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A MODERNIDADE E OS ESPAÇOS DE FEMINILIDADE (GRISELDA POLLOCK, 1988)¹

INTRODUÇÃO

 Todos aqueles canonizados como precursores da arte moderna são homens. Seria porque não
houve mulheres envolvidas nos primeiros movimentos modernos? Não. Seria porque aquelas
que se envolveram não tiveram qualquer importância na determinação da forma e do caráter da
arte moderna? Não. Ou porque aquilo que a história da arte modernista celebra é uma tradição
seletiva que normaliza como o único modernismo um conjunto de práticas específicas e
pautadas pela questão de gênero? Eu defenderia essa explicação. Assim, qualquer tentativa de
lidar com artistas mulheres dos primórdios do modernismo exige a desconstrução dos mitos
machistas do modernismo. ²
 É notável o fato de que muitas das obras canônicas tidas como fundamentais da arte moderna
tratarem especificamente da sexualidade e suas formas como uma troca comercial. Os homens
têm a liberdade de transportar seus prazeres a diversos espaços urbanos, enquanto as mulheres
pertencem em uma classe subalterna, precisando frequentar tais lugares, frequentemente
vendendo seus corpos a clientes ou artistas. Tais trocas são estruturadas por relações de classe,
mas essas são absolutamente tomadas pelo gênero e por suas relações de poder. Não podem
ser separadas ou ordenadas numa hierarquia. Trata-se de simultaneidades históricas que se
modulam mutuamente. Daí a necessidade de se investigar por que o território do modernismo é
tão frequentemente uma forma de abordagem da sexualidade masculina e de seu signo, o corpo
das mulheres.
 Há portanto uma assimetria histórica – uma diferença do ponto de vista social, econômico e
subjetivo entre ser uma mulher e um homem na Paris do fim do século XIX. A diferença –
produto da estruturação social da diferença sexual, e não de alguma distinção biológica
imaginária – determinou tanto o que homens e mulheres pintavam, mas a forma como o
faziam³. Berthe Morisot e Mary Cassat, por exemplo, como mulheres trabalharam a partir de
posições e experiências diferentes daquelas de seus colegas homens.
 A história da arte feminista tem um projeto duplo:
o a recuperação histórica das artistas mulheres, devido ao seu constante apagamento e à
menção da feminilidade como uma inaptidão para o fazer artístico,
o a ênfase na heterogeneidade do trabalho das mulheres, na especificidade das
produtoras individuais e dos seus produtos, embora elas tenham em comum os
sistemas sociais que produzem a diferenciação sexual, ie, que posicionam homens e
mulheres de forma assimétrica no que diz respeito a linguagem, poder social e
econômico e a significado.
 O espaço pode ser compreendido em várias dimensões. A primeira delas é a de lugar. Pergunta-
se assim: quais espaços são representados nas obras de mulheres como Morisot e Cassat?
Espaços domésticos, ou espaços burgueses de recreação, exibição ou rituais sociais que
constituíam a sociedade polida. Elas desvelam ainda aspectos da vida das mulheres
trabalhadoras no âmbito do lar burguês, mas lhes eram vedados os espaços tão livremente
ocupados por seus colegas homens, como cafés, bares e camarins.
A segunda dimensão é a da disposição espacial
das pinturas. Brincar com as estruturas espaciais era uma das características determinantes nos
primórdios da pintura modernista em Paris, e várias mulheres certamente tomaram parte das
conversas que determinaram essa estratégia. Para além disso, Morisot representava
geralmente dois compartimentos de espaço, geralmente divididos por algum artefato como
uma balaustrada, sacada ou varanda, cuja presença sublinha a quebra. O que ela demarca não é
o limite entre o público e o privado, mas entre os espaços de masculinidade e feminilidade. O
espaço em que a pintora trabalha é como que parte da cena. Já Cassat costuma trabalhar com o
espaço pictórico raso, deixando de lado as convenções da perspectiva geométrica renascentista
e utilizando o chamado espaço fenomenológico de maneira consciente. 4
A terceira abordagem consiste em investigar não apenas os espaços representados ou
de representação, como também os espaços sociais a partir dos quais se produz. No caso da
Paris do século XIX, a “cidade espetáculo” moderna, se oferece aos homens uma vida no meio
da multidão, o ritmo acelerado que era acompanhado de um comportamento blasé e
determinado pela moda. Ele é o flaneur, o transeunte impassível em um lugar marcado pelo
consumo, sexualidade e exibição, que se relaciona com os seus iguais ou semelhantes. O mundo
burguês dividia-se entre a esfera pública, ligada ao trabalho produtivo e às decisões políticas,
palco da liberdade, irresponsabilidade e mesmo imoralidade, eminentemente masculino, e a
esfera privada, habitada por mulheres, crianças e servos. Ao acessar o espaço público para
passear, fazer compras ou visitas, a mulher se arriscava a perder a virtude, sujar-se, desgraçar-
se. A mulher proletária, que saia para trabalhar, representava um problema nas relações sociais
assim estabelecidas, por não se restringir aos espaços normalmente associados à feminilidade.

