nesse mundo! Já
tem o vestido de noiva?
— Ainda não, nem sei como resolver isso.
— Pois veremos isso juntas, e o darei de presente para você. Não
recuses a gentileza, você merece. Temos muito a conversar... Devo colocar-
lhe a par do gênio de meu irmão. Ele pode ser às vezes muito passional, e até
explosivo.
— Ah, já percebi isso...
— O segredo é não deixar-se coagir pelos modos dele. Como todos os
homens, Jean gosta de dominar a situação. Não o deixe levar a vantagem
sempre, senão ele não lhe dará nenhum valor.
— Está bem.
— Outra coisa... Sua mãe chegou a falar-lhe sobre como é a primeira
vez, ou melhor, a noite de núpcias?
— Não, ela morreu antes de conversar essas coisas comigo. E minha
irmã também casou sem nada saber. O pouco que sei, foi de troca de
informações entre amigas, coisas certamente mais imaginadas do que reais.
— Então vou te explicar como será, para que não te assustes. Não
fique nervosa, todas as mulheres passam por isso, é bem normal. É bom saber
o que acontecerá, e saber mais alguns segredinhos para que não apenas o
noivo se divirta entre os lençóis.
E Antonieta amigavelmente contou a Camille o que ela precisava
saber sobre sua primeira noite com o marido. A jovem sentiu-se orgulhosa
por ser tratada como alguém da família.

***

Por volta do horário do almoço, o marquês foi ter com sua noiva.
— Camille, quero agradecer-te. Minha irmã, depois de falar com
você, abraçou-me como há anos não fazia. Tu me transformaste em um herói,
e eu disse a ela que não merecia isso tudo. Mas agora ela orgulha-se de mim,
e não posso negar que é uma boa sensação.
— Fico feliz por vocês dois. É maravilhoso ter uma família amiga.
Sinto falta disso, da amizade fraternal que só os do mesmo sangue têm.
— Mas eu e Antonieta já somos sua família, assim como também
meus sobrinhos e meu cunhado. E, se gostas de laços familiares, ficará feliz
de saber que tenho uma infinidade de primos e primas, assim como tios e tias.
Pode adotá-los todos!
Ela sorriu com sinceridade, antes de dizer:
— Então teremos uma igreja cheia!
— Nem todos virão, muitos moram longe, mas os convidarei. Hoje já
correrão os proclamas do casório, e em poucos dias poderemos casar.
Providenciarei logo uma reserva na igreja que frequento.
— Tu frequentas uma igreja? Desde quando?
— Confesso que vou pouco, mas vou. Tu nunca me pediste para levá-
la em uma.
— É verdade, mas pensei que isso para você seria algo como ir para a
guilhotina.
— Ora, essa!
— Não te incomodes, estou só brincando. Vamos almoçar?
— Sim, precisarei sair logo depois do almoço, e só voltarei bem tarde
da noite.
— Vais visitar alguma dama mais tarde? — Não resistiu a perguntar-
lhe.
— Percebi em sua pergunta uma ponta de ciúme ou é apenas
curiosidade?
— Não é educado responder com outra pergunta.
— Te incomodaria se eu fosse ver outra dama?
— Sim, me incomodaria muito, já que é meu noivo.
— Mas não te deitas comigo, minha virginal noivinha... Por que
deveria me privar de deitar-me com outra mulher, que pode e quer se entregar
a mim?
Ela conteve um ataque de fúria. Fingiu tranquilidade:
— Vais mesmo me envergonhar mais uma vez diante de todos? Mal
ficamos noivos e já vais para os braços de outra? É assim que dizes gostar de
mim?
— Os homens têm necessidades que a mulher não tem — respondeu
com um sorriso zombeteiro.
— Ah, não me venha com essa história ridícula! Você é mesmo um...
Jean Pierre deu-lhe um beijo para que se calasse, sorrindo em seguida:
—Não diga algo de que poderá se arrepender depois. Não estou
falando a sério. Não irei ver outra mulher. Tenho uma reunião com amigos.
Falaremos de política, jogaremos cartas e ficaremos um pouco bêbados. E
contarei sobre nosso noivado, nada mais do que isso.
— Se é assim... — Ela fingiu indiferença.
— Estavas morrendo de ciúme! — Ele sorria sem parar.
— Não estava não!
— Estava sim. Ah, ela me ama!
— Não sejas infantil! Vamos logo almoçar, sua irmã já deve estar à
mesa nos esperando!
Ela mantinha uma expressão rabugenta, enquanto ele não tentava
disfarçar a satisfação que sentia.
CAPÍTULO XV

