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SILVANA BARBOSA
Capa: Cassia Reis
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A ópera escolhida pelo marquês era sobre uma historia de amor entre
o deus Júpiter e a ninfa Io, e se chamava “Isis”. Estava fazendo sucesso junto
ao público. Enquanto Camille debruçava-se no camarote, encantada com o
que estava sendo contado, Jean Pierre divertia-se com a quantidade de
binóculos voltados para ela. A jovem parecia ser mais interessante do que o
que estava sendo apresentado no palco. Ele inclinou-se para falar-lhe mais de
perto, a fim de se fazer ouvir em meio ao som dos cantores.
— Todo o teatro está interessado em ti. Você é a dama mais bonita
aqui presente.
Ela olhou em volta, vagamente.
— Parece que estão curiosos.
Ele sorriu, provocante:
— Dou a você esse colar de rubis, se der um sorriso malicioso e
morder os lábios como quem ouve um galanteio erótico.
Camille deu uma risada, surpreendida com o pedido inesperado.
— Mas isso também serve... — O sorriso dele se expandiu ao vê-la
dando a risada. Era espetacular. Precisou se conter para não aprisioná-la em
seus braços mais uma vez, coroando-a com um beijo intenso. — Você é
impressionante!
Camille não se deu conta do olhar cobiçoso do marquês ao seu lado.
Respondeu com naturalidade, olhando-o rapidamente antes de voltar sua
atenção novamente ao palco:
— Achei graça em tua proposta louca. Por que eu precisaria receber
um pagamento para sorrir ou para fazer qualquer outra coisa? Ainda por cima
um colar valioso, que pertenceu a sua mãe! Que ideia!
Jean franziu o cenho, intrigado. Ela rejeitou o colar de rubis! Que tipo
de cortesã dispensa um presente caro?
Ela interpretou o silêncio dele erroneamente:
— Agora que demos a eles assunto para toda semana, posso assistir a
ópera, não é mesmo?
— Sim, claro, Camille. Não incomodarei mais.
No intervalo, Jean Pierre levou sua convidada para circular fora do
camarote. Logo que saíram para o corredor, encontraram-se com Constance
Césaire. Ela era uma das cortesãs mais caras e mais bonitas da França, de
olhos azuis e cabelos louros platinados. Porém, não era tão bela quanto
Camille. Ao ver o marquês e sua acompanhante aproximarem-se, parou para
cumprimentá-los amigavelmente. Jean ansiava intimamente por esse
encontro, queria saber se elas já se conheciam pessoalmente ou apenas de
ouvir falar. No entanto, nada no comportamento cordial entre elas durante as
apresentações demonstrou um conhecimento prévio.
— Como é linda, senhorita! — disse Constance, sinceramente. Não
era uma mulher dada a afetações ou inveja. Seu comportamento perante todos
era sempre afável, mesmo que certas pessoas a ignorassem ou a tratassem
com frieza, em razão de sua posição junto a sociedade. — Oh, vejo que seus
cabelos escondem um curativo. Machucou-se hoje?
— Oh, não. A pancada já foi há alguns dias, estou melhorando.
Obrigada — Camille respondeu, com cortesia, sorrindo no final.
Ela não citou a história do naufrágio, observou Jean. Se contasse, com
certeza Constance imediatamente saberia que falava agora com a Rainha das
prostitutas da França, e lhe faria uma longa reverência. Ou seu rosto
demonstraria o temor de perder seu posto.
Despediram-se. Logo um grupo de ruidosos e belos rapazes se
aproximou. Jean Pierre lhes lançou um olhar de advertência, que os amigos
pareceram entender. Aproximaram-se educadamente:
— Boa noite, marquês Deschamps!
— Boa noite, senhores. Essa é a senhorita Camille Dubois.
Um por um os companheiros boêmios de Jean Pierre se apresentaram:
— Fabien LeBlanc, a seu dispor.
— Barão Bernard Lumière, seu criado.
— Alberte de Cezane, encantado.
— Enrique Florian, absolutamente encantado!
Ela os cumprimentou com uma ligeira mesura, baixando os olhos ao
inclinar a cabeça. Esforçou-se para não parecer muito simpática, e ofender
Jean Pierre. Os cavalheiros a admiravam sem sequer piscar.
— Senhor marquês, incomodar-se-ia que eu voltasse ao camarote?
Sinto-me um pouco cansada. — Pediu ela, imaginando acertadamente que
aqueles eram os amigos de farra do marquês, e preferindo evitá-los.
— Vou acompanhá-la. — Prontamente respondeu.
— Não é necessário, converse com seus amigos um pouco. Com
licença.