O PINTOR DA VIDA MODERNA

 Em 1863, Charles Baudelaire publicou o ensaio “O Pintor da Vida Moderna”, que oferece um
mapa de Paris que baliza os locais e olhares concernentes ao flaneur/artista, tido como um
amante da multidão. O texto é estruturado em uma oposição entre a casa, o domínio interno da
personalidade conhecida e limitada, e o exterior, o espaço da liberdade, onde o ato de olhar é
permitido. Tal é a liberdade imaginada do voyeur. É na multidão que ele instala o seu lar.
 Não existe equivalente feminino para o flaneur. As mulheres não desfrutavam da liberdade de
serem incógnitas na multidão. Jamais eram tidas como habitantes normais do domínio público.
Não tinham o direito de olhar, escrutinar, encarar ou observar. São posicionadas como objeto
do olhar do flaneur. 5
 As mulheres são representadas de forma diferente conforme o local. No camarote do teatro,
temos debutantes e jovens mulheres da sociedade elegante, enquanto nos bastidores as
dançarinas. Nos parques, as matronas, mães, crianças e famílias elegantes, enquanto nos cafés e
bordéis as amantes e cortesãs.

AS MULHERES E O PÚBLICO MODERNO

 Os retratos de mulheres apresentados por artistas de ambos os sexos têm pontos de vista
diferentes, ainda que o local e a situação sejam semelhantes. A mulher que está em público está
o tempo todo vulnerável a um olhar comprometedor, mas os espaços sociais são policiados por
homens que observam as mulheres. As artistas mulheres não tinham acesso aos mesmos
ambientes que os homens, que eram o autêntico território do engajamento destes com a
modernidade. Há relatos de mulheres burguesas que frequentavam os cafés-concertos, mas isso
era descrito como deplorável sinal do declínio moderno. Era uma séria ameaça à reputação
destas mulheres e, consequentemente, à sua feminilidade.
 A preservada respeitabilidade de uma dama poderia ser manchada pelo mero contato visual,
pois que o ato de olhar estava atrelado ao conhecimento. Esse outro mundo de encontros entre
homens burgueses e mulheres de outras classes era uma área interdita às mulheres burguesas.
Tratava-se do lugar onde os corpos femininos eram negociados, onde a mulher se tornava tanto
uma mercadoria de troca como uma vendedora de carne, integrando o domínio da economia.
Aqui a divisão entre o público e o privado era rompida pelo dinheiro.
 Nas teorias burguesas da feminilidade, o casamento ocultava a ideia de uma compra do corpo
feminino e de seus produtos, sendo encarado como consequência do amor, que deveria ser
sustentado pelo dever e devoção. A feminilidade portanto não deve ser entendida como uma
condição das mulheres, mas como uma forma ideológica de regular a sexualidade feminina no
âmbito de uma domesticidade familiar e heterossexual organizada pela lei.
 As mulheres podiam frequentar e representar determinados locais da vida pública – aqueles do
entretenimento e da exibição. 6 Mas há uma linha que demarca não o fim da cisão entre o
público e o privado, mas sim as fronteiras dos espaços de feminilidade. Abaixo dessa linha se
encontra o território dos corpos sexualizados e transformados em mercadoria. Trata-se de uma
linha que demarca um limite de classe, e revela não apenas onde o mundo burguês transformou
a relação entre homens e mulheres, mas também entre mulheres de classes sociais distintas. 7