— Afaste-se, Lafayette — disse Jean Pierre secamente, aproximando-


se do rapaz que estava ao lado de Camille no salão de danças do palacete
pertencente ao seu amigo, o conde Sobren de Toulouse. — E nunca mais se
dirija a minha noiva sem que eu esteja presente.
— O que é isso, Jean Pierre? Sempre fomos amigos! — respondeu o
outro, sobressaltado.
— Minha noiva não está incluída nessa amizade, e já deixei bem claro
na reunião de ontem, para você e para todos os outros, que não quero
nenhuma tentativa de intimidade com minha futura esposa. Respeite-me para
que eu o respeite quando chegar a sua vez de casar-se.
— Jamais me passou pela cabeça desrespeitá-lo, marquês.
— E que não passe mesmo. Não queremos manchar minha espada,
não é mesmo?
O outro rapaz afastou-se apressadamente, com uma mesura e uma
expressão apavorada.
— Quase desafias teu amigo para um duelo... — Camille falou em
tom de zombaria.
— Tive ótimas aulas de esgrima. Eu venceria — retrucou.
— Ciúmes, caríssimo noivo? — ela indagou, divertida.
Ele riu, desfazendo a expressão zangada imediatamente.
— Diferentemente de você, meu bem, não nego os meus ciúmes. Mas,
por favor, não fique me testando. Não quero brigar com todos os rapazes da
festa. Você pode repeli-los quando se aproximarem.
— Ah, acho que não. Foi uma experiência tão divertida! Vamos ver
se vai se repetir? Experimente deixar-me sozinha novamente.
— Que mocinha vingativa! Só me afastei um instante!
— Se quer saber, ele não fez nada de errado, só estava se
apresentando. Sabe que tive até pena do teu amigo?
— Não deveria. Lafayette é um tipo pervertido.
— Consegue ser mais libertino do que tu?— Provocou.
Dessa vez o marquês deu uma gargalhada.
— Tens-me realmente em alta conta! Venha, vamos dançar.
Conduziu-a até o centro do salão, ricamente ornado.
— Jean Pierre, nunca poderei falar com outro homem?
— Poderá sim, também tenho amigos decentes.
— Inacreditável. Você tem amigos decentes?
— Você está especialmente mordaz hoje, Camille. — O marquês
divertia-se com as provocações dela.
— Diga-me, teus amigos decentes permitem que tu fales com as
esposas deles?
— Por incrível que pareça, eles permitem e não se preocupam com
isso.
— Céus, eles tem problemas mentais?
— Talvez.
— Será que o meu marquês, quando quer, é um cavalheiro bem
educado e respeitador?
— Posso ser, sim. Não estou sendo assim contigo?
— Ah, mas olhe o que passamos até chegar a esse ponto. Você não
me respeitava nem um pouco antes.
Ele deu um suspiro.
— A conversa estava melhor antes, mas você não perde uma
oportunidade de relembrar nosso mal entendido.
— Seu mal entendido, não “nosso”. Eu fui uma vítima.
— Ponha-se no meu lugar, eu pensava que você era uma meretriz, e
que tentava me esconder o fato. E eu lá, interessado em alguém que julgava
ser uma mentirosa.
— Quer dizer que eu sou culpada pelas humilhações que me
afligistes?
Ele ficou bem sério.
— Está mesmo querendo confusão comigo hoje. Já falei tantas vezes
que errei... Foi uma sucessão de desastrosos mal entendidos, mas não por sua
culpa, e sim por minha culpa. Poderíamos mudar de assunto?
— Eu tento mesmo não pensar ou falar sobre seu engano, mas ainda
está atravessado na minha garganta. — Triste, admitiu.
Jean Pierre a olhou com ternura:
— Fico feliz que pelo menos tente, meu amor. Já é um começo.
Preciso urgentemente apresentá-la a alguém que fale bem de mim, para que
não me veja mais como um crápula.
Ela sorriu:
— E existe tal pessoa?
O marquês arqueou as sobrancelhas:
— Onde aprendeu a ser tão irônica?
— Acho que foi sua influência.
— Pois fique sabendo que não é bom que uma moça direita tenha
língua tão afiada.
— E como preferes a minha língua?
— Não me tentes. Sabe que prefiro tua língua dentro da minha boca.
Ela calou-se. Percebeu que ele já não estava mais levando a conversa
na brincadeira, e que o terreno ficava arriscado para ela.
— Desististe do embate? — ele indagou.
— Por ora.
— Falar de beijo e de língua a deixa nervosa? Tens medo que eu a
agarre, e que passemos do limite? Estamos em público, tolinha. Não farei
nada condenável aqui.
Ele a rodopiou pelo salão.
— Você dança muito bem, Jean Pierre.
— Você também é boa dançarina. Uma mulher linda e que dança
divinamente. Todos os homens devem estar me invejando agora.
Ela abriu um grande sorriso.
— Camille, com esse sorriso acabas de destruir o coração de metade
dos rapazes desse baile!
— Também as damas devem ter inveja de mim, pois está muito
bonito, meu noivo.
— Estou lisonjeado! Está mesmo sendo gentil comigo?
Ela desviou o olhar:
— Tenho dificuldade de ser gentil com você porque ás vezes o
odeio... —ela respondeu baixinho.
— Eu sei disso. E espero que mude logo, pois eu só tenho amor por
você.
— Você foi muito malvado comigo.
— Posso ser culpado de passar dos limites, de fazer uma proposta
bem indecente a você, e por julgá-la sem permitir que se defendesse, mas
qual a maldade que fiz? A maldade foi desejá-la demais? Ou despi-la? A
maldade foi querer ardentemente você, Camille?— ele perguntou, com voz
suave.
Camille ergueu os olhos lentamente ao seu noivo. Logo desviou o
olhar mais uma vez.
— Meu grande pecado foi querer, mais do que nada na vida, dormir
com você, minha amada. — Jean Pierre ergueu o queixo de Camille com as
pontas dos dedos, e sorriu.
Camille voltou a encarar Jean Pierre, a sombra de um sorriso surgindo
na face:
— Ei, nós já dormimos juntos. Lembra daquela tarde que entrou no
meu quarto e eu estava chorando sem parar? Pois é, acabamos dormindo
abraçados. Então dormimos juntos.
O marquês deu uma risada.
— Considero um bom sinal você tentar fazer gracejo com esse
assunto que lhe é tão delicado.
— É mesmo, não é?
— Tem coragem de dizer que não pensou, todas as vezes que eu a
tentei seduzir, em entregar-se totalmente e fazer amor comigo?
Ela sentiu o rosto começar a esquentar, imaginou que já estava
ficando vermelha, e baixou os olhos. Jean Pierre levantou seu queixo para
que voltasse a encará-lo.
— Não fique envergonhada. Serei teu marido em breve, e acredite-
me, faremos amor muitas vezes e você gostará. Agora, responda a minha
pergunta, pensaste ou não pensaste em ir até o fim comigo?
— Pensei, sim, em cada uma das vezes tive vontade. Pronto, falei,
mas não vou repetir.
— Não precisa. Já fiquei satisfeito porque admitiste. Que tal pararmos
de dançar um pouco agora? Gostaria de lhe servir algo para beber, e levá-la
até o jardim do conde. É muito bonito.
— Claro.
Jean ofereceu o braço à noiva, já imaginando roubar-lhe alguns beijos
sob o céu estrelado.
O conde de Sobren havia convidado Jean Pierre e Camille para aquela
recepção e insistido para que viessem, para que o marquês tivesse enfim a
oportunidade de apresentar Camille como sua noiva a sociedade. Mais uma
vez ela era a moça mais bonita do local. Usava um vestido claro, com
bordados dourados e penteado fofo, coroado com um diadema delicado, sem
maquiagem alguma, só um tom rosado nos lábios. Mesmo que usassem
farrapos, brincou Antonieta ao vê-los prontos, ainda assim seriam o casal
mais bonito da festa. Jean Pierre usava uma casaca com os mesmos detalhes
dourados que a noiva, e quando chegaram, todas as cabeças voltaram-se para
admirá-los.
Mas agora já estavam entediados de conversar com aquelas pessoas
com quem não tinham muita afinidade, e só aguardavam o momento
adequado para despedirem-se e voltar para casa. Passeavam no lindo e
imenso jardim do palacete, próximos a outros casais que também fugiam de
conversas frívolas.
— Jean Pierre! — Um casal sorridente e de mãos dadas aproximava-
se deles.
— Marcel e Anne! Que bom ver vocês! Não os vi no salão.
Camille impressionou-se com a beleza deles. Eram ambos louros, e de
olhos muito azuis.
— Jean Pierre, escuto gritos de crianças o dia todo. Tudo que desejo
quando saio de casa é um pouco de paz. Lá dentro está muito barulhento. —
respondeu a mulher, rindo. — Essa moça bonita é quem estou pensando?
— Minha noiva, Camille Dubois. Vamos casar em breve.
— E quando ia contar a seu amigo aqui a novidade sobre o
casamento? — reclamou Marcel. — Muito prazer, Camille. Eu sou Marcel
Chermont, e essa moça linda ao meu lado é minha esposa, Anne.
— Encantada. — Sorriu Camille.
As mulheres trocaram mesuras e sorrisos.
— Eu ia convidá-los para jantar em minha casa e fazer as
apresentações. Precisava muito que minha noiva conhecesse alguns dos meus
amigos de verdade. A imagem que ela tem de mim não é das melhores —
explicou Jean Pierre, em sua defesa.
Anne fingiu espanto:
— E por que será?
O grupo sorriu.
— Faremos o seguinte: amanhã vocês vão à nossa casa jantar
conosco. Assim ela conhecerá a nossa residência e verá que somos normais
até demais —disse Marcel.
— Penso que é ótima ideia! — Concordou Anne. — Assim
poderemos conversar à vontade. O que acha, Camille?
— Eu adoraria. Jean Pierre, você concorda?
— Concordo, é claro!
— Então está combinado. Camille, o Jean Pierre nos contou, na
ocasião de seu naufrágio, que hospedava você em sua casa. Devo dizer que
não achei uma boa ideia na época, mas já que agora ele conseguiu convencê-
la a se casar-se, fico feliz por vocês.
— Obrigado pela parte que me toca, Marcel!— Sorriu o marquês.
— É que Jean Pierre não é muito afeito às convenções, Camille, e isso
algumas vezes pode trazer problemas. Ficamos preocupados com o que
poderia ser dito sobre você, mesmo que nossa sociedade não seja do tipo
puritano.
— Você também não era nada afeito às convenções, Marcel —falou a
esposa.
— Pura verdade. E agora sou um bom marido, comportado, domado e
adestrado.
Todos riram.
— E Jean Pierre contou a vocês o que achava de mim? — perguntou
Camille, certa de que Jean Pierre espalhara a todos que a julgava uma
prostituta.
— Jean Pierre desde o início me contou que estava apaixonado por
você, sim — disse Marcel. — Confesso que nunca o vi amando alguém,
então imaginei que você fosse mesmo bem impressionante.
— Ele estava louco para que você acordasse, estava tão preocupado...
E falava que você era linda, não mentiu! — completou Anne.
— Esse elogio vindo de uma dama tão bonita como você, Anne, me
deixa ainda mais orgulhosa!
Anne sacudiu uma mão no ar, num gesto simpático, como se aquilo
dito por Camille não fosse verdade.
— Ah, me envaidece!
Em seguida, pegou as mãos da noiva de Jean:
— Você e eu seremos ótimas amigas, Camille. Será ótimo, eu e
Marcel gostamos muito de seu noivo, e agora poderemos sair todos juntos!
Mais tarde, quando voltavam para casa, na carruagem, Camille
pigarreou antes de falar com Jean Pierre:
— Gostei muito de Marcel e Anne.
— Eles são excelentes amigos, talvez os melhores. Fui relapso em não
lhes avisar que estávamos noivos.
— E são tão bonitos!
— Estou certo que eles pensam o mesmo de nós. Casais apaixonados
ficam mais bonitos. — Pegou sua mão.
— Você disse a eles que achava que eu era prostituta?
— Claro que não, não falei isso para nenhum dos meus amigos. Só o
doutor Olivier e a tripulação do navio que resgatou você é que tinha essa
suspeita. Mas o doutor já falou a todos que foi apenas um grande mal
entendido.
— Que constrangedor! Seus marinheiros achavam que eu era uma
meretriz, agora ficam sabendo pelo doutor que sou virgem, e que precisei ser
examinada intimamente para que isso viesse à baila. Que vergonha...
— Diga-me se preciso me desculpar por isso também, que o farei.
Pedir desculpas é um hábito corriqueiro para mim agora.
— Não vejo porque precisaria desculpar-se. Não foi você o
responsável pela confusão. Só lamento que todos os homens tenham o
mesmo tipo de pensamento.
— Acho que se preocupa em demasia com o que os outros pensam a
seu respeito.
— Não concordo, senão eu não moraria na sua casa.
— Pois já devias considerá-la como sua também. Será minha mulher
em poucos dias, e tudo que é meu, será também teu.
Camille ficou pensativa. Jean Pierre estava realmente levando a sério
o casamento. Ele nem desconfiava que ela fazia questão de remoer todo dia a
raiva e a decepção que sentira quando ele a chamara de prostituta, sem
acreditar nela. Queria a qualquer custo feri-lo mortalmente, como ele fizera
com ela. Mas para isso, precisava se fazer de boa noiva para todos, e já
encomendara até o vestido de casamento com Antonieta. Aproximar-se-ia
dos amigos dele e o deixaria cada vez mais apaixonado, para depois
abandoná-lo no altar, envergonhando-o em frente a toda a França!
Mas isso a faria sentir-se melhor?
Olhou para seu noivo. Estava tão bonito com aquela roupa de festa!
Sentiria falta de admirar-lhe os belos olhos cor de mel e de seus lábios
quentes como fogo a beijar-lhe. Sentiu um súbito mal estar diante dessa
perspectiva. Apertou a mão do marquês com força, fazendo-o se assustar:
— Você está bem, Camille?
— Estou bem.
Ele sorriu:
— Há alguma razão especial para tentar esmagar a minha mão?
— Oh, me desculpe!— Relaxou o aperto.
— Essa fala é minha... O que te incomoda, minha querida?
— Nada mesmo.
Ele fez um carinho suave em seu rosto e deu-lhe um beijo.
— Logo estaremos em casa e poderás descansar.
Mas o sacolejar da carruagem ao rodar sobre as ruas de piso irregular
só fazia piorar o mal estar de Camille. Saltou do coche sentindo o estômago
revirar. Jean Pierre havia descido primeiro, e ofereceu a mão para ajudá-la. A
moça caiu direto em seus braços.
— Você é linda, mas tende a ser um pouco desastrada, minha
noivinha.
Ela o brindou com um beijo tão intenso e inesperado, que por pouco o
próprio marquês perderia o equilíbrio.
— Adorei a sua forma de agradecer... Aguarde-me um minuto,
querida, vou pedir ao cocheiro que guarde a carruagem...
Dispensou seu empregado e logo estava junto com a noiva
novamente, abrindo-lhe o portão e depois a porta de casa. A jovem sentia
uma apreensiva expectativa ao lado dele.
Subiram as escadas juntos, o marquês com um dos braços em volta da
cintura de Camille, deixando-a extremamente perturbada. Pararam na porta
do quarto dela, a luz tênue do lustre de lâmpadas a óleo do corredor deixava o
ambiente com um toque sensual, e a presença máscula de Jean Pierre a sua
frente potencializava o clima de romantismo à volta.
— Gostaria de entrar, Jean Pierre?
Ele não pareceu surpreso com o convite.
— Gostaria, sim. Mas é preciso que tenhas mesmo certeza que queres
que eu entre, pois dessa vez nada me impedirá de ir até o fim com você.
Antes que ela pudesse responder, no entanto, escutaram um suave
farfalhar de tecidos e Antonieta surgiu, pisando o último degrau da escada e
os avistando:
— Oh, boa noite, queridos, Estava lendo um pouco na biblioteca e
acabei cochilando por lá... Não os ouvi chegar. A festa estava agradável?
— Sim, estava muito agradável. — Camille respondeu educadamente.
— Ótima, de fato — completou Jean.
Antonieta parou também junto a porta do quarto. Nenhum dos três fez
menção de mexer-se.
— Não estão cansados? — perguntou Antonieta, com olhar
inquisitivo. — Gostaria que eu lhe ajudasse com o vestido e o espartilho,
Camille?
— Obrigada, Antonieta, mas venho dispensando o espartilho
ultimamente, pois estou até magra demais. Posso resolver a questão do
vestido sozinha.
— Oh.. — Antonieta conteve o pequeno choque. Uma mulher não
usar espartilho, e ainda confessar o fato diante do noivo era um pouco
demais. Mas Camille não parecia seguir exatamente as regras de etiqueta
parisiense.
O silêncio pairou entre eles, constrangedor. Camille olhou para os
dois irmãos. Jean Pierre não tinha a intenção de desistir do convite que
recebera, e Antonieta não tinha intenção de deixá-los dormirem juntos
enquanto estivesse hospedada na casa. Mantiveram-se parados no corredor.
Quanto tempo a situação ridícula de ficarem todos ali de pé duraria?
Obviamente não poderia mais ser possível passar a noite nos braços do noivo,
e talvez fosse melhor assim. Suspirou ruidosamente antes de ser a primeira a
deixar o campo de batalha:
— Acho melhor todos dormirem.
Jean Pierre também soltou um longo suspiro, revirando os olhos e
concordando:
— É, acho que sim.
— Até amanhã, então. — Antonieta sorria enquanto esperava que os
noivos entrassem cada um no seu próprio quarto.
CAPÍTULO XVI

Na manhã seguinte Jean Pierre aguardava Camille à mesa:


— Bom dia, querida. Precisava falar-lhe.
— Jean Pierre, se é sobre ontem à noite, sabes que não haveria jeito
de...
— Não é nada disso — ele a interrompeu, — você fez o que era certo.
Antonieta não ia nos deixar à vontade. Penso que com ela por perto, nós não
teremos muita chance aqui.
— Faltam poucos dias para o casamento, vamos aguentar até lá.
— Fala por você. Eu ficaria mais feliz se nossa vida conjugal tivesse
começado ontem mesmo. Mas vamos ao que interessa: Quero falar-te sobre
nossos convidados. Não preparamos nenhum convite aos amigos até agora.
Queres convidar alguém de tua cidade?
— Não.
— Por que não?
— Não vale a pena. — Não poderia dizer-lhe que não pretendia
comparecer ao casamento, portanto não precisava convidar os antigos
vizinhos.
— Também não pretendo chamar muita gente. Como sabe, não sou
um nobre dessa corte decadente, e sim um mercador que recebeu um título
como herança, e que ainda teve que pagar para mantê-lo. Não devo e nem
quero dar satisfações à sociedade, então gostaria de convidar apenas os
amigos mais íntimos.
— Entendo... Concordo com você.
— Gostaria de ir comigo agora até a nossa igreja? Já está reservada,
mas você ainda não a conhece.
— Adoraria. Achas que minha roupa está apropriada?
— Levante-se e deixe-me ver. — Pediu, com olhar maroto.
Ela levantou-se e deu uma graciosa volta em torno de si mesma,
exibindo o vestido cor-de-rosa, e levando a mão ao decote.
— Estás linda, como sempre. E esse teu decote é tentador... Mas
também não chegará a escandalizar o pároco. Coma alguma coisa e podemos
sair. Deixei um recado para Antonieta de que só regressaremos bem tarde,
pois ainda temos o jantar com Marcel. Quero aproveitar para levá-la até meu
novo navio, gostarás de vê-lo. E almoçaremos fora.
— Parece-me ótimo. Colocarei um casaquinho por sobre os ombros
que cobrirá o busto por via das dúvidas, para não ofender a ninguém da
igreja.
— Como quiser, minha noivinha.
Ficou olhando Camille afastar-se, com um movimento de quadris
cheio de promessas, e que o deixava totalmente fascinado.
CAPÍTULOXVII

