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Aga Khan
Líder dos ismaelitas
investe milhões
em Portugal
Por Alexandra
Carita

A Revista do Expresso
EDIÇÃO 2341
9/SETEMBRO/2017

Ana
Paula
Vitorino
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Como a ministra do Mar venceu


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o cancro sem abandonar o Governo 1 DESCARREGUE A APP EXPRESSO ONLINE


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Entrevista de Joana Madeira Pereira e Raquel Moleiro

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náutica que remonta aos anos 1950.
Mais do que contar o tempo, conta a história.

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PLUMA CAPRICHOSA

OS FILHOS DE NINGUÉM

J
AUNG SAN SUU KYI TEM AS MÃOS ATADAS. CULPÁ-LA E EXIGIR QUE DEFENDA COM VEEMÊNCIA
OS ROHINGYA É CONDENÁ-LA A FICAR REFÉM DOS MILITARES E A PERDER O APOIO DA POPULAÇÃO

immy está sentado num dos degraus do templo Enquanto conversamos na sombra de um Buda doirado e
budista, a limpar o suor da testa. A anglicização impávido, a quilómetros dali, numa zona tornada inacessível pelos
do impronunciável nome torna as coisas menos checkpoints, os militares queimam e exterminam a insurreição
complicadas. Jimmy fala inglês e repete que não é a que chamam terrorismo. Os rohingya têm uma espécie de
“bengalês”. Leia-se rohingya. A família veio da Índia novíssimo líder que decidiu pela resistência armada, sacrificando
no tempo do império britânico, os antepassados milhares de vidas à retaliação. Mataram doze soldados num
foram soldados coloniais quando Birmânia fazia parte posto, e os soldados queimaram as aldeias e mataram cem vezes
da Índia. As fronteiras e os vizinhos são o principal mais rohingya. Os outros fugiram para o Bangladesh. Dezenas
problema birmanês, além da história de violência, do de milhares. Um êxodo bíblico. A população budista maioritária
passado ditatorial, das etnias e tribos, da pobreza, do do estado de Rakhine exige proteção contra os terroristas, que
subdesenvolvimento, da ausência de infraestrutura, da têm a sua quota mínima de atrocidades e são pelo recrutamento
fragilidade da democracia, do budismo ultramontano, à força de homens e crianças. Ao mesmo tempo, da Turquia à
dos separatistas armados, da economia incipiente, da predação Indonésia, os muçulmanos ricos ensaiam uma resistência política
do capitalismo chinês, da cobiça do turismo, da decadência e preparam-se para financiar secretamente a resistência armada
do património, da poluição, da corrupção, etc., etc., etc. E os que degenera no pan-jiadismo do costume. O perigo que isto
militares, o Tamadaw, uma classe à parte que se reclama protetora representa para a recente democracia birmanesa é brutal. Aung
do povo. A Birmânia tem demasiados problemas e tragédias San Suu Kyi tem as mãos atadas. Culpá-la e exigir que defenda
para considerar os rohingya um problema. Um rohingya é um com veemência os rohingya é condená-la a ficar refém dos
bengalês, dizem. Não é deste país. Um mês na Birmânia e não militares e a perder o apoio da população. Um dos oficiais do
encontrei um defensor dos rohingya. Jimmy, é por causa de seu partido foi condenado a anos de prisão e trabalhos forçados
serem muçulmanos? Não, devem regressar de onde vieram, ao por esse “crime”. Myanmar não atingiu o estado da consciência
Bangladesh. O Bangladesh não quer os rohingya. Nem a Índia. A liberal do Ocidente, que sofre pelos rohingya mas ignora
Índia tenta deportá-los, voltem para Myanmar, e o Bangladesh, olimpicamente as vítimas do Iémen da guerrazinha dos sauditas
um país miserável e inundado graças ao aquecimento global, por nós armados. Exigir que retirem o Nobel à senhora é um
junta-os em “campos de refugiados” que fazem a selva de disparate. Pensem primeiro em Henry Kissinger. A situação pode
Calais parecer um hotel. São corpos amontoados, esfomeados e piorar e pode saldar-se pelo fracasso político de Suu Kyi e do seu
rejeitados. Ninguém quer os desgraçados rohingya. Não há pátria titubeante Governo e o regresso do poder autoritário e absoluto
para os acolher. Nem as muçulmanas Indonésia e Malásia. Nem da Junta, que nunca foi embora. Espero que António Guterres
a budista Tailândia. Morrem na terra e no mar. Ninguém sabe ao não embarque na retórica fácil e compreenda a complexidade de
certo quantos são. metermos as brancas mãos neste vespeiro à toa. E quem se dispõe
Jimmy é muçulmano. E tem a pele da cor dos bengaleses. a acolher os rohingya e dar-lhes uma casa? Ninguém. Haverá de
Confessou-se muçulmano só ao fim de algum tempo. Em reserva um futuro igual ao dos naufragados do Mediterrâneo. b
Mandalay, onde vive, fica a sede da resistência budista aos
muçulmanos, um movimento racista liderado por um monge
aparentado com a rapaziada de Charlottesville. Um racista na
Alemanha, na América ou na Birmânia dá no mesmo. Um tipo
inchado de ódio que agarra no megafone e quer expulsar os
que não se parecem com ele. Ashin Wirathu tem uma vasta
audiência e é poderoso. Tem as costas quentes dos militares.
Nem todos os budistas são assim, nem todos os muçulmanos são
extremistas. A maioria não é. Jimmy é muçulmano e esclarece
que os muçulmanos são boas pessoas e não são terroristas. E
os rohingya? Os “bengali” têm um grupo terrorista. Jiadis?
Jiadis, diz ele. Como os da Europa. A fissura entre muçulmanos
e outros credos, sobretudo o budista, é antiquíssima. Noutros
lugares da Birmânia, como o estado Chan, sempre houve brigas,
pogroms. No Bangladesh, a violência vira do avesso e os budistas
são perseguidos e assassinados. Na Índia, os muçulmanos são
indesejados. Para não falar de Caxemira. As feridas coloniais
foram reabertas por uma insanável intolerância religiosa. Jimmy / CLARA
diz que os muçulmanos têm má reputação, a de tratarem mal as
mulheres e de serem cruéis. Não é verdade, lamenta. Na Birmânia,
FERREIRA
as mulheres não são maltratadas. ALVES

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SUMÁRIO
EDIÇÃO 2341
9/SETEMBRO/2017

fisga +E Culturas Vícios


7 | Cirurgias Quais as
operações mais frequentes
34 | Lisboa O Lado B
do turismo na capital
65 | The National Matt
Berninger e Aaron Dessner
95 | Luxo Conheça o serviço
turístico personalizado
26

AKDN
em Portugal e na Europa portuguesa contam tudo sobre o novo
álbum 98 | Receita
10 | Do Céu ao Inferno 42 | Basquetebol A história Por José Avillez Aga Khan O perfil
+ Batata Quente de Kevin Durant, o melhor 68 | Veneza Primeiras de um dos homens
jogador do mundo que tinha impressões a meio do Festival 99 | Vinhos
12 | Pimenta na Língua tudo para não o ser Por João Paulo Martins mais ricos e influentes
+ Números Primos 70 | Marco Rodrigues O do mundo prestes a
48 | Cérebro Balanço de novo rumo de um fadista 100 | Sobre Mesa
14 | Déjà Vu + Altifalante dez anos de atividade do Por Fortunato da Câmara estabelecer residência
Programa de Neurociências 71 | Serralves “O Museu em Lisboa
16 | O Que Eu Andei da Fundação Champalimaud como Performance” 101 | Recomendações
para Aqui Chegar Graça De “Boa Cama Boa Mesa”
Mira Gomes 56 | Entrevista Ana Paula 74 | Livros “Atos Humanos”,
Vitorino tornou-se ministra de Han Kang 102 | Sentir
18 | Oito da Manhã O início do Mar e doente oncológica O papão da matemática
do dia com Jorge Corrula ao mesmo tempo. Continua 78 | Cinema “Sorte à Logan”,
de Steven Soderbergh 103 | Há Homem
20 | Planetário “Tunnel no Governo e venceu o Por Luís Pedro Nunes
of Love” em Cascais cancro 82 | Televisão “The Deuce”,
no TVSéries 104 | Passatempos
22 | Passeio Público
20 Minutos com... 84 | Música “American 105 | 10 Perguntas a... FICHA
Ruy de Carvalho Dream”, dos LCD Soundsystem Tarantini
Por Inês Maria Meneses
TÉCNICA
88 | Teatro & Dança Diretor
“Trilogia Antropofágica”, de Pedro Santos Guerreiro
Tamara Cubas Diretor-Adjunto
Miguel Cadete
90 | Exposições Coleção La mcadete@impresa.pt
Caixa na Cordoaria Nacional Diretor de Arte
Marco Grieco
92 | Obrigatório Tudo o que Editor
não pode perder Jorge Araújo
jmsaraujo@expresso.impresa.pt

CRÓNICAS Coordenadores
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt
Rui Tentúgal
3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 24 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia rtentugal@expresso.impresa.pt

75 Isto Anda Tudo Ligado por Ana Cristina Leonardo | 79 O Cinema Dá o Que a Vida Tira por Manuel S. Fonseca Coordenadores Gerais de Arte
Jaime Figueiredo (Infografia)
85 A Desarmonia das Esferas por João Lisboa | 94 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça João Carlos Santos (Fotografia)
102 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 106 Fraco Consolo por Pedro Mexia Mário Henriques (Desenho)

FOTOGRAFIA DA CAPA: LUÍS BARRA

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Elegance is an attitude*

Aishwarya Rai

* A elegância é uma atitude.

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“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

Porque
vamos
ao bloco
operatório?
CATARATAS, APENDICITE, OPERAÇÃO ÀS
AMÍGDALAS, BYPASS, TRANSPLANTES. QUAIS SÃO
AS CIRURGIAS MAIS RECORRENTES NA EUROPA
E SOBRETUDO EM PORTUGAL? AVALIÁMOS
O PANORAMA E DAMOS-LHE A RESPOSTA

TEXTO ALEXANDRA CARITA


INFOGRAFIA CARLOS ESTEVES
Foi há cinco séculos que o pai da medicina
moderna, o belga Andreas Vesalius, se
especializou naquilo a que hoje chamamos
cirurgia, na altura corte e observação do corpo
humano. É sabido, porém, que o conhecimento
do corpo e a cura de patologias através da
operação evoluiu desmesuradamente. Hoje,
as cirurgias são intervenções comuns e tratam GETTY IMAGES
praticamente todas as doenças, tanto mais
elas sejam recorrentes. É a forma que a ciência
tem de reagir e enfrentar os problemas reais,
resolvendo-os da maneira mais eficaz.
De resto, é precisamente a eficácia das cirurgias

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CIRURGIAS POR 100 MIL HABITANTES


CATARATAS AMIGDALITE BYPASS CARDÍACO ANGIOPLASTIA APENDICITE COLECISTECTOMIA
CORONÁRIA
OS TRÊS MAIS...
Alemanha 814.969 Alemanha 138.195 Alemanha 53.910 Alemanha 312.509 Alemanha 133.908 Alemanha 200.253
França 773.308 França 66.044 Itália 21.533 França 149.351 França 77.389 França 129.563
Itália 528.699 Reino Unido 62.962 Polónia 20.247 Itália 123.477 Reino Unido 59.830 Itália 120.104

PORTUGAL 132.363 PORTUGAL 8477 PORTUGAL 3870 PORTUGAL 12.167 PORTUGAL 9832 PORTUGAL 16.609

...E OS TRÊS MENOS


Malta 4277 Chipre 336 Chipre 384 Chipre 1105 Luxemburgo 530 Chipre 726
Chipre 2192 Malta 1 Luxemburgo 237 Luxemburgo 860 Chipre 527 Malta 396
Islândia 1793 Liechtenstein 1793 Malta 204 Malta 847 Liechtenstein 7 Liechtenstein 16
FONTE: EUROSTAT

que as torna mais comuns e recorrentes. Fomos aumentou, uma vez que a recuperação se tornou A Alemanha e a Letónia andam lá perto com
avaliar o que se passa na Europa e sobretudo em “excelente”, com as novas técnicas e tecnologias 400 doentes operados. Já Portugal sobe de nível
Portugal e chegámos a essa conclusão. À qual se de intervenção, a capacidade operatória idem de ocorrências no que respeita às angioplastias.
ajustam as principais patologias dos habitantes aspas, bem como a sua funcionalidade. Por Vasco Gama Ribeiro, presidente do Colégio da
de cada país. Só em Portugal realizam-se outras palavras: “Dantes só operávamos as Subespecialidade de Cardiologia de Intervenção,
568.765 operações por ano (excetuando cataratas quando a patologia estava madura, hoje não tem dúvidas do porquê. “A causa mais
pequenas cirurgias) de acordo com as estatísticas operamos muito mais cedo — passámos de 1/10 frequente de morte em Portugal são as doenças
hospitalares de 2016. Especialidades como a de antigamente para 7/10 de hoje”, continua cardiovasculares.” A angioplastia coronária,
oftalmologia, a cardiologia, a obstetrícia fazem Augusto Magalhães que não deixa de frisar que esclarece, é uma intervenção percutânea que
parte de um top cinco de doenças atualmente o paciente está recuperado 24 horas depois e a consiste num cateterismo terapêutico, ou seja,
tratadas através das mais eficientes operações. ver perfeitamente, pronto para desempenhar com um cateter introduzido pelo braço em 90%
Um estudo da Eurostat põe os pontos nos is no todas as funções do seu dia a dia. “As taxas de dos casos (e pela perna em casos particulares)
que se refere ao número e ao tipo de intervenções recuperação são excelentes.” Outro motivo dilatam-se as artérias. Este procedimento evita
cirúrgicas realizadas no Velho Continente, ainda para o aumento desta cirurgia aos olhos a cirurgia. “Há estudos comparativos com a
indicando simultaneamente de que padecem os prende-se com o facto de ela ser prescrita e cirurgia que provam que a eficácia é igual”,
europeus. tomar o mesmo nome nos dados estatísticos adianta o cirurgião da especialidade. E, tal como
E se há cirurgia que bata recordes de realização, da cirurgia refrativa à remoção do cristalino no caso das cataratas, os pacientes não ficam
ela é a operação às cataratas. Em 2015, data transparente, aquilo que se faz a partir dos 50 mais de 24 horas internados, tendo complicações
dos últimos dados disponíveis, mas revistos anos, quando a grande maioria das pessoas passa mínimas. A angioplastia coronária serve ainda os
já este ano, 4,3 mil milhões de europeus com a ver mal ao perto e nessa remoção se insere uma doentes que, por razões específicas, não podem
residência nos Estados-membros da EU, tinham lente multifocal. Esta operação é em tudo igual à ser sujeitos a cirurgia. “Não é nada descabido que
sido intervencionados às cataratas. Só em cirurgia às cataratas. Acresce ainda a todas estas este seja um dos procedimentos mais comum em
Portugal esse número definia-se como mais de razões uma outra que não deve ser descurada: “É sala de operação em Portugal. O nosso historial
1300 pessoas por cada 100 mil habitantes. Um aceitável operar oito cataratas por cada período patológico assim o determina”, continua Vasco
valor semelhante aos números apresentados por cirúrgico de seis horas”, diz o presidente do Gama Ribeiro. No serviço que dirige, só no
países como Malta, República Checa, Alemanha, Colégio de Oftalmologia. Um número que, no ano passado realizaram-se 1100 angioplastias
Suécia, França, Áustria ou Estónia. entanto, pode duplicar dependendo do cirurgião. coronárias. O médico estima que entre 30 a 30
“Trata-se de uma doença própria da idade e “Numa manhã, das 8h às 14h pode operar-se 15 e poucos por cento dos portugueses sofram de
com o aumento substancial da esperança média ou 16 cataratas.” doença coronária severa, sendo muitos deles
de vida, o número destas cirurgias cresceu Muito frequentes em toda a Europa e também tratados através deste método procedimental.
muitíssimo”, explica Augusto Magalhães, o com números elevados no nosso país, são as Uma operação, de resto, que sobe para números
cirurgião que preside ao Colégio da Especialidade broncoscopias e angioplastias coronárias. a rodarem as 200 em cada 100 mil pessoas em
de Oftalmologia, apontando esta como uma das O país onde mais se realiza este primeiro países como o Reino Unido, Espanha, Finlândia e
razões para a frequência da operação. Por outro procedimento médico é na Croácia, com uma Irlanda.
lado, adianta, a indicação cirúrgica também média de 685 cirurgias por 100 mil habitantes. Em França, no Reino Unido, na Irlanda, em
Malta, Dinamarca e Bélgica as colonoscopias
assumem-se como o segundo procedimento
clínico em sala de operações mais frequente. O
exame ao cólon é, de resto, tido como o mais
comum na Europa. Os valores estão em quase
AS CATARATAS SÃO UMA DOENÇA PRÓPRIA DA IDADE todos os países acima dos mil realizados por
E COM O AUMENTO SUBSTANCIAL DA ESPERANÇA MÉDIA ano em cada 100 mil pacientes. Seguem-se-lhe
DE VIDA, O NÚMERO DESTAS CIRURGIAS CRESCEU MUITÍSSIMO. as apendicites. Uma cirurgia aparentemente
simples mas que pode trazer complicações,
AO MESMO TEMPO, OS EXCELENTES RESULTADOS FAZEM nomeadamente, se se tratar de uma peritonite.
COM QUE A SUA PRESCRIÇÃO TAMBÉM AUMENTE Costa Maia, membro do Colégio de Cirurgia

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HÉRNIA INGUINAL TRANSPLANTE PRÓSTATA HISTERECTOMIA CESARIANA SUBSTITUIÇÃO
DE RIM DA ANCA

Alemanha 173.360 França 3109 Alemanha 25.482 Alemanha 124.341 Turquia 683.916 Alemanha 237.067
França 152.872 Turquia 2924 França 24.302 França 64.733 Alemanha 220.306 França 158.124
Itália 139.614 Espanha 2678 Itália 23.701 Itália 60.918 Reino Unido 195.552 Reino Unido 119.806

PORTUGAL 16.734 PORTUGAL 450 PORTUGAL 2630 PORTUGAL 9361 PORTUGAL 261 PORTUGAL 9101

Luxemburgo 1002 Estónia 35 Chipre 120 Malta 602 Chipre 1425 Chipre 412
Chipre 883 Chipre 27 Luxemburgo 85 Chipre 428 Malta 1357 Malta 326
Liechtenstein 40 Malta 20 Liechtenstein 2 Liechtenstein 26 Liechtenstein 18 Liechtenstein 17

Geral, faz notar que o envolvimento do risco os gregos chegam às cerca de 200 operações às médicos”. O presidente do Colégio de Obstetrícia
não deixa nunca de estar presente mesmo nas hérnias pelos tais 100 mil habitantes. Realizadas considera que os números de cesarianas podem
operações menos complexas. Mas o aumento de forma eletiva, só o volume da hérnia não ser reduzidos mas “de forma cuidadosa,
do número de casos bem sucedidos prova que permite catalogar a operação como simples, monitorizada e acompanhada, de maneira a não
a evolução ajuda à prescrição das apendicites. explica ainda Costa Maia, que refere que se prejudicarem os altos índices de natalidade dos
“Atualmente trata-se de uma operação com trata das hérnias não complicadas. Contudo, o bebés no parto”.
menor nível invasivo através da técnica médico frisa e mostra a sua preocupação para Ainda no domínio da obstetrícia, a histerectomia,
laparoscópica. Isto significa que a cirurgia com o crescimento das doenças oncológicas vulgo a retirada do útero, surge com um valor
envolve mais conforto, menos dor e muito (que necessitam de intervenções cirúrgicas) e da relativamente alto em Portugal. Cerca de 100
melhores resultados do ponto de vista estético.” obesidade, que sobrecarrega muito os serviços de mulheres em cada 100 mil recorrem a este
No entanto, convém frisar que o número de cirurgia. procedimento, que ocorreu precisamente
apendicites agudas operadas é um valor estável. Já no ramo da obstetrícia, realizam-se por ano na 9326 vezes em hospitais públicos no ano de
Segundo Costa Maia, isso deve-se ao facto de Europa pelo menos 1,38 milhões de cesarianas. 2014, avança um estudo da Universidade de
existir já um tratamento médico com antibióticos Dados referentes a 2016 estabelecem o número de Coimbra. Mas esse valor tem vindo a diminuir
que se aproxima da intervenção cirúrgica, à cesarianas em Portugal em 35 mil ano, uma taxa substancialmente, à volta de 20% nos últimos
qual antigamente se recorria sempre. Já no que de pouco mais de 40% em 82 mil partos ano. 15 anos. Porquê? “Surgiu uma nova forma de
respeita ao risco de que fala o cirurgião Costa Estes valores são assumidos como excessivos pela intervenção cirúrgica minimamente invasiva,
Maia, ele é mais comum nestes procedimentos Direção-Geral da Saúde e por muitos médicos. O a histeroscopia, um método que permite ver
operatórios uma vez que eles podem surgir em presidente do Colégio de Obstetrícia, João Silva dentro do útero através de um sistema ótico e
urgência. “Nesses casos não há preparação pré- Carvalho, também acha que há cesarianas a assim tratar a doença que lá esteja”, explica
operatória, conhecemos o doente no próprio mais, no entanto, frisa que é prioritário termos, o cirurgião. Outra inovação que concorre
dia da cirurgia, ele pode ser idoso, o que torna como temos, os maiores índices de natalidade para a mesma diminuição do número de
as coisas mais complicadas, ou mais jovem, em parto do mundo. Nesse campo, a Holanda histerectomias são os novos tratamentos médicos
que normalmente torna tudo mais fácil. Mas o situa-se no pior lugar da Europa e a Inglaterra por comprimidos que permitem controlar
espectro de doentes é muito grande.” O mesmo também apresenta valores muito baixos de várias outras patologias, nomeadamente
acontece no âmbito das operações à vesícula, natalidade à nascença. Vejamos as causas para “os fibromiomas, a principal causa das
outra cirurgia muito comum em Portugal e tais números de cesarianas em Portugal. Uma das histerectomias” em Portugal. Ainda dentro da
que tem vindo a aumentar nos seus números variáveis que influi na sua grandeza é o índice área cirúrgica, a também minimamente invasiva
absolutos. Um padrão de crescimento que se de doenças do aparelho ginecológico (doenças laparoscopia permite cuidar quase todas as
prende também ao aumento de tumores no urinárias, etc.), outra é o número de processos patologias ginecológicas anulando as retiradas
intestino, tumores no fígado, biliares, muitas médico-legais levados a cabo contra os médicos. do útero. “Isto veio trazer uma enormíssima
vezes por infeção por vírus, mas também por via “Quando algo corre mal, é recorrente pensar-se vantagem para o sistema de saúde e coloca-nos,
do álcool. que o médico poderia ter feito uma cesariana e a nós Portugal, no lugar de um dos países mais
Com um número de pacientes a rodar os 160 por não o fez”, diz João Silva Carvalho. Portanto, avançados nesta matéria”, conclui João Silva
cada 100 mil portugueses a serem submetidos “isso gera uma atitude de defesa por parte dos Carvalho. b
a operações para retirar hérnias inguinais, esta
cirurgia “rotineira”, como lhe chama Costa
Maia, este é outro dos procedimentos operáticos
mais frequentes no nosso país, apresentando-se
mesmo num top cinco, se o quiséssemos fazer.
De resto, nos últimos cinco anos, as operações UMA DAS VARIÁVEIS QUE INFLUI NA GRANDEZA
às hérnias inguinais recorrendo à técnica DO NÚMERO DE CESARIANAS É O ÍNDICE DE DOENÇAS DO
laparoscópica quase triplicou em Portugal, sendo APARELHO GINECOLÓGICO (DOENÇAS URINÁRIAS, ETC.),
este o país onde se realizou um maior aumento
deste procedimento cirúrgico. Mas mais do que OUTRA É O NÚMERO DE PROCESSOS MÉDICO-LEGAIS
no que respeita aos números, os austríacos e LEVADOS A CABO CONTRA OS MÉDICOS

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fisga
DO CÉU AO INFERNO
A SEMANA EM REVISTA POR PEDRO CORDEIRO
O ex-Presidente americano que deixou saudades não teve papas na língua perante a
desumanidade de Trump. Também os juízes europeus foram firmes na condenação do egoísmo
xenófobo da Hungria e da Eslováquia. O mesmo não se diga da birmanesa Suu Kyi em relação a
uma minoria perseguida. Com o ditador sírio acusado pela ONU e a Catalunha a esticar a corda
com Espanha, vai agitado o mundo. Por cá, há nova página de internet sobre a Assembleia da
República e a campanha autárquica prossegue, com debates mornos e promessas mirabolantes.

BATATA
QUENTE
Barack Obama PERGUNTAS
Certeiro, chamou Hemiciclo.pt IMPERTINENTES
“cruel e errada” à de- Criado por David

Onde está o
cisão do sucessor de Crisóstomo (estudante
revogar a amnistia às
Tribunal de Justiça da UE
de Economia) e Luís

dinheiro de
800 mil pessoas leva- A rejeição dos recursos húngaro Vargas (designer), este
das ilegalmente para e eslovaco contra a obrigação de novo sítio dá conta de

Pedrógão?
os EUA quando eram acolher refugiados foi um gesto de toda a atividade par-
crianças, sujeitando- defesa dos valores comuns da UE e lamentar, num esforço
-as à deportação. A do humanismo, num momento em meritório por aproximar
questão é, recordou, que só foram relocalizadas 28 mil a política do cidadão. Depois da tragédia a 17 de ju-
de “decência básica”. das 160 mil pessoas previstas. nho, dos 64 mortos, 254 feri-
Agora está nas mãos dos, 491 casas destruídas, 477
do Congresso. cabeças de gado perdidas, só
a onda de solidariedade dava
ânimo para continuar. Logo
nas primeiras semanas, entre
contas, concertos e fundos,
em Portugal e no estrangeiro,
Fernando foram angariados cerca de
Medina €14 milhões. Não chega-
O debate televisivo vam para curar, mas eram
não correu mal ao indispensáveis para tratar as
Catalunha autarca de Lisboa: dores mais urgentes. Agora,
O Parlamento regional sem brilhar, ficou quase três meses depois,
aprovou o pretenso refe- claro que não tem
rival à altura. O pior os autarcas dos concelhos
rendo à independência,
marcado para 1 de outubro. foi a Comissão Naci- mais atingidos — Pedrógão
Mas fê-lo atropelando as onal de Eleições ter Grande, Castanheira de Pera
suas próprias regras e a mandado a Câmara e Figueiró dos Vinhos — falam
consulta não terá garantias suspender a publici- de desvio de verbas e pedem
jurídicas. O impasse man- dade institucional,
que roça a
a intervenção do Banco de
tém-se e ninguém parece Portugal para, através do
capaz de um golpe de asa. propaganda.
Ministério Público, rastrear
os donativos tresmalhados.
António Costa apresentou
Bashar al-Assad as primeiras contas: no fundo
É improvável que isto in- Revita, criado pelo Governo
Aung San Suu comode o Presidente sírio, com donativos particulares,
Kyi Manuel Machado mas a investigação das estão depositados €1,96
A crise do povo A promessa de um aeropor- Nações Unidas concluiu milhões, podendo subir para
rohingya terá nu- to internacional em Coimbra que foi o seu Governo que
(convertendo o aeródromo de os €4,95 milhões se se efeti-
ances, como todas. orquestrou o ataque
Mas é confrange- Cernache) vem na linha dos com gás sarin contra varem todas as intenções de
dor alguém com a piores vícios da política local. civis, em abril. Este tipo ajuda. A maioria dos donativos
autoridade moral Candidate-se antes a Beja, onde de barbárie tornou-se ficou fora do fundo estatal e
da Nobel da Paz já existe tal equipamento, “padrão”, acusam está a ser gerida por enti-
de 1991 negar as de resto vazio. os inspetores. dades sociais, como a União
notórias violações das Misericórdias e a Cáritas.
dos direitos daquela
minoria muçulmana Marcelo Rebelo de Sousa já
da Birmânia. pediu a divulgação de quem
gere o quê. Entre entradas e
saídas, é só fazer as contas. E
ver se dá negativo. / RAQUEL
MOLEIRO

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Bolsas Gulbenkian
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abertas 1–27 set
Matemática Tecnologias Quânticas Inteligência Artifical
Para estudantes Para estudantes de Para estudantes
universitários do 1º-, 2º- licenciatura ou mestrado do 3º- ano de cursos de
ou 3º- anos de cursos com de cursos com uma licenciatura ou mestrado
uma forte componente forte componente em integrado com uma
em Matemática. Ciências, Matemática forte componente em
ou Engenharia. Informática.