HOMENS E MULHERES NA ESFERA PRIVADA

 Redesenhando o mapa traçado por Baudelaire com base nos trabalhos de Morisot e Cassat,
notamos outros espaços frequentemente ocupados pelas mulheres na esfera doméstica, como a
sala de estar, o jardim da casa de veraneio, o quarto, a varanda. As mulheres podem ocupa-los
de forma mais acentuada, mas é importante notar que neles o homem artista também pode
estar presente. 8
 As obras de mulheres são pintadas com um senso de conhecimento da rotina e dos rituais
diários que não apenas constituem os espaços de feminilidade, como também delineiam
coletivamente a construção da feminilidade ao longo dos estágios das vidas da mulheres –
formas pelas quais a feminilidade é induzida, adquirida e ritualizada desde a infância e
juventude, passando pela maternidade até a velhice. São trabalhos marcados pela preocupação
com a subjetividade da mulher, em particular em momentos cruciais do feminino. Neles, a
mulher é apresentada por um olhar mais contemplativo do que voyeurístico, da mulher como
objeto – é flagrante a diferença entre os tipos de olhar permitidos a cada sexo pela sociedade
burguesa: para o homem, no mais das vezes um simples corpo num ambiente de trabalho.
 Os pintores burgueses eram posicionados, assim, de forma diferente, segundo a mobilidade
social e o tipo de olhar a eles permitido, dependendo se eram homens ou mulheres – a prática
da pintura é em si um espaço para a inscrição da diferença sexual. A posição social, em termos
de classe e de gênero, determina e prescreve os limites do trabalho produzido.
 Geralmente a História da Arte nega às produtoras culturais mulheres o status de
autoras/criadoras. Ademais, elas têm sido vítimas de leituras ideológicas em que os
historiadores ou críticos de arte, sem levar em conta a diferença, proclamaram com convicção o
significado dos trabalhos de mulheres, sempre tomando a feminilidade como característica
principal. É necessário, ao contrário, atentar para o processo de trabalho – tanto no que diz
respeito à manufatura como à significação – como espaço de inscrição da diferença sexual, onde
a cultura produz relações sociais e a normatização da feminilidade. Só assim é possível libertar
as mulheres artistas da armadilha da circularidade. 9