A jovem voltou ao camarote, e os homens cercaram o marquês.
— Que moça espetacular!
— Onde achaste essa beldade?
— Ela está hospedada em minha casa.
— Então é verdade o que andam dizendo, que tem uma moça
morando com você! — exclamou Alberte. — E não disseste para nós!
— Ela não mora comigo, ela é minha hóspede.
Os amigos trocaram olhares cúmplices antes de voltarem a
bombardear Jean.
— Só dormem juntos... — replicou Florian.
— Também não.
— Ela apenas faz sexo contigo! — Todos riram.
— Não fazemos sexo. — Jean Pierre sorriu
Os rapazes silenciaram, um tanto perplexos.
— Bem, então... — LeBlanc passou a mão nos cabelos, com
expressão confusa.
— Ela sofreu um acidente. Eu a acolhi. E ela tem ficado em minha
casa desde então.
— Oh, Deus! É uma dama de família! — exclamou Florian.
— Seriamente, Jean? — Outro indagou, sobressaltado.
O barão Lumière ficou sério:
— Por que você fez isso, Jean Pierre?
— Por que fiz o que?
— Você sabe. Antes se falava de uma moça vivendo em sua casa, mas
era só especulação, e nem nós, teus amigos, achávamos que era sério. Agora
você deu a ela rosto, nome e sobrenome! Sabe muito bem que circular com
ela à noite irá destruir-lhe a reputação de moça direita. Por que faz isso a uma
jovem tão bela e delicada?
Os amigos de Jean estavam quietos agora, aguardando uma resposta.
Enrique Florian quebrou o silêncio:
— A não ser que a reputação não tenha importância, e que ela não
tenha uma a zelar. Afinal, de onde ela veio?
— Ah, mas agora não importa mais de onde ela veio, não é mesmo?
Depois de se hospedar alguns dias com um homem solteiro, ainda por cima
um com a fama de Jean Pierre, sua má reputação a precederá em todos os
cantos da França. A menos que já esteja noiva ela não arrumará mais nenhum
pretendente decente depois dessa história. — Insistiu o barão, visivelmente
aborrecido.
— E o que isso te importa? — questionou o marquês.
— Não está certo, e sabe disso. Ela não parece uma rameira.
— Eu não disse que era.
— Mas ela sabe que você assim a faz parecer? — perguntou Alberte.
— Não faço, não. Vocês é que pressupõem. Eu só quis trazer uma
bela mulher à ópera!
— Quis exibi-la! — retorquiu Fabian — Que coisa feia, Jean!
— Ela é uma prostituta? — indagou Enrique rispidamente e com
expressão irritada. — Porque se for, com certeza quero-a depois que você
terminar de usá-la.
Jean Pierre agora estava furioso:
— Não quero mais conversar com vocês! Acabarei por fazer alguma
besteira! — deu-lhes as costas, e entrou no camarote. Havia três rapazes
sentados a volta de Camille.
A fúria de Jean Pierre explodiu:
— Saiam agora! Como se atrevem a dirigir-se a uma dama sem seu
acompanhante presente?
— Marquês, viemos cumprimentá-lo — respondeu um deles,
assustado.
— Estávamos apenas o aguardando. — O outro defendeu-se.
— Muito bem, já falaram comigo. Agora, saiam.
Os rapazes saíram, cumprimentando Camille com uma mesura.
O marquês olhou para a moça, raivoso:
— Não lhe pedi que se comportasse?
— Não fiz nada! Eles acabaram de entrar aqui à sua procura!
— Sabe muito bem que eles vieram atrás de você! Eles já a haviam
visto da plateia! Aproveitaram que eu não estava aqui.
— Céus, eles não fizeram nada! Ninguém me faltou com o respeito!
— E o que você entende sobre respeito?
— Com certeza mais do que você, que não demonstrou ter um pingo
dele todos esses dias! Nunca vi uma pessoa com comportamento mais
disparatado do que o teu! Você não se decide se é um homem distinto ou um
doido completo!
Ele sentou-se ao lado dela, esfregando as têmporas:
— Lamento meus modos.
Jean estava abalado com a reprimenda que havia levado de seus
melhores amigos. Quem eram eles para julgar seu comportamento? Eram tão
lascivos quanto ele, talvez até piores. Eles reclamavam de seu modo de agir
porque não sabiam quem Camille era realmente, mas ele sabia, não sabia?
Por que zelar pela reputação de uma cortesã?
O problema é que as atitudes dela não condiziam com as de uma
prostituta. Agora estava realmente irritado com aquele fingimento sem
propósito. Iria acabar com isso de uma vez por todas, ele a forçaria a se
mostrar de verdade, a qualquer custo.