Jean Pierre apeou da carruagem, colocou seu chapéu de veludo com


plumas na cabeça e estendeu a mão para ajudar a noiva a descer do coche.
Camille havia prendido as longas madeixas negras com um encantador pente
de pedrarias que havia pertencido à sua falecida sogra, e que Antonieta lhe
havia dado de presente. A nuca exposta pareceu irresistível para o marquês ao
vê-la inclinar-se para deixar o veículo, e ele prontamente depositou um
sensual beijo ali, no momento em que ela pisou o chão. Camille sentiu um
arrepio delicioso descer do ponto beijado ao pescoço e seguir como uma
descarga de energia até suas partes íntimas. O corpo retesou-se, e ela estacou,
como que paralisada. Jean Pierre, cônscio de haver provocado
instantaneamente a excitação dela, pôs suas duas mãos um pouco acima da
cintura de Camille, fingindo ampará-la, exatamente onde os seios se iniciam,
de modo que seus polegares podiam tocá-los por baixo do casaquinho que
cobria todo o peito, ocultos dos olhares dos passantes. Ele mantinha os olhos
firmes nela, observando sua reação à massagem circular que fazia sobre o
vestido, com pressão suficiente para eriçar-lhe os mamilos. Camille não
tentou desvencilhar-se. Aceitou, trêmula e excitada, o atrevimento praticado
em plena rua, à luz do dia. Quando dos lábios entreabertos de sua noiva
escapou um suspiro de prazer, Jean Pierre resolveu ignorar qualquer regra
pública e seus lábios fecharam-se sobre os dela. O beijo transpirava luxúria, e
ela cerrou os olhos saboreando intensamente o momento de sensualidade que
se desenrolava ao lado da carruagem. Ele foi se afastando do corpo dela
devagar, mas a jovem ainda precisou amparar-se nele um instante, as pernas
ligeiramente bambas. O marquês sorriu:
— Já vai passar.
Camille não conseguiu responder, refém dos olhos de seu noivo, o
peito ainda um tanto arfante. Se um beijo e uma carícia já lhe provocavam
aquelas sensações, o que seria dela se houvesse se entregado e feito todas
aquelas coisas que a cunhada lhe havia ensinado? Com certeza enlouqueceria,
e não conseguiria levar adiante sua desejada vingança. A vingança, aliás,
parecia perder-se a cada dia. Contra todas as suas tentativas de odiá-lo,
acabava por amá-lo cada vez mais, e enquanto se agarrava às lembranças das
palavras ásperas e ofensivas dele, Jean Pierre vinha com atitudes e palavras
absolutamente encantadoras, que sobrepujavam cada frase do passado. E a
vergonha que ela queria causar ao marquês também ia caindo por terra agora
que ele desejava esvaziar a igreja, convidando apenas parentes e amigos
íntimos. Ela gostaria mesmo de constrangê-lo diante de pessoas que o
estimavam e eram estimadas por ele? Afinal, queria mesmo vingar-se?
Procurou não pensar mais, concentrando-se em apenas manter a calma.
— No baile me falaste que eu era tola em pensar que poderias fazer
algo comigo em público. Mas acabaste de fazer.
— Eu falei isso?
— Sabes que sim.
Ele pensou um pouco, depois deu de ombros:
— Pensei que não faria, mas não tenho bons modos mesmo.
— Ah, achei que ias botar a culpa de tua atitude em mim.
— E ia. Ia dizer que tu és bonita demais para que eu possa resistir,
mas não ias gostar que eu falasse, então eu teria que pedir desculpas. Mais
uma vez.
Camille reprimiu uma risada.
— É muito cínico, Jean!
— Eu ia falar essas coisas, mas não falei.
Ela deu uma risada.
— Vamos conhecer a igreja agora?
— É aquela ali, veja como é bonita.
Estavam bem próximos da igreja de Saint Louis. Era uma construção
bela e austera, de torres pontudas e entrada em arco. Camille entrou com Jean
Pierre na igreja silenciosa. A missa matinal já havia acabado, e estava
praticamente vazia, ótima para ser visitada. Seu interior era ainda mais
bonito. Ela admirou as colunas que sustentavam a abóbada, os lindos vitrais
coloridos que permitiam ampla entrada de luz, os detalhes dourados. Era a
igreja perfeita para um casamento. Seu noivo a conduziu até o altar de
mármore, e pode avistar o suntuoso órgão com seus enormes tubos, e a capela
da virgem Maria, com um afresco da Anunciação. Sentiu mais uma vez um
mal estar. Devia ser uma afronta direta a Deus vir até uma igreja garantir ao
padre que se casaria, quando não tinha intenção de cumprir o combinado.
Estaria mentindo dentro da casa do Senhor. A não ser que realmente quisesse
se casar, e nesse caso a opção de vingança estaria descartada, e teria que
simplesmente fazer descer pela garganta o dia em que o noivo a humilhara
diretamente, chamando-a de prostituta, chantageando-a para que se
entregasse a ele de todas as formas por uma noite, e quase lhe quebrando
ossos das mãos. Havia tentado fugir dele, e o que lhe acontecera? Ele a
derrubara da escada. Só sairia daquela casa se estivesse morta. Bom, depois
lembrou que não foi assim, e foi só mais um golpe da maravilhosa (falta de)
sorte de Camille. Mas quando estava despertando, depois da queda na escada,
e a cabeça parecia um sino badalando com toda força, não conseguia
coordenar as ideias de forma lógica. Havia aceitado casar com Jean em um
dia especialmente difícil, doloroso, em que sentia-se em cárcere, sem outra
opção, sem ânimo. Consolou-se no momento do pedido com a possibilidade
de uma vingança, ou, em última hipótese, pelo menos ter um nome de casada.
Ou será que aceitara para que ele tivesse uma chance redimir-se de verdade?
Estava confusa.
— Camille? Está pensando no dia do casamento? — Jean interrompeu
seus pensamentos, sorridente.
— Gostei da igreja. — Fugiu do assunto propositalmente.
— Gostaria de conversar com o padre que irá nos casar?
— Não.
Jean Pierre ficou desconcertado. Estava certo que ela gostaria de
conhecer o pároco, conversar com ele.
— Tem certeza?
— Sim, podemos ir agora. — Camille balançou a cabeça.
— Se é o que você quer...
Ele saiu da igreja silencioso e pensativo. Camille não parecia uma
noiva feliz, como sua irmã Antonieta havia sido ao ter seu casamento
marcado. No entanto, estava correspondendo bem aos seus carinhos, o que o
deixava menos apreensivo.
— Há uma boa confeitaria aqui perto. Vamos almoçar.
Fizeram uma boa refeição, mas Camille esteve quase o tempo todo
calada. O marquês estava cada vez mais desconfortável com o
comportamento de sua noiva.
O cocheiro do marquês os estava esperando, e abriu a porta do coche
para que entrassem, pondo os cavalos para andarem assim que o casal se
acomodou. Jean Pierre cerrou as cortinas ao notar que o Sol estava
incomodando os olhos claros de sua noiva.
— Vamos dar uma olhada no navio. É uma viagem um pouco
demorada até o porto fluvial onde foi ancorado para a venda. Depois dos
pequenos reparos e adaptações que está sofrendo, seguirá para o porto de
Marselha e enfim alto mar. Está sentindo-se bem ou preferia voltar para casa?
— Estou bem, é só uma ligeira indisposição...
— Será que tem alguma a coisa a ver com as pancadas que tu
sofrestes, na queda da escada? Preocupa-me o fato de não sabermos se ficou
alguma ferida por dentro.
— Não te preocupes. Acho que só preciso tirar esse casaco. Sinto-me
quente.
Enquanto ela retirava o casaquinho, Jean Pierre insistiu:
— Seja franca comigo e conte-me o que lhe incomoda.
— Nem sei explicar. Acho que estou confusa. Tudo tem acontecido
comigo tão aos supetões que nem consigo assimilar adequadamente. O
naufrágio, conhecer você, apaixonar-me, desiludir-me e enfim ficar noiva. É
coisa demais em tão pouco tempo.
Ele aguardou em silêncio que ela continuasse a falar. A jovem tomou
fôlego:
— Jean Pierre, isto é loucura! Vamos cancelar esse casamento.
— O que? Ah, não faça isso! Não faça isso conosco, Camille.
A expressão de Jean Pierre era de total espanto.
— Será melhor agora, acredite. Não vai querer que eu siga adiante
com isso.
— Quero sim, eu te amo. Pare de lutar contra esse amor que sentes
por mim. Esse teu rancor já passou dos limites! Sei que me ama ainda!—Jean
Pierre quase gritou.
Camille afastou-se:
— Esse rancor está acabando comigo! Estou morta por dentro!
— Estás morta? Quero ver!
Jean Pierre aproximou-se mais, agarrando-a e beijando-a como nunca
havia beijado antes. Não começou da forma suave que era típica dele, mas
carregado de uma urgência fremente, quase desesperada, e tão cheia de
luxúria que Camille sentiu como seu corpo estivesse todo se abrindo para
recebê-lo. Entregou-se tão vibrantemente ao beijo que só pôde sobressaltar-se
quando sentiu os dedos dele a tocarem-na entre as pernas. Ele havia erguido
todas as camadas de tafetá de sua saia, e fazia dentro dela movimentos que a
estavam levando ao delírio. Ela gemeu alto de prazer, e ele não parou,
fazendo-a alcançar o clímax consecutivas vezes, e gemer ainda mais
intensamente. Camille enfiava as unhas nas costas de Jean Pierre, tentando
controlar-se, mordendo o ombro dele para conter um grito. O marquês
demorou nas carícias, prendendo-a para que não fugisse, torturando-a até que
não mais suportasse. Quando enfim ele achou que ela já estava exausta, e que
já levara tempo demais naquela deliciosa provação, diminuiu o vai e vem da
sua mão gradativamente. Seus dedos estavam úmidos do prazer dela. Beijou-
a mais uma vez. Quando ela recobrou o fôlego, ele disse:
— Você está bem viva, Camille. Tem alguma dúvida sobre isso
agora?
— Não. — O peito dela ainda arfava.
— Não diga mais que devemos cancelar o casamento, por favor.
A voz de Camille soou enfraquecida, sonolenta:
— Não direi.
Os lábios de Jean ergueram-se muito levemente, embora ainda não
estivesse totalmente tranquilizado. Murmurou mais um pedido:
— Agora me fale a coisa que mais quero ouvir no mundo.
Ela suspirou antes de responder, resignada e amolecida de prazer:
— Eu te amo, Jean Pierre.
— Diga mais uma vez, meu amor. — Pediu, com ternura.
— Eu te amo.
— Eu também te amo. E seremos perfeitos juntos. Confie em mim...
E Jean Pierre vislumbrou nos olhos de Camille a faísca que o havia
arrebatado por completo quando ela o olhou pela primeira vez. Se o brilho de
seu olhar estava de volta, significava que sua amada estava definitivamente se
entregando para ele.
CAPÍTULO XVIII

Era um navio grande e imponente, e Camille descobriu, com orgulho,


que o marquês o havia rebatizado com o nome dela.
— O navio chamava-se “Tormenta”, e pertenceu a um pirata. Mas
acho que “Camille” é bem melhor.
— Obrigada! E o que houve com o pirata?
— Virou corsário. E adquiriu um navio melhor equipado para suas
novas necessidades.
— Ou seja, maior e mais bem armado.
— Exato.
— E os canhões desse?
— Não fiquei com todos. Não é necessário, minha área de atuação
não será muito mais ampla do que é atualmente. E meu capitão evita as rotas
mais perigosas, então até hoje só sofremos um saque. Venha, vamos a bordo.
Quero que conheça meu camarote.
— Jean Pierre, pretende viajar? — ela perguntou, ressentida.
— Minha querida, muitas vezes preciso ir junto. Você sabe disso. Eu
estava em viagem quando a resgatei, lembra-se?
— É perigoso! Não terei sossego quando você viajar!
— Imagine como será quando eu voltar. Faremos loucuras na cama!
—Sorriu, sem dar importância à preocupação dela— Não se preocupe, eu
sempre voltarei para você.
— Eu não gostei. Não tens funcionários para isso?
— Acostume-se, meu bem. Há coisas que não se pode delegar. Meus
negócios prosperam porque estou sempre à frente deles.
Subiram a bordo do navio. O marquês mostrou a cabine do capitão,
cumprimentou alguns grumetes à bordo, e levou-a até seu camarote. Camille
se surpreendeu com o luxo ostentado e o tamanho do recinto. As cortinas
eram de veludo cor de vinho tinto, com bordados dourados. A cama de
mogno, presa ao chão, era grande o bastante para um casal, havia um armário
de boa qualidade, também de mogno, e um belo tapete persa.
— Seu amigo corsário gostava de luxo...
— Acho que ele gostava de estar preparado para receber mulheres a
bordo.
— Sempre ouvi falar que os piratas tomavam as mulheres à força.
— Isso eu não sei. Não somos amigos, só fechamos um negócio.
Jean fechou a porta do camarote.
— Que pretende?— perguntou, desconfiada.
— Não imagina, meu amor? — os olhos de mel brilhavam com
intensidade — Minha irmã não poderá nos atrapalhar aqui.
— Planejava isso desde o início, ao me convidar?
— Isso lhe ofende? — perguntou, preocupado.
— Realmente não sei. — Baixou os olhos.
— Julguei que estavas segura disso ontem, ao me convidar para teu
quarto. Mas hoje vejo que reluta.
— Sempre consegues levar tuas namoradas para cama?
O marquês deu de ombros.
— Geralmente não na primeira tentativa, mas eu tento.
— E se não consegues?
— Continuo tentando. — Ele sorriu.
— Jean Pierre!
— Sei que essa conversa não me favorece, mas é irresistível
provocar-te se faz perguntas desse tipo! Por que pergunta essas coisas? Gosta
mesmo de ouvir as minhas respostas?
— Está se divertindo às minhas custas!
— Claro que sim! Por que te preocupas com o que eu fazia com
outras mulheres? Meu passado a incomoda tanto?
— Teu passado com outras mulheres é muito recente, por isso me
incomoda.
— Pois eu acho que estás fugindo do que realmente interessa. — Ele
chegou bem perto dela, e falava de forma insinuante. —Mas vou satisfazer
tua curiosidade. Há algum tempo passei a cortejar apenas mulheres que já se
propõem a fazer sexo, e geralmente vamos direto ao ponto. Mas com você
sempre foi diferente. Agora chega de se preocupar com minha atitude
promiscua de antes, pois sou outro homem desde que a conheci. Você me
transformou.
Era uma declaração de amor e tanto, pensou Camille. Mas mesmo
assim ainda não estava segura do que fazer. Suspirou fundo. Jean Pierre
entendeu.
— Então ainda não será hoje. Vamos voltar à carruagem e partir.
— Não vais insistir?
— Não vou mesmo. Se achares melhor casarmos primeiro, querida,
assim será. Já cometi o erro de acossá-la antes, e não o farei novamente. —
Certamente não comprometeria seu relacionamento com Camille,
principalmente agora que se comportavam como um casal de verdade.
Deixaria fluir com naturalidade cada momento de intimidade entre eles,
aproveitando cada mísero segundo.
No entanto, era um tanto frustrante voltar para a casa sem concluir o
desejado: fazer amor com a mulher que amava.
Abriu a porta para que a noiva passasse. Antes de trancá-la, olhou
tristemente para o leito:
— Que desperdício...