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NÚMEROS
PRIMOS
ELES FALAM

2
MILHÕES DE DÓLARES PARA RIO
DE JANEIRO RECEBER JOGOS OLÍMPICOS

PIMENTA NA LÍNGUA Cidade


FRASES DA SEMANA maravilhosa
As autoridades brasileiras e francesas
investigam um alegado suborno de dois
milhões de dólares (€1,7 milhões) do então

“Não é um bom exemplo quando, governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio


Cabral, a um membro do Comité Olímpico

hoje, se discute em toda a Europa Internacional para assegurar a escolha


da cidade para as Olimpíadas de 2016.

para onde vai a fábrica da Tesla”


ASSUNÇÃO CRISTAS, PRESIDENTE DO CDS-PP
Deplorando a greve dos funcionários da Autoeuropa que se opõem à obrigação de trabalhar aos sábados,
nos termos que a empresa propõe
180
OVOS CONTAMINADOS COMPRADOS
POR EMPRESA PORTUGUESA

“Somos suficientemente experientes Ovos perigosos


para dispensar conselhos venenosos vindos, Uma empresa portuguesa comprou 180 ovos
designadamente, do doutor Marques Mendes” contaminados, na Bélgica, e colocou Portugal
na lista de 26 países afetados. Os ovos foram
JERÓNIMO DE SOUSA, SECRETÁRIO-GERAL DO PCP servidos na cantina da empresa naquele país
Recusando os conselhos do comentador televisivo (e ex-líder do PSD) a respeito e não entraram em território nacional.
da posição que os comunistas deviam adotar na votação do Orçamento

“Não é primeiro-ministro, -0,3%


mas manda. E muito” QUEBRA DO COMÉRCIO A RETALHO

RAUL VAZ E MARTA MOITINHO OLIVEIRA


Justificando no “Jornal de Negócios” a escolha de Marcelo Rebelo de Sousa como o homem mais poderoso de 2017
Retalho abranda
O comércio a retalho na zona euro
recuou 0,3% em julho, revelou o Eurostat.
Em Portugal, a quebra foi de 0,6%.
“Há milhões de crianças
para inspirar e só se fala em
dinheiro, isto é prejudicial
para todos. Temos que ser
modelos e sabemos disso,
50
JORNAIS AMERICANOS
mas não podemos VENDIDOS EM 2016

ser personagens” Sector em


ERIC DIER
Ex-defesa do Sporting a jogar atualmente no
sobressalto
Tottenham Spurs, defendendo a sua classe profissional No ano passaram, mudaram de mãos
contra quem lhe faz críticas por ganhar demasiado 50 jornais diários nos EUA, segundo dados
da consultora Dirks, Van Essen & Murray
citados pela Bloomberg.

/ JOÃO SILVESTRE

E 12

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GETTY IMAGES
1962
DÉJÀ VU
O FUTURO FOI ONTEM

A verdadeira crise dos mísseis


Foi entre 16 e 28 de outubro de 1962 e não por III Guerra Mundial. Bloqueio naval à ilha de Fidel campos e negociar uma saída hábil sem que nin-
causa dos presentes arrufos entre Donald Trump Castro e um avião americano abatido, eis al- guém perdesse a face. O Kremlin e a Casa Bran-
e Kim Jong-un que o mundo esteve à beira da guns dos ingredientes para um confronto bélico ca passaram a estar ligados pelo famoso “tele-
fornalha atómica. A descoberta em Cuba de que facilmente poderia evoluir para uma guer- fone vermelho”. Trump tinha 16 anos e Kim ainda
mísseis de fabrico soviético com capacidade ra nuclear. John Kennedy e Nikita Khrushchev não era nascido, mas nenhum parece ter lido os
nuclear pôs americanos e soviéticos à beira da conseguiram sobrepor-se aos falcões dos dois livros de História. / RUI CARDOSO

ALTIFALANTE perspetiva do pensamento dominante


e em que quem não pensa como quem
fizer tem logo de ser o ressabiado, que
precisa de palco?”
de António Costa. Sobre o alegado
excesso de intervenções do atual PR,
NAS ENTRELINHAS está no Governo não é bom português, A defesa do líder do PSD faria mais usou o termo “verborreia”, que além de
é racista, é xenófobo ou é outra coisa sentido se Cavaco tivesse apresentado ser depreciativo é inadequado à pessoa
qualquer.” as suas opiniões em termos a quem se refere, pois uma coisa é
Opiniões As palavras de Passos Coelho
têm que ver com várias situações.
inteiramente dignos. Acontece que o
ex-PR não resistiu a usar expressões
falar vezes demais e outra é falar de
uma forma incontinente, caótica.
Isto da opinião não é fácil. Quando num Uma é a de um candidato autárquico de mau gosto. “Acabam por perder Marcelo pode ter muitos defeitos mas
café nos trazem a torrada meio preta apoiado pelo seu partido que fez umas o pio ou fingem apenas que piam”, de fluência não carece, ao contrário
e notamos que está um bocadinho generalizações sobre ciganos. Outra disse a respeito de governos como o de Passos, que não raro dá a ideia
queimada, arriscamo-nos a ouvir a é a do prof. Cavaco Silva, que foi à de ter como missão na vida castigar
resposta altiva: “Isso é a sua opinião.” Universidade de Verão do PSD criticar a língua portuguesa. Ou do próprio
Uma confusão óbvia entre opinião e o Governo e o Presidente da República, Cavaco. Quanto às generalizações do
observação. Já no caso das opiniões acusando aquele de imprudência “... não candidato autárquico, basta lembrar
políticas pode custar mais a distinguir. económica e este — sem o nomear — que agora tomou como critério de
Há dias, o dr. Passos Coelho fez uma de falar demais. O primeiro-ministro tem direito validade das suas opiniões o facto de
declaração apaixonada a favor da respondeu que Cavaco estava com a exprimir uma sondagem indicar que a maioria
liberdade de opinar: “Não aceitaremos “saudades de palco”, levando Passos dos portugueses as apoiam. Algures no
um ambiente de intolerância em a dizer: “O dr. Cavaco Silva não tem a sua opinião?” que disse, a propósito de algo, também
que só se discute o futuro segundo a direito a exprimir a sua opinião? Se o falou em oportunismo. / LUÍS M. FARIA

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O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR
UM CURRÍCULO VISUAL

Graça Mira Gomes


É o nome escolhido por António Costa para liderar as secretas. Diplomata de carreira e com experiência
em questões de segurança, é a primeira mulher a ocupar o cargo. / CAROLINA REIS

1961
Perfil discreto
Sabe-se muito sobre os cargos de 2017
política externa que ocupou, mas
pouco sobre o seu percurso pes- A primeira
soal. Nasceu no início da década de É escolhida por António Costa
60, é casada com João Mira Go- para secretária-geral do Siste-
mes, embaixador e ex-secretário ma de Informações da Repú-
de Estado da Defesa e Assuntos do blica Portuguesa. É a primeira
Mar, e tem dois filhos. O casal gosta mulher no cargo.
de praticar ténis e ciclismo.

1984
Carreira
na diplomacia
Tem feito carreira no
Ministério dos Negócios
Estrangeiros. A sua for-
mação é em Direito,
licenciatura tirada na
Universidade Cató- 2016
lica, e tem também
uma pós-graduação Voos de observação
em Estudos Europeus, Na qualidade de embaixadora
feita na mesma universidade. portuguesa na OSCE destacou-
-se na presidência à Comissão
Consultiva do Tratado Open
Skies, que estabeleceu um regi-
me de quotas de observação de
voos desarmados nos Estados-
-membros da organização.

1989
Experiência
internacional
2011 2015
São vários os cargos no
currículo da embaixadora. Visão Reputação positiva
O primeiro, poucos anos estratégica Há dois anos que representava, em
depois de entrar na diplo- Viena, a Organização para a Segurança
macia, foi na Representa- 1993 Foi durante três
e Cooperação na Europa (OSCE).
ção de Portugal junto das anos representante
É conhecida por ser rigorosa e afável.
Comunidades Europeias, Currículo mundial permanente de Por-
em Bruxelas. A longa experiência levaram-na a percorrer várias tugal no Comité Político
geografias. Foi vice-chefe, em Macau, do Grupo e de Segurança da União
de Ligação Luso-Chinês até 1996; representante- Europeia, em Bruxelas, o
-adjunta na Missão de Portugal na OCDE, de 2000 que lhe permitiu ter uma
a 2005; e ministra-conselheira na embaixada em visão estratégica sobre
Berlim, de 2005 a 2008. Foi também, em represen- defesa e segurança.
tação do MNE, conselheira para a Igualdade.

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OITO DA MANHÃ
PELA FRESCA

Jorge Corrula
O ator começa os dias a levar a filha, Beatriz, à escola. São três quilómetros que
ele percorre de bicicleta, “já equipado”, aproveitando para “fazer o aquecimento”.
Desde que terminaram as gravações da novela “Amor Maior”, passa os dias a
correr no Passeio Marítimo de Oeiras ou no Jamor. Os olhos estão postos na
mítica Maratona de Nova Iorque, em novembro, a primeira que o ator, de 39 anos,
vai fazer. “Era uma ideia que tinha desde que vi o Carlos Lopes e a Rosa Mota
ganharem as medalhas olímpicas, mas achava que era um sonho impossível. Nos
últimos três anos comecei a correr algumas provas nacionais e este ano consegui
inscrever-me.” Além de “muitos quilómetros nas pernas”, tem feito reforço
muscular e “alguma fisioterapia”. “Vão surgindo pequenas lesões e é preciso
tratá-las, porque quero chegar bem a Nova Iorque. O objetivo é sofrer o menos
possível”. / JOSÉ CARLOS CARVALHO (FOTOS) E NELSON MARQUES (TEXTO)

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PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS
POR NUNO GALOPIM

CULTURA POP

Economia chega
à edição deste ano
da Comic Con
A edição deste ano da Comic Con Portugal, que decorre de
14 a 17 de dezembro na Exponor, em Matosinhos, apresentará
uma nova área no evento com a designação Comic To
Business na qual “existirá a possibilidade de verificar como
se movimenta” e quais são “as tendências e oportunidades
que existem na indústria da Cultura Pop em Portugal, no
momento e no futuro”, revela ao Expresso Paulo Rocha
Cardoso, diretor-geral da Comic Con Portugal.
Entre os nomes já confirmados para esta edição estão
Dominic Purcell, da série “Prison Break”, e Edward James
Olmos, que agora retoma, ao fim de 35 anos, a personagem
que criou em “Perigo Iminente” no novo “Blade Runner FESTIVAL

Ideias luminosas para ver em


2049” e que integrou o elenco de “Balltestar Gallactica”.
Nas áreas da banda desenhada e literatura estão também
certas as presenças de Hermann, Andrjez Sapkowski, Rafael
Albuquerque e Claire North, assim como os portugueses
Nuno Plati e Nuno Saraiva. Nesta quarta edição “haverá
novamente conteúdos na área do cinema, televisão, gaming,
banda desenhada, literatura, anime, manga”, entre outras Tem por nome “Tunnel of Love” como Portugal, Alemanha, Bélgica,
áreas, sendo certo que, depois das experiências efetuadas e é uma escultura inédita feita em Eslovénia, França, Hungria, Israel,
em 2016, a música vai novamente ganhar presença na bambu através da qual o artista Nova Zelândia, Polónia e Reino
programação. Continuará a haver uma aposta em atrações belga Georges Cuvier pretende Unido, todos eles unidos por um
como o concurso “Heróis do Cosplay”, o Artists’ Alley, prestar um tributo à natureza. As desafio comum: o de criarem obras
Galardões da BD, Fan Zone, Áreas para PhotoBooth e formas orgânicas, naturais, do de luz que reflitam uma relação com
autógrafos um “VIP Stage” e os Auditórios para os painéis material usado nesta estrutura a natureza, que é o tema que define
com os artistas convidados. asseguram desde logo uma ligação esta edição.
Sobre a possibilidade de a Comic Con Portugal se apresentar desejada ao mundo natural e A ligação à natureza não se esgota
futuramente em outros locais, Paulo Rocha Cardoso explica desafiará todos “à experiência de no desafio temático lançado aos
ao Expresso que todas as edições “são efetuados estudos” um mundo desconhecido, uma artistas nem no modo de colocar
para analisar “as sugestões dos visitantes, o que possa ter jornada de descoberta”. Cada em prática ideias as ideias que aqui
decorrido menos bem e o que é possível melhorar”. A análise visitante será convidado a passar podem estar em jogo. A experiência
“de novos locais para a realização do evento” é “mais um pelo túnel e, assim, a “entrar no luminosa sob o título “No One
desses cenários”. É por isso “uma possibilidade em aberto” tal amor”, como explica a nota de Left Behind”, por exemplo, que
como o planeamento da presença de convidados. A eventual apresentação da edição deste ano aborda o programa Objetivos do
“transição para Lisboa pertence a um desses cenários, é mais do Lumina — Festival da Luz, que Desenvolvimento Sustentável
uma possibilidade discutida entre tantas outras, presente regressa a Cascais entre os dias 22 e 2030 da ONU, sugere a todos que
desde a primeira edição”. E só “após a Comic Con Portugal 24 deste mês. “ninguém fica para trás” e reflete “o
2017” serão avaliadas “todas as possibilidades e cenários para O Lumina vai juntar uma série desejo de abranger todas as pessoas
a próxima edição”. de artistas que usam a luz como a e comunidades neste programa
sua principal forma de expressão central”.
artística. O festival, que tem As obras a apresentar revelam um
entrada livre, vai apresentar espetro de leituras e sugestões
cerca de 20 obras que vão surgir abrangente. Criação conjunta de
no espaço urbano e envolve Story Box e do ateliê Ocubo, “Are
espetáculos, performances de Atoms Alive?” convida a uma
luz e cor, projeções multimédia contemplação de realidades em
e também instalações abertas à escalas distintas, desde o mais
interatividade com o visitante. amplo ao microscópico, num
Além do belga Georges Couvier percurso por seis capítulos que
esta edição do festival vai contar sugere uma viagem que lança
com a participação de cerca de uma questão maior: a de “como
40 artistas que provêm de países nos encaixamos neste universo”.

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FLASHES EXPOSIÇÃO

Imagens e outras memórias


da campanha americana de 2016

Das lutas pelas


nomeações pelos dois
principais partidos
ao confronto direto
entre Donald Trump
ANIMAÇÃO e Hillary Clinton, a
Meses depois de terem deixado história da campanha
a Casa Branca, Barack Obama e presidencial de
Joe Biden surgem agora como 2016 nos Estados
personagens de uma série de Unidos será fonte de
animação. Com o título “Barry and histórias e reflexões

RUI OCHÔA
Joe” esta ideia de Adam Reid está
durante anos a fio.
neste momento a angariar fundos
através do Kickstarter e quer levar
A exposição que
aos pequenos ecrãs uma sitcom de inaugura hoje no
ficção científica na qual os dois pro- Mira Forum, no Porto, junta olhares dos podemos ver agora em “A Propaganda
tagonistas viajam no tempo onde fotógrafos Alfredo Cunha e Rui Ochoa Nas Eleições Presidenciais dos EUA
tentam mudar o curso dos acon- e também materiais do Ephemera 2016”, que estará parente no Mira
tecimentos, tendo Neil DeGrasse do arquivo de José Pacheco Pereira, Forum até 21 de outubro.
Tyson como seu guia. propondo um reencontro com esses Durante este mesmo período estarão
dias de intensa luta política. ali igualmente expostas, em “América
A Ephemera tem por objetivo América”, fotografias que mostram
“promover livros, jornais, efémeras e “os contrastes existentes nos Estados

Cascais
materiais de arquivo pertencentes à Unidos da América, de Nova Iorque
biblioteca pessoal de José Pacheco a Washington, passando por São
Pereira”, que é o maior arquivo privado Francisco, entre outras cidades, quase
do género em Portugal e que tem como se estivéssemos a assistir a uma
um blogue (em ephemerajpp.com) espécie de road movie”, como afirma
destinado a tornar público os materiais Vasco Rato, presidente do Conselho
Numa outra dimensão, “Seasons” MÚSICA deste acervo. O arquivo inclui milhares de Administração da Fundação Luso-
(na foto), do mesmo ateliê, é Gravações de espetáculos do pro- de exemplares que cobrem os mais Americana para o Desenvolvimento.
uma obra que, usando tecnologia grama que assinalou o fim de ciclo diversos tipos de objetos como, entre Tanto Alfredo Cunha como Rui
NeoScope, procura transformar de 15 anos de atividade do Proge- outros, pins, flyers, cartazes, T-shirts, Ochoa são profissionais com enorme
o público no elemento central de tto Martha Argerich (e do festival autocolantes, panfletos, fotografias experiência no fotojornalismo, com
uma experiência imersiva. A obra, anualmente realizado em Lugano, publicadas na imprensa, recortes, reportagens feitas pelo mundo fora e,
para ser vivida, exige o download na Suíça) vão chegar a disco numa posters e também manuscritos que ambos, com livros publicados.
de uma aplicação que permite edição em triplo CD da Warner
Classics. Realizada em junho de
depois um tipo de envolvimento
2016, a última edição do festival
numa viagem de 360 graus que
assinalou os 75 anos da pianista e
passa pelas quatro estações contou com as presenças de nomes PHOTO
do ano, estabelecendo, como como os do violinista Renaud MATON
sugere o mote desta edição, um Capuçon, dos pianistas Steven
relacionamento com a natureza. Kovacevich e Nicholas Angelich e
Dos artistas António Rafael e João ainda da filha de Martha Argerich, a
Martinho Moura “NaN:Collider” violetista Lyda Chen.
é um projeto que propõe “a
exploração de dados, técnicas, HISTÓRIA
algoritmos e representações, Os 100 anos da revolução russa
inspiradas no contexto da pesquisa são tema de um ciclo que o CCB
e desenvolvimento da exploração apresenta este mês. Abre dia 14
espacial, criando um concerto com uma palestra por Stephen
audiovisual imaginário”. Lovell (Professor de História
A Bélgica vai ser o país em destaque Moderna no King’s College, em
na programação do Lumina. As Londres), inclui dia 19 um programa
potencialidades culturais e as de música pela Orquestra Sinfónica
Metropolitana com obras de Shos-
tradições vão estar em destaque
takovich e Prokofiev, um debate
numa programação promovida
dia 23 com José Pacheco Pereira,
pela embaixada da Bélgica e que Raquel Varela, Rúben Carvalho e
permitirá, além de acompanhar Jaime Nogueira Pinto, leituras de A passagem dos 40 anos sobre a edição do álbum “News Of The World” dos
atuações musicais e ver a obra de poemas de Vladimir Maiakovski Queen vai ser assinalada com o lançamento de uma edição especial que inclui
luz do artista belga convidado, por José Fanha (dia 26) e cinema, 3 CD (dois deles com raridades descobertas nos arquivos da banda) e um DVD
experimentar ainda os sabores da dia 29, com “Ivan, O Terrível”, de com o documentário “Queen: The American Dream”, com imagens captadas
culinária do país. Eisenstein. nos bastidores da digressão que acompanhou o lançamento deste álbum.

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PASSEIO PÚBLICO
20 MINUTOS COM

RUY DE CARVALHO
“SOU UM CIDADÃO NORMAL
COM JEITO PARA REPRESENTAR”
O ATOR PARTICIPA HOJE NA HOMENAGEM TEATRAL Dizia-me que há tudo no teatro, e no teatro, como no “Peter Pan”,
A PAULA REGO, NUMA APRESENTAÇÃO ÚNICA PELO também não se envelhece?
O teatro é que não envelhece. Nós envelhecemos e os autores também.
TEATRO EXPERIMENTAL DE CASCAIS DA OBRA “PETER O que lhes acontece é que vão buscar a sua velhice e são recordados com
PAN”, ÀS 19H, NO CENTRO COLOMBO, EM LISBOA muita ternura. O Liszt e o Beethoven já não existem e, no entanto, gostamos
de os ouvir. O Tchaikovsky também. O teatro pode recordar isso tudo.
ENTREVISTA ALEXANDRA CARITA Quando digo que no teatro não se envelhece é porque a personagem
FOTOGRAFIA JOSÉ CARLOS CARVALHO não tem idade...
Vai participar num espetáculo a partir da obra de Paula Rego sobre Ah! Isso não. Quer dizer, ela tem idade, nós é que nos adaptamos à idade
a história do Peter Pan. Gosta da pintura dela? que ela tem. Eu, por exemplo, ainda não tenho 90 anos para o teatro,
Não é bem o meu estilo de pintura. Mas reconheço-lhe o talento. Acho dou para os 70. Dizem-me que ainda acreditam que tenho 70! Mas
que é uma grande pintora. Na arte é tudo muito subjetivo. Podemos até realmente só envelhecemos quando acabamos.
não gostar do que estamos a ver mas querermos que essa obra exista. A
obra da Paula Rego vale realmente a pena ser mostrada ao público. Ela Qual foi a personagem mais jovem que fez?
pinta maravilhosamente, disso é que não há dúvida nenhuma. Fico um Talvez num Shakespeare, “Medida por Medida”. Era um jovem, o Lúcio,
bocado impressionado com a pintura dela, mas... um menino maluco. Mas já fiz muitos jovens. Há 75 anos comecei por
fazer jovens e galãs. Era chamado galã. Não sei se era o galã bonito
Neste “Peter Pan” do Teatro Experimental de Cascais encenado se o galã ator, porque existem os dois. O Humphrey Bogart era galã e
por Carlos Avilez qual é o seu papel? não era bonito. Hoje há muitos atores que são galãs e não são bonitos.
Sou o narrador. Um papel que pode parecer fácil mas que não é. Tenho Antigamente até tínhamos nomes, o galã de ponta, o galã central, o galã
de me coordenar muito bem com as falas e as entradas deles todos. Há mais velho. Hoje isso perdeu-se.
uma narração e um espetáculo ao mesmo tempo e há muita dificuldade
de conseguir isso. Gosto de narrar e de contracenar com as personagens É muito diferente contracenar com os atores mais novos?
enquanto faço a ligação entre cada episódio. É muito bom contracenar com eles, porque eles reciclam-nos. Nós, se
ficarmos na experiência não progredimos, não avançamos. Precisamos
Qual é a moral da história? de alguma coisa que nos desperte, que nos torne a acordar para a vida.
O Peter Pan não quer morrer, é um velho. O Peter Pan é um malandreco. É o olharmos a experiência que eles nos vão dar. Eles trazem o caos,
É uma figura deslumbrante. Ora quem é que quer envelhecer? Quem é normalmente, mas depois tudo isso começa a harmonizar-se. A nossa
que gosta de envelhecer? Acho que toda a gente gostava de ser Peter experiência com o caos deles resulta numa coisa muito bonita. Hoje não
Pan. E de ter uma apaixonada como a Wendy, então... Um sininho, uma se representa como se representava há muitos anos. Para nos fazermos
índia simpática... ouvir, tínhamos um empolamento para as palavras chegarem ao longe.
Hoje há uma procura da chamada sinceridade, eu não lhe chamo
Lembra-se de quando ouviu pela primeira vez a história do Peter Pan? naturalidade. A naturalidade faz parte do ser ou não ser de cada pessoa.
Não me lembro quando foi a primeira vez que ouvi a história mas o nome Acontece que no teatro, o que o ator tem de procurar é ser sincero para
do Peter Pan conheço-o desde que me lembro de ser pessoa, e já são com a personagem que o autor escreveu. Fiz há pouco tempo o pai dos
90 anos. Já vi o “Peter Pan” muitas vezes. Tudo isto tem passado por Karamazovs, que era bêbado e mau.
mim em 90 anos de idade e 75 de profissão, 60 de televisão.
Mas normalmente dizem que faz personagens ditas boas?
Vai contracenar com o seu neto, Henrique Carvalho. É comovente? Pois é. Mas não é que eu não goste muito de fazer os maus. É aí que
Já contracenei muito com o meu neto. Ele agora faz o pirata Estrelado. É o ator tem de aparecer. É sair de si completamente e contrariar tudo
jeitoso sabermos que temos um filho e um neto atores, não é verdade? aquilo que pensa. É um trabalho interessante de se fazer. Aliás, há maus
Eles é que escolheram, não fui eu que lhes disse nada. Mas a primeira
pessoa a quem contaram foi a mim. “Olha, avô, eu vou para o teatro!”;
“Olha, pai, eu vou ser ator!” Acho que ele tem muito talento, e não o “SE NOS FICARMOS PELA EXPERIÊNCIA
digo por ser avô, se não tivesse eu dizia que não tinha e tentava que NÃO PROGREDIMOS. PRECISAMOS SEMPRE
ele desistisse da carreira. Há muita outra coisa para se gostar no teatro,
não é só ser ator. Há figurinistas, cenaristas, iluminadores, contrarregras, DE ALGUMA COISA QUE NOS DESPERTE,
carpinteiros, pode ser-se muita coisa no teatro. QUE NOS TORNE A ACORDAR PARA A VIDA”

E 22

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que são muito simpáticos e não há nada pior do que um mau simpático. qualquer outra. Aliás, costumo dizer que sou um cidadão normal com
Peguemos no Iago do “Otelo” e vejamos como é um simpático mau. jeito para representar. Foi o que aconteceu.