— Gostaria de ir embora — disse ela, aborrecida.
— Vamos assistir a ópera até o final, como o combinado. Eu ficarei
calado.
— A sua ira está pairando aqui. Não conseguiremos aproveitar a
ópera dessa forma.
— Você é muito sensível, minha cara. Vou me controlar, aproveite o
espetáculo.
Jean Pierre manteve-se calado, porém a raiva que sentia vinha em
ondas, erguendo-se a todo instante. Mas de onde vinha e para onde ia tanta
raiva? Seria contra seus amigos, contra Camille, contra os admiradores da
platéia ou contra ele mesmo?
Ainda cumprimentaram alguns conhecidos ao fim da ópera, e depois
seguiram na carruagem em silêncio. O marquês agradeceu secamente a
companhia de Camille ao chegarem à mansão, mas ela não respondeu,
seguindo direto para o quarto de hóspedes.
CAPÍTULO IX
Ela sonhara com seus falecidos pais. E com Marguerite, que havia
sido tragada pelo mar por culpa sua. Ficou deitada na cama por algum tempo,
com os olhos abertos a fitar o teto. Sentia-se vazia. As únicas pessoas que
ainda se importavam com ela, Lucy e Gerárd, viviam em outra parte do
mundo, acreditando que ela estava bem, hospedada com alguma vizinha em
Lyon. Se soubessem que ela estava na capital, alojada na casa de um homem
que diariamente a assediava ou ofendia, ficariam loucos. Mas o que Camille
poderia fazer nessas circunstâncias? Ficara dias desmaiada, sem alimentar-se,
e o corte na cabeça ainda não estava bem fechado. Viajar debilitada em uma
longa excursão de navio seria um sério risco
E, além disso, o restante de suas economias, as joias da família que
não serviram para o pagamento de dívidas, e a prataria que havia sobrado,
jaziam agora dentro de um baú nas profundezas do oceano. Como pagaria a
passagem? Precisaria de muita coragem para pedir um empréstimo ao
marquês, e podia adivinhar que esse negócio lhe seria muito, muito caro. E
estava um tanto apaixonada por ele, apesar de tudo. Odiava-se por isso, por
gostar daquele devasso que tirava-lhe do sério a hora que desejasse. Mesmo
com todo o risco que ficar ao seu lado trazia, gostava de conversar com ele,
quando se mostrava divertido e rápido com as palavras. Voltar à sua cidade
natal também estava fora de questão, pois não tinha mais nada lá. Sentia-se
como uma marionete do destino, sem forças ou ânimo para lutar diante da
sucessão de coisas ruins que vinham lhe acontecendo já há algum tempo.
Ah, como se sentia oca, como que entorpecida... Por que não havia
morrido no lugar de Marguerite? A morte teria sido um alívio, o fim de seu
sofrimento, da humilhação de um amor impossível.
Tomou a refeição matinal trazida por Violet a contragosto, somente
para evitar uma manifestação negativa por parte do dono da casa. Sabia que
se não comesse, a criada contaria ao patrão e ele viria com tudo para cima
dela. E invariavelmente, em um embate com Jean Pierre, Camille acabava
seminua ou humilhada, ou ainda as duas coisas juntas.
Quando foi informada de que Jean Pierre havia saído para fechar
negócios com lojistas do outro lado da cidade, sentiu-se mais à vontade para
passar o dia na cama. Não tinha vontade de levantar-se, o sonho com os entes
queridos trazendo-lhe uma terrível saudade dos tempos felizes, quando
passava as tardes brincando com a irmã ou com algumas amigas das
residências vizinhas. E agora quem não estava morto, havia se casado e ido
embora. Camille sobrara. Seu pai havia partido em viagem antes de acertar-
lhe algum casamento, e morrera doente pelo caminho. E ela, sozinha,
endividada e inexperiente nos negócios financeiros, não era atraente para os
pretendentes ricos, e nem se interessava pelos pretendentes mais pobres do
que ela. Aliás, nenhum rapaz de sua cidade a interessava. A irmã e o cunhado
sugeriram que ela poderia arranjar um bom marido português graças a sua
beleza, talvez até um nobre da corte, e essa era uma das razões de sua
viagem, mas no momento estava sem amigos, sem pretendentes, sem
família...
Sentia-se doente e com pena de si mesma.
Olhava o entardecer descer pela janela próxima ao leito, quando ouviu
batidas na porta. Pediu que a pessoa do outro lado entrasse, mas não ergueu-
se do leito.