***

Fizeram uma boa viagem de volta, observando a paisagem através das


janelas. Jean Pierre manteve a mão de Camille entre as suas durante quase
toda a viagem, intercalando a suavidade com tórridos beijos e carícias
ousadas na maior parte do tempo. Chegaram à casa de Marcel e Anne
afogueados.
— Vocês estão bem? Parecem alvoroçados — indagou Anne ao
recebê-los.
— Fomos visitar o meu novo navio antes, a viagem foi um pouco
longa e agitada — respondeu Jean.
— E ficaram de sem-vergonhice durante o percurso! — Anne deu
uma risada — é isso que vossas caras dizem!
— De onde tirou essa idéia, Anne? — protestou o amigo, tentando
não rir. Camille mordia os lábios, nervosa por ter sido descoberta.
— Do fato que tu és igual a Marcel, e ele não perderia essa
oportunidade!
— Que tenho eu? — perguntou Marcel, chegando dos fundos da casa,
com dois menininhos louros ao seu lado, ao escutar seu nome. Cumprimentou
amavelmente as visitas.
— Tio Jean Pierre! — gritaram as crianças em uníssono.
— Luc! Leopold! Vamos conversar! — Jean abaixou-se para
conversar com as crianças, aproveitando para evitar a curiosidade de Anne.
— Venha sentar comigo, Camille. — Convidou Anne, indicando um
singelo sofá de madeira trabalhada, em uma saleta interligada. — Teu noivo
adora conversar com as crianças. Será um bom pai.
— Eu não sabia que ele gostava tanto de crianças.
— E eles o adoram. Tem jeito com os meninos.
Ficaram observando o marquês conversar animadamente com os dois
meninos.
— Jean Pierre é um grande amigo, nos conhecemos há anos. —
Olhou para Camille, marotamente — Gostaria de saber como nos
conhecemos? Ele e Marcel apostaram quem conseguiria me levar para a
cama.
Marcel imediatamente sentou-se ao lado delas:
— Não acredite, Camille. Ela sempre fala isso, mas não foi o que
apostamos! Nós apostamos quem conseguiria ganhar a atenção dela. Sempre
foi linda, e parecia inalcançável. Todos os rapazes queriam conquistá-la,
apenas saímos na frente nessa disputa.
— Não era bem atenção o que eles queriam. E vieram com artilharia
pesada. Era difícil fugir deles.
— Imagino! — Camille divertia-se com a história. — Conte-me!
— Jean Pierre! — gritou Marcel, preocupado. — Anne está falando
de nossa aposta!
— Ah, não, Anne! Eu trouxe a Camille aqui para que falassem bem
de mim! Esqueça essa história! — gemeu Jean Pierre, esticando-se para olhá-
las enquanto dividia sua atenção com as crianças.
— Nada disso. A Camille deve saber o máximo de coisas sobre você
e seus amigos, senão daqui a alguns anos alguém fala sobre as suas “artes” e
ela virá se queixar comigo, dizendo que guardei segredo sobre essa história, e
eu parecerei uma traidora. — Ela voltou-se para a nova amiga. — Não
precisa se preocupar, querida. Essa turma boêmia não pode ver mulher, mas
todos têm bom coração. Um a um tem se casado e tomado jeito.
— Certo. Continue a história da aposta. — Camille pediu.
Marcel estava nervoso:
— Anne, a Camille vai pensar que eu e Jean somos uns monstros!
— Faltou um tantinho assim para serem. — Brincou a esposa,
mostrando o dedo mindinho. —Vou encurtar a história: Marcel se apaixonou
por mim de verdade e o Jean Pierre se afastou. Mas, no final das contas,
todos continuamos amigos.
— Eu ganhei a linda dama. Fim da história. — Marcel curvou-se,
como agradecendo a uma platéia.
— Só porque eu deixei. — Completou Jean Pierre, entrando no salão
onde o grupo estava conversando.
— Marcel, porque não nos serve um licor? — Pediu Anne.
— Desde o início ela gostou mais de mim — falou Marcel,
empurrando com o ombro Jean Pierre ao passar. O outro também empurrou, e
saíram de perto delas aos trancos, rindo como crianças.
— Meninos nunca crescem. — Sorriu Anne.
— Seu marido não tem ciúme que Jean Pierre venha aqui?
— Não. O marquês é o melhor amigo dele, e desde que comecei a
namorar Marcel, nunca me faltou com o respeito. É como se ele nunca tivesse
me cortejado. E você, terá ciúme?
— Não — respondeu com sinceridade. — Você fez bem em contar-
me.
— Está nervosa com o casamento?
— Muito. Apesar do que você tenha pensado que eu e Jean Pierre
tenhamos feito durante a viagem, nunca me deitei com ele... — Segredou
para a amiga. — e tenho medo...
— Camille, como conseguiste escapar das garras de Jean Pierre até
agora? — Indagou, surpresa.
— Nem eu sei. Mas se tu conseguiste resistir a Marcel até o
casamento, também conseguirei resistir a meu noivo.
— Quem disse que consegui resistir? Eu já estava tão exausta com o
jogo de sedução violento que ele fazia, que acabei cedendo. Entreguei-me a
ele no jardim da casa dos meus pais. Estávamos de pé, acredite, e ele foi tão
hábil que nem senti aquela dor que tanto se fala quando fazemos o amor pela
primeira vez.
— Anne! Não teve medo que ele a abandonasse depois disso?
— Tive um pouco, mas já estávamos noivos. E se ele tentasse
abandonar-me àquela altura, meu pai o traria de volta a base de mosquete.
Também, no exato momento em que a coisa acontecia, eu não conseguia
pensar com clareza, estava tão excitada... Marcel ocupava meus pensamentos
dia e noite, era uma loucura!
Camille sorriu, pois também não conseguia deixar de pensar em como
seria o sexo com Jean Pierre.
Anne prosseguiu sua narrativa.
— Só depois que cedi é que ele me deu trégua. Ficou sossegado até o
casamento, sem tentar mais nenhum avanço. O fato é que mesmo sem Jean
Pierre a lhe fazer concorrência, Marcel continuou me encarando como um
desafio a ser vencido. Só desconfiei que houvesse uma aposta no meio da
história quando já era tarde demais.
— Isso deve ter sido estranho...
— Estranho? Quando percebi que Marcel estava feliz da vida com a
minha suposta derrota, tive ganas de matá-lo! Então tive certeza sobre a
aposta. Cheguei a dizer-lhe que havia desistido de casar.
— Oh! E ele, como reagiu?
— Ficou apavorado. Primeiro negou. Depois capitulou, pediu perdão,
fez promessas desesperadas, trouxe presentes, todas essas coisas que um
homem moído pela culpa faz. Fiquei semanas chorando pelos cantos,
evitando meu noivo, minha família ficou como aflita, sem entender o que se
passava.
— E no final das contas, casou-se.
— Que jeito? Eu amava Marcel, apesar de tudo. Tive medo que ele,
tão bonito e sedutor, acabasse arranjando outra. Mas foi difícil engolir o
rancor.
Camille baixou a vista, observando seus próprios dedos, firmemente
entrelaçados e tensos. Após alguns segundos clareou a garganta e conseguiu
indagar:
— Como conseguiste? Digo, como conseguiste engolir o rancor?
Anne olhou firmemente Camille.
— Jean Pierre te fez alguma coisa grave, não foi? Algo pior ainda do
que uma aposta por sua virgindade. Ofendeu-te de alguma forma?
— Sim. — Camille olhou-a com olhos tristes. — Mas nem tenho
vontade de falar sobre isso.
— Pois deverias falar, é bom desabafar, diminui a raiva. Conte-me o
que houve.
Os homens se aproximaram com as taças de licor.
— Pensei que haviam se esquecido de nós. Agora vão conversar sobre
política e deixe-nos com nossa conversa de mulher. — A dona de casa pediu.
— Está bem. — Marcel inclinou-se para beijar a esposa.
Camille percebeu que ele a beijava de língua na frente dos outros, sem
inibições, mordiscando-lhe os lábios sensualmente, como se estivesse prestes
a carregá-la para o quarto. Desviou os olhos e encontrou os do noivo, a
encará-la com expressão divertida.
— Eles sempre fazem isso, não se constrangem nem um pouco da
presença alheia — disse Jean Pierre.
— O que? Eu constrangi vocês? — perguntou Marcel, fingindo
surpresa após encerrar o beijo.
— Meu amigo, você é o cavalheiro mais cínico da França! Pare de
tentar ruborizar minha noiva. Deixe-as à vontade.
Marcel afastou-se de Anne com um sorriso malicioso, e foi com o
marquês para a outra sala.
— Camille, desculpe os modos do meu marido. — Ela deu um belo
sorriso. — Ele gosta de escandalizar um pouquinho, e estava testando você,
só por brincadeira.
— Não tem problema. Quem divide o mesmo teto com Jean Pierre
deve estar preparada para tudo.
— O que ele andou fazendo? Pode contar, não brigarei com ele e nem
comentarei por aí.
Camille deu um longo suspiro antes de começar a falar:
— Quando ele me salvou, por causa de um mal entendido acabou
achando que eu fosse prostituta. Foi um horror! Depois de desfeita a
confusão, após muita humilhação, assédio, agressividade e até chantagem, ele
me pediu desculpas e deu-me a aliança.
Anne estava com as mãos sobre os lábios, e fitava a amiga com olhos
arregalados:
— Mas... que horrível!
— Eu gosto dele, mas a minha mágoa não passa, e tenho tido tantas
crises de raiva!
— Eu sei perfeitamente como é. O primeiro passo para resolver isso é
querer perdoar. Será que você quer mesmo perdoá-lo? Ou será que acha que a
afronta dele não tem perdão? Ele a ama de verdade, isso eu sei. Jean Pierre
nunca ficou noivo antes, estava sempre pulando de cama em cama, mas quer
realmente casar com você. Dê-lhe uma chance de verdade. Veja o meu caso,
apesar de não ser a mesma coisa que você vivenciou, eu dei uma chance a
Marcel e hoje somos muito felizes. Não consigo imaginar-me vivendo com
outra pessoa.
— O seu caso de fato me deu ânimo. E foi bom falar com alguém
sobre como eu estava me sentindo.
— Que bom poder ajudar. Converse comigo tudo que tiver vontade.
— Há outra coisa... — Camille parecia embaraçada.
— Pode falar.
— É que ele sabe tudo de alcova, e eu não sei nada. Antonieta é que
me explicou como as coisas são, pois nem isso eu sabia direito.
A outra riu alegremente:
— Ainda bem que muita coisa se faz por instinto, e outras o homem
experiente adora ensinar! Mas não custa nada ser bem informada. Logo que
fiquei noiva, tratei de conseguir uma entrevista em segredo com madame
Constance Césaire, a prostituta mais famosa de Paris. Dizem que um czar
veio da Rússia especialmente para passar alguns dias com exclusividade no
seu leito. Ela é linda, e surpreendentemente gentil. Deu-me todas as dicas
sobre o que os homens mais gostam, e posso passá-las a você.
— Oh! Eu a conheci quando Jean Pierre me levou à ópera! Só que
com o histórico que eu e meu noivo temos, temo que ele suspeite de mim se
eu parecer muito esperta e experiente, e as acusações recomecem.
— Ele não vai reclamar, acredite. Mas você não precisa entregar o
ouro de uma vez só...
As duas sorriram.
— Anne, você namorou Jean Pierre? Pode me contar.
— Não. Mas ele conseguiu uma vez me beijar, antes mesmo que
Marcel conseguisse. Jean Pierre é desses que nos distrai com um longo beijo,
enquanto suas mãos trabalham incessantemente no nosso corpo, a gente nem
assimila direito o que está acontecendo. Quando ele parou de me beijar, eu
estava até trêmula!
— Ah, esse é mesmo Jean Pierre! Mãos perigosas!
— Gostaria que eu lhe contasse tudo que Madame me ensinou?
— Ah, eu adoraria!
Anne aproximou-se do ouvido da amiga, e com a mão em concha foi
lhe segredando todas as técnicas, truques e preferências masculinas que
Constance lhe havia ensinado.
Quando a criada veio avisar que o jantar estava servido, os homens
espantaram-se ao encontrarem as damas às gargalhadas.
— E as crianças? — indagou Jean Pierre.
— Nanete já as levou para dormir. Os meninos estavam cansados de
brincar a tarde toda. Mas vamos jantar. Temos uma cozinheira nova, ótima.
Sentaram-se à mesa, servindo-se de um farto banquete, enquanto
conversavam animadamente.
— Já comprou camisolas novas, Camille? — perguntou Anne.
— Ainda não.
— Jean Pierre, deixe uma quantia com Camille amanhã. Vou até sua
casa e de lá nós duas iremos a uma loja que abriu recentemente na cidade,
com peças da última moda. Quem sabe lá encontramos roupas de dormir
masculinas para o noivo também? Vou aproveitar para fazer compras para
mim e Marcel. Ah, e vocês vão precisar de lençóis novos! Vamos encontrar
coisas bem sensuais!
— Acho que vai ser um dinheiro muito bem investido... — respondeu
o marquês, com ar malicioso.
— E o vestido de noiva?
— Ganhei de presente da minha cunhada. O véu com a capa ainda
está sendo bordado pela modista. Vou pegá-lo em breve. — respondeu
Camille.
— Em pouco tempo meu amigo Jean Pierre se tornará um homem de
família. Pretendem ter filhos logo ou vão ficar apenas treinando um pouco?
—indagou Marcel.
— Ainda não conversamos sobre isso.
— E sobre o que vocês “conversam” à noite sozinhos naquela
mansão?
Jean Pierre sorriu para Marcel:
— Só pensas em sexo...
— Tu que disseste...
— Marcel e Jean Pierre, parem de envergonhar a minha amiga
Camille! Comporte-se, Marcel, senão depois ela não vai querer mais voltar
aqui, e eu quero que ela venha muitas vezes. Nós quatro vamos passar a
freqüentar teatro e ópera juntos!
Continuaram a comer e conversar alegremente.
CAPÍTULO XIX