Porque aceitou narrar a história do Peter Pan? Vestir a pele de tanta gente não é fazer algo um pouco diferente?
Aceitei porque queria absolutamente participar numa homenagem à É. E é sobretudo bom para as doenças!
Paula Rego, uma pintora portuguesa reconhecida mundialmente. Chega
a muita gente com a sua fantasia e a sua imaginação e isso é uma coisa Então?
que me dá um grande orgulho e uma grande satisfação. A verdade é Quando vestimos a pele de outra pessoa não sentimos as doenças.
que tenho mesmo um grande orgulho nos portugueses que aparecem
e que vingam no mundo. E são muitos. Nós é que não sabemos. Não nos Que sentido de humor tão aguçado!
interessamos muito por aquilo que é nosso. É verdade. A minha profissão obriga-me a isso. Sou um observador e
para isso tenho de ter sentido de humor. Passo a vida a observar os meus
Às vezes até os deitamos abaixo. semelhantes. Aliás, nunca estou sozinho, como digo, estou sempre com
A tentativa é sempre essa. Deitar abaixo. É querer sempre mais do que. um canhenho a tomar notas sobre casos conjunto, não individuais. Há
É, por exemplo, um filho querer ser mais do que o pai, um neto melhor do cidadãos semelhantes, do mesmo tipo, gordinho, meio gordinho, loiros,
que o avô. Não. Cada um é o que é. O meu neto é o meu neto e o meu morenos e há muitas formas de proceder, avarentos, generosos.
filho é o meu filho. Cada um tem uma personalidade e uma maneira de
ser. Gostam é da mesma coisa que eu. Gostam de teatro. Observa, toma nota e quando vai para cima do palco replica?
Claro. Quando é preciso uso. Temos de ter um armazém de coisas
Influenciou-os? guardadas para nós. Isso só é possível se vier da observação da vida e
Influenciou-os a minha vida. Quando escolheram ser atores já eu tinha daqueles que vemos de passagem. Há vidas que levam anos e que são
30 anos de teatro. Acharam que ser ator era uma profissão digna, como contadas em três horas! b

E 23

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CARTAS ABERTAS

/ COMENDADOR
MARQUES DE CORREIA

O TEMPO, ESSE GRANDE DECISOR


PORTUGUÊS QUE NOS MANTÉM

N
IMPOLUTOS (OU SEM POLUIÇÃO)
PENSAVAM QUE PODIA HAVER GÁS NATURAL OU PETRÓLEO NOS MARES
AO LARGO DO ALGARVE? POIS PODIA, MAS NÃO HÁ! PASSOU DO PRAZO...

o geral, pensa-se que a plataforma petrolífera passou a ser especialista dessa matéria,
passagem do tempo, falo de opondo-se a qualquer buraco, mesmo que esteja tão longe que
milhões de anos, contribuiu para nem em cima de um prédio de 60 andares plantado na praia
a existência de combustíveis fosse visível. A maioria deles esqueceu a questão da curvatura
fósseis. Assim sendo, poderemos da terra e o facto de as Caraíbas, destino turístico não menos
dizer que Portugal será o único importante do que o Algarve, estar mais furado do que um
país do mundo (mas não somos queijo suíço.
únicos em tanta coisa?) em Mas isso, agora, não interessa nada. Entre o para a frente e
que a passagem do tempo o para trás, o furo ao largo de Aljezur caducou. Ou seja, o
contribuiu exatamente para prazo dado à concessão foi-se. E haverá outro prazo? A Galp
a impossibilidade de haver quer, mas os municípios não. Ao mesmo tempo existem três
petróleo, gás natural ou qualquer processos a correr na Justiça, que é garantia de que nunca
coisa que tenha valor económico a sério. mais se chegará a nenhuma conclusão, até porque está cada
Há uns anos dizia-se que nós precisávamos de uns poços processo em seu tribunal. Um no Supremo Administrativo,
de petróleo para fazer a vida que fazemos. E toda a gente outro no Tribunal Administrativo e Fiscal e outro no Tribunal
se regozijaria pelo facto de tal matéria-prima surgir, fosse de Loulé.
no mar fosse em terra. Andou-se à procura dela ali para a Assim, meus caros amigos, se vê como o tempo, que
Lourinhã e Torres Vedras... mas não só, em muitos outros habilidosa e pacientemente contribui para a formação de
locais houve buscas, embora sempre mal-sucedidas, com petróleo e gás natural através do carbono jurássico, em
exceção para o Beato, uma vez que a peça de teatro de revista Portugal, através de processos arqueológicos, contribui para
“Há petróleo no Beato” ainda conseguiu uns rendimentos para que nunca tenhamos a possibilidade de saber se temos gás ou
os envolvidos, entre os quais o saudoso Raul Solnado. petróleo.
Eis, no entanto, que chegam hipóteses mais modernas e É por isso que a Galp e a Eni deviam fazer como os tuk-tuks e
determinadas com equipamentos mais sofisticados. Haveria os Uber: primeiro faziam o furo, depois logo pagavam a multa.
petróleo e gás offshore, quer dizer no mar. O problema é que Eu sei que dá muito nas vistas, mas é eficaz. b
era no mar do Algarve.
Muita gente ficou contente. Era uma espécie de galinha de
ovos de ouro sem turistas a chatear a molécula no centro de
Lisboa e ainda mais os tuk-tuks e as camionetas de camónes.
Era só fazer o furinho a uns bons quilómetros da praia, o
que até tornava as torres das plataformas invisíveis de terra,
e começar a esperar que o gás ou o petróleo jorrasse para
dentro dos bolsos dos exploradores e para as folhas de Excel do
Ministério das Finanças. Alguns, mais afoitos, chegaram a ter
esperança de que os impostos baixassem.
Para tal, constituíram diversas parcerias. Tanto a Costa
Vicentina (ali para Aljezur, onde primeiro se colocou a
hipótese) como a Costa Sul do Algarve iam ser perfuradas.
Na Vicentina, seria um consórcio da italiana Eni com a
ILUSTRAÇÃO DE CRISTIANO SALGADO

portuguesa Galp a responsável por tal cometimento.


Mas esperem um pouco! A Costa Vicentina é uma maravilha
da natureza, não poderia ser destruída assim do pé para a
mão com uns tipos a fazer furos. Logo centenas de pessoas
(em Odeceixe foram 400) passaram a manifestar-se contra a
exploração de petróleo em qualquer parte do Algarve. Como as
eleições autárquicas se iam aproximando, os municípios e os
seus presidentes e vereadores, salvo raras exceções, passaram
a ser contra. Enfim, uma série de gente que nunca viu uma

E 24

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Um
deus
na Terra
Aga Khan IV descende
do profeta Maomé e é
o líder espiritual de 15 milhões
de fiéis muçulmanos, 10 mil
dos quais vivem em Portugal.
É um dos homens mais
ricos e mais influentes do
mundo, o qual tem tentado
transformar à sua maneira
e à do Islão. Está prestes
a estabelecer residência
em Lisboa. Será o novo
sr. Gulbenkian

TEXTOS
ALEXANDRA CARITA

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CHRISTOPHER LITTLE/AKDN

E 27

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É
o príncipe Karim Aga Khan IV. Mas chamam-lhe
Sua Alteza. O título foi-lhe atribuído por Isabel II,
a rainha de Inglaterra, logo depois de Karim, aos
20 anos, assumir o cargo de imã, o 49º imã dos 15
milhões de muçulmanos xiitas ismaelitas. Há cerca
de um mês, a 11 de julho, iniciou as celebrações do
seu jubileu de diamante e prepara-se para deixar a
região de Paris e estabelecer residência em Lisboa.
É um dos homens mais ricos do mundo, dizem
as revistas estrangeiras da especialidade, que há
pouco tempo situavam a sua fortuna nos quase 14
mil milhões de dólares. Mas é ao mesmo tempo lí-
der espiritual de uma comunidade que doa ao Ima-
mato, que ele próprio gere, cerca de 10 a 12% do que
CUMBER STUDIOS/AKDN
AKBAR HAKIM/AKDN

2
ROBERT KNUDSEN/AKDN
GARY OTTE/AKDN
3

4
ganha. São milhões e milhões que a Rede Aga Khan
para o Desenvolvimento (Aga Khan Development
Network — AKDN), uma espécie de Nações Unidas
privadas, como já foi descrita, põe ao serviço dos
PÉRIPLO 1 No Paquistão,
fiéis e da sociedade onde se inserem, em mais de 25
em 1970, numa visita a uma escola
países situados maioritariamente na Ásia Central, fundada pelo avô Aga Khan III
na África Subsariana, no Médio Oriente, na Europa 2 Em Porshniev, no Tajiquistão,
e na América do Norte. em 2008, com membros
Com funções múltiplas e muito além da orienta- da comunidade ismaelita
ção religiosa e da interpretação do Corão, Karim Aga 3 Com o Presidente Kennedy,
Khan tem a seu cargo a educação cívica da comuni- na Sala Oval da Casa Branca,
dade, que o adula. Significa isso cuidar do seu bem- em Washington, a 14 de março
-estar e guiá-los no sentido de criarem os seus pró- de 1961 4 Com Nelson Mandela,
prios meios de subsistência e as suas carreiras com já Presidente da África do Sul, em
base nessas orientações. “Os meus deveres são bem Moçambique, em agosto de 1998
mais latos do que os do Papa. Ele só tem de se preo- 5 Com a então primeira-ministra
britânica Margaret Thatcher,
cupar com o bem-estar espiritual do seu rebanho”,
na inauguração do Centro Ismaili
disse um dia. O príncipe Aga Khan encaminha os
em Londres, em 1985 6 No
seus fiéis em termos de educação e saúde, bem Paquistão, com os habitantes
como de finança e economia, valores éticos e soci- de Jaglot, perto de Gilgit,
ais. Um rol de áreas que a constituição que criou em em maio de 1983 7 Na Muralha
1986, ratificada em 1998, descreve com clareza e faz da China, em outubro de 1981
seguir em todo o mundo e em todas as comunida- 8 Com o Presidente Cavaco Silva,
des através de conselhos nacionais. Portugal não é em junho de 2014
5

E 28

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exceção. No país vivem quase 10 mil ismaelitas, so-
7 bretudo na zona da Grande Lisboa, e Aga Khan não
tem deixado de investir em terras lusas com proto-
colos assinados em várias áreas, da ciência à cultu-
ra, passando pela educação e pela sustentabilidade.
“A assinatura do acordo histórico entre o Ima-
mat Ismaili e a República Portuguesa para estabe-
lecer em Portugal a sua sede é um marco histórico
nos nossos 1400 anos de história. Partilhamos com
Portugal os valores da tolerância na diversidade de
comunidades e culturas e temos um imenso respei-
to pelo compromisso do país em partilhar conheci-
mento para a melhoria das comunidades em todo o
mundo”, diz Karim Aga Khan ao Expresso.
Essa é a razão por que foi aqui, no Palacete Hen-
rique Mendonça (antiga Reitoria da Universidade
Nova de Lisboa), que o príncipe decidiu criar a pri-
meira sede física para o Imamato, que sempre fun-
cionou através de um secretariado que acompanha
o imã na sua residência mais perene, ultimamente
Aiglemont, a 40 quilómetros de Paris. Um castelo
6 luxuoso, como as outras moradias de Sua Alteza —
nomeadamente na Sardenha e em Genebra —, que
nos seus 40 hectares de terreno vê crescer os pu-
ros-sangue mais caros das corridas de cavalos mais
prestigiantes do mundo. É a criação destes animais
de pedigree, aliás, um negócio nas mãos da família
há mais de um século, que oferece a Karim grande
parte da sua fortuna pessoal (mas o dinheiro chega-
-lhe também do ramo imobiliário, que domina em
todo o mundo).
CHRISTOPHER LITTLE/AKDN

São famosos os jockeys do domínio de Chantilly


trajados a rigor com as camisas de seda verde e ver-
melha, as cores do Imamato. Como são famosas as
GARY OTTE/AKDN

aparições do príncipe no Prix Diane, a corrida anu-


al que marca em França, no mês de junho, o troféu
mais apetecido da modalidade. Esse ponto alto eu-
ropeu das corridas de cavalos acontece num domin-
go, e esse é um dia sagrado para ver Aga Khan, tão
raras que são as suas apresentações públicas mun-
danas. Sexta-feira passada, dia 1 de setembro, abriu
uma exceção e apareceu em público em Almancil,
no Algarve, para festejar com o amigo Francisco
Pinto Balsemão o seu 80º aniversário.
O príncipe sempre foi alvo do interesse desme-
dido da imprensa cor de rosa e muito sobre ele se
escreveu, tanto sobre a sua predileção por barcos e
iates como sobre as suas pretendentes, mulheres e
divórcios milionários.
Karim tem quatro filhos de dois casamentos. Em
1968, apaixonou-se pela esbelta Sally Chrichton,
uma modelo alta e loira, que conheceu em Gstaad.
Casou com ela no ano seguinte, e nasceram três fi-
lhos: Zahra, Rahim e Hussain. Os três trabalham
hoje na Rede Aga Khan para o Desenvolvimento em
cargos de relevo, desde a direção do departamento
social ao sector ambiental, passando pela gestão do
DEREK ROWE/AKDN

Fundo para o Desenvolvimento Económico. Já com


JOSÉ CARIA/AKDN

os filhos criados, porém, o casamento terminou.


Estávamos no ano de 1994. Logo em 1995, Karim
8 Aga Khan IV voltou a casar, desta vez com a prin-
cesa germânica Gabriele zu Leiningen, que depois

E 29

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CERIMÓNIA Sua Alteza, Aga Khan,
dirige-se aos membros da comunidade
ismaelita no vale de Bartang, no Tajiquistão, Estudante em Harvard, Karim ansiava por se perto do lago Léman para ler o testamento, soube o
a 25 de setembro de 1998 especializar em História, na vertente de História porquê de a escolha ter recaído sobre ele e não so-
da Religião Islâmica, em 1957, quando no início de bre o seu pai Aly.
abril recebeu uma curta intimação do avô, já com “Foi sempre tradição na nossa família que cada
de uma curta carreira como estrela da pop traba- 79 anos de idade. “Vem ver-me!”, nada mais, nada imã escolha o seu sucessor na mais absoluta discri-
lhava na altura como consultora da UNESCO. Cinco menos. O jovem voou para perto de Cannes, no sul ção entre qualquer um dos seus descendentes, se-
anos mais tarde, em 2000, nascia Aly Muhammad, de França, onde este residia. E só voltou à universi- jam eles filhos ou não. De acordo com as grandes
que não veria os pais juntos durante muito tempo. dade 18 meses depois, já como Aga Khan IV. Era a alterações do mundo, o que provocou muitas mu-
O divórcio fez correr muita tinta e muito dinheiro primeira vez que a hereditariedade do líder ismae- danças fundamentais, incluindo a descoberta da ci-
e foi capa de imensos tabloides, mas não afastou o lita saltava uma geração. O avô queria-o perto dele, ência atómica, estou convencido de que é do maior
príncipe dos amores. pois pressentia a morte. Quando o seu testamento interesse para a comunidade ismaelita que eu seja
“Tomo todo o tipo de precauções quando saio foi lido, a 11 de julho, o pânico abateu-se sobre o sucedido por um jovem que foi criado e educado nos
com amigos. Aprendi a não mostrar qualquer tipo neto: “Foi um choque”, escreveu mais tarde. “Mas últimos anos e no centro da nova era e que trará uma
de emoção em público. Nunca me sento ao lado de acho difícil que alguém na minha situação estives- nova visão da vida ao seu trabalho.” Assim justifi-
uma mulher a quem a imprensa me quer associar”, se preparado”, adiantou numa entrevista de 2013 cou Aga Kahn III a escolha de Karim. No entanto,
disse em tempos numa entrevista. Nessa altura, ain- à revista “Vanity Fair”. A responsabilidade caía- dizem as más línguas, o que ele não queria era um
da punha os pés fora de casa. Mas a vida ensinou-o. -lhe em cima, e o regresso a Harvard não passou de playboy no seu lugar.
O correio chegou a ser-lhe violado, os funcionários uma brincadeira. Karim estava fadado para liderar o A expressão pode ser um exagero, mas não deixa
entrevistados, amigos pessoais tiraram-lhe foto- povo ismaelita, e as suas funções começavam ime- de ser várias vezes utilizada em relação a Aly Khan,
grafias na sua própria casa e venderam-nas a revis- diatamente, não se compadecendo com cursos ou o pai de Karim. Aly, o segundo filho da quarta mu-
tas interessadas e até foi chantageado por telefone. cadeiras em atraso. Se é que não começaram antes. lher de Aga Khan III, a bailarina italiana Theresa
Hoje e há já muito tempo que não sai. Tem uma vida De abril até às primeiras horas do dia 11 de julho, Magliano, nascera em Turim em 1911. Tido como
recatada. Não bebe e não fuma. E dedica todo o seu quando o avô Sultan Mahomed Shah Aga Khan III um dos mais interessantes e bem parecidos homens
tempo ao cargo que o avô paterno lhe atribuiu ti- faleceu, o jovem permaneceu a seu lado, mas nes- da sua geração, conheceu a sua primeira mulher era
nha ele 20 anos. se dia, assim que o advogado do avô chegou à casa esta ainda casada. O ano era o de 1933, e ela era Loel

AGA KHAN NO MUNDO 1970 1980 1990


1967 Criação da Fundação 1977 Prémio 1982 Criação 1989 Centro de
Aga Khan, 10 anos depois Aga Khan para da Universidade cuidados maternos e
de ascender ao Imamat a Arquitetura Aga Khan infantis no Paquistão

EM PORTUGAL
1983 Implementação
da Fundação Aga Khan
em Portugal

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“Os meus deveres são bem
mais latos do que os do Papa.
Ele só tem de se preocupar
com o bem-estar espiritual
do seu rebanho”, disse um dia
Contudo, nos primeiros sete anos do seu Imamato, donativos muitíssimo substanciais para as obras da
ouviu e seguiu os conselhos da esposa do avô, como Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, que fun-
deixara também escrito Aga Khan III. “Durante a dou há mais de cinco décadas. Este ano, em que se
noite, a minha vida mudou completamente. Acor- iniciam as comemorações do seu Jubileu de Dia-
dei com responsabilidades sérias para com milhões mante, as somas doadas pelos fiéis não foram conta-
de seres humanos”, explicou numa entrevista dada bilizadas, mas estima-se que sejam largas centenas
em agosto de 1964. E, já em 2013, reconhecia que de milhões. “Não se espera que um imã se retire da
talvez não estivesse tão confiante assim. Na verda- vida do dia a dia. Pelo contrário, dele é esperado que
de, o avô “governara” durante 72 anos, ele tinha 20! proteja a sua comunidade e contribua para a melho-
Não esqueceu, porém, que Aga Khan III iniciara ria da sua qualidade de vida. Assim, a noção da di-
as suas funções com sete anos apenas, numa Índia visão entre a fé e o mundo é estranha para o Islão.
ZAHUR RAMJI/ AKDN

completamente britânica, antes de se mudar para O Imamato não divide mundo e fé. E muito poucos
a Europa, já depois de ter recebido da Rainha Vitó- compreendem isso fora do Islão. No Ocidente, os
ria o mesmo título de Sua Alteza, corria o ano de vossos sistemas financeiros são todos construídos
1886. Este cidadão britânico, tal como agora o neto, segundo essa divisão”, explica o príncipe noutra
pelejou por melhores condições de vida para a sua entrevista, justificando ao mesmo tempo a preo-
comunidade e para os que lhe estavam próximos e cupação constante com o bem-estar dos seus fiéis.
não deixou de construir uma enorme rede de hos- A mesma afirmação serve ainda para fundamentar
Guinness, uma bonita aristocrata inglesa. Conta-se pitais, escolas, bancos, mesquitas. No entanto, foi a existência de tanta riqueza e criação dela tanto na
que na noite em que a encontrou pela primeira vez, quando, já no início do século XX, chegou ao Velho AKDN como na vida ativa de cada membro da co-
num jantar dançante em Deauville, lhe segredou ao Continente que tomou consciência de toda uma ou- munidade, que se esforça sempre por uma vida me-
ouvido se queria casar com ele. O casamento viria tra filosofia de vida, a de um mundo moderno que lhor e menos carenciada.
a acontecer três anos depois, em maio, na magnífi- quis também doar aos seus fiéis. Com uma persona- Todas as diretrizes de Sua Alteza, de resto, vão
ca Paris. Em dezembro desse mesmo ano, 1936, no lidade fora do comum e uma capacidade intelectual nesse sentido. Se até 1995 os objetivos eram os de
dia 13, nascia Karim Aga Khan. Não tardaria muito forte, passou a mensagem à sua comunidade. Entre obter uma educação superior para o maior número
a nascer o seu irmão Amyn, logo em 1937. Até onde os ismaelitas portugueses, há quem ainda se lem- possível de ismaelitas, hoje os mesmos objetivos, no
reza a história, tudo bem. Mas é no pós-guerra que bre bem de quando Aga Khan III disse aos seus que que respeita ao campo educacional, são os de obter
o galã Aly dá mais que falar. O seu romance com deveriam aprender inglês, “era a Europa um con- ensino superior de excelência para todos. Não é por
a estrela de Hollywood Rita Hayworth foi o apo- tinente francófono”, ou quando chamou pela pri- acaso que Aga Khan tem vindo a criar as suas pró-
geu de uma vida de grandes aventuras. Conheceu- meira vez a atenção para a igualdade de género. “Se prias instituições, desde as aAcademias às univer-
-a em 1948, em plena Riviera francesa, tinha esta tiverem dois filhos, um homem e uma mulher, e se sidades (Universidade Aga Khan e Universidade da
acabado de se divorciar do cineasta Orson Welles e só puderem dar educação a um deles, privilegiem as Ásia Central), abertas a toda a sociedade. Além de-
vinha substituir Pamela Harriman na vida do prín- mulheres”, relembra Nazim Ahmad, representante las, porém, uma nova diretriz toma conta das preo-
cipe. Chegaram a casar, também em maio, a 27, e diplomático do Imamat Ismaili em Portugal. A ideia cupações do príncipe: a educação parental, ou seja,
também em Paris, em 1949, e tiveram uma filha, a era não só fazê-las evoluir geracionalmente de for- aquela que tem início no ventre e se prolonga até aos
princesa Yasmin. Mas não foram felizes para sem- ma rápida como preservar a educação — a mulher 5 anos. É nessa idade que as crianças recebem mais
pre e separaram-se quatro anos mais tarde. E, em como educadora e mãe é a sua principal transmis- estímulos intelectuais, cognitivos e motores, tor-
1960, Aly Khan morria num acidente de viação, às sora. Adorado como ninguém, Aga Khan III viu o nando-se essencial no seu desenvolvimento. Outra
portas de Paris. seu peso ser-lhe doado em ouro no seu Jubileu de das suas prioridades é neste momento uma chama-
“As minhas responsabilidades religiosas come- Ouro, em 1936, na cidade de Bombaim, e depois em da de atenção para a saúde no campo das doenças
çam a partir de hoje”, declarou Karim a seguir à lei- diamantes e platina, nos jubileus correspondentes. psiquiátricas, neurológicas e oncológicas, além da
tura do testamento, que chegou à Suíça numa cai- O mesmo não aconteceu a Karim Aga Khan normal medição dos parâmetros de saúde que su-
xa fechada enviada pelo Lloyds Bank de Londres. IV. Mas os seus jubileus têm sido marcados por gere a todos os fiéis. Esta é só uma amostra do tipo

2000 2010 2020


1992 Programa 2000 Criação 2007 Barragem 2014 Abertura 2016 Abertura
para as cidades das academias Hidroelétrica do Museu da Universidade
históricas Aga Khan no Uganda Aga Khan da Ásia Central

2006 Apoio 2016 Associa-se


ao programa a parceiros para ganhar
parental A PAR escala nacional
1996 Constituição da Fundação 2004 Programa de 2009 Programa de Desenvolvimento 2015 Área
Aga Khan Portugal como Desenvolvimento Comunitário da Infância e Estudo sobre temática
fundação portuguesa Urbano (K’Cidade) Necessidades dos Seniores de Seniores

E 31

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OS MILHÕES DE AGA
KHAN EM PORTUGAL

“Os olhos do mundo islâmico estão em Portugal. O


país passou uma mensagem de pluralismo cultural e
de abertura social única. O impacto vai ser enorme.
A começar pelo investimento, que nos últimos 17/18
meses já andou na ordem dos milhões de euros só no
ramo imobiliário e que pode chegar a valores astronó-
micos.” É assim que os representantes da comunidade
ismaelita portuguesa reagem ao estabelecimento da
sede do Imamato em Lisboa. Nazim Ahmad, embai-
xador do Imamato, Rahim Kassam, diretor executivo,
Rahim Firozali, presidente do Conselho Nacional, e
Karim Merali, administrador da Fundação Aga Khan
Portugal, acreditam que o sinal dado pela República
Portuguesa vai ao encontro da “ética cosmopolita”
defendida pelo seu imã, Sua Alteza, o príncipe Karim
Aga Khan IV. E não têm dúvidas de que o país vai
estar no centro do mundo, depois de mais de quatro
décadas no coração do seu líder. O anúncio foi feito
em junho de 2015, logo depois de assinado um acordo LISBOA O 49º imã escolheu
com a República Portuguesa para a instalação da Portugal para instalar a sede do
sede do Imamat Ismaili, e desde aí as expectativas são seu Imamato e Lisboa para residir
muitas, mas a emoção é ainda maior. Os ismaelitas
portugueses olham para o acontecimento com júbilo
e quase agradecem por viverem em solo nacional.
Foi o 25 de Abril que trouxe para Portugal a esmaga- Imamat Ismaili. É o culminar da nossa relação longa e “O acordo para o estabelecimento da sede do Imamat
dora maioria desses ismaelitas, hoje entre 8 a 10 mil profunda em Portugal — uma relação que agora será Ismaili em Portugal não embaraça o Governo portu-
no total da população portuguesa. E com eles recaiu ainda mais aprofundada”, diz Aga Khan IV no seu dis- guês e não embaraça o imã. É como se diz na gíria um
sobre o país a atenção de Sua Alteza, o príncipe Aga curso de doutoramento honoris causa, que recebeu win win, ou seja, é extraordinariamente bom para o Es-
Khan, que em 1983 fazia abrir em Lisboa uma agência na Universidade Nova de Lisboa no passado dia 20 de tado e muito bom para o Imamat”, diz ao Expresso Na-
da Fundação Aga Khan. Situada na Lapa, dedicou-se julho. Esse aprofundamento da relação já começou zim Ahmad, que acompanhou as negociações desde o
desde logo ao desenvolvimento social e à inclusão com a assinatura do acordo de cooperação com o início. “O entendimento foi muito franco e aberto, tudo
económica da população mais vulnerável e mais Ministério da Ciência, Tecnologia e Educação Supe- decorreu com transparência, frontalidade e amizade”,
carenciada. A sua ação ao longo dos anos, contudo, rior, no valor de 10 milhões de euros, em maio do ano avança ainda. “A consciência social e ética de Sua Al-
especializou-se no apoio à educação e no desenvol- passado, com a doação de 200 mil euros ao Museu teza contribuiu para que assim fosse. Se não fosse um
vimento da infância, bem como no suporte do bem- Nacional de Arte Antiga para a aquisição do quadro bom acordo para Portugal, o acordo não se faria. Aga
-estar da classe sénior. Mas desde 2004 o Programa de Domingos Sequeira “Adoração dos Magos”, ou Khan tem sempre em conta o que o país com quem
Comunitário Urbano K’Cidade tem implementado, na com a contribuição de 500 mil euros para as vítimas negoceia vai beneficiar”, conclui Nazim. E se Portugal
Grande Lisboa, processos de trabalho que garantem do incêndio de Pedrógão Grande. Haverá muito mais, só tem a ganhar com a cooperação com o Imamat
a sustentabilidade das comunidades a longo prazo. nomeadamente o investimento de 10 milhões de Ismaili, quer no que respeita a investimentos financei-
Em 1996, a ligação da Fundação Aga Khan a Portugal euros na criação de uma Academia Aga Khan na área ros e criação de emprego quer no que se relaciona com
estreitou laços com a constituição da mesma como da Grande Lisboa, cuja compra do terreno para a sua a sua posição geoestratégica no quadro da política
uma fundação portuguesa por decreto-lei. Na mesma construção está por um fio. O acordo com a Câmara mundial, também Aga Khan tem muito a beneficiar
data, a construção do Centro Ismaili, nas Laranjei- Municipal de Cascais para estabelecer a academia com este acordo irrevogável nos próximos 25 anos,
ras, também em Lisboa, trouxe por várias vezes Sua em Birre foi rompido à última hora. Os terrenos em nomeadamente ao nível da isenção de impostos. Por
Alteza ao país. Foi Aga Khan IV quem escolheu o causa estavam protegidos pelo Plano Diretor Munici- exemplo, os rendimentos dos donativos oferecidos ao
terreno onde este haveria de crescer e quem ditou a pal (eram terrenos agrícolas), mas, tendo em conta o Imamat não pagam impostos, a remuneração do imã e
sua arquitetura. Como é ele quem nomeia os ministros propósito da fundação, a autarquia avançou com uma dos altos funcionários do Imamat idem, os rendimentos
que ali se reúnem em Conselho Nacional e que gerem alteração ao PDM. O município de Cascais, a funda- com origem no estrangeiro também não. O Imamat e
e determinam as atividades e prioridades da comu- ção Aga Khan e dono do terreno, o fundo imobiliário Aga Khan podem comprar e vender imóveis sem pagar
nidade ismaelita portuguesa. De resto, as atividades Lusofundo, chegaram mesmo a assinar um memoran- IMI, IMT ou selo, desde que ligados às funções diplo-
no país operam no âmbito dos acordos estabelecidos do de entendimento em 2014. Só que pelo caminho máticas, como de resto acontece com a Igreja Católi-
entre o Imamat e Portugal, em particular o Protocolo a fundação recuou na ideia. O proprietário do terreno ca; mas também podem transacionar carros, barcos e
de Cooperação com o Governo de Portugal, assinado não. A fundação Aga Khan declara, no entanto, que aviões sem pagar impostos sobre a compra, proprieda-
em 2005, o Memorando de Entendimento com o a “desistência ficou a dever-se ao facto de, a dada de, registo, utilização ou venda. Com benefícios mai-
Ministério dos Negócios Estrangeiros, de 2008, o altura do processo, se ter apercebido de que uma ores do que os previstos na Lei da Liberdade Religiosa
Acordo Internacional com a República Portuguesa, de parte das forças vivas locais não apoiava qualquer ao nível dos atributos aos Estados estrangeiros e aos
2009, e o Acordo com a República Portuguesa para tipo de construção naquele local”. Também ainda por seus corpos diplomáticos, que terão imunidade judicial
o Estabelecimento da Sede do Imamat Ismaili em conhecer está a residência do príncipe em Lisboa. (Imamat, imã, altos funcionários) e outras facilidades
Portugal, em 2015. Das várias hipóteses que já lhe foram apresentadas, necessárias ao desempenho das suas funções, tais
“Em Portugal, sempre me senti em casa. Agora e em falta-lhe escolher a que mais lhe agrada. Dinheiro não como tratamento cerimonial, residências com direito
especial desde a assinatura, em 2015, de um acordo é problema, como não foi para comprar o Palacete a inviolabilidade e proteção. Ainda em troca, o Imamat
histórico entre o Imamat Ismaili e a República Por- Henrique Mendonça (antiga Reitoria da Universidade compromete-se a apoiar ativamente os esforços do
tuguesa para o estabelecimento do acordo de sede, Nova de Lisboa), onde se vai instalar a sede, por 12 Estado para melhorar a qualidade de vida de todos
um marco importante nos 1400 anos de história do milhões de euros. aqueles que vivem em Portugal. / A.C.