Estava tão apática que pouco lhe importava quem estava entrando.
Jean Pierre entrou, sorridente e lindo, usando uma casaca marrom
com botas de cano longo da mesma cor. Trazia um vaso de flores exóticas na
mão.
— Boa tarde! Percebeste que bati na porta antes de entrar, dessa vez?
Estive fechando negócios perto do mercado das flores e vi esse espécime,
belo como tu. Achei que as folhas têm um tom de verde semelhante à cor dos
seus olhos. E as flores são diferentes de tudo que costumamos ver por aí.
Ele era surpreendente! Como um homem podia ir de um extremo ao
outro com tanta rapidez? Camille gostaria de saber quantas facetas tinha o
marquês.
— Obrigada, são lindas. Pode deixar na mesinha?
Ele aproximou-se, franzindo as sobrancelhas ao vê-la com olhos tão
vermelhos e inchados. Preocupava-se com ela. Havia pensado em Camille
toda a manhã, e entendido que seu comportamento no dia anterior não
ajudaria a conquistá-la. Havia algo naquela francesinha bonita que o fazia
comportar-se dos modos mais absurdos, confundindo-o a ponto de dizer
tolices impensadas e agir de maneira pouco peculiar. Agora vê-la tão abatida
o arrasava de vez.
— O que aconteceu? Andou chorando?
Ela virou para o outro lado, sem responder.
— Camille, esteve chorando o dia inteiro?
— Sonhei com meus pais essa noite. Sonhei com um tempo sem
preocupação, em que eu era apenas uma filha amada e paparicada, e vivia na
companhia de Lucy e Marguerite. Esses tempos estão muito distantes...
Ela pôs-se a chorar novamente, um choro cansado, sem soluços ou
escândalo, apenas um rolar de grossas lágrimas que pareciam sem fim.
Jean Pierre sentou-se a seu lado na cama, abrindo-lhe os braços:
— Venha aqui, Camille.
Ela virou-se e aceitou ser reconfortada por aquele abraço. Ele repetiu
a cena do primeiro dia em que se conheceram, apenas sendo gentil, silencioso
e respeitador. Continuou chorando, o peito sacudindo contra o coração dele,
num compasso combinado e confortador. A calma foi dominando-a bem
lentamente, e o aconchego era tão agradável, que acabou adormecendo junto
a Jean. Acordou horas mais tarde, já próximo ao horário da ceia,
descobrindo-o também adormecido, ao seu lado. O movimento dela o
despertou.
Estavam agora deitados frente a frente, se encarando, em um
momento que parecia mágico, distante de tudo a volta.
Parecia que estarem juntos era tão certo, tão perfeito...
O coração lhe dizia que aquele homem era seu destino, seu refúgio...
desejava-o com intensidade, com amor.
Então Camille aproximou-se do marquês no leito, oferecendo-lhe os
lábios.
O beijo reacendeu o fogo de Jean Pierre. Ele grudou-se nela, a boca
logo explorando-lhe a orelha,percorrendo o pescoço, e descendo cada vez
mais.
O vestido ia sendo retirado à medida que ele a beijava. Na altura do
umbigo o marquês descobriu, maravilhado, que ela não estava usando calças
ou ceroulas, e que não havia mais nada ali que o impedisse de possuí-la
rapidamente. Ela estava na cama, nua e solícita, e finalmente seria sua.
Camille sabia que ele estava novamente passando muito dos limites, e
dessa vez não somente com o consentimento dela, mas também com seu
incentivo, já que se oferecera a ele tão docilmente. Uma parte dela gritava
que precisava impedir a consumação daquele ato, e outra parte ansiava
desesperadamente por sua conclusão. Os beijos e as mãos de Jean não
permitiam que pensasse com clareza, seu corpo estava mole, derretendo por
completo no fogo da paixão que aquele homem maravilhoso lhe acendia.
O marquês despiu-se, afastando as pernas da jovem deitada, para
enfim possuí-la.
Camille nunca havia estado com um homem nu, e foi diante da
impressionante nudez de Jean Pierre que ela teve medo, e desistiu do que
estava fazendo, buscando desvencilhar-se mais uma vez.
Ela tentou fugir, flexionando as pernas e rolando na cama, evitando
que ele ficasse por cima. Jean, por sua vez, entendeu aquilo como um tipo de
jogo, e rolou junto com ela, forçando-a para baixo dele. O rolar de corpos,
tensos e excitados, durou alguns minutos, até que finalmente a força física do
marquês a subjugou, e Camille ficou derrotada, por baixo dele, extremamente
vulnerável e de olhos assustados. Ele pressionou a cintura dela com firmeza
contra os lençóis, para que não tentasse mais fugir e sorriu:
— Chega de brincadeira, meu bem, pois não aguento mais. Estou
totalmente louco por você, mas não tenha medo, pois não danificarei a
mercadoria. Teu amante jamais saberá que foi tocada por outro.