Camille estava bordando. Tinha um sorriso nos lábios. Há muito


tempo não se sentia tão tranqüila. Antonieta era como uma irmã de verdade,
Anne se tornara sua melhor amiga, e Jean Pierre era o noivo mais amoroso e
sensual do mundo! Aguardava ansiosamente a chegada do amado, que havia
viajado no dia anterior para Marselha, a fim de receber um de seus navios
repleto de mercadorias. Ele ficaria excitado ao saber que a irmã viajara para
buscar os filhos e o marido, e deixado finalmente o casal sozinho. Agora não
precisariam mais se contentar em esconder-se para namorar no jardim, ou
arriscarem-se em ser flagrados seminus no corredor escuro que levava ao
pátio, como faziam ultimamente. A mudança no relacionamento deles havia
acontecido depois daquela visita à igreja de St. Louis. As tórridas carícias
dentro da carruagem, a conversa franca com Jean Pierre, e a troca de
desabafos entre ela e Anne, conseguiram fazê-la ver seu futuro matrimônio
com outros olhos. Agora desejava que o casamento acontecesse, e ansiava
por entregar-se ao marquês, embora ainda tivesse dúvidas sobre a
compatibilidade de suas anatomias. Faltavam apenas quatro dias para o
casório, e felizmente estava tudo em paz.
Até agora.
O mordomo Andrès veio avisá-la que uma mulher estava à porta,
desejando falar-lhe. Camille imaginou que fosse uma das prostitutas que ela
havia ajudado no dia do naufrágio, para saber sobre sua saúde. Estranhou um
pouco o fato, pois supunha que todas já soubessem sobre sua recuperação.
Abriu a porta e dirigiu-se até o portão de ferro, onde uma mulher jovem e
ruiva, de boa aparência e olhar sério a aguardava.
— Pois não?
— É você a noiva do Marquês Deschamps?
— Sim, sou eu mesma. E a senhora, quem é?
— Sou a amante dele, Margot. E vim matar-lhe.
A mulher ruiva puxou uma grande faca que estava escondida entre o
tecido de seu vestido e investiu contra Camille, que deu um passo para trás,
prontamente.
— Vou matar-te porque Jean Pierre é meu, sua cretina! — Avançou a
mulher, raivosa.
Camille segurou-lhe o punho erguido, mas a fúria de Margot era
maior que o susto da outra. A faca descia implacavelmente em direção ao seu
coração quando o inesperado aconteceu. Um grupo de mulheres barulhentas
havia acabado de dobrar a esquina, a tempo de ouvir a ameaça, e correu
imediatamente em socorro de Camille. O grupo acercou-se de Margot,
arrancando-lhe de cima da noiva do marquês, e retirando-lhe a lâmina das
mãos. Rodearam-na, enchendo-a de violentos pontapés, até que caísse no
chão, e continuaram chutando. Uma das moças que agredia impiedosamente
a jovem ruiva, abaixou-se junto ao seu corpo, erguendo-a pelos cabelos.
Outra, uma bela mulher de cabelos castanhos cacheados, a que havia lhe
tomado a faca, aproximou-se.
— Peça perdão à senhorita, agora mesmo.
A ruiva estava bem machucada, mas ainda assim recusou-se. A
mulher com a faca na mão passou o fio da lâmina suavemente pela face
direita de Margot, fazendo correr um filete de sangue de uma ponta a outra. A
amante de Jean Pierre soltou um grito.
— Vou lhe dar outra chance. Peça perdão à senhorita, agora! —
Ordenou a mulher de cabelos cacheados.
— Perdoe-me, por favor... — suplicou Margot, as lágrimas
começando a descer.
Camille estava aturdida, mas não conseguia mover-se. Adivinhou que
aquele grupo de mulheres fosse formado por prostitutas, que sabiam de sua
bondade com as amigas, e tinham com ela uma dívida de honra. Aquele era o
momento de fazerem a paga, ao salvarem sua redentora. Não tinha palavras
para responder, apenas concordou com a cabeça, assustada.
Andrès surgiu à porta, atraído pelo grito feminino, mas a dona da casa
sinalizou com a mão para que ele ficasse parado. A líder do grupo voltou a
falar com a jovem de rosto cortado:
— Que sua atitude nunca mais se repita, porque senão talharei tua
cara de tal forma que nenhum homem aguentará sequer olhar-te! E avises a
todas as mulheres que conheces, que o marquês Jean Pierre tem dona, e será
doravante fiel à ela. Se alguma amiga tua meter-se no caminho desse casal,
com palavras, atitudes ou atos perversos, nós saberemos. Avisa que a
senhorita tem quem vele por ela em cada canto e beco de Paris, e quem
ignorar meu aviso pagará bem caro. Está bem entendido?
— Sim, senhora... Por favor, tem piedade...
— Mas tu não tiveste piedade dela, não é mesmo? Eu a livrarei hoje,
para que tu espalhes a notícia que te dei. E ficarei com tua arma, como fosse
despojo de guerra. Vai, e não volte mais!
As mulheres largaram Margot, que correu desesperadamente para
longe. Todas voltaram-se para Camille assim que a outra desapareceu de suas
vistas.
— Está tudo bem, senhora? — indagou a moça que havia erguido
Margot pelos cabelos.
Camille esforçou-se para falar normalmente:
— Estou bem, obrigada. Não tenho palavras para agradecer a vocês.
Se não tivessem aparecido, eu teria morrido.
— Senhorita, se não fosse por você, eu, minha irmã e muitas das
minhas amigas estaríamos mortas dentro de um porão de navio afundado.
Salvaste vinte e cinco almas na noite daquele naufrágio, ainda tens muito
saldo conosco.
Elas sorriram e se afastaram, conversando calmamente, como se
aquela briga lhes fosse natural. O mordomo ajudou a patroa a entrar.
— Mil perdões, minha senhora! Não podia imaginar que a mulher à
porta era uma louca! Porque ela a atacou?
— Ciúmes de Jean Pierre. Mas por favor, não comente isso com os
outros criados, nem conte ao marquês quando ele chegar. Eu mesma quero
narrar-lhe o acontecido.
— Como preferir, mademoiselle.
CAPÍTULO XX

