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ARTISTAS MULHERES: O PROCESSO CRIATIVO (BELL HOOKS, 1995)1

 Penso com frequência e profundamente sobre mulheres e trabalho, sobre o que significa ter o
luxo do tempo – tempo para organizar os pensamentos, tempo para trabalhar sem
perturbações. Esse tempo é para contemplação e devaneio. Ele aumenta nossa capacidade
criativa. Trabalho, para artistas mulheres, nunca é o momento em que escrevemos ou nos
dedicamos a outras artes, como pintura, fotografia, colagem ou técnica mista. No sentido mais
amplo, é o tempo que se passa contemplando e se preparando. Ainda temos de criar uma
cultura tão completamente transformada pela prática feminista que seria senso comum que o
cultivo do brilhantismo ou a criação de um corpo sustentável e trabalho exigem tais horas sem
perturbação.
 A maior parte das artistas mulheres se sentem sobrecarregadas. Trabalhamos para ganhar
dinheiro, para cuidar de nós mesmas e de nossa família não patriarcal. Passamos um tempo
excessivo fazendo o trabalho político (tanto teórico como prático) para sustentar as mudanças
trazidas pelo movimento feminista. E passamos muito tempo tentando descobrir como usar o
nosso tempo com sabedoria. Muitas de nós ainda lutam com o medo subjacente de que, nos
preocupando demais com arte, ficaremos sozinhas, sem companhia. E algumas de nós, que têm
um companheiro e filhos, querem garantir que, quando chegarem em casa, não haja sinais do
nosso eu artístico presente. Apesar do pensamento e da prática feminista, as mulheres
continuam a se sentir divididas quanto à alocação de tempo, energia, compromisso e paixão. E
embora importante, em geral não é tranquilizador que algumas de nós consigam incluir tudo na
agenda.
 Examinando as condições que levaram homens à grandeza, descobri que as pessoas envolvidas
nas vidas deles não só aceitavam como também esperavam que precisassem de espaço e tempo
reservado para que o trabalho diário florescesse. Esse acesso à liberdade de tempo é um
privilégio de alguns que é uma necessidade de todos. A maior parte das artistas mulheres
também são trabalhadoras assalariadas em áreas que não estão diretamente relacionadas à sua
arte. É necessário criar um contexto público para a discussão, o debate, a teorização e a
institucionalização de estratégias e práticas que continuem a investigar criticamente a
criatividade feminina e a produção artística de um ponto de vista feminista.
 Como muitas mulheres que já se dedicaram apaixonadamente à prática artística, noto que a
devoção é vista pelos outros como “suspeita”, como se o fato de (produzir) tanto significasse
que são seres monstruosos, que escondem alguma insatisfação terrível com a vida, com o
contato humano. O machismo gera essa resposta quando se trata de mulheres que se dedicam
apaixonadamente ao seu trabalho.
 Nós, artistas mulheres, precisamos fazer escolhas se queremos mais tempo para contemplar
mais tempo para trabalhar. Não podemos esperar pelas circunstâncias ideais para encontrar
tempo e só então fazer o trabalho que é a nossa vocação, temos de criar na oposição, trabalhar
contra o fluxo. Precisamos conquistar uma conscientização feminista maior sobre a importância
das mulheres ratificarem umas às outras em nossos esforços para construir espaços em que não
somos interrompidas ou perturbadas, e onde possamos contemplar e trabalhar com paixão e
entrega.
 Grupos de autoconsciência e reuniões privadas ou públicas precisam voltar a ser um aspecto
central da prática feminista, espaços onde explorar intima e profundamente todos os aspectos
da experiência feminina, incluindo nosso relacionamento com a produção artística. Eles devem
ser um espaço onde se crie um contexto cultural em que a solidariedade significativa entre
artistas mulheres possa ser fortalecida.
 Muitas pessoas assumem que o feminismo já mudou o contexto social em que as mulheres
produzem o seu trabalho. Elas confundem um maior espaço no mercado coma formação de um
espaço libertador em que as mulheres podem criar arte significativa, convincente e “grandiosa”.
Precisamos ter cuidado com a sedução da possibilidade superficial e rara de receber
reconhecimento e consideração imediatos que possam nos render atenção de um modo que
continue a nos marginalizar e separar. Conforme lutamos para entrar no mainstream do mundo
da arte, precisamos nos sentir empoderadas para proteger a representação da mulher como
artista para que ela nunca mais seja desvalorizada. ²

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1 - Gloria Jean Watkins (1952-2021), mais conhecida pelo pseudônimo bell hooks (escrito


em minúsculas) foi uma autora, professora, teórica feminista, artista e ativista antirracista americana.
Ela nasceu em uma pequena cidade segregada do estado de Kentucky, no sul dos Estados Unidos,
em uma família de classe trabalhadora. O nome "bell hooks" é uma reivindicação do legado de sua
bisavó, Bell Blair Hooks. A letra minúscula foi escolhida para dar enfoque ao conteúdo da sua
escrita e não à sua pessoa. O seu objetivo, porém, não é ficar presa a uma identidade em particular
mas estar em permanente movimento.

Em 1981, a South End Press publicou o seu primeiro trabalho principal, "E Eu Não Sou Uma
Mulher? Mulheres Negras e Feminismo", escrito anos antes quando era uma estudante
universitária. Após à publicação bell hooks ganhou um reconhecimento generalizado pela
contribuição para o pensamento feminista.

2 – O que a autora parece propor é a busca de meios para que a fama transitória da artista se
transforme em grandeza permanente, no mesmo patamar da que se confere aos homens – para
que deixem de ser consideradas “mulheres de bom gosto” em contraposição a “homens de gênio”,
como posto por Tamar Garb.

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