Amante? Mercadoria? Do que ele estava falando? Agora é que ele não
iria mesmo possuí-la! Pôs as duas mãos nos ombros dele e empurrou-o longe,
com toda a força de seu corpo, levantando-se com um pulo.
— O que? — ele gritou surpreso — Me repele novamente? Não
mesmo! Estou cansado desse fingimento!
Ele tentou forçá-la a deitar-se novamente, mas Camille se debateu
vigorosamente, já chorando, e ele acabou por soltá-la, praguejando.
— Você é mesmo louca! Você me provocou, você me queria! Estava
cheia de desejo há um minuto atrás e agora me repeles cheia de não-me-
toques? O que há com você, afinal? Essa é a última vez que deixarei passar.
Mas, na próxima vez que aceitar meus beijos e minhas mãos no teu corpo,
terá que ir até o fim, e saciar meus desejos! E pare com esse choro ridículo de
agora, porque não fiz nada que tu não quiseste! Eu não iria lhe violentar!!
Pegou suas roupas e saiu furioso, batendo a porta com violência. A
criada estava passando no corredor e sobressaltou-se ao ver o patrão andando
nu em pêlo.
— Feche os olhos, Violet! — gritou ele, irritado, e pouco se
importando de estar sem roupas. Entrou em seu próprio quarto novamente
batendo portas.
Camille vestiu-se ainda tremendo, e enfiou-se debaixo dos lençóis.
Brincara com fogo dessa vez, e admitiu ter cometido um grande erro ao
baixar a guarda e deixar tanta intimidade acontecer na cama. Não devia ter
permitido que as coisas chegassem aquele ponto e sabia que se fosse outro
homem, teria sido violentada. Ainda bem que por mais irritado que o
marquês tivesse ficado, era um homem nobre. E havia outro fator
preocupante. Ela não entendia nada de homens nus, só havia visto o pai sem
roupas uma vez, por uma fresta do quarto, ao trocar de roupas. Comparou
aquela nudez rapidamente com a de Jean Pierre, e o marquês parecia... Bem,
parecia... muito maior. Era mais sensato mantê-lo longe.
Mas por quanto tempo seria? A situação era perigosa, e a qualquer
momento sairia do controle. Em breve ela iria embora, e precisava levar a sua
dignidade junto. E o marquês julgava que ela tinha um amante! Ela era
virgem, será que ele não percebia? Porque outra razão não teria cedido se não
fosse ainda imaculada? Como poderia chegar em Portugal sem a valiosa
virgindade exigida pelos nobres daquele país e conseguir um bom marido?
Sim, porque evidentemente não era casamento o que o marquês Deschamps
queria dela. E não podia se dar ao luxo, de num rompante, entregar-se a Jean,
mesmo que o amasse. Por mais desejosa que estivesse de cair nos braços dele
e conhecer todas as delícias que o nobre demonstrava saber muito bem, ainda
não tinha perdido todo seu juízo.
Gostaria de simplesmente sumir! As coisas para ela pareciam piorar
cada vez mais!
CAPÍTULO X
Jean Pierre andava de um lado para o outro no quarto, tal qual fera
enjaulada. Como aquela mulher podia novamente rejeitá-lo? O que havia de
tão sério com o mantenedor dela que a impedia de entregar-se a outro mesmo
tão longe de seus olhos? Seria esse homem algum tipo perigoso? Que tipo de
contrato ela havia feito com seu amante? E se ele era assim possessivo,
porque não a mandava buscar? Desejava que Camille fosse logo embora!
Sim, se ela fosse embora, sua angústia enfim acabaria. Mas antes que ela
partisse, faria com que admitisse sua condição de prostituta e parasse de
tentar confundi-lo. Iria colocá-la no seu devido lugar, a maldita.
Ah, Camille não deixava seus pensamentos, enlouquecia-o mais a
cada dia. Seu rosto, sua risadas, sua voz... mesmo quando suas respostas eram
ríspidas, ainda assim Jean a admirava. Oh, Senhor Deus... ele amava aquela
mulher! E não podia aceitar passivamente estar apaixonado por uma
mentirosa sem escrúpulos!
Uma dama que vendia o corpo a quem pagasse mais... Era terrível!
A não ser que ela quisesse mudar de vida...
Ora, é claro que quereria.