A MULHER E O OLHAR

 A espectadora feminina e a política sexual do olhar: para olhar e desfrutar dos espaços da
cultura patriarcal, as mulheres devem assumir uma posição masculina ou desfrutar, de forma
masoquista, a visão da humilhação da mulher 10
 O dilema feminista: uma mulher que é artista enxerga sua experiência em termos de uma
posição feminina, isto é, como objeto do olhar, enquanto também deve responder pelo
sentimento que experimenta como artista que ocupa a posição masculina de sujeito do olhar.
 As políticas sexuais do olhar operam em torno de um regime que divide tudo em posições
binárias: atividade/ passividade, olhar/ser visto, voyeur/exibicionista, sujeito objeto. Seriam
artistas como Morisot e Cassat cúmplices deste regime dominante? Não, uma vez que o espaço
representado se transforma em locus de relacionamentos. O olhar que se fixa na figura
representada é o do igual e semelhante, embora a troca de olhares muitas vezes se dê entre
mulheres de classes diferentes, burguesas e proletárias. Apesar das realidades de classe não
poderem ser apagadas pelo mito de uma mítica irmandade entre mulheres, elas não eram
sujeitadas ao mesmo olhar voyeurístico ou à mercantilização sexual que recebiam dos homens,
e o observador se torna parte dessa intimidade.
 Os espaços da feminilidade ainda regulam a vida das mulheres – desde quando fogem da
opressão dos olhares intrusivos dos homens nas ruas, até quando sobrevivem a ataques sexuais
possivelmente fatais. A configuração que moldou os trabalhos de Morisot e Cassat ainda define
o nosso mundo. Assim é necessário desenvolver análises feministas dos movimentos fundadores
da modernidade e do modernismo, discernir as suas estruturas sexuais, descobrir resistências e
diferenças do passado, examinar como as mulheres produtoras desenvolveram modelos
alternativos de negociação da modernidade e dos espaços de feminilidade.

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1 – Griselda Pollock (11 de março de 1949) é uma teórica, analista e intelectual dos estudos feministas
pós-coloniais nas artes visuais. Ela é conhecida por suas inovações teóricas e metodológicas. É
considerada uma das principais proponentes da relação entre feminismo e história da arte. Em seu
trabalho, ela desafia modelos comuns de arte e história da arte que excluem o papel da mulher na arte,
explorando as estruturas sociais que levaram a esse processo de exclusão. Ela também pesquisa a
relação entre a arte e a psicanálise, baseando-se no trabalho de teoristas culturais franceses. Ela é
conhecida pelo seus trabalhos sobre os artistas Jean-François Millet, Vincent van Gogh, Mary
Cassatt, Eva Hesse e Charlotte Salomon.
2 – Um dos principais teóricos do modernismo em Paris é T.J.Clark (“A Pintura da Vida Moderna: Paris
na Arte de Manet e seus Seguidores”, 1984). Seu principal argumento é que a modernidade sempre foi
apresentada como uma questão de representação e de grandes mitos, que teriam na cidade de Paris a
sua encarnação, com espaços destinados à recreação, ao lazer e ao prazer, onde diversas classes
sociais se misturavam nos espaços populares de entretenimento. Clark coloca
que a separação entre as classes ainda é notável em pinturas como Olympia, que teria por foco um
observador/consumidor masculino e uma mulher cortesã. No entanto, não contesta a “normalidade”
desses papéis.

3 – A autora segue aqui o mesmo argumento de Linda Nochlin (1931-2017) da estrutura social como
determinante do papel das mulheres na arte (“Porque Não Houve Grandes Mulheres Artistas?”, 1971)

4 – Na fenomenologia, o espaço é representado de acordo com a forma pela qual é experienciado, numa
combinação de tato, textura e visão. Assim, os objetos são imitados de acordo com hierarquias de valor
subjetivas daquele que os produz.

5- Essa atitude de olhar e observar é desejável à mulher no espaço doméstico, onde se disfarça de
habilidade social importante para o sucesso profissional dos maridos.

6 – Novamente aqui a exibição de que a autora fala parece se referir à das mulheres pelos homens, pais
ou maridos.

7 – Nas notas, a autora coloca que estudos recentes articulam formas mais complexas de manifestação
da sexualidade feminina mesmo nos espaços privados. Tais manifestações ressaltam a importância das
amizades entre mulheres, onde se podia expressar livremente ternura de maneira muito física.

8 – Isto se reflete em mais um privilégio, uma vez que os espaços públicos são interditados às artistas
mulheres.

9 – Algo como “Fazem esse tipo de arte por serem mulheres, e sendo mulheres não poderiam fazer
outro tipo de arte”, criar livremente ao invés de reproduzir o real, por exemplo.

10 - Que se apresenta na tela como modelo/prostituta/trabalhadora de classe inferior.

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