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Licenciado em Harvard, é imã
há 60 anos. Protagonizou dois
casamentos e dois divórcios
milionários. Tem quatro filhos,
que trabalham com ele
ou à Síria, à Índia, à Malásia e a Moçambique. colaborador seu. E talvez seja por isso que as solas
Karim Aga Khan recusa, porém, o epíteto de fi- dos sapatos se gastam literalmente até que lhe cha-
lantropo ou de praticante da caridade. Para o 49º mem a atenção para trocar de calçado, como relata
imã, aquilo que faz é parte integrante do seu man- a sua irmã. Ou talvez seja pela falta de tempo.
dato e da sua responsabilidade de melhorar a quali- Sua Alteza não para um instante. Verdadeiro
dade de vida de todos os seus semelhantes de acordo workaholic, vive praticamente dentro do seu avião
com a ética do Islão. Pode parecer estranho ou ser privado, que comprou para economizar viagens e
de difícil compreensão para um ocidental a junção tempo — voa entre 450 a 600 horas por ano, o equi-
de dois mundos tão distintos: o espiritual e o mate- valente a dois meses de trabalho. Com ele vai muito
rial. É por isso que chamam a Sua Alteza com fre- pouca gente: dois assistentes e uma secretária che-
quência capitalista crente. Ele explica-se de outra gam-lhe para fazer todo o trabalho. “Desde que
forma: “Todos nós já vimos exemplos da criatura deixei Harvard que viajo todos os anos pela comu-
mais maravilhosa de Deus, a pessoa, seja numa po- nidade espalhada pelo mundo. Quatro ou cinco vi-
sição governamental, nos negócios ou numa agên- agens às populações, dependendo de onde há mais
cia de desenvolvimento privada, inspirada a con- problemas e da urgência de eu lá estar ou não. Ge-
AKDN

tribuir generosamente de si próprio, a ir além dos ralmente, são visitas a escolas e a hospitais, a cen-
requisitos mecânicos de uma tarefa. Tais homens e tros desportivos ou a mesquitas, durante a manhã, e
de normas que Sua Alteza dita, muitas vezes em mulheres, remunerados ou não, expressam o espí- reuniões e encontros com líderes para planear o de-
campanhas de sensibilização, mas que não deixam rito voluntário, literalmente a vontade de criar um senvolvimento futuro da comunidade, mais tarde.
de ser levadas à letra. Já num raio de ação vasto, produto melhor, uma clínica mais solidária e eficaz. E devo dizer que estar ali por inteiro é muito, muito
as prerrogativas para os próximos 10 anos incluem O seu espírito, gerando novas ideias, resistindo ao pesado, até para quem acompanha este tipo de di-
ainda o combate à pobreza e a mobilização dos jo- desânimo e exigindo resultados, anima o coração de gressões”, explicava numa entrevista de 1970. Vinte
vens para a cidadania (construtiva, ativa e consci- toda a sociedade eficaz.” É esse o seu credo, a sua anos depois, em 1994, a sua vida não tinha mudado,
ente). Para que se tenha uma ideia da precisão des- crença mais profunda e a sua interpretação do Islão. afirmava ao “Paris Match”. Continuava a levantar-
tas orientações, fique a saber-se que são impressos Um Islão muito especial. Aga Khan IV, o imã he- -se às 6h da manhã e a trabalhar praticamente sozi-
manuais escolares em Londres, no Instituto de Es- reditário dos muçulmanos xiitas ismaelitas, é des- nho até às 10h. Depois, até ao meio-dia fazia o pon-
tudos Ismailis, que estabelecem os currículos mui- cendente direto do profeta Maomé, o último profeta to da situação com o seu secretariado, e as reuniões
to bem fundamentados academicamente, depois enviado por Deus à Humanidade e aquele que reve- começavam. Almoçava, e o ritmo mantinha-se in-
traduzidos nas várias línguas das comunidades e lou o Sagrado Alcorão. Acreditam os xiitas ismaeli- tenso, prolongando-se muitas vezes noite dentro.
que significam uma estandardização perfeita da tas que, depois da morte de Maomé, Ali, o seu primo Nessa altura, ainda se queixava de não poder sair
comunidade a nível mundial. Em Portugal, decor- e genro, se tornou o primeiro imã, o primeiro guia para visitar amigos à noite, devido ao trabalho que
rem atualmente, por exemplo, cursos de orientação espiritual da comunidade muçulmana, e que essa o esperava no dia seguinte, logo cedo. Hoje, aos 80
de carreiras para alunos do 8º ano. É-lhes ensina- orientação hereditária continua através dos tem- anos de idade, não. A sua agenda continua lotada e
do até como poupar para o acesso a escolas de nível pos. Ao longo de 14 séculos de história, têm assim ele a não delegar muita coisa nos seus colaborado-
elevado, onde as propinas são caras. A ideia é que seguido os imãs hereditários descendentes de Ali e res, mas queixas sobre falta de tempo livre não há.
nem financeiramente lhes esteja limitado o acesso. de Fátima, filha do profeta Maomé. Nem sobre falta de nada.
No entanto, Aga Khan IV trabalha diariamen- Nessa qualidade, Karim calcorreia o mundo pra- De facto, a Karim Aga Khan IV não lhe fal-
te a uma esfera global. O seu lema é o do pluralis- ticamente de lés a lés. Encontra-se com altos digni- ta nada. A sumptuosidade e o luxo conhece-os de
mo de culturas, credos e ideologias, e acredita que, tários, chefes de Estado, líderes religiosos, políticos, cor. Trata por tu os bens materiais que quiser. No
aplicando estas noções básicas de ética, a socieda- embaixadores, homens de negócios, mas também entanto, humilde por natureza, como conta o seu
de pode evoluir, ajudando-se mutuamente. Acredi- gente humilde, carenciada, professores, médicos, embaixador em Portugal, é mesmo conhecido en-
ta na solidariedade e na cultura do voluntariado. É populações inteiras... Nas reuniões constantes, di- tre os seus como forreta. E desde sempre. É o seu
nessa perspetiva que cria a AKDN, a operar em 30 zem, é sempre um diplomata. Um diplomata no dis- colega de quarto de Harvard o primeiro a falar,
países diferentes e empregando mais de 80 mil pes- curso mas um soberano nas decisões, conseguindo mas seguem-se-lhe a mãe, a irmã e os amigos. Não
soas. Cinco centrais elétricas, companhias aéreas, levar a sua avante em praticamente todas as cir- compra nada, dizem, nem um par de sapatos, nem
empresas farmacêuticas, bancos, seguradoras, ca- cunstâncias, afiançam os que com ele têm traba- um fato novo, só gravatas, todas iguais. E se tives-
deias de hotéis de luxo, empresas de comunicação lhado. Aga Khan participa ativamente em todas as se, ou pudesse, deslocar-se sozinho, escolheria os
perfazem uma centena de empresas detidas pela iniciativas da AKDN, e não há embaixador seu que transportes públicos e pouparia no carro, no segu-
Rede, que utiliza os seus lucros — cerca de 3,5 mil não seja por si nomeado, desde os seus mais pró- ro e na gasolina.
milhões de euros anuais — em benefícios das po- ximos colaboradores aos “ministros” tutelares de Não só de pão vive o homem, talvez respondesse
pulações nos domínios do desenvolvimento social cada comunidade, nomeados por três anos para le- se não fosse muçulmano. A verdade é que, introspe-
e económico e também cultural. Em pratos limpos, var a cabo as suas orientações em cada nação. Es- tivo, Aga Khan carrega com ele um fardo que nunca
isto significa a criação e manutenção de fundos de colhe os terrenos para a construção das escolas, dos fez transparecer, pesada herança e destino traçado,
crédito, de escolas e hospitais e ainda muitos pos- centros ismaelitas (seis em todo o mundo, sendo o um mundo de gente que o segue e um novo mundo
tos de trabalho e micro/macroeconomias em países de Lisboa o terceiro a ser criado), dos hospitais, das a construir. O que tem feito sempre e sempre lhe foi
tão díspares como o Paquistão e o Afeganistão, onde creches, dos museus, de tudo... Designa os arqui- reconhecido. b
ofereceram escolaridade às mulheres, por exemplo, tetos, acompanha a obra, de sapatos sempre — as
até à Tanzânia, ao Mali, ao Burkina Faso, ao Uganda galochas não lhe assentam bem, acredita, conta um acarita@expresso.impresa.pt

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Que
Lisboa
é esta?

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A capital está mais cosmopolita do que nunca e entrou
definitivamente no mapa internacional. São cada vez mais
os turistas que chegam a Lisboa, mas com a nova avalanche
de visitantes começam a surgir também as crispações
e as críticas à falta de critérios e excessos neste sector

U
m casal de japoneses de meia-idade passa numa uma zona urbana) e a respetiva saída dos mora-
destas manhãs pela Rua dos Lagares, no castiço dores, uma população maioritariamente de classe
bairro da Mouraria, e é atraído por um prédio cor média-baixa, carenciada, que não vê os seus con-
de salmão. Na janela do terceiro andar, um gato tratos renovados. Esta realidade está a gerar uma
cinzento e branco insinua-se por trás de umas crispação entre moradores e turistas, mas que ain-
cuecas pretas de senhora que estão a secar ao sol. da parece longe da tensão que se vive em Barce-
De máquina apontada para cima, fazem um dis- lona ou em Veneza, onde cresce a ‘turismofobia’
paro para memória futura. Mas a sua atenção de- (aversão a turistas e ao turismo, pelos efeitos per-
mora-se mais nas dezenas de retratos a preto e versos da atividade na qualidade de vida dos mo-
branco dos moradores do prédio que ornamen- radores). Nas ruas de Barcelona há muito que os
tam a fachada. Estes são os rostos dos despejados visitantes são agraciados com frases escritas nas
do nº 25, pode ler-se em português e em inglês. paredes como: “Gaudi odeia-te”, “Chega de es-
Junto às imagens estão cartazes que gritam pala- trangeiros” ou “Turistas voltem para casa, bem-
vras de ordem: “‘Terramotourism’ — instruções -vindos refugiados”...
de emergência em caso de transformação urbana Por cá, na capital, ainda não se chegou a esse
produzida por sismo turístico”; “Não queremos ponto, mas há quem vaticine o mesmo caminho se
ser despejados da nossa Mouraria”; “Há proprie- não forem tomadas medidas para atenuar ou dimi-
tários de má-fé, comprem prédios devolutos, não nuir os impactos negativos do turismo.
se aproveitem dos prédios com inquilinos indefe- Este ano, com o aumento das queixas e protestos
sos”; “Os bairros não podem morrer, e isso acon- na praça pública contra os efeitos do turismo massi-
tece por causa da lei de Assunção Cristas e Passos ficado, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) come-
Coelho”... Claro que isto ‘é chinês’ para aqueles çou a tomar medidas. Desde 1 de agosto, os gran-
japoneses, que apenas sabem responder de onde des autocarros turísticos que entupiam as ruas es-
vieram num muito mau inglês e parecem maravi- tão proibidos de circular na zona da Sé e do Castelo
lhados com a velha e típica Lisboa. (à exceção dos autocarros panorâmicos), e este mês
O que eles talvez não suspeitem é que o mais esta mesma proibição deverá estender-se ao eixo
certo é que, daqui a cinco anos, quem apontar uma Cais do Sodré-Rua do Alecrim-Príncipe Real-Largo
máquina fotográfica (ou um selfie stick) a este mes- do Rato. Também os tuk-tuks, que têm sido alvo de
mo prédio apanhará na janela outros estrangeiros a inúmeros protestos das populações, estão interditos
espreguiçar-se ao sol, a estender toalhas de praia de circular nas imediações do Castelo, e o seu horá-
ou a espreitar a vista, que chega até ao Castelo e à rio de circulação está limitado das 9h às 21h.
Igreja da Graça. Serão turistas a fotografar turis- A verdade é que Lisboa está na moda, vibrante
tas, em mais um prédio que esteve para se trans- e mais internacional e disputada do que nunca. Até
formar este ano num negócio de alojamento local. Madonna escolheu a nossa capital para morar. Na
Mas, por intervenção da autarquia, o processo foi sua conta de Instagram, escreveu há poucos dias:
adiado por mais cinco anos. “A energia de Portugal é tão inspiradora. Sinto-me
É esta realidade que se observa atualmente nas muito criativa e viva aqui. Estou ansiosa por tra-
principais zonas históricas da cidade, sobretu- balhar no meu filme ‘Loved’ e quero fazer música
do nas freguesias lisboetas de Santa Maria Maior nova.” E juntou um coração à bandeira lusa.
(onde se inclui Mouraria, Alfama, Castelo, Bai- No ano passado estiveram 5,6 milhões de tu-
TEXTO BERNARDO MENDONÇA xa e Chiado) e Misericórdia (Bairro Alto e Prínci- ristas na capital (Barcelona recebeu 32 milhões),
pe Real, entre outros), em que a pressão turística e por todo o nosso país passaram 21 milhões, de
ILUSTRAÇÃO GONÇALO VIANA e a procura maciça dos estrangeiros pelo aluguer acordo com números do INE. O Turismo de Por-
INFOGRAFIAS JAIME FIGUEIREDO ou compra de casas está a acelerar a gentrificação tugal indica que no ano passado houve mais de 10
E MÁRIO HENRIQUES dos bairros (processo de valorização imobiliária de milhões de dormidas de turistas na cidade. E este

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ano, só nos dois primeiros meses, já houve mais de
CRESCIMENTO DO TURISMO EM LISBOA
um milhão de reservas, o que representa um au-
(janeiro-junho de 2017)
mento de 14,3%. Números que deverão engrossar
com a construção do novo aeroporto daqui a cinco
anos, a realização de inúmeros eventos internacio-
6.613.800 (12,4%) nais e a criação de um novo terminal de cruzeiros.
Mas a que custo? Nem todos se mostram satisfeitos
com a mudança que Lisboa tem sofrido. Estaremos
já com turismo a mais?
A secretária de Estado do Turismo, Ana Mendes
Godinho, é perentória: “Claramente temos muito
espaço para crescer. Quer em Lisboa quer no resto
do país.” E aponta a criação do novo terminal de
cruzeiros como uma aposta para captar as embar-
cações que começam ou que terminam viagem em
Lisboa para que a capital deixe de ser apenas um
porto de ancoragem e os turistas fiquem na cidade
6.108.400 (22,4%)
durante uns dias.
Sobre aqueles que apontam indícios de ‘turisti-
ficação’ e reações de ‘turismofobia’ em Lisboa res-
ponde: “Não caiamos em alarmismos. Basta com-
pararmos a nossa Praça do Comércio com a Praça
de São Marcos, em Veneza, para termos a noção de
que estamos em estádios completamente diferen-
tes. Estamos longíssimo desse fenómeno. O que
não quer dizer que não devamos trabalhar para
garantir que continuamos a ser aquele destino de
que toda a gente gosta e que reconhece ser autên-
tico. O turismo não interessa como valor abstrato,
mas como valor de criação de emprego, de mobi-
lização do desenvolvimento regional e também da
coesão territorial e envolvimento das pessoas.” À
2.905.400 (12,4%) sua voz junta-se Luís Araújo, presidente do Turis-
mo de Portugal, que aponta um estudo recente da
Associação do Turismo de Lisboa que “demonstra
que 86% da população vê o turismo como uma ati-
vidade benéfica para a cidade. São os próprios resi-
dentes a reconhecer as potencialidades do sector”.
O geógrafo Luís Mendes, académico do Ins-
tituto de Geografia e Ordenamento do Território
(IGOT) da Universidade de Lisboa e coordenador
do movimento “Morar em Lisboa”, mostra-se me-
Hóspedes Fluxo do aeroporto Dormidas
(número de pessoas (número de entrada (número de noites nos entusiasta e diz-se preocupado com o facto de
a dormir num de estrangeiros) passadas num não haver uma regulação estatal eficaz no que diz
estabelecimento) estabelecimento) respeito ao alojamento local. “Com este afluxo de
turistas, os proprietários optam por retirar as suas
casas do mercado de arrendamento a longo pra-

€466
zo, aproveitando a nova lei das rendas, e passam a
PROVEITOS orientar essa oferta para o mercado de alojamen-
(gastos e consumos no alojamento) to turístico, que cresce proporcionalmente todos
os anos. O problema é que é difícil contabilizar os
desalojados dos bairros históricos, porque é um
processo quase invisível, mas real e preocupante.
E isso pode afetar o próprio turismo. A população
dos nossos bairros históricos faz parte do próprio
imaginário do turista do alojamento local, que
quer imiscuir-se e estar na presença dessas po-
pulações. Para uma experiência mais típica. E se o
despovoamento já existia há anos, foi certamente

MILHÕES
agravado pelo turismo.”
De facto, não há números sobre este fenómeno
de esvaziamento de moradores de certos bairros
provocado pela ‘turistificação’, mas o último Cen-
sos, que data de 2011, aponta para outra realidade.
Existiam muitos prédios devolutos, abandonados
ou vazios nos bairros históricos, alguns dos quais
vieram a ser requalificados com a nova vaga de tu-
Percentagem de crescimento (22,1%) rismo. Na freguesia de Santa Maria Maior existiam
3498 casas vagas e 1290 que eram segunda habi-
FONTE: INE
tação. Hoje existem 2486 espaços para alojamento

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local registados. Na Misericórdia acontecia o mes-
PREÇO MÉDIO DE RENDAS EM LISBOA — T1/100M2 PREÇO MÉDIO DE VENDAS EM LISBOA — T1 /100M2
mo. Havia 2811 casas vagas e 1404 que eram segun-
(1º trimestre de 2017) (1º trimestre de 2017)
da habitação. Atualmente contam-se 2077 espaços
para alojamento local. Mas isto não significa que Santa Maria Maior €1280 (€12,8m2) Misericórdia €348.900 (€3489m2)
todos esses espaços vazios tenham sido aproveita- Avenidas Novas €1250 (€12,5) Santa Maria Maior €343.000 (€3430)
dos para esse fim. Parque das Nações €1230 (€12,3) Santo António €332.800 (€3328)
Helena Roseta, presidente da Assembleia Mu- Misericórdia €1220 (€12,2) Parque das Nações €293.700 (€2937)
nicipal de Lisboa, conhece bem o terreno e assu- Santo António €1160 (€11,6) Belém €289.500 (€2895)
me que tem sido confrontada com muitas pessoas Campo de Ourique €1110 (€11,1) Estrela €279.400 (€2794)
que estão a ser “postas fora de casa”, porque os São Vicente €1110 (€11,1) Avenidas Novas €268.300 (€2683)
seus contratos de arrendamento não estão a ser Estrela €1110 (€11,1) Campo de Ourique €251.100 (€2511)
renovados ou porque as rendas subiram para pre- Campolide €1060 (€10,6) Alvalade €251.000 (€2510)
ços impossíveis. “É o resultado da liberalização das Arroios €1040 (€10,4) São Vicente €245.400 (€2454)
rendas do antigo Governo. São centenas de pessoas MÉDIA €1030 (€10,3) MÉDIA €240.400 (€2404)
que estão nesta situação nos bairros históricos, o Areeiro €1030 (€10,3) São Domingos de Benfica €237.500 (€2375)
que é um drama, e é preciso tomar medidas.” Ro- Belém €1020 (€10,2) Areeiro €231.200(€2312)
seta refere-se à lei aprovada por Assunção Cristas, Carnide €1000 (€10) Arroios €231.000 (€2310)
no Governo de Passos Coelho, que entrou em vigor Alvalade €990 (€9,9) Lumiar €214.500 (€2145)
em 2012 e descongelou as rendas antigas para colo- São Domingos de Benfica €970 (€9,7) Carnide €213.100 (€2131)
car mais casas no mercado. E, com isso, deu mais Alcântara €950 (€9,5) Alcântara €212.700 (€2127)
liberdade aos proprietários de cessar os contratos Lumiar €940 (€9,4) Campolide €206.300 (€2063)
com os antigos inquilinos. Benfica €920 (€9,2) Ajuda €186.200 (€1862)
Este é o pior pesadelo de Carla Pinheiro, de 47 Penha de França €910 (€9,1) Benfica €183.700 (€1837)
anos, a residente mais nova do tal prédio da Rua Ajuda €890 (€8,9) Penha de França €182.700 (€1827)
dos Lagares, lisboeta dos sete costados, a viver na Beato €880 (€8,8) Beato €170.200(€1702)
Mouraria desde os 3 anos. Em novembro passa- Olivais €860 (€8,6) Olivais €170.000 (€1700)
do recebeu uma carta do senhorio, que adquirira Marvila €770 (€7,7) Marvila €145.600 (€1456)
recentemente o seu prédio, a comunicar “a opo- Santa Clara €750 (€7,5) Santa Clara €139.500 (€1395)
sição à renovação do contrato de arrendamento”,
FONTE: SIR — CONFIDENCIAL IMOBILIÁRIO FONTE: SIR — CONFIDENCIAL IMOBILIÁRIO
informando-a que teria de sair de casa num prazo
de um ano. As mãos de Carla tremem e os cigar-
NÚMERO DE ALOJAMENTOS LOCAIS EM LISBOA

9389
ros são consumidos rapidamente enquanto relata
(até agosto)
a angústia que ela e mais 15 famílias sentem desde
então. A viver com a mãe e o filho de 16 anos num
T2, por 250 euros — metade do seu ordenado míni-
mo —, sabe bem que se tiver de sair da atual mora-
da não encontrará teto nenhum no seu bairro nem
em qualquer outra zona do centro de Lisboa que
possa pagar perante os elevados preços do merca-
do. Na sua freguesia, a média é de 12,80 euros por
metro quadrado. Ou seja, uma casa como a sua, de
70 metros quadrados, vale cerca de 900 euros (896
euros, mais precisamente). Ou bem mais. Mas Carla
e os vizinhos do nº 25 da Rua dos Lagares não bai-
xaram a cabeça à sorte, juntaram forças e pediram
ajuda à autarquia, ao vereador Manuel Salgado e à O QUE A CIDADE LUCROU COM O AIRBNB?
Assembleia Municipal de Lisboa. Depois de meses O Airbnb, plataforma online para a intermediação de alojamento, entregou à Câmara Municipal
de reuniões, a Câmara ouviu os seus apelos e con- de Lisboa 2,8 milhões de euros em taxas turísticas desde maio do ano passado.
seguiu entrar em acordo com o senhorio e resolver Só entre maio e dezembro de 2016 deu à Câmara Municipal de Lisboa 1,74 milhões de euros (pela coleta
temporariamente a vida daquelas 40 pessoas. Isto da taxa de um euro por pernoita), e no primeiro trimestre de 2017 mais 1,1 milhões de euros.
porque havia a intenção por parte do proprietário Em Lisboa, o Airbnb registou no ano passado 718 mil hóspedes, que geraram uma faturação
de obter o licenciamento de um logradouro, ane- de 72 milhões de euros para os proprietários dos imóveis.
xo ao prédio, para exploração turística, e a Câmara Segundo um inquérito do Airbnb, os hóspedes que ficaram alojados em Lisboa gastaram 404 milhões de euros,
concordou em fazer “uma análise rápida e expedita deixando um impacto na economia da capital da ordem dos 476 milhões de euros.
do processo” em troca da garantia de um contrato FONTE: AIRBNB
por mais cinco anos para aqueles moradores. “São
os tubarões contra os peixinhos. Mas desta vez os
NOVOS REGISTOS DE ALOJAMENTO
tubarões não nos ganharam.” Carla, que tem ta-
tuada no braço esquerdo a Fada Sininho, de Peter
Pan, espera que haja um pó mágico nesta história 878
Santa Maria Maior
e uma abertura de olhos da autarquia para a situ-
ação. Não se imagina a viver noutro lugar da cida- 587 626
de. “Temos o direito de continuar a viver no nosso 707
585
bairro. Nascemos e crescemos aqui. No nosso pré- 505
dio somos todos como uma família, ajudamo-nos Misericórdia
uns aos outros. Se precisar, posso pedir à minha
vizinha de cima, a Olinda, para ir buscar a minha
mãe ao Centro de Dia. Outra vezes, quando sei que 2015 2016 2017
outra vizinha, uma rapariga de 11 anos, está sozinha
em casa, bato-lhe à porta e pergunto: ‘Marlisa, está FONTE: ASSOCIAÇÃO DO ALOJAMENTO LOCAL EM PORTUGAL