O marquês chegou algumas horas depois, ao anoitecer, carregado de


embrulhos. Encontrou Camille sentada à mesa, e puxou uma cadeira para si,
sentando-se ao seu lado.
— Saudades de mim, minha querida? — Beijou-a com ardor, mas
pressentiu algo de diferente com sua noiva, quando ela não lhe correspondeu
à altura. — Andrès, traz-me algo para comer, por favor. E peça que Violet me
prepare um banho bem quente agora, pois já vou subir.
O mordomo foi até a cozinha, e voltou com chá e um prato de pães.
Jean Pierre logo se serviu.
— O que aconteceu enquanto estive fora?
— Tua amante Margot esteve aqui hoje.
O marquês engasgou-se com o pão. Tossiu de forma barulhenta e
descontrolada, sob o olhar severo de sua noiva. Quando enfim recuperou-se,
com a mão tampando a boca, ainda um tanto arfante, indagou com olhos
lacrimejantes devido ao engasgue:
— O que? Como disse?
— Escutaste muito bem, mas posso repetir. Tua amante, Margot,
esteve aqui hoje.
— Eu garanto-lhe, não tenho mais nada com ela!
— Ela discorda de você. E veio matar-me.
— Matar-te?Meu Deus! — ele levantou-se de um pulo, examinando-a
e revirando-a como se fosse uma criança — ela te feriu?
Camille desvencilhou-se, olhando-o com aborrecimento.
— Não me feriu porque enquanto eu tentava deter suas facadas, um
grupo de prostitutas surgiu e salvou-me. Foi muita sorte a minha. Já tua
amante não teve tanta sorte. Quando fores vê-la novamente, verás que tem
uma cicatriz no rosto muito maior do que a que tenho na testa. Mas as
prostitutas não a cortaram fundo, não te preocupes. Com o tempo a marca
suavizará.
— Deixaste que essas mulheres cortassem o rosto de Margot?
— Ah, vejo que te ressente por isso.
— Não me ressinto por ela, me preocupo por vós. Sei que não é
violenta, Camille. Porque aprovaste isso?
— Elas não me pediram permissão, apenas fizeram. E acho que foi
bom, só assim afasto de uma vez a fila de rivais.
— Não há uma fila de rivais, deixe de sandices!
— E o que foi essa demonstração na porta de nossa casa? É esse tipo
de mulher com quem tu andas, e que tu trás para dentro do teu lar? De que
outra forma essa assassina viria a saber teu endereço?
— É verdade que eu a trouxe, mas isso foi antes de você! Juro que
não me encontrava mais com ela! Terminei tudo logo que trouxe você para
cá, acredite-me!
— Admita que é difícil acreditar.
— Não faça isso conosco, Camille, por favor. Nós estávamos tão
bem, não deixe uma louca atrapalhar nossa vida! — Suplicou, ajoelhando-se
diante dela.
Ela deixou-se perder na doçura dos olhos dele. Tentou sorrir:
— Jura que ela não é mais tua amante?
— Juro por tudo que é mais sagrado.
— Vou acreditar em você.
— Ah, graças a Deus! — Sorriu, e deu-lhe um beijo. Camille dessa
vez correspondeu às expectativas. — Providenciarei para que as autoridades
prendam esta louca, e ela jamais voltará a nos incomodar, está bem?
Camille assentiu, permitindo-se aconchegar mais ao corpo do noivo.
Jean Pierre começou a beijá-la mais intensamente. Levou a mão aos
cabelos dela, soltando-lhe os grampos um a um e formando uma sedosa
cascata negra a deslizar pelos ombros, cobrindo os seios. Puxou-a pela
cintura, fazendo com que se levantasse da cadeira. Suspendeu-a, colocando-a
sentada na mesa. Lentamente ergueu cada camada de sua saia, satisfeito por
ela não estar usando além de tudo alguma armação de metal. Não retirou-lhe
a calça. Fez com que Camille abrisse as pernas, e tocou-lhe o sexo por cima
do pano, apertando-lhe, excitando-a com dedos. Encostou-se nela,
pressionando para que sentisse sua rigidez.
— Sinta-me. Sinta quanto te desejo... — beijava agora seu pescoço,
mordia sua orelha.
— Jean Pierre, tua irmã viajou hoje para buscar teus sobrinhos. — ela
falou, os olhos semicerrados.
Ele parou imediatamente o que estava fazendo.
— Estamos sozinhos novamente?
— Estamos, mas eu não vou...
Ele colocou um indicador sobre os lábios de Camille, pedindo-lhe que
se calasse.
— Não diga nada. Vem. Vamos subir. — Puxou-a pela mão,
retirando-a de sobre a mesa. Camille deixou-se levar, sem esboçar qualquer
protesto.
Subiram as escadas com Jean Pierre na frente, ainda a segurar-lhe a
mão. Entraram na sala de banho.
— Vamos tirar nossas roupas. Tudo. — Era uma ordem.
— Jean Pierre, não acho que...
Ele a interrompeu novamente:
— Tire tudo, Camille, eu vou te ajudar. Postou-se atrás dela, abrindo
a carreira de minúsculos botões que fechavam seu vestido. Abriu todos muito
mais rápido do que o tempo levado por Violet a fechá-los algumas horas
antes. O marquês puxou as mangas da roupa, que logo deslizou por completo
pelo chão. Tirou-lhe o corpete e as calças de lacinhos. Em seguida retirou as
próprias roupas.
— Quero admirar-lhe melhor. E quero que também me admires.
Todas as vezes em que ficamos nus diante um do outro, não tínhamos tempo
suficiente para nos olharmos com calma. E tu acabavas sempre me
expulsando de tuas vistas.
Ela sorriu. E ele também.
— Você é linda! Agora, olhe para mim. Não o rosto. O meu rosto tu
já conheces bem. Olha para baixo. Olha!
Ela olhou para baixo, timidamente. Temia o contato visual. Temia o
contato físico. Forçou-se a continuar olhando o sexo dele, grande e ereto. Seu
noivo adivinhou-lhe os pensamentos.
— Receosa, Camille?
Ela encarou-o.
— Sim.
— Temes o que, exatamente?
— Tudo. De não conseguir consumar a relação, de sentir dor, de que
me abandones depois.
Jean Pierre disfarçou a surpresa pelo fato de Camille temer ser
abandonada por ele. Céus, como podia sentir-se insegura quando a amava
tanto e repetia-lhe isto tantas vezes?
—Não tenhas medo, meu amor. Não vou abandonar-te nunca, já disse
que a amo. Nós vamos consumar a relação quando você quiser, não te
preocupes, já disse que não vou forçá-la. Estamos aqui, agora, apenas nos
conhecendo melhor. Talvez sinta dor na primeira vez, sim, Camille, mas
tentarei ser cuidadoso. Isso a tranquiliza?
— Eu... É que você parece tão... Como vamos conseguir... Tu e eu...
— Ela parecia mais embaraçada ao tentar falar-lhe, do que por estar nua na
frente dele.
— Fale diretamente, pois ainda não entendi.
— Você é muito maior que eu. Muito... Maior. — ela respondeu,
mordendo o lábio inferior.
— Ah!— Ele riu, enfim entendendo qual era o tipo de medo — Isso
eu não posso mudar. Mas asseguro-lhe que ser “maior” — deu ênfase à
palavra— não é um problema... Na verdade, isso nunca me atrapalhou antes,
nem recebi reclamações. Repito que serei cuidadoso, amorzinho, e irei bem
devagar até que se acostumes...
Enquanto Jean Pierre falava, a envolvia numa áurea de sedução, com
sua voz macia, e mãos carinhosas a deslizar sobre seu corpo. Seus lábios
queimavam como fogo enquanto percorriam a pele de sua amada.
O marquês testou a água da banheira, e verificou que Violet
eficientemente já havia preparado o banho conforme pedido.
— Camille, venha, entre comigo na água. Desde o dia em que a vi
tomando banho nessa banheira, não consegui deixar de pensar em entrar aqui
com você.
Ela entrou na banheira com o noivo, um pouco temerosa. Ele sentou-
se atrás de Camille, encostando o peito musculoso nas suas costas. As mãos
de Jean Pierre começaram a massageá-la, ombros, braços e coxas, a pressão
aumentando cada vez mais, enquanto a respiração de ambos ia ficando mais
acelerada e ruidosa, e ele se roçava nela, mordendo-a levemente onde a boca
alcançava. A jovem fechou os olhos, gemendo baixinho, sentindo-o latente
contra suas nádegas.
Ele puxou-a pelas coxas, os dedos enterrados na carne, colocando-a
sobre seu colo. Camille assustou-se ao senti-lo quase dentro dela. O marquês
a acalmou, sussurrando em sua nuca:
— Não tenha medo, meu amor, se acalme... Não vou fazer nada que a
machuque, e nem nada que não queiras... Só preciso te sentir um pouquinho...
mais perto... — ele estava tão excitado que dizia as palavras de forma
entrecortada. —Você é linda, Camille, e eu estou louco por ti... Deixa... Só
um pouquinho...
Camille aquiesceu, inebriada pelas carícias dele, agora em seus seios.
Sentiu a pressão do membro do noivo a começar a invadir-lhe. Ele parou,
beijando seu ombro, e manteve-se assim, apenas uma pequena parte dentro
dela, pulsando.
— Porque você parou, Jean Pierre? — Ela queixou-se, ansiosa por
senti-lo mais, animada por não estar sentindo dor.
— Não foi o combinado penetrá-la, meu bem. Se eu fizesse isso, não
seria escolha sua.
Ele tinha auto-controle e força de vontade admiráveis! Pensou
Camille. Diferente dela, admitiu.
— Mas agora eu quero!— Quase suplicou.
— Não tens certeza, querida... Eu errei em pedir, estou te
manipulando a ceder porque meu desejo é forte demais. Vou sair da banheira,
antes que faça uma tolice.
Ela tentou afundar-se mais sobre ele, para forçar a penetração, mas
Jean Pierre percebeu a estratégia e escapuliu antes. Deu um sorriso travesso:
— Hoje vou à forra contigo, Camille. Quem vai dormir frustrada essa
noite é você. — Deu-lhe um beijo rápido nos lábios, saindo totalmente da
água.
— Porque faz isso comigo?— Camille reclamou.
Ele se enxugou rápido, e começou a vestir-se. Não teve tempo de
responder, a criada bateu à porta.
— Não entre, Violet. Estou sem roupa, fora da água. Quer me ver nu
novamente? Acho que já estás gostando... — falou alto, junto à porta.
— Só queria saber se quer mais água quente — ela respondeu, do
outro lado.
— Não, senhora. E não banques a espiã de Antonieta. Vá procurar
outros afazeres e desista de entrar aqui!
— Desculpe, senhor, eu não pretendia incomodar.
— Não me engana, mocinha! Vá!
Jean Pierre franziu as sobrancelhas.
— Absurdo! Vigiado em minha própria casa como se fosse uma
criança! Todos aqui acham que vou tirar algum pedaço de você! — O
marquês estava irritado agora.
— E vai. — Sorriu Camille.
Ele deu uma risada, e relaxou.
— Sim, mas não tirarei hoje.
Ela levantou-se da banheira, posicionando-se diante dele, a água
escorrendo pelo corpo, o cabelo molhado mal escondendo os mamilos róseos.
Jean Pierre não conseguia desviar os olhos da nudez dela, parecia encantado.
— Ah, minha Vênus, não me provoques...
— Porque nós não fomos até o final hoje? Eu estava gostando.
— Sei que estava gostando. Mas a Anne também achava que estava
gostando ao entregar-se a Marcel pouco antes do casamento. Depois virou
uma leoa ferida e meu amigo quase enlouqueceu para conseguir fazê-la
prosseguir com o matrimônio. Ele me contou tudo, e não vou passar por isso.
Não quero que te entregues porque estou a seduzindo, somente para
satisfazer-me. Eu espero você o tempo que for.
— Não foi a entrega propriamente dita que a perturbou, mas sim a
aposta que vocês fizeram.
— Nunca falamos para ela de aposta nenhuma, não sei como ela
soube. E foi a única vez que fizemos algo desse tipo. Além do mais, em
pouco tempo o Marcel estava apaixonado, não tinha sentido eu atrapalhar.
Nós cancelamos a aposta.
— Você cancelou, não ele.
— Não, Camille, não se tratava mais de uma aposta, e sim do apetite
dele em relação a ela. É bem diferente, e acho que até hoje Anne não
entendeu isso muito bem.
— Mulheres pensam de forma bem diferente de vocês, homens.
— Mas também tem desejos, não tem? — Ele esforçava-se para não
tocá-la de novo. Pegou uma toalha e a envolveu. — Boa noite, noivinha.
O marquês deu-lhe as costas e foi para seu próprio quarto.
CAPÍTULO XXI

— Trouxe um vestido novo para você, e brincos para combinar. —


Entregou à Camille um dos embrulhos que havia trazido na noite anterior, e
deixado na sala de jantar, onde estavam agora.
Ela abriu o pacote, animada. Era uma roupa linda, verde clara, e em
uma caixa havia um belo par de brincos de jade.
— Adorei!
Camille atirou-se aos braços do noivo, beijando-o com carinho. O
marquês se enchia de amor cada vez mais ao ser brindado com aquelas
demonstrações de carinho. Ansiava por ouvir que também era amado.
— Combina com você, meu amor! Temos uma festa para irmos
amanhã, e poderás usar o vestido novo e a jóia.
— Vou fazer isso! Jean Pierre, precisarei sair daqui a pouco com
Anne, irei buscar o véu e farei alguns reajustes no vestido de noiva. Meu peso
está voltando ao normal, e engordei um pouco desde o dia em que escolhi a
roupa com Antonieta.
— Está bem. Ficarei em casa, hoje. Tenho coisas a resolver aqui
mesmo. — Subiu as escadas, dando-lhe um beijo apaixonado antes.
O mordomo entrou na sala, trazendo um envelope e entregou a
Camille.
—Acabou de chegar para a senhorita.
Ela abriu, curiosa. Antes que terminasse de rasgar o papel adivinhou o
que seria. Havia esquecido da passagem solicitada a Geràrd. E também não
os havia avisado sobre o casamento, então ele e sua irmã não poderiam saber
que ela não planejava mais viajar. Ou, no fundo, ainda planejava? Quase fora
assassinada por uma ex-amante de Jean Pierre. Quantas outra mulheres
raivosas poderiam haver por aí, apenas à espreita de uma oportunidade para
tirá-la do caminho? Olhou a passagem para Portugal mais atentamente.
Estava com data marcada para o dia de seu casamento. Estranha coincidência.
Deveria rasgar imediatamente o papel, afastando assim as dúvidas e
tentações, mas não o fez. Ao invés disso, guardou em uma gaveta do seu
quarto. Não enxergava mais a viagem como uma vingança, mas não poderia
descartar que a passagem de navio poderia funcionar como um plano de fuga,
se necessário fosse.
Camille passou a tarde com Anne, olhando lojas e conversando.
Estava quase eufórica. Em mais dois dias iria casar-se! Voltou para casa
quase à hora do jantar. Jean Pierre surgiu, com o rosto afogueado e corpo
masculinamente suado,típico de um homem que passara o dia fazendo
trabalho braçal. Seu cabelo longo estava preso, e parecia muito animado.
— Que andas fazendo, Jean Pierre? Achei que ias trabalhar com a
contabilidade dos navios, mas parece que andou pegando em trabalho pesado.
— É surpresa. Você está resplandecente, Camille! Agora sim parece
uma noiva feliz.
— E sou a mais feliz das noivas! — Ela o beijou.
— Folgo em saber! Sou o mais apaixonado dos noivos! — Devorou o
jantar rapidamente, e subiu ao seu quarto novamente.
Ela ficou olhando seu noivo afastar-se. Estava louca por ele. E no dia
anterior, a aventura dentro da banheira havia atiçado ainda mais seu desejo. A
demonstração dada por ele, ela entendeu, é que eram sim muito compatíveis,
e que ele poderia possuí-la com tranqüilidade, sem causar-lhe dano. Por essa
razão, quando ele chamou-a para seu quarto, algumas horas mais tarde,
Camille já subiu as escadas pensando em entregar-se.
Jean Pierre abriu amplamente a porta de seu quarto, para mostrar-lhe a
sua surpresa. Ele havia trocado todos os móveis, e aplicado uma pintura nova
às paredes. A mobília chegou enquanto estava passeando com Anne, a amiga
havia a convidado para sair já em combinação com o marquês. Camille ficou
encantada.
— Pedi essa penteadeira para você, para que possa escovar esse
cabelo maravilhoso à noite, enquanto eu a admiro deitado na cama. Por falar
em cama, olhe esses entalhes, são... — Foi interrompido com um beijo
intenso. Jean sorriu — É, acho que você gostou...
Camille beijou-o novamente, e o empurrou suavemente para a cama.
— Camille, não é uma boa ideia namorar agora, estou suado, sujo...
—protestou, mas seu rosto demonstrava que estava se divertindo.
— Você está perfeito, como sempre... Ah, Jean Pierre, quero ser sua...
Hoje, agora.
Ela estava lânguida, sedutora, solícita demais para que Jean Pierre
resistisse. E ele ansiava demais por possuí-la, estava ávido por seu corpo, por
devorá-la de todas as formas, por todos os ângulos. Camille não precisou
insistir.
Os olhos cor de mel escureceram pouco antes de Jean Pierre colocar
Camille de costas, para alcançar os botões de seu traje.
O marquês impacientou-se, e puxou os fechos de uma vez, fazendo
voar botõezinhos de pérolas por todo o quarto. Ela não se importou,
terminando de arrancar a peça com violência. Em segundos não havia mais
nada entre eles, e Jean abraçou-a pela cintura, virando-a para que ficasse por
baixo dele. Estavam sôfregos, e ele teve que concentrar-se para não invadir-
lhe de uma vez, como desejava, e sim penetrá-la com todo cuidado, para que
não sofresse quando a desvirginasse.
Camille estava ansiosa, e não queria longas carícias. Afastou as
pernas, permitindo um encaixe perfeito com o corpo de seu amado. Jean
Pierre compreendeu-a perfeitamente. Também ele sofria ao refrear o
constante desejo que lhe dilacerava o corpo cada dia a mais. Aceitou que
tampouco desejava demorar-se em preliminares, posto que já bastante tempo
apenas contentavam-se com elas.
Jean mordiscou-lhe os seios, fazendo a noiva arquejar enquanto
preparava-se para tomá-la:
— Isso, meu amor, erga os quadris um pouquinho, para que eu possa
entrar todo em você... Abra as pernas, um tantinho mais...
Jean Pierre começou a penetrá-la, devagar. Camille pensou que iria
desmaiar de prazer, uma ardência invadindo-lhe intimamente. O marquês a
queimava por dentro, causando dor e êxtase ao mesmo tempo. Jean aguardou
um momento, continuando assim que a amada o incentivou com um sorriso.
Ela gritou quando ele intensificou os movimentos, arremetendo cada
vez mais forte e rápido, fazendo-a mover-se junto com ele. Jean ergueu um
pouco o corpo, saiu e entrou de novo, de um só golpe, fazendo-a gritar ainda
mais, em espasmos furiosos. Subitamente virou-a, pondo-a de bruços,
finalmente penetrando-a por completo, até que ficasse totalmente dentro dela,
ambos gemendo alto ao alcançarem o potente clímax. Desabaram na cama, os
corpos ainda trêmulos, a respiração acelerada. Jean afagou-lhe os cabelos.
—Meu amor, que delícia, você é daquelas que gritam! Vamos
escandalizar os vizinhos todas as noites...
Ela sorriu, aninhando-se nos braços dele, emocionada demais para
conseguir adormecer imediatamente.