O rosto de Jean Pierre foi se iluminando enquanto as ideias iam
surgindo em sua mente.
Então...
Então talvez ele pudesse fazer algo para mudar o destino de ambos.
Sim, era o que faria.
***
Comiam a refeição em silêncio. Camille havia evitado o marquês pela
manhã, mas na hora do almoço ele havia exigido sua presença à mesa. Teve
medo que ele invadisse seu quarto, então preferiu obedecer. Sentia o corpo
ainda sensível e dolorido pelo acontecido no dia anterior, e o desconforto era
tão grande quanto a opressão em sua cabeça. Não tinha apetite. Apesar de
perceber que a comida estava deliciosa, mal conseguia engoli-la. Mastigava o
que havia no prato apenas para evitar uma reação negativa de Jean Pierre.
Assim que terminaram, quando fez menção de levantar-se, ele agarrou sua
mão, forçando-a a continuar à mesa.
— Ouça-me, Camille. Parece muito jovem... E é muito bonita...
Ela sentia seus dedos doerem ante a pressão exercida pela mão forte
de Jean. Ele ignorava a tentativa que ela fazia para fugir desse aperto.
Camille começou a sentir medo:
— Está me machucando de verdade. Por favor...
Mas Jean Pierre não se apercebia da brusquidão de seu toque, tão
focado estava em organizar as palavras que havia treinado durante toda a
manhã para repetir agora. Tinha dificuldade para se manter controlado, e
conseguir aparentar uma frieza que de forma alguma sentia.
— Diga-me, minha querida— ele falou, ignorando a queixa de
Camille— porque não escolheste casar e fazer algum rapaz feliz? Por que
escolheste ser prostituta?
A pergunta pegou-a de surpresa, mais violenta que uma bofetada, bem
pior que a dor que estava sentindo no punho.
— O... O que diz?
— Não precisa mais fingir, nem tentar continuar a me fazer de tolo.
Soube desde o início que era uma cortesã de luxo, mas a hospedei assim
mesmo, para que se recuperasse do naufrágio. Não vi problema na sua
profissão. Não precisava temer que a botasse para fora só por ser meretriz. O
que me incomoda é que não admite quem é.
— Por que pensa que sou meretriz?
— Tuas amigas prostitutas disseram. Aquelas que tu salvaste.
— Minhas amigas prostitutas... Então elas disseram que eu sou uma
delas?
Ele pareceu um pouco desconcertado e afrouxou o aperto de mão por
um minuto, enquanto pensava.
— Bem, não com palavras, realmente. Falaram da sua atitude, que
você arriscou sua vida abrindo-lhes a porta quando o navio já estava indo a
pique.
— Então meu ato de bondade qualifica-me como prostituta... — a voz
dela soou amarga. Começou a compreender o porquê dos modos dele, de sua
insistência para seduzi-la, da fúria ao ter suas vontades negadas.
Jean Pierre passou a acariciar o pulso de Camille com a ponta do
dedo. O misto de carinho e dor era inquietante, abalando ainda mais o frágil
equilíbrio em que ela se encontrava.
— Teve pena daquelas prostitutas porque tinha afinidade com elas, já
que tem a mesma necessidade primária. Salvou-as porque são da mesma
espécie — ele replicou, calmamente.
— E ainda diz que não é preconceituoso... Qual seria essa necessidade
primária?
— Ser sustentada por um homem.
— Eu não preciso ser sustentada por um homem!
— E o que está fazendo agora, na minha casa? Nesse exato momento
vive às custas de um homem, esqueceste?
Camille começou a tremer de raiva e indignação, e seu rosto ficou
vermelho. Vociferou:
— Eu não sou prostituta!!!!
Ele riu, debochado:
— E que outro nome daria ao que fazes com teu corpo em troca de
dinheiro?
Camille estava atordoada. Gritou em resposta:
— Deixarei sua casa imediatamente e partirei para Portugal! Não
aceitarei mais suas ofensas!
— Ótimo! Já devia ter ido mesmo para os braços de teu senhor rico!
Mas como irá pagar sua viagem? — Jean Pierre parecia divertir-se com a
raiva dela.
— Pagarei com meus brincos de esmeralda, aqueles que eu usava
quando me achou à deriva.
Jean Pierre fez expressão de pouco caso:
— Essas pedrinhas não serão suficientes para pagar uma passagem de
alta classe. A não ser que queiras viajar com tuas companheiras rameiras
numa cabine de porão. Nesse caso, reze para que não haja outro naufrágio, ou
se acontecer, que pelo menos haja a bordo uma meretriz em ascensão tão
generosa quanto você foi, e que abra a porta para salvar-lhe.