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tudo bem?’ Tudo isto é bonito, é a alma do bairro, e
INVESTIMENTO NO CENTRO HISTÓRICO ALOJAMENTO LOCAL EM LISBOA
não deveria ser destruído de forma cega em nome
DE LISBOA — EUROS/M2 (número de registos)
do dinheiro por senhorios de má-fé.”
(número de transações no 1º trimestre de 2016)
Carla caminha connosco pelas ruas da sua
Portugueses Estrangeiros Até 22 de agosto de 2017 Total Mouraria e abana a cabeça ao facto de “prédio sim,
prédio não” estar a ser transformado para acolher
<€1000 95% 5% Santa Maria Maior 2505 10.787 turistas ou residentes estrangeiros. “Eu não estou
contra o turismo, mas está a haver um desequilí-
€1000 a €2000 92% 8% Misericórdia 2079 10.482 brio, é uma avalanche, um terramoto. Transfor-
maram o nosso bairro nisto. É só alojamento lo-
€2000 a €3000 87% 13% Arroios 961 21.412 cal. São só prédios de luxo. Chega! Qualquer dia
não têm cá nenhum lisboeta, e isso não interessa
€3000 a €4000 76% 24% Santo António 840 8493 aos turistas, porque deixarão de encontrar alguém
para perguntar onde ficam os lugares que procu-
€4000 a €6000 64% 36% São Vicente 773 10.285 ram na cidade.”
O mesmo discurso tem Alessandra Almeida,
>€6000 41% 59% Estrela 522 13.093 uma brasileira de 39 anos a residir há 20 na Mou-
raria com o marido e os dois filhos. Ao balcão da
sua mercearia, situada no Largo das Olarias, aten-
FONTE: SIR — REABILITAÇÃO URBANA FONTE: ASSOCIAÇÃO DO ALOJAMENTO LOCAL EM PORTUGAL
de o senhor Luís, um velho freguês. Guardara para
ele um pão, um queijo de Nisa e ainda lhe avia uma

303,03
QUAIS AS NACIONALIDADES QUE MAIS COMPRAM IMÓVEIS EM LISBOA?
lata de atum. Também ela recebeu uma carta do
senhorio a pedir-lhe que deixasse a casa. Foi como
se lhe tirassem o chão debaixo dos pés. “Avisou-
CHINESES

-nos com dois meses de antecedência, disse-nos


que não era a Santa Casa da Misericórdia e que se
quiséssemos manter-nos na casa teríamos de pa-
gar um oitavo das obras que iria efetuar no prédio.
Fui informar-me com uma advogada da Junta de
Freguesia, soube que isso não era legal e consegui
prolongar o contrato por mais um ano. Mas sei que
mil euros (valor médio gasto em habitação) vamos ter de sair. Ele quer alugar o prédio a turis-
tas e eu não estou a conseguir encontrar casa no
ONDE COMPRAM bairro a um preço decente...” Atualmente, Ales-
Sobretudo em freguesias fora do centro histórico, sobressaindo Arroios com 20% do total de transações. sandra paga pelo seu T3 400 euros.
No entanto, destacam-se as compras que efetuaram na freguesia da Misericórdia (27% das transações) Entretanto, chega ao balcão um casal de jo-
vens turistas. Pedem uma garrafa de litro e meio de

265,5
água. Pela pronúncia, percebe-se que são france-
ses. Metemos conversa e ficamos a saber que San-
drine, de 28 anos, e Quentin, de 27, descobriram
FRANCESES

Lisboa este ano e que esta é a segunda vez que a


visitam. Ou melhor, desta vez estão decididos a
ficar. Ela quer desenvolver design por cá, ele quer
trabalhar como chefe de cozinha num estabeleci-
mento seu. Antes tinham passado uma temporada
em Berlim. “Apaixonámo-nos pela vossa cidade e
estamos à procura de casa para arrendar ou com-
mil euros (valor médio gasto em habitação) prar num destes bairros. O sol, a atmosfera, a cul-
tura mediterrânica, a história, a comida são algu-
ONDE COMPRAM mas das razões. E Lisboa inspira calma. Não tem o
Sobretudo no centro histórico: Misericórdia (23%), São Vicente (20%) e Santa Maria Maior (12%) stresse de Paris ou Londres.” Alessandra encolhe

222,3
os ombros. “Já viram? É demais. Os franceses estão
a comprar o nosso bairro, todos os dias há mais ca-
sos destes, mas somos nós que votamos nos nossos
NÓRDICOS*

políticos. Devia haver lugar para todos. Terei muita


pena se tiver de sair desta zona. Escolhi morar aqui
e é aqui que tenho o meu trabalho.”
Helena Roseta está solidária com a causa des-
tes moradores e os seus pedidos. “Não podemos
destruir comunidades na cidade. Interessa a to-
dos. Até ao turista, que quer ver cidadãos locais.
mil euros (valor médio gasto em habitação) De momento, a Câmara não pode intervir. Os pro-
prietários não são obrigados a comunicar à Câmara
ONDE COMPRAM a mudança de um edifício para alojamento local.
Procuram freguesias fora do centro histórico, como Arroios, Alcântara e Estrela (10%). Mas estou de acordo com a proposta de Fernando
Ainda assim, estão a comprar em força em Santa Maria Maior (19%) e São Vicente (14%) Medina para que o alojamento local passe a ser au-
torizado pelo município, para garantir a estabili-
dade e equilíbrio de certas zonas da cidade.”
*Bélgica, Holanda, Suécia, Áustria, Luxemburgo, Finlândia, Noruega e Dinamarca Eduardo Miranda, presidente da Associação de
Alojamento Local em Portugal (ALEP), mostra-se

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NÚMERO DE TURISTAS EM 2016
(em milhões)

32
BARCELONA

21
PORTUGAL

LISBOA

5.6

547.773 habitantes
1.609.000 habitantes
FONTE: INE

sensível a esta questão. “Não queremos que ne-


nhum bairro se torne monofuncional. Mas a po- Em 2016 foram histórico. Se antes a prioridade era vender o patri-
mónio disperso, agora a preocupação é reabilitar
pulação de que se fala ser a alma dos bairros his-
tóricos é socialmente carenciada e precisa de casas 10 milhões e arrendar esses imóveis a preços controlados. A
ideia é dar resposta à dificuldade de atualmente se
com rendas sociais, precisa de apoio estatal. A rea-
lidade do mercado de hoje não é compatível com de dormidas encontrar casas a valores acessíveis, devido à espe-
culação imobiliária e à maciça procura de turistas e
rendas de 50 ou 150 euros. Por outro lado, é pre-
ciso trazer novos habitantes para estas zonas com (pernoitas). de estrangeiros para alojamento ou compra de uma
segunda habitação. Recorde-se que a CML é o mai-
incentivos reais. Posso adiantar que 75% das ca-
sas que estão para alojamento local são muito pe- Este ano, só or proprietário imobiliário do país, com mais de 25
mil fogos. O atual presidente da Câmara, Fernan-
quenas. E, tal como estão, não dariam para serem
convertidas para alojamento tradicional de novas nos primeiros do Medina, afirma que o aumento do turismo é em
primeiro lugar “uma boa notícia” para a economia

dois meses,
famílias de classe média, que procuram casas com da cidade e “representa cerca de 80 mil empregos
espaço, elevador e garagem.” diretos”. Mas a menos de um mês das autárquicas,

houve mais
Não é preciso andar muito por Alfama para en- em que será novamente candidato pelo PS, Medina
contrar quem diga sem travão na língua: “Odeio afirmou ao Expresso que, para lidarmos todos bem

um milhão
turistas!” Kikas, de 39 anos, morena de longos ca- com o crescente fluxo de turismo e para que seja
belos pretos, empregada de limpeza, está sentada preservada ou melhorada a qualidade de vida dos

de reservas,
na soleira da porta de casa, na Rua de São Pedro. lisboetas, “é preciso mais investimento nas infra-
Vive num T3 que é da Câmara, por isso paga uma estruturas da cidade. Seja nos transportes públicos,

o que
renda em conta, 230 euros. A mesma sorte não tem que estão a sofrer a pressão de terem mais pessoas
a sua mãe, que foi forçada a sair da casa onde vi- a utilizarem-nos, seja mais investimento na higi-

representa
via. “Transformaram o prédio onde ela estava num ene urbana e mais habitação de promoção públi-
hostel. E ela teve de ir viver para uma casa muito ca e regulação do mercado de habitação.” E já fez a
pequenina. Os turistas invadiram o nosso bairro, promessa de construir mais 6000 fogos ao longo do
fazem demasiado barulho, exibem-se nus à janela
e não têm respeito por ninguém. Raios os partam.”
um aumento próximo mandato, se for eleito. “Mobilizámos cer-
ca de 300 milhões de euros de património muni-
A crescente pressão sobre o mercado de arren-
damento em Lisboa levou a Câmara Municipal a re-
de 14,3% cipal. Trata-se de terrenos ou edifícios que vão ser
reabilitados ou construídos e que permitem rendas
orientar a sua política em relação às casas que tem entre os 200 e os 400 euros por mês, enquadradas
espalhadas pela cidade, principalmente no centro no programa Renda Acessível. Queremos ajudar as

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classes médias e atraí-las para o centro da cidade.”
Ricardo Robles, o candidato do BE à autarquia,
A TAXA QUE que procuravam o sol e a praia. Bom, aí têm, este é o
retorno.” A seu ver, Lisboa está incomparavelmente
recusa o conceito de ‘turismofobia’ para Lisboa, LISBOA COBRA mais interessante do que há dez anos. “Porque tem
mas considera que não existe harmonia entre os
cidadãos e o turismo por culpa da política de Me-
AOS TURISTAS mais gente, de diversos sítios, porque há uma ideia
de movimento constante, de coisas novas, uma re-
dina. “Existe desconforto pela falta de limites e novação de espaços que abrem e fecham e de no-
regras. E os conflitos começam a surgir. O siste- vas zonas na cidade. Lisboa está a encontrar a sua
ma de transportes na cidade não está preparado VALOR DA TAXA melhor versão, que é a versão cosmopolita. Lisboa
para este aumento de população que nos visita. 1 euro por noite até ao valor máximo nunca foi tão brilhante como quando foi uma cidade
Basta passarmos no Martim Moniz e repararmos de 7 euros (sete noites seguidas cosmopolita, e isso é século XVI.” Mas, no entanto,
na fila com centenas de metros para o elétrico 28. por dormida e por hóspede) Mega Ferreira não acredita em entregar as decisões
Um drama para quem cá vive e para os turistas.” à lei do mercado, numa política de mão invisível.
Robles mostra-se igualmente preocupado com a TAXA MUNICIPAL TURÍSTICA “Tem de haver regulação e enquadramento entre a
habitação em Lisboa — “temos de salvaguardar o 16,7 milhões de euros obtidos com procura e a oferta. Tanto no alojamento temporário
direito à habitação na cidade da pressão turística e esta cobrança desde 2016 até março como nas low costs. Porque, se não forem controla-
especulação imobiliária” — e propõe que se distin- deste ano das, qualquer dia aterram no Rossio. São uma praga.
ga o que é alojamento local de turismo habitacio- Uma praga que transporta grande parte dos turistas
nal. “Vejamos: o princípio da partilha de casa, de QUANDO COMEÇOU para dentro da cidade.”
alguém que tem um quarto vago e recebe um turis- A SER APLICADA O arquiteto Manuel Aires Mateus, que com o
ta, é alojamento local. Outra coisa é quem adquire Aprovada em 2014, a Taxa Municipal irmão Francisco foi autor da nova sede da EDP, na
casas, compra prédios e explora-os numa lógica de Turística começou a 1 de janeiro de zona ribeirinha da cidade, considera “perigoso” o
indústria hoteleira. São realidades que deviam ser 2016, sobre as dormidas de turistas fenómeno da compra maciça de imóveis por parte
tratadas de maneira diferente.” nacionais e estrangeiros nas unidades de estrangeiros. “Estamos a vender as partes mais
João Ferreira, candidato pela CDU, junta outra hoteleiras ou de alojamento local centrais da cidade. Como se estivéssemos a trans-
crítica: a forma como tem sido gasta a taxa muni- formá-la num anúncio. Isso a prazo vai destruir
cipal turística, que já rendeu 16,7 milhões de eu- QUEM PAGA uma certa essência. Se quisermos que Lisboa seja
ros desde janeiro de 2016 até março deste ano e A taxa é aplicada por dormida e por uma cidade onde os lisboetas vivem, tem de haver
que serviu nomeadamente para a conclusão das hóspede, com idade superior a 13 anos, coragem na legislação e uma tomada de posição.”
obras do Palácio da Ajuda e do Museu Judaico. “A nos hotéis, hostels e apartamentos Como exemplo positivo de uma obra na cidade,
taxa tem um fim diverso do publicitado. Isto fica turísticos da cidade. A taxa sobre as para português, inglês ou francês ver, o arquiteto
mais evidente quando o seu uso tem sido direcio- chegadas ainda não passou do papel elogia o trabalho de António Costa na requalifica-
nado primordialmente para a promoção de novos ção do bairro do Intendente. “Não podemos ter uma
equipamentos turísticos, impulsionando o cres- QUEM COBRA A TAXA cidade em que os turistas andem do Castelo para o
cimento ainda maior do turismo, de forma desre- A liquidação e arrecadação da taxa Chiado e do Chiado para o Castelo. E depois vão ali
gulada e sem cuidar dos seus impactos.” Robles e de dormida compete às pessoas aos Jerónimos e já está. O Intendente foi uma ma-
Assunção Cristas, candidata pelo CDS, ou Teresa singulares ou coletivas que explorem nobra absolutamente genial. Não me interessa o seu
Leal Coelho, candidata do PSD, são de opinião se- os empreendimentos turísticos e os aspeto estético, se gosto do banco ou do candeei-
melhante. Ao Expresso, Cristas acusa Medina de estabelecimentos de alojamento local ro. Antes um lisboeta comum não ia ao Intendente
nada ter feito para preparar a cidade para o turis- passear ou beber um copo e hoje é uma atração na
mo. “Resumiu-se a fazer obra de cosmética, não ONDE TEM SIDO cidade. Não é tão interessante chegar a bairros con-
essencial. Cavalgou a onda, arrecadando receita APLICADO O DINHEIRO solidados e fazer uma intervenção. Devem abrir-se
com as várias taxas, sem ter uma visão de médio e Em projetos, estudos, equipamentos novas possibilidades.”
longo prazo.” Quanto à relação dos lisboetas com ou infraestruturas para a promoção A empresária Catarina Portas, há 12 anos à
os visitantes estrangeiros, considera que “os tu- e qualidade do turismo em Lisboa. frente das lojas Vida Portuguesa, eterna curiosa
ristas são genericamente muito bem acolhidos na Boa parte do dinheiro tem sido pela história da capital e pelos espaços genuínos
nossa cidade e sinalizam precisamente isso como investido no remate do Palácio que resistem ao tempo e às modas, encontra-se
um elemento muito positivo, mas em certos bair- da Ajuda, no Museu Judaico, neste momento a fazer um mapa com sugestões
ros há vozes críticas.” Cristas, que criou a nova lei na reabilitação da Estação Sul e Sueste de locais para (re)descobrir em Lisboa, ilustrado
das rendas, também ela alvo de críticas, diz ago- e no programa Lojas com História pelo francês Marin Montagut. “Não acho que haja
ra que é “a favor de uma diminuição da carga fis- turismo a mais em Lisboa. Penso sobretudo que
cal para estimular o arrendamento convencional, está mal distribuído. O problema é que há um tu-
mas contra matar-se o alojamento local, sobretudo rismo massificado, de grandes grupos, que é mais
através de regras gerais que se aplicam ao país in- complicado de encaixar em cidades antigas como
teiro”. Leal Coelho junta outra achega para “uma a nossa, com ruas estreitas, onde vivem pessoas.
senhora Lisboa”: “É preciso ação séria, conhece- Lisboa é uma cidade com todas as qualidades para
dora e coordenada, para evitar transformar a cida- um turismo mais alternativo, de pessoas mais
de num parque temático de massas, irreconhecível curiosas, que gostam de coisas diferentes, que não
e vazio de residentes, como acontece com Veneza. viajam para encontrar o mesmo restaurante e ti-
Já Barcelona inverteu recentemente a política libe- rar apenas selfies. Creio que esse é o caminho para
ral e está a procurar compatibilizar o turismo com o turismo em Lisboa, não é tão obvio, mas é um
a identidade local. Lisboa vai a tempo de evitar re- caminho mais interessante.” E conclui com uma
petir os erros dessas outras cidades.” pergunta: “Valerá a pena fazer um investimento de
O escritor, gestor e jornalista António Mega Fer- milhões num novo terminal de cruzeiros quando
reira, que chefiou a candidatura de Lisboa à Expo- se sabe que o turismo de cruzeiros contribui bas-
98 e foi comissário executivo da Exposição Mundial, tante para criar pressão sobre determinadas par-
tem uma opinião “absolutamente positiva” em rela- tes da cidade? Um tipo de turismo que não deixa
ção ao turismo que chega atualmente a Lisboa. “As praticamente dinheiro nenhum. É por aqui que se
mesmas vozes que gritam contra o turismo a mais deve apostar?” b
são aquelas que durante décadas clamaram por uma
política de turismo que não se limitasse a acolher os bmendonca@expresso.impresa.pt

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O bom
JESSE D. GARRABRANT/NBAE/GETTY IMAGES

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gigante
Kevin Durant nasceu numa das mais violentas cidades da América
e foi abandonado pelo pai quando tinha menos de um ano de idade.
Parecia que estava tudo contra ele até que o basquetebol o salvou,
acabando por conquistar a América dos bairros humildes a Silicon
Valley. Campeão e eleito o melhor entre os melhores do mundo
durante a última final da NBA, “aconteça o que acontecer
ele já venceu”, conta um dos seus treinadores

TEXTO RICARDO LOURENÇO CORRESPONDENTE NOS EUA

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N
Após uma curta sessão de perguntas e respos- contorcionista com movimentações tão graciosas
tas no centro comunitário, regressariam todos à que parecia ter um corpo liquefeito.
casa amarela, propriedade da avó Barbara e ponto As comparações com criaturas imaginárias são
de referência dos Durants. “Foi aqui, por exemplo, frequentes. No ano de estreia, em 2007, era conhe-
que a minha tia Pearl morreu após uma longa luta cido como o unicórnio, graças ao talento mítico.
contra o cancro”, lembrou Kevin, enquanto levan- “Tornou-se o menino bonito da NBA. O bom
tava a T-shirt para mostrar a imagem da habitação gigante que põe todos à frente dele, que raramen-
tatuada no abdómen. te diz não, que é incapaz de usar o tamanho para
Terminado o desabafo, KD voltou a concentrar-se bater em alguém. Pela primeira vez, pensou em si
no merchandising, uma das atividades paralelas que próprio quando se mudou para Oakland. Percebeu
o levam a viajar por todo o mundo, principalmente que era tempo de ficar para a história. E ninguém
durante o defeso, entre julho e setembro — em 2014, o pode acusar de traição ou ingratidão, pois ele é
assinou um contrato de patrocínio com a Nike no va- o exemplo clássico do menino oriundo do bair-
lor de 300 milhões de dólares, válido até 2024. ro complicado, que, contra tudo e todos, venceu
Consagrado como o novo príncipe do basquete- na vida”, afirma ao Expresso Taras Brown, o velho
bol americano em junho, após vencer o seu primei- treinador, que hoje trabalha para o pupilo na orga-
ro título de campeão e arrebatar o troféu de Most nização de eventos de caridade. “A vida dele come-
Valuable Player (MVP), ou seja, o melhor entre os çou como um filme de terror, mas teve um desfecho
melhores do mundo, e logo na época de estreia ao feliz. A sua ida a Seat Pleasant serve para lembrar
serviço dos Golden State Warriors, Durant revita- isso mesmo. Que, no fundo, aconteça o que acon-
lizou uma carreira profissional que principiou há tecer, ele já venceu.”
o número 108 da Sultan Avenue, em Seat Pleasant, dez anos em Seattle e floresceu em Oklahoma City.
a capital do crime do estado de Maryland, amon- Visto como eterna promessa, KD somava recor- UM CAFÉ ÀS TRÊS DA MANHÃ
toam-se fãs e repórteres oriundos de mais de uma des individuais, mas nunca atingira o topo da mon- Wanda possuía dois empregos, que lhe esticavam o
dúzia de países. A pequena casa forrada com ta- tanha. A mudança para os Warriors, equipa sedia- dia das três da manhã às 19h. Mal ouvia o desper-
pumes de vinil amarelo é o ponto de partida para da em Oakland, arredores de São Francisco, serviu tador, Kevin, ainda adolescente, pulava da cama,
a viagem ao mundo de Kevin Durant, a estrela da de atalho para lá chegar. Juntamente com Stephen calçava os ténis estafados de tanto treino, vestia a
Liga Profissional de Basquetebol Americano (NBA, Curry, Klay Thompson e Draymond Green o con- T-shirt XXL, propositadamente gigante para que
sigla em inglês). junto californiano foi rotulado de “Dream Team” durasse, e ia buscar um café para a mãe à 7-Eleven
O ambiente festivo contrasta com o pesadelo vi- (equipa de sonho), tal o domínio sobre os adversá- (loja de conveniência).
vido horas antes, após a morte de Jamal Barnes, um rios. Quando, no terceiro jogo das finais (um frente Ordem cumprida, voltava a dormir. Quatro ho-
filho da terra, esfaqueado em plena luz do dia por a frente decidido à melhor de sete), ele bailou em ras depois, partia para a escola de mãos dadas com
dois homens que se puseram em fuga. frente a LeBron James e saltou sem balanço para o irmão, Tony, e a avó, Barbara, que passava tempo-
Confirmando a má disposição geral, uma mati- um lançamento de três pontos, deu a entender que radas com eles, garantindo que a rotina mascarava
lha de rafeiros subnutridos rosna ao grupo de foras- o equilíbrio de forças na rivalidade entre os dois es- as dificuldades. Até porque Wanda não tinha alter-
teiros que lida como pode com o choque cultural, tava prestes a alterar-se — ambos estão para o bas- nativa, visto que Wayne, o ex-companheiro e pai de
meia hora depois de terem saído dos átrios luxuo- quete como Ronaldo e Messi para o futebol. KD, desertara quando a estrela da NBA tinha menos
sos dos hotéis no centro de Washington. A polícia O comentador Charles Barkley, uma velha glória de um ano, deixando a mulher com duas crianças
desconfia de um ajuste de contas levado ao extremo da NBA, jurou a gritar que se tinha acabado de as- nos braços e contas por pagar.
e reforçou a presença nas ruas da Cidade da Exce- sistir a um número de circo, levado a cabo por um “O meu pai tinha 23 anos. A Wanda era dois
lência, como lhe chamam os autarcas locais. Mais anos mais nova. Ele não estava preparado para as
realistas e armados até aos dentes, os agentes cami- responsabilidades”, confessa-nos com ar nervoso,
nham aos pares, certificando-se de que não há re- enquanto ajusta os óculos de massa. “A pensão de
presálias contra amigos ou familiares dos atacantes. alimentos nunca faltou.” O mesmo não se pode di-
Com direito a segurança privada, o evento, re-
alizado em meados de maio, expôs de propósito as Bailou frente zer da companhia, um distanciamento que justifica
pelo facto de o pai ter refeito a vida com outra mu-
origens humildes do atleta, que, apesar das circuns-
tâncias, insistiu em lançar os seus KD 10, a linha a LeBron lher e mais dois filhos. Mesmo assim, permaneceu
na vizinhança. Por vezes, cruzavam-se. Amante das
pessoal de ténis da Nike, no local onde nasceu, ris-
cando do mapa cidades mais seguras e glamorosas James e saltou velocidades, Wayne gostava de acelerar em desca-
potáveis ‘tunados’ nas oficinas locais. Kevin olhava
como Nova Iorque ou Los Angeles.
Cinzentos e brancos, tamanho 55, Kevin exibia sem balanço estarrecido. Wanda ignorava.
Segundo o último censos, de 2010, um em cada
o primeiro par, preparando-se para servir de guia
à comitiva. Enquanto oferecia balões às crianças, para um três rapazes cresce sem pai nos Estados Unidos,
“uma epidemia de que poucos falam”, afirmou
explicava aos mais velhos a razão de ser de tantas
casas abandonadas. Mostrou o ginásio do centro lançamento Oprah Winfrey, a antiga imperatriz dos talk shows
americanos, numa entrevista recente à “Vanity
comunitário, onde tudo começou, e parou na “co-
lina”, no cruzamento entre a rua L e a BalsamTree de três pontos. Fair”.
Vítima deste sistema, a mãe-coragem improvi-
Drive, local conhecido como a ‘câmara de tortura’,
onde o treinador Taras Brown o obrigava a ganhar O equilíbrio sava, mudando várias vezes de casa na procura in-
cessante da renda mais baixa, algo que os deposi-
músculo. Subidas a ‘sprintar’, 20 flexões no topo e
descidas vertiginosas de costas. Cinquenta repeti- de forças na tava em zonas pouco recomendáveis. De tal forma,
que os serões em família eram atormentados pelos
ções. Sem pausa. Caso parasse, recomeçava de novo.
E, quando Brown não podia vir, a mãe, Wanda, ves- rivalidade tiroteios nas ruas, onde os gangues disputavam su-
premacia na rota do narcotráfico — “gente de fora”
tia o fato de treino e arrastava-o.
“Um dia, quando tiver filhos, ele voltará aqui entre os dois que se está a marimbar para a qualidade de vida em
Seat Pleasant, garantem ainda hoje os moradores.
para treinar com eles. É uma questão de honra”, diz
ao Expresso Charlie Bell, velho amigo e um dos as- estava prestes Naquela altura, o crime organizado ‘contrata-
va’ os mais novos para operarem como ‘mulas’ no
sessores do jogador que coorganizaram aquele tour
por Seat Pleasant. a alterar-se transporte de estupefacientes ou ‘sentinelas’ na
deteção de “five O” — alcunha dada aos agentes da

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ESTRELA O nº 35
dos Golden State
Warriors, onde joga
desde 2016
EZRA SHAW/GETTY IMAGES