***
Dormiram juntos, na nova cama, e no meio da noite Jean Pierre
procurou-a de novo. Começou a acariciá-la com cuidado:
— Camille, está dolorida?
— Não, meu amor. — A dor era ínfima se comparada ao desejo por
tanto tempo represado e que finalmente abrira-se tragando tudo a sua frente.
Encararam-se intensamente antes de enredarem-se um no outro para
mais alguns momentos de doce paixão.
— Eu a quero minha de novo... E quero que digas que me pertence...
—Já estava sobre ela mais uma vez, entrando e saindo parcialmente,
provocando, deixando-a aflita e trêmula.
— Sou tua, sou toda tua, Jean Pierre! Por favor, vem logo!— Ele
sorriu, e fizeram amor mais uma vez.
CAPÍTULO XXII

A manhã seguinte veio encontrá-los nus entre os lençóis, cansados


ainda por uma noite de sexo intenso e intermitente. Jean Pierre despertou
primeiro, e ficou admirando algum tempo a bela mulher ao seu lado.
Finalmente ela havia se rendido, e ele havia adorado a sua entrega. A partir
de agora ela não lhe escaparia mais, e ele poderia compartilhar todos os
conhecimentos adquiridos em seus anos de libertinagem com a pessoa certa,
a quem ele realmente amava. Assim como ela o ensinara a ser gentil e
paciente, ele a ensinaria todas as formas de amar para uma vida sexual plena.
E ele queria muito ensiná-la, mas precisava ir com calma, adquirir a sua
confiança, fazê-la perder o medo do que era novo. Beijou-a com ternura:
— Camille, em breve Violet baterá na porta para saber se quero o
desjejum no quarto ou lá embaixo. Ela fará o mesmo no seu quarto. Importa-
se que ela a veja aqui? Para mim seria um prazer se comêssemos juntos na
nossa cama, porque eu gosto de um escândalo... Exibi-la ao meu lado me
deixaria muito orgulhoso, e gostaria mesmo de ver a cara da Violet... Mas e
quanto ao que você pensa?
— Amanhã iremos casar mesmo, eu não me importo que ela me veja
aqui. Pode pedir o desjejum na cama.
— Então que seja. — Deitou-se junto a amada, aproximando-se com
ar malicioso.
Camille pôs as duas mãos no peito do noivo, com uma risadinha:
— Preciso aplicar compressas de água morna antes que tente uma
nova brincadeira, Jean! A noite passada foi intensa demais... E no fim,
conseguiste... estou dolorida!
— Ah, principiante! — Ele deu uma gargalhada antes de afundar o
rosto em seu pescoço e beijá-la com suavidade.
Depois a encarou, muito sério:
— Meu amor, me perdoe se exagerei noite passada. Nunca estive
antes com uma virgem, e não me dei conta que... Serei mais cuidadoso e
deixarei que seu corpo descanse. Então depois do casamento retomaremos
às... “brincadeiras”. Será que até lá, estará pronta novamente?
— Marquês Deschamps, é um cavalheiro! — Camille envolveu o
pescoço do amado, puxando-o para si e oferecendo seus lábios para um beijo,
a qual Jean respondeu apaixonadamente.
Quando a criada bateu na porta, o marquês foi atendê-la usando
apenas um lençol enrolado na cintura.
— Bom dia, Violet.
— Bom dia, senhor. — Avistou Camille encoberta no leito, e mordeu
o lábio para conter um sorriso. — Desjejum na cama, para dois?
— Sim. Porque queres rir, Violet? Fala. — Ele começava a sorrir
também.
— Se dona Antonieta visse... — Ela riu abertamente, e cobriu a boca
com a mão. — Ah, desculpe... Mas seria hilário, ela ficava andando atrás de
vocês pela casa... E enfim...
Jean Pierre riu.
— Isso fica entre nós, ela não precisa saber, coitada!
— Sem problemas. Vou trazer o café.
Jean Pierre voltou para a cama.
— Violet está do nosso lado.
— Sempre achei isso. Ela é uma boa amiga, além de criada.
— Crescemos juntos, sabia?
— Sim, ela me contou. Na verdade sei muito sobre a vida de nossos
criados, interesso-me sinceramente pelas pessoas que convivem conosco.
Deschamps sentia transbordar de alegria e amor por sua noiva, tão
doce, gentil, amiga. Tão cheia de paixão, e agora, totalmente sua.
— Você é maravilhosa. É por isso que a amo.
Beijaram-se com ardor.

***

À noite os noivos foram a uma festa na casa do barão Bernard


Lumière, um grande amigo de Jean Pierre, e um dos que o haviam passado
uma descompostura na noite da ópera, por exibir Camille acintosamente. O
dono da enorme casa era um ótimo anfitrião, bonito e simpático, e
acomodou-os gentilmente em uma mesa próxima ao local onde os
convidados dançavam. Sentou-se com eles um pouco.
— Amanhã a festa será em vossa casa, e por uma razão realmente
especial. Estão nervosos?
— Um pouco. — Sorriu Camille, linda em seu novo vestido verde.
— Ansioso! — exclamou Jean Pierre, risonho.
— A cada dia a nossa turma diminui mais. Alberte também está a um
passo de comprometer-se. Olhe como ele se derrete pela prima do Fabien,
está a cortejando já faz um mês, e parece que ela enfim está baixando a
guarda.
Camille e Jean Pierre se esticaram para observar o jovem casal. A
moça olhava para o rapaz com olhos brilhantes, e tentava disfarçar o grande
sorriso usando um leque aberto para esconder uma parte do rosto.
— Ela não quer que todos na festa percebam que está interessada, mas
já foi fisgada, a questão agora é só levá-la até a rede...
— Jean Pierre, comparando a moça a um peixe! — Censurou Camille,
chocada.
— Se quiser posso pensar em outra comparação...
Os rapazes riram.
— Não te preocupes com essa mocinha, Camille. Fabien nunca
deixará Alberte sozinho com ela enquanto não se comprometerem. Eles são
amigos e se conhecem muito bem.
— Vocês parecem lobos!
— Ela tem o mesmo jeito direto e agressivo de falar que a Anne tem,
Jean Pierre. Gostei disso.
— Cuidado com ela, Bernard, ela sabe ofender. Não a provoque.
Bernard levantou-se com uma mesura, abrindo um imenso sorriso.
— Lembrarei de ser um cavalheiro. Ou pelo menos fingir sê-lo.
Preciso falar com outros convidados, mas já volto. Jean Pierre, seja gentil
com sua noiva e venha buscar-lhe um prato de doces.
— Importa-se de ficar um pouco sozinha, enquanto busco os doces,
Camille?
— Não há problema, mas não demore muito. Anne e Marcel estão
demorando a chegar, e é desagradável ficar sem companhia.
— Não demoro. — Beijou sua mão e afastou-se.
Camille olhava a volta, distraidamente, quando um rapaz, sem pedir
licença, sentou-se no lugar de seu noivo.
— Como vai, futura marquesa? Lembra-se de mim?
Era o mesmo rapaz que havia tentado se aproximar na última festa, e
que o marquês havia rechaçado duramente. Lafayette. Ela o cumprimentou
com a cabeça, surpresa por ele tentar outro contato após ser advertido
duramente. Procurou Jean ou Bernard com os olhos, para que um deles viesse
socorrê-la do constrangimento.
— Soube do ataque que sofreste por esses dias. E que suas
amiguinhas vieram socorrê-la — o tom de voz dele era irônico, um sorriso
maldoso surgindo nos lábios, — disfarças muito bem a sua condição. Jean
Pierre é tão aberto por não se importar com a sua natureza! Diz-me, quanto
cobrarias por uma noite comigo? Posso pagar o dobro do que costumas
cobrar.
A bofetada estalou tão forte no rosto de Lafayette, que o
desequilibrou, fazendo sua cadeira cair com estardalhaço no chão. O rapaz
levantou-se rápido, alisando com a mão a face vermelha. Estava furioso, e
quase pulou sobre Camille, que se erguera imediatamente após acertar-lhe.
Todos da festa olharam para eles. Em poucos segundos outro amigo de Jean
Pierre, Florian, punha-se diante de Lafayette, protegendo Camille do
movimento brusco do homem agredido.
— Que pensas que vai fazer? Dou-te uma surra se encostar um dedo
na dama!
Bernard vinha correndo, acompanhado de Fabien e Alberte:
— O que houve aqui?
— Essa meretriz... — começou Lafayette.
Foi impedido de continuar a frase, um soco acertou-lhe violentamente
a face, derrubando-o no chão novamente, com o nariz agora sangrando. Jean
Pierre o encarava, tremendo, os olhos fuzilando de ódio. Abria e fechava os
punhos. o que acertara o rosto do outro já estava avermelhando-se .
— Levanta-te para que eu te acerte de novo! Vou matá-lo de pancada!
— Não deixe que ele faça uma loucura, Florian — suplicou Camille,
apertando o braço do amigo.
Florian assentiu, de cenho franzido. Aproximou-se de Jean Pierre:
— Acalma-te amigo, esse aí não vale a pena. Tu vais casar amanhã,
não manche esse dia com sangue.
— Já não é a primeira vez que ele me afronta! E agora ofende a minha
noiva!
— Se ela não é uma rameira, por que aquelas vadias se meteram a
ajudá-la?— gritou Lafayette, tentando estancar o sangue que jorrava do nariz.
Bernard puxou-o pelo colarinho:
— Cala-te, Lafayette, ou eu mesmo arranco-lhe os dentes!
Camille olhava de boca aberta os homens discutirem. Os outros
convidados se aproximaram para acompanhar a briga. Ela estava
envergonhada. E não lhe pareceu que os amigos de Jean Pierre estivessem
surpresos por ela haver sido ultrajada. Constatou, aborrecida, que eles deviam
saber de toda sua história. Aproveitou a confusão para deixar a festa
furtivamente. Deixou o salão quase correndo, esbarrando em Marcel e Anne
na porta, que estavam chegando.
— Camille, o que aconteceu?
Ela abraçou Anne:
— Preciso ir embora!
Marcel apertou os olhos muito azuis, e indagou desconfiado:
— O que Jean Pierre fez?
Camille não respondeu. O rosto estava rubro, a voz presa. Parecia
prestes a explodir em lágrimas.
— Espere, Camille, nós a levaremos em casa, mas falarei com Jean
Pierre primeiro.
— Não, Marcel!
— Camille, ele é teu noivo. Mantenha a calma e deixe-me falar com
ele. Anne, fique com ela — retrucou em um tom de voz que não admitia
discordância.
Entrou na festa a passos largos, logo identificando Jean Pierre no
meio de uma briga.
O lábio e o nariz de Lafayette estavam sangrando em profusão,
Florian e Alberte seguravam o marquês, Bernard e Fabian gritavam palavras
de ordem. Marcel adivinhou que Jean havia acertado o rosto do outro
algumas vezes, sem dar-lhe chance de defesa ou reação. Imaginou que a coisa
havia sido grave. Pôs a mão firmemente sobre o ombro do melhor amigo,
chamando sua atenção:
— Jean Pierre, Camille está à porta com Anne, e quer ir embora.
Posso levá-la enquanto você se acalma?
O marquês olhou-o surpreso. Voltou-se rapidamente contra Lafayette,
libertando um braço do aperto de Alberte, e acertando-lhe uma última vez,
dessa vez no queixo. Viu-o desabar quase sem sentidos.
—Basta, Jean Pierre! — gritou Florian. — Vais matá-lo! Camille não
quer isso!
— Afasta-te, vai atrás de sua noiva! — pediu Bernard.
— Deixes Paris imediatamente se queres continuar vivo, ou irei atrás
de você! — vociferou Jean em direção ao homem caído.
Correu até a porta acompanhado de Marcel, ao encontro de sua noiva:
— Camille! Eu a levarei, espere!
Camille voltou-se, furiosa.
— Como pode, Jean Pierre? — acusou ela.
— Do que falas? Eu precisava acertar aquele bandido! — estava
surpreendido com a fúria da noiva, afinal de contas ele não a havia defendido
com veemência?
— Não é isso! Falaste a teus amigos que achavas que eu era
prostituta!
Ele ficou aturdido.
— Nunca falei isso! Tu sabes que nunca falei!
— E por que Lafayette me chamou assim? Porque teus outros amigos
não se espantaram?
— Está imaginando coisas!
— Camille — intercedeu Marcel, — Jean Pierre nunca falou que você
era prostituta! De onde tirou essa ideia?
— Ele sabe de onde! — Apontou para o noivo.
Respirou fundo antes de concluir:
—Não vou mais casar contigo! O casamento está cancelado!
O comportamento passional de Jean Pierre explodiu de vez:
— Nunca quiseste realmente casar! Pensa que não via tua aversão ao
comprometimento? Eu tentei todo o tempo manter a paz, e tu sempre quis
escapulir! Hoje arrumaste uma boa desculpa! Se assim tu queres, então que
seja! Não te forçarei a ficar comigo. Desobrigo-te do nosso compromisso!—
Vociferou.
— Por favor, amigos, não se precipitem! — Tentou apaziguar Marcel.
— Vocês estão nervosos! Não falem bobagens de que irão se
arrepender mais tarde — suplicou Anne, horrorizada.
— Eu não vou me arrepender! Estou farto!— gritou o marquês.
— Eu sabia, desde o início, que era apenas um troféu para você!—
berrou Camille.
— Chega, não falem mais nada! Anne, leve Camille para casa em
nossa carruagem. Seguirei com Jean Pierre no coche dele e daqui a pouco nos
encontraremos. Vamos dar tempo para que eles se acalmem.
A voz de Marcel era imperiosa, e mais uma vez não permitia réplica.
Todos ficaram quietos.
Marcel olhou em volta, satisfeito que o burburinho em torno de
Lafayette não tivesse permitido que a discussão entre Jean e Camille fosse
ouvida pelos convidados. O estrago ainda podia ser remediado.
Anne saiu na frente com Camille. Marcel e Jean Pierre as seguiram.
Na carruagem Camille narrou para a amiga toda a confusão da festa.
Anne a tudo ouvia, seus olhos muito azuis analisando cada palavra.
Interrompeu as reclamações da outra:
— Endoidou, Camille? Lafayette te ofende e descontas em teu noivo?
Que provas tem contra Jean Pierre? Não há sentido em tua fúria contra ele, já
que estava te defendendo. Seu casamento é amanhã, e estás te sabotando. Se
não queres mesmo o compromisso, então assuma, mas não culpe o teu
marquês. Você é a moça mais bonita que já vi, mas seu futuro esposo não fica
tão atrás de ti. Achas que encontrará facilmente outro homem apaixonado,
rico, inteligente e divertido como ele é? Pense bem antes de jogar tudo para o
alto!
— Estou cansada desses altos e baixos com Jean Pierre. Não posso
viver assim.
— E desde quando viver é fácil? Com outra pessoa é mais difícil
ainda. Vocês tem que se empenhar. E ele parece mais empenhado nesse
casamento que você. Afinal, o amas mesmo?
— Claro que amo, Anne!
— Então prove, e pare de brigar tanto com ele. Não percebeste que
ele também já está ficando cansado de esforçar-se? Não seja tola, senão ele
encontra outra mulher para casar. Poderás viver sabendo que ele está nos
braços de outra, vivendo com ela, criando juntos filhos que poderiam ser
teus?
Camille não respondeu, mas a ideia aterrorizou-a.