Camille tentou esbofeteá-lo, mas Jean segurou-lhe o pulso, fechando a
mão com violência sobre a dela. Agora retinha as duas com firmeza.
— Mas eu posso financiar-lhe a passagem. — Acrescentou, com voz
condescendente.
Camille franziu as sobrancelhas, mas concordou com um gesto firme.
— Eu lhe darei meus brincos e meu broche de pérolas como garantia.
Ao chegar a meu destino providenciarei o envio do restante do pagamento em
moedas de ouro.
— Não quero tuas joias e nem as moedas de ouro do teu cliente.
O olhar dele era duro, e a jovem sentiu faltar ar a seus pulmões,
adivinhando o teor do que lhe seria dito.
— Quero que esse teu jogo de gato e rato acabe. Esse será o
pagamento, Camille: passarás uma noite comigo, a saciar-me na cama, de
todas as formas que eu pensar e quiser, mostrando-me o quanto és valiosa, e
eu te comprarei uma passagem de primeira classe, cedendo-lhe também
alguns vestidos para que desfiles, gloriosa, ao lado do teu homem. E eu a
pagarei, mesmo que não aprecie teus serviços. Mas acho que vou apreciar
muito...
Camille estava petrificada com o choque que havia levado ao ouvir a
proposta de Jean Pierre. Sabia que ele lhe diria alguma coisa terrível, mas não
imaginava que sentiria cada palavra dita como um corte em sua alma. Ouvir
aquilo da boca do homem amado era decepção demais. Como o havia
desejado antes? Como havia pensado, por um momento que fosse, que eles
poderiam ter alguma chance juntos? Ele não acreditava nela, e nem lhe dava
chance de defesa.
Fitou-o com as lágrimas brilhando nos cílios, sem força para escapar
dos olhos. Oh... Camille percebia seu choro morrendo, como ela se sentia
morrer naquele instante.
— Tens tempo para pensar, o quanto achar necessário. Como já disse
antes, sua presença embeleza minha casa, e não me importo que fique o
tempo que quiser. Mas acho que gostarás de ver-se livre de mim, já que não
me comporto sempre como um cavalheiro, e vou continuar lhe assediando até
que cedas. Poderá ser cansativo fugir de mim o tempo todo... Aliás, diz-me,
não sou tão asqueroso para vós, não é verdade? Talvez eu seja até mais jovem
e bonito que o homem que a aguarda no Porto.
Camille estava arrasada demais para tentar uma defesa. E ele ainda
prendia suas mãos, que pareciam estar dormentes. Desviou os olhos, fitando
o vazio. Para que dar-se ao trabalho de explicar que o homem que a esperava
era o marido de sua irmã, e como um irmão mais velho para ela? Apenas
concordou com a cabeça, murmurando cansada:
— És mais bonito e mais jovem do que ele.
Ah, se seu cunhado Gerárd soubesse como estava sendo humilhada!
Com certeza desafiaria o marquês para um duelo.
Jean Pierre sorria. Um tipo de sorriso indecifrável, mas que parecia
sem alegria, falso. Soltou-lhe as mãos.
Camille flexionou os dedos, olhando-os perdidamente enquanto o
sangue voltava a circular, trazendo-lhes cor. Dor física era a mais nova
aflição que aquele homem lhe causava. Sentia todo o amor por ele escoar,
perdendo-se em palavras de desconfiança e humilhação. Não suportava
encará-lo e não aguentaria ficar mais um minuto em sua presença. Levou as
mãos às têmporas, sentindo-as latejar.
— Posso levantar-me agora? — perguntou humildemente. — Gostaria
de ir para meus aposentos. Sozinha.
— Ah, sim. Pode me chamar quando resolver aceitar minha
companhia. E não se preocupe, não lhe deixarei marca nenhuma na pele
branca. A não ser que tu queiras...
Camille deixou a sala com uma expressão tão derrotada que Jean
Pierre sentiu o coração apertar-se. Quase correu atrás dela, para ajoelhar-se
diante dela e pedir-lhe que esquecesse aquela proposta horrível. Para abraçá-
la e contar-lhe que estava tão apaixonado que já não dormia direito, não
comia direito, não pensava direito. Que seu corpo doía, que estava em
constante estado de excitação e insatisfação, desesperado pelo dela. No
entanto, conteve-se.