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polícia. Quando sentia que o recrutamento dos fi- SOLIDARIEDADE
lhos estava para breve, Wanda realojava a família. Kevin Durant em 2015
Mas, ao contrário de Tony, Kevin não passava a participar num
despercebido. Aos 10 anos já media 1,85m e o jeito evento de “food and
desengonçado deixava-o na mira dos rufias, que se fun” para crianças de
entretinham a gozar com ele, chamando-o potro, Oklahoma City
gazela, girafa… KD ficava calado. O trajeto casa, es-
cola, ginásio fazia-o sempre cabisbaixo. E quando
chegava tarde, já sabia que tinha de ‘sprintar’ em
direção a casa, porque vinham atrás dele com pit-
bulls pela trela.
Refúgio no princípio, o basquetebol tornar-se-ia
uma paixão. De tal forma que aos nove anos prome-
teu à mãe que tudo faria para entrar na NBA. Wanda
avisou-o: “Queres ser o novo Michael Jordan? Per-
cebes a vida de trabalho que tens pela frente? Pre-
para-te! Eu não te darei um segundo de descanso”,
conta a própria num resumo de vida publicado no
seu site ‘Wanda Durant, the Real MVP’.
De imediato, matriculou o filho no centro comu-
nitário de Seat Pleasant, cujos treinadores da equi-
pa de basquetebol, os Jaguars, tinham fama de polir
talento em direção aos grandes palcos.
Chucky Craig era um deles. Aos 35 anos seria
assassinado por aqueles malfadados gangues, algo
que ainda hoje KD não esquece, fazendo questão de
jogar com aquele número na camisola.
Taras Brown, ou “Coach” Brown, o mentor so-
brevivente, ainda se lembra da primeira vez que
deitou o olho ao diamante em bruto. “Ele entrava
mudo no ginásio e desatava a fazer lançamentos de
três pontos. Só partia para o próximo exercício de-
pois de acertar dez consecutivos, o que acontecia
em 99,9% das vezes”, diz-nos. “Era uma esponja.
Todos os dias queria saber o que tinha feito de er-
rado, mesmo quando ganhávamos os jogos com o
dobro dos pontos da equipa rival.” Brown reparou
também no corpo que poderia ser moldado em algo
nunca visto: um atirador certeiro com mais de dois numa mansão com vista para a baía de São Francis-
metros, agilidade, toque de bola e “uma envergadu- co, celebrou a realização desse sonho.“Desde sem-
ra de um caça F-16 (2,25m)”, parodia. pre que eu e a minha família vivemos tempos difíceis.
A entrega gerou um sucesso meteórico, de tal Mas todos resistimos. Todos continuamos de pé.”
forma que até os chefes dos gangues se aperceberam
que o tal trinca-espinhas carregava a equipa local A ABERRAÇÃO
às costas, ordenando a todos os membros para que
o deixassem em paz.
A bem dessa serenidade, aos 16 anos KD fez as pa-
zes com o pai, numa altura em que já era conheci- Após a
Apesar do salvo-conduto, o jovem não se iludia
e sonhava partir dali o mais cedo possível. De tal
do como uma das maiores promessas do basquete-
bol americano. conquista do
maneira que, nos dias em que conseguia sair um
pouco mais cedo, viajava até ao final da linha do
Quando saltava sem impulsão para fazer o lan-
çamento, as pontas dos dedos da mão direita, que campeonato,
metro, até às profundezas do subúrbio de Washing-
ton, um trajeto que se assemelha a uma viagem num
normalmente aconchegam a bola, ultrapassavam
os três metros. E na hora de correr fazia-o com a a estrela
ascensor social.
Após passar-se pela cintura formada por cida-
mesma rapidez dos bases, os ‘pequenotes’ de um
metro e oitenta que, por norma, organizam o jogo decidiu baixar
des complicadas como Seat Pleasant, entra-se na
América dos bairros cookie cutter, repletos de viven-
e se mantêm ao largo do reino de gigantes que or-
bitam o cesto. Como fazia tudo bem, batizaram-no o salário
das geminadas de estrutura prefabricada, copiadas
umas das outras e rodeadas de campos de golfe.
de “Freak” (aberração), a tal ponto que quando saiu
do liceu Montrose Christian School, em Maryland, de 36 milhões
Chegado ao destino, ele caminhava deleitado,
fechando os olhos enquanto saboreava o perfume
colocou metade do país a roer as unhas à espera de
saber qual a sua próxima paragem. anuais para
das flores frescas dos quintais. Depois parava para
observar os miúdos brancos a jogar basquete, das
Em 2006, escolheria a Universidade do Texas,
seguindo-se o ano da explosão ao vencer o troféu 26, para que
poucas paixões em comum entre os dois mundos.
“Ele estava sempre a dizer que, quando chegas-
National Player of the Year (melhor jogador do ano).
Entretanto, a NBA salivava e na noite de 28 de os gestores
se à NBA e fosse pago condignamente, investiria em
paz e sossego. Idealizava ter uma casa onde ele, os
junho de 2007, durante o draft (um sistema de alo-
cação de jogadores nas 30 equipas da liga profis- pudessem
amigos e familiares mais próximos pudessem vi-
ver”, conta-nos Charlie Bell.
sional, que normalmente permite aos conjuntos
mais mal classificados na época anterior acederem manter outros
Há três anos, durante o discurso de entrega do
prémio MVP da época regular, KD, que hoje vive
aos melhores jovens), foi selecionado pelos Seattle
SuperSonics. jogadores
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desvanecer-se... Foi duro. Ele tinha posto OKC no KD entrou em Silicon Valley aconselhado pelo
mapa — bem sei que não é uma imagem muito colega de equipa Andre Iguodala, um dos mais te-
simpática [risos]. A cidade nunca tinha sido tão midos defesas da liga, astuto no roubo de bola, mas
falada. Sabia que a partir dali voltaríamos à esta- também na gestão de poupanças, investindo no
ca zero.” Twitter, Facebook e na Tesla. A ligação entre am-
No último campeonato, os “Thunder” não pas- bos estreitou-se a tal ponto que, após a conquista
saram da primeira ronda dos playoffs, apesar da as- do campeonato em junho, a estrela decidiu baixar
censão de Westbrook, o ‘irmão’, entretanto, desa- o salário de 36 milhões anuais para 26, de maneira
vindo. KD revelou que se juntaria aos Golden State a que os gestores da equipa pudessem manter pe-
Warriors, a constelação de estrelas que deixara fu- ças como Iguodala.
gir o título para os Cleveland Cavaliers de LeBron Numa entrevista ao site da NBA justificou a de-
James. cisão. “Quero que esta equipa se mantenha. Que-
Charlie Bell recorda como o amigo optou por se ro também ter a certeza que o Andre, o Shaun (Li-
isolar, preferindo o silêncio à polémica ou discus- vingston) e o Steph (Curry) recebem o que lhes é
sões públicas com antigos companheiros. “Ele veio devido. Todos tinham salários inferiores ao que
para a zona da baía e instalou-se numa mansão no mereciam e a certa altura é natural que eles quei-
alto de uma colina com a Wanda e o seu empresá- ram mais. É legítimo. Portanto, decidi dar um pas-
rio Rich Kleiman, e com um grupo restrito, do qual so atrás, deixar cair os cifrões e ajudar a direção a
faço parte.” manter esta equipa. Além disso, a decisão é mi-
No verão passado, num artigo do “The Players' nha, o dinheiro é meu e faço com ele o que bem
Tribune”, um projeto digital cujo conteúdo é escri- entender.”
to, exclusivamente, por atletas profissionais, Ke- Os conselhos de Iguodala foram o primeiro ca-
vin pôs uma pedra sobre o assunto: “Estou numa pítulo da aventura empresarial, algo que fez com
fase da vida em que preciso de uma oportunidade que ele reconstruísse o seu grupo de amigos, hoje
para evoluir e ganhar títulos. Sair da minha zona repleto de titãs do sector tecnológico.
de conforto, para uma nova cidade, para uma nova São os casos de Ben Horowitz e Ronald Conway,
comunidade, onde essa possibilidade é real, é mui- dois dos mais conhecidos venture capitalists ameri-
LAYNE MURDOCH/NBAE/GETTY IMAGES

to importante.” canos (investidores que fornecem capital a startups


ou pequenas empresas com necessidade de expan-
O MONGE são), Joe Lacob, sócio maioritário dos Golden State
A solidão estendeu-se às redes sociais. Nada de Ins- e investidor em Silicon Valley, e Tim Cook, o diretor
tagram ou Twitter, onde, entretanto, regressou para executivo da Apple.
agrado dos cerca de 17 milhões de seguidores. Um Aparentemente oriundas de universos distintos,
ano antes terminara o noivado com Monica Wright, as faunas de techies e de atletas misturam-se com
também ela jogadora profissional de basquete- facilidade. “Talvez porque, em alguns casos, parti-
bol, culpabilizando-se pela rutura: “Não conseguia lhamos origens humildes e sabemos o trabalho que
amá-la. Não a amava da maneira certa.” deu chegar aqui”, esclareceu Durant, numa entre-
A vida regrada com pouco para contar além dos vista ao canal desportivo ESPN. Cook, por exemplo,
O dinheiro começava a jorrar. Logo após aquela treinos e das tardes a descontrair no gigantesco nasceu em Robertsdale, no estado do Alabama, no
noite, ele assinou o primeiro contrato de patrocínio terraço com um churrasco em inox do tamanho de seio de uma família humilde, cujo parco orçamento
com a Nike por 60 milhões de dólares. um autocarro, granjeou-lhe uma nova alcunha: o forçava-o a estudar e a trabalhar.
Os cifrões não o distraíam, que o diga a con- “monge”. Apesar do luxo acumulado, do Tesla preto Com pouco para oferecer, a povoação celebra,
corrência, pois logo na época de rookie, a primeira, estacionado na garagem à piscina com vista para o ainda hoje, o filho pródigo, tendo oficializado a data
conquistou o prémio revelação. O percurso ascen- Pacífico, a rotina, mas não só, lembrava-lhe a vida de 10 de dezembro como “o dia do senhor Timo-
dente de Kevin contrastava com o da equipa, que em Seat Pleasant. thy Cook”. Seat Pleasant também não esquece KD.
procurava reorganizar-se numa nova cidade, visto Sempre que descia lentamente no carro elétrico No passado dia 17 de agosto, realizou-se na Ci-
que Seattle perdera relevância económica. de sonho pela avenida 73 em Oakland, junto à in- dade da Excelência a Parada do Dia de Kevin Du-
Oklahoma City acenou com os petrodólares e a terceção com o MacArthur Boulevard, os miúdos do rant. A banda do liceu Montrose Christian School
estrutura mudou-se do verdejante litoral Oeste para sopé da colina largavam tudo, pegavam nas bicicle- agitou as ruas e pôs toda a gente a dançar, acom-
um estado recôndito, conhecido pela gastronomia tas e ensaiavam corridas com ele. Dada a má fama, panhada por músicos locais espalhados por uma
rica em fritos e pelo vale dos tornados que todos os nem todos gostam de passar por aquela zona da ci- dúzia de palcos, ligados por bancas de comida,
anos gera mortes e estragos abundantes. dade. KD, pelo contrário, sente-se em casa. “É como onde imperavam a galinha frita, os hambúrgueres
Nove anos mais tarde, depois de várias finais se tivesse regressado às origens”, considera Bell. e os cachorros quentes. A melhor, aparentemente,
perdidas, a estrela questionava se algum dia seria Com mais de 150 milhões de dólares amealha- estava montada em frente à casa da avó Barbara,
coroado campeão, numa cidade que nunca vence- dos até hoje na NBA — cerca de 200 milhões estão que, embora já não viva ali (aluga a casa a amigos),
ra nada desportivamente e ao leme de uma equipa a caminho fruto da ligação aos Warriors —, juntou o fez questão de marcar presença, mostrando-se in-
que, à exceção de Russell Westbrook, a quem ele útil ao agradável na Califórnia, somando aos títulos cansável sempre que alguém lhe pedia uma foto ou
chamava “irmão mais novo”, parecia não ter sufici- no campo a oportunidades de negócio em Silicon um autógrafo.
entes atores secundários. Em julho do ano passado, Valley, assegurando-se que Seat Pleasant é apenas Bell representou KD, explicando que ele estava
o herói de OKC anunciou a saída e transformou-se uma memória terna do passado e não um plano B numa ação de promoção da NBA, na Índia. Quando
em vilão no estado cuja imagem no mapa se asse- de futuro. lhes contou pormenores de outras longas viagens
melha a um revólver. Vários jogadores profissionais de basquetebol ar- em nome do basquetebol americano, os presentes
Dono da Two Rivers Arms, uma empresa de ar- ruinaram fortunas e acabaram no buraco de onde arregalaram os olhos, embevecidos. No final, recor-
mamento, o congressista Steve Russell, eleito pelo saíram. Allen Iverson, por exemplo, o base dos Phi- dou-lhes as palavras do astro em 2014, na entrega
distrito que alberga Oklahoma City, explica ao Ex- ladelphia 76ers, que brilhou na NBA entre 1996 e do prémio MVP: “Não se esqueçam: apesar das di-
presso como é que um fanático pelo clube viveu 2010, queimou 200 milhões de dólares, a tal ponto ficuldades, todos iremos resistir e todos continua-
aquele momento. “Foi a cidade onde nasci e cres- que durante uma audiência em tribunal em 2012, a remos de pé. O Kevin recorda Seat Pleasant todos os
ci. Foi aqui que comecei a minha carreira como propósito de um divórcio litigioso, o juiz concluiu dias. Ele tem muito orgulho em vocês.” b
militar e depois como político. Ver a nossa estrela que o indivíduo não tinha dinheiro nem para com-
sair, ver a possibilidade de vencer o campeonato prar um cheeseburger. e@expresso.impresa.pt

E 47

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Imagine que tem um universo dentro da cabeça.
O que é que faz para o conhecer e estudar? A resposta
é a que os cientistas do Programa de Neurociências
da Fundação Champalimaud estão a dar há dez anos

O desco E 48

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GETTY IMAGES

nhecido E 49

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NEURÓNIOS Nos trabalhos mais
cerebrais, com as deadlines mais
apertados, fazemos o contrário
do treino saudável. Estamos sempre
a queimar o cérebro e os neurónios

E 50

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D
e que falamos quando falamos de cérebro? Falamos de acordo com esse ambiente e esse envolvimento.
do mais complexo órgão jamais criado no mundo tal No entanto, começa a ser cada vez mais evidente que
como o conhecemos. Mas falamos também do mais o cérebro não é apenas isso no sentido de ser uma
misterioso e desconhecido dos órgãos que compõem estrutura de input e output. É também uma estrutu-
o ser humano. Os estudos avançam, e sabe-se hoje ra que produz alguns elementos de comportamento
muito mais do que ontem sobre ele, no entanto, ao que são autónomos, que não dependem apenas do
mesmo tempo, crescem as limitações para o estu- que está a acontecer fora mas que existem por si só.”
darmos. As questões multiplicam-se e são a melhor As imagens utilizadas para definir o cérebro são
forma de partir para qualquer projeto científico que muitas, mas nenhuma se afasta da complexidade
tenha o cérebro no centro de análise. que ele enceta. “O modo como penso sobre o cé-
No Programa de Neurociências da Fundação rebro é como uma coleção de neurónios interco-
Champalimaud trabalham vários grupos de cien- nectados que transportam informação e que a pro-
tistas na procura de respostas para as mais variadas cessam e transformam”, afirma Megan Carey, que
questões que o cérebro levanta. Falámos com seis estuda a base neural do movimento, um trabalho
deles para tentar entender o que é que já se sabe que o cérebro faz ao retirar informação dos nossos
sobre ele. Pouco, muito? Depende do nosso grau sentidos e do ambiente que nos rodeia e, através de
de conhecimento e depende também de quão fas- circuitos de neurónios conectados, transforma es-
cinante essa informação pode ser. Uma coisa é cer- ses inputs em movimento.
ta, o cérebro ainda é esse desconhecido. Zachary Mainen, o nova-iorquino que dirige o
“Sabe-se hoje muito mais do que já se soube so- Programa de Neurociências da Fundação Champa-
bre o cérebro, sobretudo a nível de ligações e da geo- limaud, diz que o cérebro é o órgão do pensamen-
grafia das coisas. Ou seja, onde é que estão certo tipo to, das emoções e de praticamente tudo. “Toda e
de células e neurónios e quais são as ligações deles a qualquer experiência que façamos está de alguma
outras zonas do cérebro. Mas, em termos de função forma ligada ao cérebro. Tudo o que nos acontece
e de processos, ainda temos muito para descobrir. tem que acontecer também no cérebro. Mas a rela-
Sabemos mais ou menos como funciona a memória, ção daquilo que experimentamos e o nosso cérebro
TEXTO por exemplo, sabemos como decidimos e fazemos é algo que ainda não compreendemos. E é difícil
ALEXANDRA CARITA ações. No entanto, num contexto do dia a dia, está percebermos isso, porque o cérebro é a coisa mais
por descobrir como é que conseguimos tomar tantas complicada que conhecemos. Tem dez triliões de
decisões muito rapidamente ou como conseguimos conexões, tem dez mil milhões de células em cor-
perceber e reconhecer a cara de uma outra pessoa respondência umas com as outras, a falarem e a
muito mais rápido do que qualquer computador no dialogarem. E só conseguimos observar e perce-
mundo. Isto porquê? Porque há processos em termos ber muito poucas desses mil milhões de cada vez.”
de dinâmica que vão para lá do que é computacional Por outro lado, avança Rui Costa, nós usamos o
que acho que ainda não compreendemos”, começa cérebro para descobrir como é que o nosso cérebro
por dizer Rui Costa, codiretor do Centro de Neuro- funciona. “Será que há aí alguma limitação tam-
ciências e vencedor da Medalha de Ariëns Kappers bém? Será que uma coisa não se pode compreen-
atribuída pela Academia Real de Artes e Ciência da der a ela própria?”, filosofa. “Uma estrutura de uma
Holanda, tornando-se, depois de António Damásio, certa complexidade consegue compreender-se a ela
o segundo português a recebê-la. própria?”, insiste e responde. “Neste momento toda
“À medida que se conhece mais, mais noção se a gente tenta formas criativas de se aproximar da
tem das limitações”, frisa o investigador. Porém, explicação de como funciona e para que serve essa
“começamos a saber hoje melhor o que é que é estrutura.”
desconhecido. Pensava-se que se conhecêssemos Para uma primeira abordagem ao estudo do cé-
exatamente todas as ligações de áreas do cérebro rebro, a tecnologia é muito importante para saber-
a outras áreas e de uns neurónios a outros que irí- mos como é que as coisas funcionam e para medir-

O cérebro tem amos perceber como é que ele funciona. Mas não.
Estamos a chegar à conclusão de que isso é insufici-
mos e conhecermos a geografia e os mapas que lá
existem. Mas o ponto de vista da complexidade é tal

dez triliões de ente. Ou seja, é necessário fisicamente saber como


é que o cérebro está ligado, mas não é suficiente
que tem que haver outras disciplinas como a Mate-
mática e a Física a ajudar. “Imagine como estudar

conexões. Tem para percebermos como funciona”.


E são várias as razões por que é tão difícil ace-
um universo em que há leis ou regras que são mais
independentes da nossa própria opinião ou obser-

dez mil milhões der a esse mistério. Uma delas é porque o cérebro
como órgão, o sistema nervoso em si, é muito, mui-
vação? Como é que as explicamos. Isso é verdadei-
ramente importante de saber”, continua Rui Costa,

de células em to complexo. As sinapses, que são as ligações entre


os neurónios, são da ordem de grandeza do número
contando-nos quais são as áreas onde se avançou
mais no estudo do cérebro: “As áreas dos sentidos,

correspondência de estrelas no universo. “É como se cada um de nós


tivesse um universozinho dentro de nós e tivésse-
ou seja, as que nos permitem perceber quais os sec-
tores do olfato, do gosto, quais é que são os fotorre-

umas com mos que o descobrir e estudar”, continua Rui Costa.


Já Albino Maia, outro investigador principal da
cetores na retina, como é que se processam certos
processos auditivos. É o mais fácil porque nós perce-

as outras. E só Fundação Champalimaud, cujo programa de Neuro-


ciências faz agora precisamente dez anos, conside-
bemos esse processo, é o sentir o mundo. Tinha que
haver ali qualquer coisa mecanicamente falando que

conseguimos ra que não há distinção entre nós e o nosso cérebro.


“Nós somos também o nosso cérebro. E aquilo que
permitisse que isso acontecesse”, explica.

observar somos é em grande medida determinado pelo nosso


cérebro em interação com aquilo que temos à nossa
COMO FUNCIONAM OS SENTIDOS
Mas é Zachary Mainen quem nos explica como fun-

e perceber volta”, diz. “O cérebro é classicamente visto como


uma estrutura que recebe e interpreta a informação
cionam os sentidos. Comecemos pelo cheiro. Exis-
tem no nosso cérebro milhares de genes diferentes

muito poucas do ambiente em que se encontra e que produz com-


portamentos, emoções e respostas menos tangíveis
e cada um deles tem um recetor codificado — um
recetor é como um buraco com uma molécula que

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e catalogar aquilo que se está a cheirar.” O gosto é
muito mais simples. Existem cinco sabores: salgado,
doce, amargo, ácido e umami (o chamado quinto sa-
bor que permite que as coisas saibam melhor, é qua-
se como um refogado). A transmissão desses sabo-
res para o cérebro funciona do mesmo modo que o
cheiro. Vamos ao ouvido. O som começa no ouvido
com uma onda de pressão, passa por uma membra-
na que vibra como um tambor ou um microfone, e
transforma-se em frequências. Há células para bai-
xas frequências e para altas frequências (sendo es-
tas as que desaparecem quando ficamos velhos e
por acaso fomos a muitos concertos de rock). Esses
sinais são recebidos pelo cérebro que os lê como um
espectro de frequências, como uma aparelhagem
estéreo. Dentro do cérebro há áreas especializadas
para a fala, o discurso, outras para a música e por
aí fora. Já a visão é um sentido muito interessante
para nós, porque somos seres especialistas em ver.
Como em todos os sentidos, temos os recetores, nes-
te caso os fotorrecetores para a luz, de diferentes ti-
pos e para cada cor. Eles enviam um sinal ao cérebro
e uma vez lá, diferentes zonas lidam com diferentes
componentes da imagem visual. Algumas células na
zona visual do cérebro excitam-se com umas ima-
gens e não com outras. Há células que interpretam
as linhas, outras as curvas, outras as formas. Há ou-
tra zona para os rostos, para a seleção dessas caras
e por aí fora. Mas há mais. Podemos mexer os olhos
de duas formas, de forma suave, como uma linha
contínua, e de forma rápida fixando pontos ao longo
de uma linha. Da primeira forma vemos tudo como
num travelling lento, da segunda saltamos episódios
visuais e o cérebro elimina alguns deles. Pode pare-
cer-nos que estamos a ver uma grande cena, mas o
que realmente está a acontecer é que só vemos par-
tes dela de cada vez. Achamos sempre que vemos
mais do que realmente vemos. Já o tato mexe com a
ação, e não é que os outros sentidos não sejam tam-
bém ativos de certa forma, porque o são, mas o tato
é o mais ativo deles todos. Precisamos de tocar para
experimentar algo com o tato. Temos que integrar no
cérebro a experiência do que sentimos com os de-
dos, por exemplo. Depois, o cérebro coloca em cima
da mesa um modelo. Se nunca tivéssemos visto uma
cadeira provavelmente desenhá-la-íamos tal como
ela é só por senti-la e tocá-la. É por isso que neste
caso sentir não é só receber é também fazer.
TIAGO MIRANDA

A TOMADA DE DECISÃO
Porque decidimos fazer isto ou aquilo, uma coisa em
vez de outra é mais uma das grandes áreas de estu-
do dos cientistas. As decisões chamam-se processos
periféricos de sensação e estão associadas ao que ex-
plorar, ao que comer, com que parceiros nos deve-
INVESTIGADORES Zachary Mainen, aí encaixa como uma chave. Os cheiros são peque- mos reproduzir, que ações fazer, que estímulos pro-
nesta página, e Joe Paton, na página nas chaves a flutuar por aí e que encaixam num bu- curar. Vejamos porque decidimos. Será que o nosso
ao lado, são dois dos seis investigadores raco desses, umas vezes num, outras em muitos. É cérebro ainda manda em tudo? Pelo menos é essa a
principais da Fundação Champalimaud o padrão de interação entre as chaves e os buracos perceção que temos. Mas estamos errados. O cérebro
com quem falámos sobre o cérebro que define de que cheiro se trata. Tudo começa no per se, isolado, não é tudo. Mas a sua interação com
nariz, mas, depois, a abertura de um buraco ativa o mundo e com o organismo sim. Mesmo assim, se
determinada célula que envia uma mensagem para estamos sentados e não há nada a acontecer à nossa
o cérebro. “Imaginemos um teclado de piano. Di- volta, o que é que nos faz levantar e fazer outra coi-
ferentes acordes nesse teclado correspondem a um sa? É na área do cérebro chamada gânglios da base,
cheiro. Esse cheiro pode abrir a porta a uma me- que recebe atividade dos neurónios dopaminérgi-
mória que estava presente quando éramos novos, o cos, que tudo se passa. Esses neurónios estão ativos
cheiro da escola, do bolo da avó, da relva do nosso antes de nos começarmos a mexer mas não dizem
jardim. Cada vinho tem a sua sinfonia de cheiros. O que ação devemos fazer, dizem só que devíamos fa-
truque para sermos bons a classificar um vinho não zer algo. E outros neurónios no córtex também es-
é ter um bom nariz mas sim ser capaz de nomear tão ativos e dizem o que devemos fazer. Combina-se

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LUÍS BARRA
tudo nos gânglios da base numa área que se chama pouco detalhado que diz isto aqui é o braço, isto aqui
estriado, para decidir o que fazer. “Sabemos que há é a perna, aqui o pé, ali o dedo. Todos nascemos com
um mapa de todas as ações que se fazem e onde essas isso. Mas depois o que vamos fazendo tem conse-
ações mais semelhantes estão mais próximas umas quências no mundo e nós aprendemos baseados nas

Há neurónios das outras do que as ações muito diferentes que es-


tão mais afastadas. No entanto, quando a pessoa se-
consequências a melhorar as ações. Cada um de nós
tem a sua experiência individual. Vamos, portanto,

que medem o leciona o que fazer aciona a ação. Esse mapa é muito
importante para selecionar o que vamos fazer. É um
refinando as sinapses e os inputs para o mapa e no
fundo ele muda. É um mapa dinâmico, e que está

tempo através mapa completo e que representa tudo o que fazemos.