***

Na outra carruagem o assunto não era muito diferente:


— Acalme-se, Jean Pierre.
— Já estou me acalmando, Marcel, obrigado. — Ele suspirou.—
Estraguei a festa de Bernard.
— Tenho certeza que ele não se incomodou com isso. Tu acabaste por
agitar a festa.
Jean Pierre sorriu.
— Sim, nada como uma pequena briga para agitar uma festa. Ou uma
relação.
— Peça desculpas a Camille pela tua grosseria quando chegar em
casa, Jean Pierre.
— Não. Dessa vez não fiz nada de errado. Ela é quem deve desculpar-
se.
— Ela está nervosa com o casamento. E ser ofendida em público não
ajuda.
— Não pedirei mais desculpas. Não se preocupe com isso, Marcel.
— Mas...
— Está tudo sob controle, meu amigo. Camille vai se acalmar, logo,
logo.
Marcel balançou a cabeça.
— Tu conseguiste, não conseguiste, Jean Pierre?— inquiriu Marcel.
— Não sei do que está falando. — O marquês olhava pela janela,
evitando propositalmente os olhos perspicazes do amigo.
— Ah, sabes, sim. Tu conseguiste desvirginá-la, por essa razão está
tão folgado e despreocupado com a fúria dela. Se não tivesses já conseguido,
seria mais gentil e cuidadoso.
Jean Pierre enfim encarou-o.
— É isso mesmo, ela já é minha mulher. Mesmo raivosa não terá
escolha a não ser dizer o “SIM” na igreja amanhã.
— Cuidado, Jean Pierre. Estás sendo presunçoso. Camille é linda, e
estou certo que muitos homens ficariam felizes em desposá-la mesmo já
tendo se deitado com outro. Estamos em tempos modernos. Nós mesmos
nunca nos importamos com virgindade ao cortejar uma dama. Confias tanto
que ela não pensará que tem alternativas?
— Nós nos amamos, Marcel, isso é real.
— Mais uma razão para que peças desculpas, perdão, o que ficar
melhor. Mesmo não estando errado. Se queres mesmo fazer um bom
casamento, aprenderá a controlar tua ira. Não vai conseguir submeter tua
mulher com brusquidão, e sim com carinho.
Jean Pierre recordou-se da dificuldade que Marcel enfrentou para
reconquistar Anne, depois de uma séria briga também. Ela não queria mais
casar-se com ele, e foi difícil convencê-la. O amigo sofrera muito na época.
Jean sentiu um calafrio. Camille poderia de fato abandoná-lo por causa da
discussão?
Teve medo da resposta. Respirou fundo, voltando-se para Marcel:
— Ah, está bem! Mas não vou fazer isso assim que chegar em casa,
pois ela ainda estará irascível. Cuidarei primeiro de botar meus punhos em
água fria. O cretino do Lafayette tem a cara dura.
— Acertaste o invejoso para valer.
— Se ele cruzar o meu caminho novamente, eu o matarei.
— Eu sei disso. Mas não acredito que aquele fuinha vai arriscar-se.
Provavelmente a essa hora está fazendo as malas para fugir de você e de
nossa turma.
— Espero que isso sirva de lição para ele.

***

Quando a carruagem de Jean Pierre chegou, Anne e Camille já


estavam em pé junto ao portão da casa. Marcel lançou um olhar de
advertência ao amigo, que compreendeu a mensagem. Levou a mão à cintura
de sua noiva e esforçou-se para falar com ternura:
— Por favor, minha querida, vamos entrar. Está frio aqui fora.
Gostariam de entrar, amigos? — Voltou-se para o casal parado à porta.
— Não, obrigado. Vocês precisam ficar a sós.
— Nós agradecemos sua ajuda. — replicou Jean Pierre, conduzindo a
amada para dentro de casa.
Ela entrou silenciosa, e ambos subiram a escada. O marquês entrou na
sala de banhos, deixando-a a vontade.
O rapaz levou algum tempo com as mãos de molho na água fria.
Calculou que já havia dado tempo suficiente para sua noiva recuperar a razão
e poderem conversar civilizadamente. Procurou-a no quarto. Bateu na porta
várias vezes, sem resposta. Abriu e verificou que ela não estava lá dentro.
Nem no novo quarto de casal. Ficou alarmado. Correu até o quarto de vestir,
verificou todos os quartos de hóspedes do segundo piso e não a encontrou.
Desceu as escadas com o coração aos pulos. Nem sinal de Camille na saleta,
na cozinha, na sala de jantar, na biblioteca e nem no salão onde haveria a
recepção de casamento. Seguiu a passos largos pelo corredor escuro que
levava ao jardim e suspirou com alívio, quando a viu sentada em um banco
de mármore, a bela figura iluminada pela luz da lua. Estava enrolada em um
cobertor, e Jean Pierre sentou-se a seu lado, encolhendo-se de frio.
Ela não se surpreendeu com sua presença. Falou lentamente:
— Não consegui chorar, sabia? Venho chorando tanto desde que
cheguei à sua casa, diariamente, do dia em que despertei até o dia em que me
pediste em casamento. Enfim gastei todas as minhas lágrimas com você, e já
não tenho mais nenhuma. Estou muito cansada também. Desse
relacionamento pouco linear, de tanta intensidade e incerteza... Vou embora,
Jean Pierre. Meu cunhado já me enviou a passagem de navio para Portugal.
— Camille respirou fundo antes de concluir. — Então, isso é um adeus.
Jean Pierre tentou tocá-la, mas Camille esquivou-se, e prosseguiu:
—A decepção que me causou não se apagou de minha memória. Não
viverei assim, esperando a qualquer segundo que me decepcione novamente.
Se não o amasse, nada doeria tanto. Mas não permitirei que me faça em cacos
outra vez.
Ele mantinha-se calado, então Camille o encarou. Descobriu, com
espanto, que lágrimas corriam das faces de Jean. Era aquele choro silencioso
que só os homens são capazes de chorar.
— Jean Pierre, porque está chorando?
— Por nós dois. — respondeu ele. — Por você estar cansada demais
para lutar pelo nosso amor, e por eu ser o culpado disso. Se você for embora,
Camille, é melhor que eu morra. A minha vida não terá sentido sem você. Já
não tinha sentido antes, mas eu ainda não sabia o que era amar alguém,
desejar viver junto, ter filhos. Agora que sei, não aguentarei viver sem isso.
— Pare, Jean Pierre! Não suporto a ideia de que morras! — Camille
percebeu, surpresa, que as lágrimas começavam a brotar dos próprios olhos.
— Só se ficares comigo! Já me considero teu marido, Camille. E veja,
plantei minha semente em você várias vezes na noite passada. — Pôs a mão
sobre o ventre dela— E se já estiveres grávida, meu amor? Vais viver como
mãe solteira em Portugal? Carregarias meu filho para longe de mim? Eu a
amo, intensamente, quero partilhar toda a minha vida com você. Não desista
de mim! —Ele a pegou pelos ombros — Não desista de mim!
Ela fechou os olhos, o rosto de ambos banhados pelo pranto.
— Dá-me uma chance. A nós dois. Não se arrependerá. Não a
decepcionarei. Não a farei em cacos, Camille, pelo amor de Deus, juro-lhe!
— Oh, Jean...
O marquês beijou a noiva docemente e ergueu-a nos braços.
CAPÍTULO XXIII

Subiu as escadas com ela no colo, entrando no quarto de casal e


depositando-a no leito.
Diferentemente da primeira vez, Jean Pierre agora a despiu
lentamente, cobrindo-a de beijos. Despojou-se de suas roupas bem devagar,
sob o olhar atento de Camille. Beijou-a novamente, a língua ousada descendo
pelo corpo da amada, fazendo-a vibrar, gemer de prazer. Posicionou-se sobre
ela, de mãos entrelaçadas, olhos nos olhos, costas retesadas. Invadiu-a sem
pressa, num movimento só, firme e contínuo, até preenchê-la por inteiro.
Ficou imóvel, encarando-a. Os olhos verdes dela surpresos em uma pergunta
muda. Ele falou:
— Há poucos dias dissestes que não falaríamos mais em cancelar o
casamento. Mentiste. Prometas que não me deixarás mais.
Ela concordou com a cabeça.
— Não, Camille, quero que fales, que se comprometas de verdade. —
Movimentou-se dentro dela.
Camille arquejou com o movimento, a volúpia refletida em seus
olhos. Ele mexeu-se novamente, torturando-a. Ela mordeu os lábios,
contendo um gemido. Concordou finalmente:
— Eu prometo a você, Jean Pierre, não vou deixar-te. Eu prometo!
— Agora sim...
Continuaram a fazer amor, a calma dando lugar a sofreguidão, os dois
acelerando, colunas arqueadas, pernas esfregando-se. Jean conteve-se o
quanto pode, esperando por Camille, até não mais conseguir, explodindo
dentro dela, causando delírio, gritos, e por fim, cansaço.
Dormiram abraçados, ele com uma das pernas sobre as dela, talvez
temendo intimamente que ela lhe escapasse durante a noite.
E durante o sono, mágoas, temores, e dúvidas foram silenciosa e
delicadamente trocados por perdão, certezas e contentamento.
CAPÍTULO XXIV

— Nunca vi o patrão tão bonito como hoje! —Violet estava eufórica


com o casamento. — Não é só a roupa, que é mesmo linda: colete, culote e
casaca, tudo vinho, com bordados em ouro, mas o rosto dele estava mais
jovial, os olhos cor de mel pareciam mais claros e mais brilhantes hoje.
Quando a senhorita o vir, vai se apaixonar mais ainda!
— Mas ele ainda não seguiu para a igreja? — perguntou Camille,
enrolada em uma toalha.
— Ah, seguiu, sim. Ele disse que a senhorita não abriu a porta pra ele
quando veio se despedir.
— Violet, francamente, se ele entra aqui e me encontra de toalha, com
certeza ia acabar atrasando todo o casamento...
A criada ficou ruborizada:
— Ah, agora compreendi...
— Por isso me despedi com a porta fechada, e não consegui vê-lo
pronto.
Ambas aproximaram-se do vestido de noiva, com brilhos e brocados,
estendido sobre a cama. O comprido véu bordado, e uma delicada coroa de
pedrarias a lhe fazer conjunto.
— É um vestido tão lindo... Será a noiva mais bonita da França!
Camille sorriu para a criada.
— Pode me deixar sozinha um pouco, Violet?
— Não precisará de ajuda com o vestido?
— Não se preocupe. Chamarei você se for necessário.
Violet deixou o quarto. Camille abriu a gaveta da cômoda bem
devagar, e retirou lá de dentro a passagem de navio para Portugal. Estava
marcada para o mesmo dia, e o mesmo horário de seu casamento. Suspirou
profundamente, olhando fixo para o papel a sua frente. Assentiu com a
cabeça, os lábios trêmulos. Rasgou o papel em pedaços, os maiores em
pedacinhos bem pequeninos, até se transformarem em pontinhos brancos e
caírem no chão. Sorriu, aliviada, um sorriso que se ampliava cada vez mais,
os olhos úmidos, brilhantes, com a certeza da melhor decisão que tomara em
toda sua vida. Colocou o vestido de noiva.

FIM

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