Estava tenso por tê-la chantageado, mas precisava levar aquela
história adiante, pois acreditava que apenas uma noite em seus braços a faria
apaixonar-se por ele. Mostrar-se-ia tão amoroso e terno, que Camille jamais
desejaria trocá-lo por outro. Então Jean pediria que ela deixasse tudo para
trás e ficassem juntos. Camille aprenderia a amá-lo, pois ele possuía amor
suficiente para os dois. Antecipando este momento, sorriu para si mesmo.
Uma coisa lhe trazia satisfação naquele momento: saber que pelo
menos fisicamente levava vantagem sobre seu rival. Seu rival... Sim, iria
vencer aquela disputa, e salvar sua amada de um futuro de incerteza,
vergonha e vazio.
Seriam felizes, tinha certeza.
***
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***
***
Por volta do horário do almoço, o marquês foi ter com sua noiva.
— Camille, quero agradecer-te. Minha irmã, depois de falar com
você, abraçou-me como há anos não fazia. Tu me transformaste em um herói,
e eu disse a ela que não merecia isso tudo. Mas agora ela orgulha-se de mim,
e não posso negar que é uma boa sensação.
— Fico feliz por vocês dois. É maravilhoso ter uma família amiga.
Sinto falta disso, da amizade fraternal que só os do mesmo sangue têm.
— Mas eu e Antonieta já somos sua família, assim como também
meus sobrinhos e meu cunhado. E, se gostas de laços familiares, ficará feliz
de saber que tenho uma infinidade de primos e primas, assim como tios e tias.
Pode adotá-los todos!
Ela sorriu com sinceridade, antes de dizer:
— Então teremos uma igreja cheia!
— Nem todos virão, muitos moram longe, mas os convidarei. Hoje já
correrão os proclamas do casório, e em poucos dias poderemos casar.
Providenciarei logo uma reserva na igreja que frequento.
— Tu frequentas uma igreja? Desde quando?
— Confesso que vou pouco, mas vou. Tu nunca me pediste para levá-
la em uma.
— É verdade, mas pensei que isso para você seria algo como ir para a
guilhotina.
— Ora, essa!
— Não te incomodes, estou só brincando. Vamos almoçar?
— Sim, precisarei sair logo depois do almoço, e só voltarei bem tarde
da noite.
— Vais visitar alguma dama mais tarde? — Não resistiu a perguntar-
lhe.
— Percebi em sua pergunta uma ponta de ciúme ou é apenas
curiosidade?
— Não é educado responder com outra pergunta.
— Te incomodaria se eu fosse ver outra dama?
— Sim, me incomodaria muito, já que é meu noivo.
— Mas não te deitas comigo, minha virginal noivinha... Por que
deveria me privar de deitar-me com outra mulher, que pode e quer se entregar
a mim?
Ela conteve um ataque de fúria. Fingiu tranquilidade:
— Vais mesmo me envergonhar mais uma vez diante de todos? Mal
ficamos noivos e já vais para os braços de outra? É assim que dizes gostar de
mim?
— Os homens têm necessidades que a mulher não tem — respondeu
com um sorriso zombeteiro.
— Ah, não me venha com essa história ridícula! Você é mesmo um...
Jean Pierre deu-lhe um beijo para que se calasse, sorrindo em seguida:
—Não diga algo de que poderá se arrepender depois. Não estou
falando a sério. Não irei ver outra mulher. Tenho uma reunião com amigos.
Falaremos de política, jogaremos cartas e ficaremos um pouco bêbados. E
contarei sobre nosso noivado, nada mais do que isso.
— Se é assim... — Ela fingiu indiferença.
— Estavas morrendo de ciúme! — Ele sorria sem parar.
— Não estava não!
— Estava sim. Ah, ela me ama!
— Não sejas infantil! Vamos logo almoçar, sua irmã já deve estar à
mesa nos esperando!
Ela mantinha uma expressão rabugenta, enquanto ele não tentava
disfarçar a satisfação que sentia.
CAPÍTULO XV
***
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Dormiram juntos, na nova cama, e no meio da noite Jean Pierre
procurou-a de novo. Começou a acariciá-la com cuidado:
— Camille, está dolorida?
— Não, meu amor. — A dor era ínfima se comparada ao desejo por
tanto tempo represado e que finalmente abrira-se tragando tudo a sua frente.
Encararam-se intensamente antes de enredarem-se um no outro para
mais alguns momentos de doce paixão.
— Eu a quero minha de novo... E quero que digas que me pertence...
—Já estava sobre ela mais uma vez, entrando e saindo parcialmente,
provocando, deixando-a aflita e trêmula.
— Sou tua, sou toda tua, Jean Pierre! Por favor, vem logo!— Ele
sorriu, e fizeram amor mais uma vez.
CAPÍTULO XXII
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FIM