É, portanto, necessária a ativação desses neurónios
aprendido. Agora, quão aprendido é e quão geneti-
camente determinado é, ainda não sabemos.”

de sinais que para selecionar o que vamos fazer a nível motor”,


explica o codiretor do Programa de Neurociências.
E como aprendemos a fazer movimentos suaves
e coordenados? Coisas que aprendemos sem sequer

ativam células Há programas genéticos de desenvolvimento que


determinam depois as ligações aos sistemas sensi-
darmos por ela. “São processos que tendem a ser
inconscientes mas fazemo-los constantemente e a

em momentos tivos, motores e aos músculos. E há ainda um pro-


cesso de aprendizagem que é o mapeamento de cer-
nossa capacidade de fazer determinado movimento
de forma coordenada depende da nossa capacidade

diferentes tas ações com certas consequências. “As sinapses


dos inputs que chegam ao estriado estão sempre a
de estarmos sempre a aprender, calibrar e afinar”,
explica Megan Carey. Que vai muito mais longe na-

e essa ser mudadas, baseadas na nossa experiência com as


ações. Eu posso fazer muito uma coisa, jogar ténis,
quilo que já sabe sobre este tipo de movimentos.
“Por forma a movermos diferentes partes do corpo,

combinação por exemplo, e você pode fazer muito outra coisa,


escrever, por exemplo. Nós desenvolvemos, embora
uma parte do corpo tem que saber o que a outra está
a fazer e tem que conseguir prever as consequências

altera a representação do nosso reportório esteja lá, riqueza


em aspetos diferentes. Essa plasticidade leva a esse
do outro movimento que a outra parte do corpo está
a fazer, para que a possa controlar. Se não conseguir-

a perceção enriquecimento. Portanto, cada um de nós terá um


mapa muito individual. Um mapa que se desenvol-
mos prever isso, ficamos instáveis e podemos per-
der o equilíbrio. É por isso que a previsão é impor-

do tempo veu de acordo com as nossas próprias apetências e


mais comuns ações. Imagine um mapa geral muito
tante para a correção do movimento.” É o que uma
criança faz quando aprende a andar ou o mesmo

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que acontece quando andamos de bicicleta. Apren- ficheiro nesse arquivo. Quando nos lembramos dis-
demos a prever que todos os outros movimentos, à so, vamos ao arquivo e tiramos o ficheiro e lemo-lo.
parte de fazermos rodar os pedais, contribuem para Depois devemos guardá-lo outra vez mas podemos
o nosso equilíbrio e como isso pode mudar a posi- estar a guardar alguma coisa um pouco diferente
ção da bicicleta. A razão por que caímos é porque daquela que tirámos ou nem voltar a guardá-la”,
precisamos que os outros sentidos percebam o que explica Zachary Mainen. Pois, a memória é dinâ-
estamos a fazer e quando isso acontece é demasiado mica, como acredita Rui Costa. Se interrompemos
tarde para fazer a correção. Mas se prevermos, não alguém quando está a lembrar-se de um determi-
temos que esperar pelos sentidos para que estes se nado acontecimento e o distrairmos, podemos evi-
apercebam do que está a mudar, já sabemos que vai tar que ele volte a guardar aquela memória. Ima-
mudar e corrigimos o movimento antes que ele seja ginemos uma memória má e traumática da nossa
o errado. Mas precisamos sempre do input sensori- infância, ou uma fobia, alguma coisa que não gos-
al e conseguimos prever qual será. “O que o cere- tamos de ter. Há métodos para destruir o processo
belo faz é aprender a fazer estas previsões para que de reconstrução desse acontecimento.
as usemos para formas simples de aprendizagem
ou podemos usá-las para controlar as ordens. Essas PORQUE É QUE COMEMOS
previsões são enviadas do cerebelo para outras zo- DETERMINADOS ALIMENTOS
nas do cérebro para que sejam utilizadas em formas Na alimentação dita homeostática, ou seja, na ali-
simples de aprendizagem e padrões de locomoção e
até para a cognição e a linguagem.”
mentação para manter um equilíbrio orgânico, “o
organismo, tendo formas de saber se tem muito ou O que fazemos
PERCEÇÃO DO TEMPO
pouco de determinado nutriente, ou se tem mui-
ta ou pouca energia, poderá modificar o compor- ao ensinar
Às vezes o tempo voa, outras vezes parece que para.
O tempo real é o mesmo, mas a nossa perceção dele
tamento para repor aquele equilíbrio. É o equiva-
lente a se o organismo deteta que está com pouca é treinar
pode mudar radicalmente. Porque será? A resposta
à pergunta é o trabalho que Joe Paton, investigador
água ativar mecanismos que levam a pessoa a ter
sede”, esclarece Albino Maia. Imagine-se que há o cérebro. Se
principal, tem vindo a desenvolver. E traduz-se no
seguinte raciocínio: os neurónios que produzem do-
um nutriente que precisamos de comer, mas que é
pouco abundante, o que acontece é que vamos co- não soubermos
pamina, associada à recompensa e ao movimento,
também sinalizam a passagem do tempo. Imagine
mer muito daquela comida. Na verdade, estamos
saciados, do ponto de vista clássico, mas se temos como é que
que está muito aborrecido, no sentido de muito en-
fadado, de não ter nada interessante para fazer, esses
uma deficiência de um aminoácido continuamos a
comer até ele chegar ao nível certo. ele aprende
neurónios da dopamina, que respondem às coisas
interessantes e às ações, estão muito menos ativos
A fome é, no fundo, algo que nós definimos
como uma sensação, é algo que sentimos e que nos podemos
e a perceção do tempo é muito lenta. Imagine que
está à espera que alguém lhe telefone mas que não
leva a ter determinado comportamento. Muitas
vezes quando se diz comer sem ter fome, na prática estar a ensinar
pode sair e fazer outras coisas, ou que está numa
sala de espera (porque é que pomos lá revistas ou
o que se está a querer dizer é comer sem ter neces-
sidade metabólica ou biológica. “A distinção entre pior do que
televisões?), a sua perceção do tempo vai ser muito
lenta. Agora imagine que está a jogar um desporto
de que gosta ou a ver um filme que lhe agrada ou a
o que é homeostático e o que não é trata-se de uma
distinção biológica. Significa que percebemos que
há circuitos do sistema nervoso central que são os
conseguiríamos
fazer qualquer coisa que o recompensa, esses neu- circuitos relacionados com o prazer e que estão en-
rónios, agora, estão muito mais ativos e de repente o volvidos, por exemplo, em situações patológicas E quais são os genes que fazem com que gos-
tempo que é o mesmo parece-nos muito menor, pa- como o abuso de substâncias, cocaína, heroína, temos mais de comer uma comida do que outra?
rece-nos que passou mais rápido. Há neurónios que nicotina, álcool, etc., que estão muitíssimo rela- “Descobrimos, por exemplo, um gene que existe
medem o tempo através de sinais que ativam célu- cionados também com o consumo de alimentos. na mosca da fruta, nos ratos e no ser humano, que
las em momentos diferentes e essa combinação al- Temos mecanismos no cérebro que nos dizem quando é retirado ou não funciona faz com que
tera a perceção do tempo. O tempo normal, digamos — através da sinalização, da insulina, da glicemia, queiramos comer muito mais aminoácidos, mais
assim, o que está marcado pelo relógio, não existe a e a própria distensão do estômago — que estamos proteínas, mais bife. As moscas que não têm esse
nível do cérebro, só existe a perceção que dele temos. saciados e que não devemos comer mais. Normal- gene morrem muito mais cedo”, adianta Carlos Ri-
É como se fosse uma memória. Nós quando olhamos mente, a pessoa deixa de comer. No entanto, pode beiro, um suíço lusodescendente. As grávidas têm
para uma coisa não vemos a coisa, temos recetores e chegar uma altura em que, devido ao stresse e ao preferências nutricionais completamente diferen-
vemos aquilo que é a nossa perceção da coisa. Com próprio reforço em termos de recompensa, prazer, tes. Mulheres grávidas preferem comida mais sal-
o tempo passa-se o mesmo. Nós não representamos com comidas muito calóricas, a pessoa continue a gada, porquê? “Porque estão a formar muitas cé-
o tempo, temos essa tal perceção dele que pode ser ingerir comida independentemente de já estar sa- lulas e o líquido que está dentro das células é água
mais ou menos ajustada ao tempo real. ciada. “Não é que tenha mais fome, é que a ação de com sal. Existem uns neurónios que vão do siste-
Isso não só explica que os neurónios dopami- comer ficou independente do estado de saciedade. ma reprodutivo do útero da fêmea até ao cérebro e
nérgicos ajudam a essa perceção de quanto tempo Os ratinhos continuam a carregar no pedal para pe- que o informam que está grávida e lhe dizem: agora
passou, como explica porque é que os ambientes dir comida e as pessoas continuam a ir ao frigorífico tens que comer mais sal!”, continua Carlos Ribeiro.
aborrecidos e com pouca ação nos causam demora à procura dela. Isso é aquilo a que chamamos o hábi-
e nos ambientes excitantes pressa. Todos os aconte- to. A procura de comida compulsiva deixou de estar PARA QUE SERVEM AS NEUROCIÊNCIAS
cimentos marcam o tempo de uma forma ou de ou- ligada à fome. Passou a ser uma recompensa em si E podíamos nós continuar a dar exemplos de desco-
tra. O tempo é como um rio que corre, cada splash própria, pensamos nós. É quase como fumar um ci- bertas e de razões por que fazemos isto ou aquilo. No
ou cada corrente representa mais um acontecimen- garro. A pessoa pode já saber que aquilo é mau mas entanto, o rol de pormenores que o cérebro apresen-
to. Se o rio está parado não há nada que marque o fuma para atingir um certo estado de bem-estar no ta tem no seu estudo uma base importante de con-
tempo. É porque ele corre que temos a noção de que cérebro, tornou-se um hábito e a pessoa não contro- sequências. É por isso mesmo que as neurociências
há um passado e um presente e de que ele se mexe. la. No caso dos hábitos alimentares, não é que a pes- são tão importantes. “A nossa capacidade de amar,
É como a memória. Mas, o que é a memória? soa tenha fome, no sentido literal da palavra, não é de odiar, de comer, gostar, estar feliz, não estar, tem
“É uma espécie de arquivo de ficheiros. As coisas que a pessoa não saiba que não deve comer, perde o tudo a ver com o sistema nervoso. Perceber isto é
acontecem, nós escrevemo-las e guardamos num controlo das ações”, avança Rui Costa. perceber o que nós somos. Portanto, é fundamental

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TIAGO MIRANDA
percebermos o cérebro”, conta-nos Rui Costa. De do Programa de Neurociências da Fundação Cham- EXPERIÊNCIAS Carlos Ribeiro,
resto, é ele que nos torna únicos. palimaud. “Sabemos que para a aprendizagem e me- investigador suíço-descendente, mostra
Por outro lado, hoje em dia, até já mais do que o mória é fundamental o sono. Sabemos que na ado- uma mosca da fruta, um dos animais
cancro, a maioria dos problemas de saúde com que lescência a hora normal de acordar, ou aquela a que o com um cérebro semelhante ao nosso,
gastamos dinheiro e tempo são as doenças neu- cérebro gostaria de acordar, não é muito cedo, é mais onde, como nos ratinhos, se fazem
rológicas, as perturbações do cérebro, quer como tarde. Mas continuamos a insistir em horários mui- muitas experiências laboratoriais
neurodegenerações quer como perturbações a que to matinais em que as duas primeiras horas vão para
chamamos mentais ou psiquiátricas. Estão a atin- o galheiro, como se costuma dizer. Não é por falta de
gir-se proporções muito maiores à medida que a interesse, não é porque os alunos são mal-educados
nossa esperança média de vida aumenta e o mundo ou tenham alguma rebeldia, é uma incapacidade de
se torna mais complexo. “Esta caixa começa a criar estar com o mesmo nível de atenção”, continua. “Sa-
outro tipo de perturbações e começamos a entrar bemos que o treino espaçado é muito melhor do que
em idades em que muitos dos neurónios morrem. o treino intensivo. Ou seja, se um professor der uma
Portanto, as neurociências servem para termos a matéria, fizer uma pausa e voltar a dar a mesma ma-
informação que nos irá ajudar a resolver o proble- téria, tem muito melhores resultados do que se insistir.
ma.” Depressões, Alzheimer, Parkinson e muitas Mas continua a lecionar-se em blocos de 90 minutos.”
demências estão neste rol de distúrbios. A maioria do nosso trabalho é com o cérebro,
Há ainda outra aplicação das neurociências que mas não temos uma educação de como usar o cé-
não é do foro da medicina, mas sim da educação. O rebro, explica ainda Rui Costa. “Um atleta de alta
que fazemos ao ensinar é precisamente treinar o cé- competição quando tem uma prova, no dia anterior
rebro. Se não soubermos como é a aprendizagem, a não vai correr para se estafar. Mas nós, nos traba-
memória, a tomada de decisão, e por aí fora, podemos lhos mais cerebrais, com as deadlines mais aperta-
estar a ensinar pior do que conseguiríamos. Aplicar o dos, fazemos o contrário do treino saudável. Esta-
conhecimento das neurociências à educação é, pois, mos sempre a queimar o cérebro e os neurónios!”
fundamental. “A aplicação dos conhecimentos que Mas descanse! Não terá queimado neurónios ao ler
temos de como o cérebro funciona pode servir para este artigo. Sobretudo se ele lhe tiver dado prazer. b
melhorar o mundo, a justiça, a sociedade, a educação.
Mas isso ainda não está a acontecer”, diz o codiretor acarita@expresso.impresa.pt

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Entrevista
Ana Paula Vitorino

A minha
preocupação
foi dizer a António
Costa que tinha
cancro e estava
disponível para sair”
Foi quase em simultâneo. Há quase ano e meio tornou-se
ministra do Mar e doente oncológica. Acumulou as pastas sem
faltas ao trabalho. Negociou em ambas as frentes — adora um
bom braço de ferro, seja com estivadores ou com a doença
que lhe ensinou que não se pode adiar a vida. O cancro perdeu

POR JOANA MADEIRA PEREIRA E RAQUEL MOLEIRO (TEXTO)


E LUÍS BARRA (FOTOGRAFIAS)

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LISBOA Menina de Maputo, veio com doze anos para a capital. Os pais, alentejanos,
queriam os filhos na Universidade e Portugal ainda era um país centralista — era ali ou Coimbra.
Os dois mais velhos foram para Medicina, Ana Paula, do contra, foi para Engenharia. Como
secretária de Estado dos Transportes mandou repor o Cais das Colunas

A
O mar ainda é um mundo de Outras, antes de mim, ajudaram a
homens? mudar esse cenário e eu também es-
O mundo do mar tem cada vez mais tou a fazer o mesmo.
mulheres. Este verão, por exemplo,
entraram duas na comissão de li- Concorda com as quotas?
mites da plataforma continental das Não posso deixar de concordar.
Nações Unidas, que atualmente ana- Como muitas mulheres que cons-
lisa a extensão do território marítimo truíram as suas carreiras a ferro e
português para lá das 200 milhas. fogo, ao princípio sentia-me mui-
São as primeiras. No meu Ministério, to incomodada com as quotas. Mas
uma boa parte das nomeações para quem tem contactos com a política
‘número 1’ foi para mulheres: para a sabe que não pode deixar de ser a fa-
administração dos portos de Lisboa e vor. E nós, que chegamos a estes lu-
de Setúbal, para a Estrutura de Mis- gares, não podemos ser golden skirts
são para a Extensão da Plataforma, (saias douradas), não podemos achar
na Paula Vitorino recebe-nos no seu para a presidência da Docapesca, na que, se nós fizemos este percurso as
gabinete, no Terreiro do Paço. Para Direção-Geral de Recursos Naturais, outras mulheres também o podem
as fotografias basta descer a escada- Segurança e Serviços Marítimos há fazer sem ajuda. Não é verdade.
ria de pedra, virar à direita, dar uns duas mulheres subdiretoras. E eu, a
passos até ao Cais das Colunas que ela ministra. É um sinal dos tempos. Tirou Engenharia no Instituto Su-
mandou repor, em 2008, quando era perior Técnico, seguiu aí a carreira
secretária de Estado dos Transportes, Nomeia mulheres de forma académica, foi secretária de Estado
no governo Sócrates. Agora, aos 55 consciente? na área dos Transportes. Sentiu-se
anos, é ministra do Mar, ela, menina Sim. Obrigo-me a ter sempre opções discriminada neste percurso?
de Maputo, que não sabe viver sem entre homens e mulheres, com vári- Senti e ao longo de muitos anos. A
ele. Muito tempo longe e surge o des- os currículos, para fazer equipas co- discriminação não existe quando
conforto, um vazio. Gosta de portos, erentes em termos de competências e tiramos cursos ou mestrados, nem
navios, contentores, do vento salga- valências. Mas nesse puzzle tento que quando fazemos o doutoramento. O
do. Ali a aragem é quente, doce, de um terço sejam mulheres — até por- problema são as escolhas e isso vê-
rio, mas serve. Desce quase até mo- que agora é assim que dita a lei. Aliás, -se bem à medida que nos dirigimos
lhar os pés e sorri. Ri-se até. Fala de já fiz finca-pé porque num organis- para o topo. Quando toca a escolher
assuntos sérios à mistura com piadas. mo, de tutela conjunta, iam ser no- os petit comités de decisão, admi-
É preciso brincar com a vida, e com meados apenas homens. Não permi- nistradores de empresas, dirigentes
a morte também. Esteve próxima. O ti. Ainda me disseram que a lei ainda e ministros, há uma tendência para
cabelo curto não é opção, é o lado não estava em vigor, mas expliquei escolher perfis masculinos, porque
de fora do cancro que lhe diagnos- que era uma questão de princípio. se considera que são mais adequados
ticaram dentro, agressivo, há pouco
mais de ano e meio. Não tinha ainda
dois meses de Governo. Fala pela pri-
meira vez sobre o assunto. Há coisas
que conta a poucos. Contou logo ao
Eduardo, o marido, que é também
ministro. E a António Costa. Ali na-
quele gabinete. Só mudaram os sofás.
Agora que está bem quer dizer que
o combate é duro, vai-se às cordas
mas nem sempre se cai no chão. Não
deixou de trabalhar. Enfrentou duas
greves de estivadores, negociou com
Bruxelas sardinha suficiente para
Como mulher que construiu a
todos os Santos, deu mais um pas-
so (dos grandes) no alargamento de
carreira a ferro e fogo, no início
Portugal pelo mar. Porque aí não há
piadas. No trabalho é exigente, com-
bativa, intolerante ao erro. Esta se-
sentia-me incomodada com as
mana recebeu em Lisboa os seus con-
géneres internacionais, no Oceans quotas. Mas quem tem contacto
com a política sabe que não
Meeting. Ana Paula era das poucas
ministras. A conferência internacio-
nal foi na Fundação Champalimaud.
Ali, no exato sítio onde o médico lhe
disse que o cancro regrediu. pode deixar de ser a favor”
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para essas funções. A nossa socieda- De que abdicou? momento em que já não se adia mais Estado dos Transportes. A conces-
de ainda é construída com base nes- Desde logo, em termos familiares. porque a idade decidiu por nós. Não são do Metro Sul do Tejo também foi
tas discriminações ocultas. Até no Não tive filhos. Havia e há um pro- estou a dizer que isso para mim foi dura e difícil. Mas eu não me deixo
Técnico, no início dos anos 80, a in- blema de compatibilização da ma- um custo ou não foi. Adoro crianças, intimidar. Há pessoas que se deixam.
terpretação do comportamento era ternidade com a ascensão na car- mas o meu instinto maternal fica sa- Eu não. Não tenho cedências fáceis.
diferente conforme fossemos rapa- reira em alturas e idades em que é tisfeito com os meus sete sobrinhos e Não me considero pior negociadora
zes ou raparigas. Os rapazes podiam importante a presença e o empe- quatro enteadas. por não conseguir chegar ao fim de
fazer tudo, as raparigas não tanto. nhamento. Não é numa mulher de 55 uma negociação com sucesso. Não
anos. Quando se tem 30 e se trabalha É sempre tão firme nas decisões? chegar a acordo pode ser uma solu-
Como assim? em áreas mais próximas do poder de As minhas características profissio- ção. Se tivermos de abdicar de mais
Se falássemos a um professor de quem decide, quando se fica grávida nais mais marcantes são a resiliência do que aquilo que é razoável, então
forma mais simpática era porque, tem-se menos disponibilidade para e a combatividade. não vale a pena.
eventualmente, estávamos a ‘fazer a profissão. Não se pode estar a fazer
olhinhos’. Tive um professor que, noitadas nem a acabar um relató- Gosta do combate? No início do mandato teve logo de li-
numa oral de defesa de nota, disse rio urgente. E, quando se dá por ela, Não é bem gostar... Bem, gosto um dar com as greves dos estivadores do
a uma colega: “A menina, se fosse aquele colega homem passou-nos à bocadinho. Porto de Lisboa...
para casa”... Não a mandou ir coser frente. E é o relógio biológico a dizer Se fosse fácil não era para mim. Nun-
meias, mas insinuou. Ainda assisti a que é agora ou já não é, mas também Olhando para as notícias, parece que ca ninguém me deu nada fácil para
estas coisas, até por parte de alguns é a nossa carreira a dizer ou é agora está sempre em negociações. Quais fazer. Quer operadores portuários
colegas. Mas aqui estou, ministra. ou já não é. foram as mais desafiadoras? quer trabalhadores representados
Tive de abdicar de uma série de coi- Há umas que não posso contar. [ri- pelos sindicatos estavam muito ra-
sas da minha vida, trabalhar de dia e Optou pela carreira. Foi difícil? sos]. Mas lembro-me da greve de pi- dicalizados, com as áreas políticas
de noite, para provar que uma mu- Não foi uma decisão, foi um proces- lotos da TAP, em 1997, quando era a dar a força a cada uma das par-
lher é tão boa quanto um homem. so. Adia-se, adia-se, adia-se até ao chefe do gabinete da Secretaria de tes. Mas foram sérios, sentaram-se

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à mesa para assumirem compromis- muito complicado. Além da minha sabia que ia viver momentos mui- Foi mais uma negociação.
sos, com cedências de ambas as par- irmã, que é médica, e do Eduardo, to complicados com a quimiotera- Foi. A probabilidade de me safar era
tes. Apesar da pressão pública, assu- que é o meu marido, o meu sentido de pia, mas também sabia quando é que muito baixa, era um cancro muito
mi-me como fiel da balança. urgência foi para com o doutor Antó- ocorriam. E os médicos foram abso- agressivo. Perguntei ao médico se
nio Costa. Disse-lhe que tinha de fa- lutamente fantásticos. aquela probabilidade era calculada
Por essa altura surgiu outra luta. lar com ele, perguntou-me se podia com base nas estatísticas europeias
Soube que tinha cancro. ser por telefone. Respondi que poder, Onde foi acompanhada? ou mundiais. Era global. Por isso,
Há coincidência horríveis. Quan- podia, mas não era muito convenien- Na Fundação Champalimaud. A mi- descontando os dados de África e da
do fui secretária de Estado [de 2005 te. E falámos, ali naquele sítio [apon- nha irmã é médica aí e, por coinci- América Latina, fiz as contas. Nesse
a 2009] também tive um cancro. E ta]. Eram outros sofás, ainda mais dência, o médico que me diagnosti- caso, a probabilidade há de ser mais
ninguém soube, a não ser o primei- horríveis do que estes [de veludo ver- cou ia começar a trabalhar lá naquela elevada. É o dobro. É uma boa base
ro-ministro da altura. Mas foi dife- de]. Por muito que seja uma mulher semana. Têm sido fora de série. de trabalho.
rente, menos agressivo. Não tive de de armas, estava numa situação mais
fazer quimioterapia, como agora. Por fragilizada. A minha primeira preo- Isso é importante... Seguiu estritamente as ordens dos
isso, brinco: nada de cargos mais ele- cupação foi dizer-lhe que tinha can- É, mas também depende muito da médicos?
vados! Não posso ser Presidente da cro e que estava disponível para sair forma como nos colocamos. Ou uma Isso é que era doce! É fazer o que se
República, porque então nem sei o do Governo. Ele foi de uma solidarie- pessoa se dá por vencida ou não se tem de fazer, com a opinião dos mé-
que me acontecerá! [risos] dade à prova de bala. Respondeu-me: dá. Eu quis logo saber quais eram as dicos e, pelo meio, contando umas
“Não, quero muito ter como ministra probabilidades [de sobreviver]. Fiz as anedotas para eles se rirem e para
Estava no Governo há menos de dois do mar a Ana Paula Vitorino. Agora, continhas todas. No princípio, o mé- eu me rir também. Qual é o segre-
meses. quem vai decidir são os médicos”. dico não me queria responder. Mas do para sermos felizes? É viver com
Foi-me diagnosticado a 13 de janeiro tratei logo de dizer: “Ó amigo, vamos a maior garra possível. Há uma coi-
de 2016. Descobri por acaso, como Sentiu-se confortável com a decisão? lá a ver se a gente se entende...” Foi sa que aprendemos logo na primeira
acontece às vezes nestas coisas. Foi Senti. Sou uma mulher prática, já mesmo assim. vez em que ficamos doentes e que,

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O POMAR Trabalha na Praça do comércio, no coração da vida
urbana, mas vive no campo, em Almoster (Santarém) com o marido,
Eduardo Cabrita, ministro-adjunto de Costa. Tem uma horta e dois
limoeiros, mas a geada afetou-lhe a produção

depois de adoecermos uma segunda complicados. O dia mais difícil [25 me começou a incomodar muito. Es-
vez à séria, consolidamos: estamos de fevereiro de 2016] foi na semana tava demasiado certinha para mim e
sempre sujeitos a que nos aconteça de preparação do Conselho de Minis- fazia muito calor. Agora gosto do ca-
alguma coisa. Estamos habituados, tros dedicado aos assuntos do mar, belo curto. E já cresceu bastante, já
por uma questão de sanidade men- com o então presidente Cavaco Sil- tive de o cortar duas vezes. Até com-
tal, a não pensar na nossa dimensão va. Coincidiu com um Conselho de prei uma daquelas máquinas para
finita. Mas ela existe. Ministros, duas sessões de radiote- cortar rente.
rapia, uma sessão de quimioterapia e
Já está controlado? sete horas de discussão do Orçamen- Ao tirar a peruca assumiu o can-
So far, so good. Mas sei lá o que me to do Estado na minha área. Fiz rádio, cro. Antes era tabu. Agora já é mais
vai acontecer. Mas agora esse assun- fiz quimio, depois fui para o Conse- normal?
to deixou de me interessar. Faço os lho de Ministros, mais tarde arran- Há uma desmistificação. As pessoas
exames de controlo de três em três quei para a Assembleia para discutir devem assumir aquilo que têm. E
meses e está tudo bem. Vivo com o o Orçamento do Mar, e depois vol- é bom para todos que a sociedade
meu marido em Almoster, no con- tei à Fundação Champalimaud, às 21 não rejeite nem discrimine esta ou
celho de Santarém. Temos uma casa horas, para fazer a segunda sessão de qualquer doença. As pessoas que es-
muito engraçada, no campo. Adoro rádio. O pessoal médico foi fantásti- tão doentes não estão impedidas de
plantar coisas. Já tenho dois limoei- co. A Fundação fecha às 17h30, mas trabalhar.
ros em grande produção. É bom ter eles estiveram a ver-me na televisão
um espaço para pensar, porque ga- até às 21h, esperaram por mim, fize- A doença levou-a a repensar alguma
nhamos um certo distanciamento em ram a segunda sessão, e depois fui coisa?
relação às coisas. para casa. Na semana seguinte, uti- Com a idade ficamos mais tolerantes,
lizei pela primeira vez a peruca e lá mas também menos dispostos a ab-
Não deixou de trabalhar. Como foi fui para o Conselho de Ministros de- dicar de princípios. Só devemos es-
possível? dicado ao Mar. Esse cabelo é seu?, tar nas coisas quando vale a pena es-
Tive do meu secretário de Estado [das perguntaram-me. É meu é, que já foi tar nas coisas, quando achamos que
pescas, José Apolinário] um apoio pago! [risos] somos um valor acrescentado, por
inexcedível. O mal de se fazer quimi- um lado, e que estamos a trabalhar
oterapia não é quando se está a fazer, Usou peruca porque não queria a bem de qualquer coisa, por outro.
mas sim nos dias a seguir. Encostava perguntas? Não vale a pena estar nos sítios para
as sessões à sexta-feira, para poder Não faço comentários sobre o cabelo ter prestígio. Reforcei a certeza de
ter o sábado e o domingo para des- dos outros e, por isso, espero que os que este era o caminho. E também
cansar. E acontecia algo de divino: outros não façam sobre o meu. Se me sou um pouco mais assumida em al-
ressuscitava ao terceiro dia! [risos]. apetecesse agora pintar o cabelo de gumas coisas. Costumo dizer que não
A chatice maior foi engordar desal- loiro, pintava; se me apetecesse pin- me vendo em separado: ou me que-
madamente. Mas houve dias muito tar de preto, pintava. Tirei-a quando rem assim, com frontalidade, ou não
me querem de todo.

Não mudou nada, então?


Continuo a ser exigente como era,
mas reposicionei as minhas relações
pessoais. Não podemos abdicar das
nossas pessoas, não as podemos dei-
xar para trás, irmãos, maridos, fi-
lhos. Uma coisa é trabalhar, fazer
noitadas, levar trabalho para casa,
mas não se pode adiar a vida. E temos

Num dia fiz rádio, fiz quimio, de ter tempo. Se uma pessoa precisa
de uma palavra de conforto, é hoje
que temos de a dar e não daqui a dois
depois fui para o Conselho anos, quando sairmos do Governo.

de Ministros, mais tarde De onde vem essa resiliência?


Acho que as características não se
ganham só por via genética mas

para a Assembleia discutir o também por aculturação. A mi-


nha resiliência vem de Moçambi-

Orçamento do Mar, às 21h voltei


que e do Alentejo. Nasci em Mapu-
to e sou alentejana por via genética
— os meus pais são de uma terri-

à Fundação para mais rádio” nha chamada Vila do Cano, em Sou-


sel. Quer os alentejanos quer os

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moçambicanos são gente resiliente. Sou filiada há mais de 30 anos. Sou tínhamos amigos comuns. Já o meu Falam de política em casa?
São duas origens de vistas largas. Em daquelas pessoas que acham que, marido conheci-o muito mais tarde. Porque temos de preservar a nossa
África, os horizontes tinham sempre em termos ideológicos, não exis- Ele tem a sua carreira feita. Entrou independência em termos de carrei-
vista para o mar e o ar cheiro a terra. tem independentes. Independentes para a política ativa como alto-co- ra, há coisas sobre as quais não fa-
são os não assumidos. Era docente missário do engenheiro João Cravi- lamos. Não discutimos pastas. Não
Viveu em África até que idade? do Técnico e durante anos ninguém nho e eu chego por via dos transpor- falamos nem perguntamos. Vemos o
Até aos 12. O meu pai é militar. Eu e soube o que é que eu era ou deixava tes. É como em tudo na vida: aca- Telejornal e vamos comentando, mas
a minha irmã nascemos na primeira de ser. Acho que nem quotas paga- bámos por coincidir no tempo. O assim como eu comento com o meu
comissão que ele fez em Moçambi- va. Lá acabei por regularizar a situ- Eduardo é uma grande referência secretário de Estado ou com um ou
que. O meu irmão mais velho tinha ação. É nessa altura que surge o en- para mim, independentemente dos outro ministro de quem sou amiga.
quatro meses quando os meus pais genheiro João Cravinho [ministro do sentimentos que tenho por ele en-
foram para lá. Foi em Maputo que Equipamento, Planeamento e Admi- quanto sua mulher. É uma pessoa e Mas tinham falado sobre a hipótese
fiz parte da escola primária e do ci- nistração do Território, no primeiro um político que admiro muito, pelo de ambos virem a ser ministros?
clo preparatório. Viemos para Lisboa Executivo de Guterres]. Adoro-o, é seu carácter, pela ética republicana Não. É como o Eduardo diz: é tudo
em 1974 quando a comissão do meu uma referência profissional, ética, e socialista. uma gestão de expectativas. Só se
pai terminou. Os meus pais queriam política, de carácter. No ano passa- põe a fasquia muito alta para aqui-
que os filhos entrassem para a Uni- do, quando fez 80 anos, um grupo Coincidiram como secretários de Es- lo que está nas nossas mãos fazer e
versidade. A minha mãe sempre dis- de amigos juntou-se e fez um livro tado, agora como ministros. Como tentar. Fiz muita questão de ajudar
se às filhas: “Minhas queridas, vocês com depoimentos pessoais. Escre- lidam com as críticas? António Costa a preparar a agen-
podem fazer o que quiserem, mas há vi-o em jeito de brincadeira, mas é o Antes da formação do Governo, há da para a década na área do mar e
uma coisa que é fundamental: a in- que sinto: o engenheiro Cravinho é a um camarada que me diz: “É uma a transpô-la para o programa elei-
dependência económica.” pessoa que eu gostava de ser quando chatice esta coisa das oportunida- toral. Na altura, não tinha expecta-
for grande. O Eduardo, o meu ma- des. Tu só não vais para ministra por- tiva rigorosamente nenhuma. Devo
Porque escolheu Engenharia Civil e a rido, também escreveu um texto e que de certeza que o Eduardo Cabrita dizer que até tinha recebido um ex-
área do planeamento urbanístico? lembrou aquilo que eu não tive co- vai.” Achei aquilo uma coisa bizarra. celente convite de trabalho fora de
O meu irmão e a minha irmã, mais ragem de escrever: foi o engenhei- Primeiro, porque eu nunca entrei na- Portugal.
velhos, foram para Medicina. Como ro Cravinho que fez com que nos queles jogos de quem vai ser o quê.
eu era a mais nova, achava-se que conhecêssemos. Eu sou livre, nunca fiz nada, isto ou Com a pasta de ministra do Mar
também era para aí que devia ir. aquilo, para ser ministra. Nunca me recebeu o dossiê da extensão da pla-
Quanto mais me diziam que “isso é Está a falar de Eduardo Cabrita, o ocorreu ser secretária de Estado há taforma continental portuguesa, em
para homens”, mais eu achava pia- atual ministro-adjunto. 10 anos, quanto mais ser ministra! discussão nas Nações Unidas. Portu-
da. Quando entrei para o ensino se- Há pessoas que criticam o facto de Agora, não me parece que as pessoas gal pode ganhar 3,8 milhões de km2.
cundário, fiz logo questão de blindar sermos família, mas a verdade é que se tenham de tapar umas às outras, O que ganha a economia?
a minha escolha e escolhi Geografia temos percursos de vida completa- como não me parece que seja por via Quero deixar clara uma coisa: é mais
em vez de Ciências Naturais, obriga- mente autónomos. Conheci o doutor conjugal que as pessoas devam ser mar mas não é para furar, ao contrá-
tória para Medicina. Foi aquela fase António Costa quando tinha 17 anos, nomeadas para este ou aquele lugar. rio do que tem sido noticiado. Essa
da adolescência... Já na universida-
de tive professores que foram deter-
minantes na minha escolha pelo ur-
banismo e planeamento territorial.
Além da carreira académica, come-
cei a fazer estudos como consultora
internacional.

E quando se deu a sua entrada na


política?
Com os Estados Gerais do engenhei-
ro António Guterres. O doutor Fran-
cisco Murteira Nabo era responsável
pela área dos transportes e, em 1993,
Antes da formação do Governo,
resolveu inovar e criar um grupo de
trabalho com jovens, que não tives-
um camarada disse-me: ‘Só
sem cargos partidários. E foi ao Téc-
nico buscar uma jovenzinha de 30
anos. Foi assim que entrei na política,
não vais a ministra porque de
para fazer a estratégia de transportes
do Partido Socialista. certeza que o Eduardo Cabrita
Já era filiada no PS?
Filiei-me quando ainda estava a fa-
[marido] vai’. Não me parece
zer o mestrado, influenciada por uns
colegas ex-lutadores antifascistas. que um tenha de tapar o outro”
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Os portugueses têm uma para ele. A minha ambição é que o
mar ganhe uma dignidade diferente.

relação de amor-ódio com o E como olham agora os portugueses


para o mar?

mar. Querem ir à praia mas não Não valorizam nem querem nada do
mar. Ai, que agora vamos alargar o
porto: não pode ser porque fica com

a limpam. Querem o curso da contentores. Agora, vamos apostar


na aquacultura, mas não pode ser

escola náutica mas passam a


porque queremos sair de barco por
ali e só atrapalha. Agora vamos fazer
um corredor de separação de tráfe-

vida a querer emprego em terra” go portuário [para transportar ma-


térias mais sensíveis], como existe
no mundo civilizado e como tam-
bém já temos, mas vêm daí não sei
quantas organizações não-governa-
mentais criticar. Se vamos apostar
não é a nossa prioridade. O que exis- de desova e de crescimento sejam Defendi isto junto de Bruxelas, vis- em energias oceânicas e precisamos
te no fundo do mar não é só petró- diferentes. E pode acontecer que o to que há preocupações de natureza de ter uma plataforma no mar, lá se
leo, nem minerais, ouro, cobre, co- estado dos stocks da sardinha esteja social que têm de ser ponderadas. As vem falar no impacto da mesma. Já
balto, manganês. Parece que temos melhor do que o indicado, a acreditar políticas têm de ser o melhor para os para não falar das minerações. Exis-
tudo isso e muito de tudo, princi- nas informações empíricas dos pes- stocks, mas também o melhor para te uma relação de amor-ódio com
palmente minerais, mas em maté- cadores. As espécies estão a desovar as pessoas. o mar. As pessoas querem ter aces-
ria de aproveitamento económico, mais tarde. so à praia, mas não a querem lim-
o que nos interessa é a exploração É possível tirar os pescadores do ci- par. É vergonhoso, a meio do verão,
de organismos vivos, genéticos, bi- Mais do que reduzir quotas de pesca, clo da pobreza? já serem mais as beatas, as latas e as
ológicos para a farmacêutica, para a solução pode passar pela mudança Não existem comunidades de enge- garrafas do que conchas no areal. As
a biotecnologia azul. O nosso alvo dos períodos e época de pesca? nheiros ou de médicos. Mas temos pessoas gostam de ter o curso da Es-
são os medicamentos, a área da saú- Exatamente. Existe uma certa ar- comunidades piscatórias que ten- cola Náutica, mas passam metade da
de e da cosmética. E para isso não é rogância da sociedade face a de- dem a manter as profissões dos pais, vida a querer arranjar um emprego
preciso abrir crateras. Também po- terminadas classes profissionais e para o bem e para o mal. Temos de em terra. Tem de se perceber porquê
demos potenciar as energias oceâ- devo dizer que os pescadores têm pensar na promoção da atividade e combater essas razões. Na verdade,
nicas. E isso não cria problema ne- sido exemplares em termos de com- económica e ao mesmo tempo ga- até acho normal: se as pessoas não
nhum ambiental, bem pelo contrá- portamento. O secretário de Estado rantir que aquelas pessoas tenham têm boas condições quando estão
rio. Não estamos a matar linces e a das Pescas criou uma comissão de remuneração adequada a uma vida embarcadas, é natural que queiram
extingui-los. acompanhamento da pesca do cerco, com qualidade. Já existia um fundo voltar para terra. Por isso, há que cri-
que se reúne com frequência. São os de compensação para os pescadores, ar-lhes boas condições para estarem
Com a pesca esse problema põe-se, próprios pescadores que fazem su- que lhes garante rendimento em al- no mar. Esse é o meu desafio.
daí as quotas obrigatórias. Os pesca- gestões relativas à gestão de stocks. turas em que não podem trabalhar,
dores portugueses podem ficar sem Agora, por sua sugestão, vamos di- mas alterámos as regras: o tempo em E qual a sua relação com o mar?
matéria-prima? minuir a quantidade semanal e diária que estão parados por imposição da Fico angustiada se estiver muito tem-
68% das nossas espécies sujeitas a de sardinha, para prolongar o perío- época de defeso ou mau tempo passa po sem o ver. Gosto de tudo o que te-
quotas têm o stock em bom estado. do de pesca. a contar em termos de proteção so- nha que ver com ele: gosto de nadar
Quanto ao resto, temos problemas cial, para a reforma e tudo o resto. e de andar de barco, gosto de portos,
muito semelhantes aos que existem Para o ano, não vai faltar sardinha Por outro lado, estamos a apoiar a gosto de paisagens com contentores,
noutros países da União Europeia. E para os Santos Populares? diversificação da atividade: vamos, de navios de carga. Pode não ser bo-
isso tem que ver com as alterações No ano passado, Portugal e Espanha, por exemplo, permitir que os pes- nito, mas gosto. Gosto da gente do
climáticas. em conjunto, fixaram 17 mil tonela- cadores possam acumular a pesca mar. No outro dia, na ilha da Culatra
das para a quota de sardinha. A su- com atividades turístico-maríti- [Ria Formosa], onde existe uma soci-
É o caso da sardinha? gestão da UE eram 1500 toneladas, mas, sem que isso represente perda edade muito matriarcal, diziam-me:
Esse é um caso muito interessante, não dava nem para os Santos. Temos de regalias. “Você é uma mulher tão simples.”
que estamos a analisar. Aliás, deter- de ser razoáveis e questionar qual a Não sou necessariamente. Gosto é
minei que este ano se realizasse mais taxa de reposição que queremos: se Quando deixar o Governo, quer ficar daquela gente, tenho uma acultura-
um cruzeiro de monitorização dos colocarmos a taxa de aumento nos conhecida por quê? ção muito rápida. Gosto de pescado-
stocks. Porque as alterações no clima 4% e não nos 6%, por exemplo, já Eu não quero ficar conhecida. Mas res, dos capitães de porto, do pesso-
não estão a fazer apenas com que as temos alguma margem de manobra. quero que o mar seja reconhecido al da Marinha. É uma relação muito
espécies migrem para outros sítios Queremos pescar agora e no futuro, pela sua grandeza. Quero que estes vertical: não é terra a terra, mas é
com água mais quente. Também le- mas não aceito que me digam que é quatro anos, com um Ministério ex- mar a mar. b
vam a transformações nos ciclos de preciso proibir a pesca até me da- clusivo para o mar, marque a forma
vida, fazendo com que os períodos rem provas científicas em contrário. como a sociedade portuguesa olha jmpereira@impresa.pt

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Chegar longe, devagar
“Sleep Well, Beast” é o sétimo álbum dos norte-americanos The National,
uma das bandas mais queridas do público português. Ao Expresso, o vocalista Matt
Berninger e o guitarrista Aaron Dessner desvendam a sua receita em lume brando
TEXTO LIA PEREIRA

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D
urante muitos anos, habituámo-
nos a acoplar aos The National o
epíteto de “banda de Cincinnati via
Brooklyn”. Naturais daquela cidade
do Ohio, os norte-americanos
assentaram, durante vários anos,
arraiais num dos buroughs de Nova
Iorque, metrópole que continua a
inspirar algumas das mais sentidas
GRAHAM MACINDOE

letras de Matt Berninger. Em


2017, porém, os músicos vivem a
milhares de quilómetros uns dos
outros. Se o vocalista se mudou
para Los Angeles, Aaron Dessner,
um dos guitarristas e produtor
não só dos The National como de Scott Devendorf, Bryan como escrevo”, analisa, entre mais e baterias programadas, há em
artistas como Sharon Van Etten, Devendorf, Aaron Dessner, risos. “E a forma como canto. Mas canções como ‘Walk It Back’
divide o seu tempo entre uma zona Matt Berninger e Bryce gosto!”, garante o homem que um certo regresso ao intimismo
montanhosa do estado de Nova Dessner não toca qualquer instrumento, dos primeiros dois álbuns, antes
Iorque e Copenhaga, na Dinamarca, mas que acredita que “o tempo de “Alligator”. Não parecendo
ao passo que o seu irmão, Bryce, e a tecnologia alteram de forma concordar, Matt Berninger concede
vive com a família em Paris e Scott significativa a arte. O GarageBand que “há partes do disco novo que
Devendorf, o baixista, firmou Sétimo álbum para a banda que [software de produção de áudio], têm aquelas reviengas e ideias
raízes em Long Island, outra das abandonou o anonimato em 2005, os auscultadores in-ear, tudo isso diferentes todas juntas, tal como
peças do puzzle que é a Grande com “Alligator”, e se tornou um mudou a forma como escrevo nos primeiros álbuns, quando
Maçã. Apenas Bryan, irmão de nome de culto dois anos mais tarde, canções”. seguíamos por várias direções”.
Scott e um dos bateristas mais com “Boxer”, “Sleep Well Beast” Ainda que “Sleep Well Beast” Aaron Dessner concorda que,
elogiados do indie rock, continua em nasceu, como habitualmente, esteja a ser apresentado como aquando de “Sad Songs for Dirty
Cincinnati, onde os cinco membros de parto difícil. Numa conversa o disco em que os The National Lovers”, de 2003, a banda ainda
dos The National se conheceram, separada, Matt Berninger, voz decidiram controlar menos o tentava “encontrar o seu som.
no que agora lhes parecerá outra & palavra do grupo, reconheceu resultado final, divertindo-se em Andávamos a perceber como fundir
vida. Quando Aaron Dessner nos que “raras são as canções que vez de se afligirem, Matt Berninger a nossa coleção de discos numa
confidencia que escreveu parte do escrevemos de forma rápida. salienta: até pode haver canções só coisa. E ainda consegues ouvir
novo disco, “Sleep Well Beast”, Geralmente demoramos muito que nascem de jams, mas o modus isso mesmo, anos mais tarde, mas
enquanto viajava, não contávamos tempo e, como já vamos sabendo operandi da banda é sempre um bico com um controlo muito mais forte.
porém com a coordenada que nos isso, desta vez trabalhámos sem de obra. “Uma arquitetura ligeira Em ‘Walk It Back’ ou ‘I’ll Still
dá. Imaginávamo-lo a usar o seu prazos”, revela, explicando que e trapalhona, mas é arquitetura.” Destroy You’, há sons eletrónicos
“tecladozinho modular” durante a decisão os libertou. “É sempre Aaron Dessner, que Berninger e uma certa ambição estrutural,
uma qualquer digressão, mas caótico e tenso, o processo, mas considera ter sido o verdadeiro na composição”, defende. “A
enganámo-nos. “Escrevi algumas faz parte”, acrescenta o vocalista, ‘parteiro’ deste álbum, concorda. primeira parte de ‘Walk It Back’
coisas quando estava nas Caraíbas, que diz ter mudado a sua forma “Temos de partir sempre de uma foi escrita há uns anos e a segunda
a tentar descansar a cabeça depois de trabalhar, explorando uma ideia. Desta vez, mais do que só foi acrescentada muito mais
da digressão. Fui com a minha improvável vocação madrugadora. nunca, andámos a construir coisas, recentemente. Neste disco fizemos
família para uma ilha pequenina “Tenho escrito a maior parte das a mandar tudo abaixo, a mudar muito isso”, confessa. “Eu escrevia
— nada de especial, ficámos numa canções em sítios sossegados, como as janelas e o telhado… Tentámos o início, o Bryce escrevia o fim,
barraquinha”, acrescenta, como quartos de hotel, no autocarro de trabalhar as subtilezas de tom ou vice-versa. Houve muito mais
quem pede desculpa. “À noite digressão ou em casa, onde a minha e textura, e este disco também colaboração na escrita e, por isso, os
punha-me a beber e a brincar com mulher e a minha filha estão a envolveu uma grande dose de resultados são interessantes. Já não
o teclado. O resto escrevi no norte dormir. Acordo muito cedo, todas experimentalismo, ao longo de um é tão previsível o que vai acontecer.
do estado de Nova Iorque, nas as manhãs, e já há bastante tempo grande período de tempo. Mas, E já não é tão estrofe-refrão,
montanhas, onde tenho uma quinta que é assim. Não sou um animal sim, é arquitetural, porque primeiro estrofe-refrão-ponte. As novas
e onde construímos um estúdio. noturno, sou mais um animal construímos as fundações e depois canções têm mais reviravoltas.”
Trabalhámos no meio da natureza, matutino”, ri-se. “Dou por mim a é que temos de casar tudo: a música Filhos de um baterista jazz, Aaron
sem pressão”, revela. “Ninguém escrever letras, ideias e melodias com o que o Matt andou a escrever. e Bryce cresceram encarando
queria fazer outro disco, a menos enquanto, à minha volta, as pessoas E é aí que a coisa se complica às a música como “algo natural,
que fosse realmente especial. dormem. Por isso, acho que vezes.” como comer. Mas fazíamo-lo
Sentimos necessidade de ter aprendi a sussurrar-cantar numa Apesar do experimentalismo a que por diversão, nunca planeámos
ideias novas. Felizmente, foi o que canção. A simples proximidade de se refere, e da estreia da banda em fazer disto o nosso ganha-pão. Se
aconteceu.” pessoas a dormir mudou a forma soluções como loops eletrónicos calhar foi por isso que acabámos

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“Ninguém queria
fazer outro disco,
mais intrincado”. O solo de ‘The
System…’ surgiu-lhe quando estava
“no celeiro, a beber cerveja” — a Sem corpo
a corpo
a menos que fosse diferença perante outras epifanias
do género foi que, desta vez, sentiu
realmente que a ideia o atingira “como um
relâmpago.” E, como o entusiasmo
especial. Sentimos se estendeu aos companheiros,
necessidade
E
o solo sobreviveu à cruel edição ra claramente um progresso desde os tempos em que, acabado
final. “Felizmente as pessoas até de chegar a Nova Iorque, Matt Berninger fora habitar num loft
de ter ideias novas. gostaram. Mas no passado talvez o de Gowanus, zona industrial desclassificada no sul de Brooklyn,
Felizmente, foi tivéssemos evitado, com medo de
parecermos indulgentes.”
onde os locais incendiavam os automóveis para receber o dinheiro
do seguro e cujas ruas as produtoras de laticínios usavam como local
o que aconteceu” Convencido de que este é o melhor de despejo para produtos fora de prazo: agora, Aaron Dessner tinha
disco de sempre da banda (“Ouço uma casa em Ditmas Park, um dos Distritos Históricos de Brooklyn,
AARON DESSNER nele todo o nosso potencial”), e alugava o andar de cima a Matt que, sozinho e alcoolicamente
Aaron não esconde a satisfação estimulado q.b., o ocupava como sala de partos poética. Bryce
por, ao contrário de outros grupos Dessner morava num apartamento da mesma rua (era ele quem
surgidos em Nova Iorque, no início cozinhava para Aaaron e Matt e lhes deixava as refeições à porta) e
do século, ainda se sentir em fase os irmãos Devendorf também não viviam longe. Quando chegava o
de crescimento. “Estamos gratos momento de dar corpo a um álbum, a garagem no jardim de Aaron
por termos conseguido resistir. Mas estava mesmo ali à mão. Foi assim durante cerca de dez anos e cinco
nunca nos enamorámos do nosso discos — “Sad Songs For Dirty Lovers” (2003), “Alligator” (2005),
próprio reflexo”, atira. “Como tal, “Boxer” (2007), “High Violet” (2010) e “Trouble Will Find Me” (2013).
aqui — porque nunca deixámos não estagnámos criativamente. Não Hoje, os cinco elementos dos National vivem dispersos pelo mundo,
de nos divertir”, considera Aaron, somos obcecados por nós mesmos”, separados por milhares de quilómetros. Não serão os primeiros a
que diz tocar com qualquer pessoa sentencia, elogiando “a curiosidade quem tal acontece. Mas, no caso deles, nota-se.
que o convide. “Gosto tanto de e a coragem” de uma banda “aberta Segundo a versão oficial, nada disso teria implicado qualquer perda
dar concertos gigantes com os The a colaborações e à energia vinda criativa. Quando necessário, dizem, juntam-se em locais vários para
National como de tocar com amigos de fora. Somos como a tartaruga: sessões de trabalho coletivo nas quais a velha alquimia da banda volta
e pessoas que não conheço!” Nos chegámos aqui devagarinho, e a borbulhar nas retortas. Mas, na verdade, escutando “Sleep Well
seus verdíssimos anos, Aaron se calhar há bandas cuja estrela Beast”, é difícil não reparar que, se o espírito e a tensão de “Alligator”
tocava baixo, tendo-o trocado brilhou mais intensamente, mas a ou “Boxer” não se extinguiram, tudo é muito mais calculado do que
pela guitarra para “imitar e fazer música que fazemos diz-nos algo a instintivo, mais jogo de guerra digital do que combate corpo a corpo.
pouco” do irmão gémeo. “Mas nós e às pessoas que se apaixonaram Continua a haver nervo mas há menos nervos à flor da pele, o que, aliás,
entretanto tornámo-nos bastante por ela. E isso não desaparece em entrevista à “Stereogum”, Bryce Dessner, falando sobre o trabalho
bons. Eu já conseguia harmonizar, facilmente”, argumenta. “Eu adoro de composição do grupo, eloquentemente explica: “É como construir
podíamos tocar à desgarrada e fazer os Strokes ou os Interpol. Têm um edifício no interior de outro edifício. Depois, demolimos o edifício
coisas que não conseguiríamos grandes discos do início das suas exterior e construímos outra estrutura semelhante a primeira, fazemos
fazer com outros guitarristas, carreiras, e ainda adoro vê-los ajustes nas janelas e retiramos o telhado.” As canções dos National
porque temos mãos parecidas tocar. Há muitas formas de fazer nunca foram, de facto, matéria para arrebatamentos adolescentes, mas
e capacidades semelhantes”, as coisas, mas eu preferia ter uma também nunca como hoje música tão adulta para náufragos que, numa
sublinha. “Conseguimos tocar de banda que ainda cá esteja dentro de jangada à deriva, insistem em conhecer os minutos e segundos exatos
forma a parecermos uma só pessoa. 10 ou 15 anos. Mas nunca sabemos. em que abandonaram o navio. Se Berninger não abdica da ironia para
Se ouvires as canções com isso em É uma colaboração frágil. E este até se referir à linguagem cada vez mais elíptica e desbastada dos seus
mente, reparas que fazemos muito pode ser o nosso último disco.” textos (“Não escrevo prosa nem escrevo poesia. Escrevo bons e-mails e
isso — é um jogo entre irmãos, e Semanas antes, Matt Berninger, envio mensagens com piada”) é em consequência dessa cerebral frieza
sempre foi.” falara da forma como a sua mulher, que ‘Walk It Back’ é um prometedor esboço que não chega a descobrir
Curiosamente, “Sleep Well Beast” Carin Bessner (que inspira a canção o rumo e disfarça o desnorte com um solo de guitarra, ‘Guilty Party’ e
oferece ao cancioneiro da banda ‘Carin at the Liquor Store’), tem ‘The System Only Dreams in Total Darkness’ são o género de canções
os primeiros solos de guitarra editado todas as suas letras desde que têm tudo para nos submergir mas apenas nos deixam a reparar
gravados em disco. E um deles “Boxer”. “Sobre a sua mulher, o na sobrenatural inteligência das extrassístoles rítmicas de Bryan
— o do single ‘The System Only Tom Waits diz: ela lava, eu dobro. Devendorf e ficamos a desejar que, por exemplo, a via de ‘The Day I
Dreams in Total Darkness’ — até No meu caso, é mais: eu lavo, Die’— uns Joy Division mais ricamente texturados — ou o descontrolo
lhes valeu a estreia na liderança ela dobra”, ilustrou. “O resto de ‘Turtleneck’ tivessem sido privilegiados. /JOÃO LISBOA
de um top da “Billboard”. “É das canções é, também, sobre o
verdade. Devia ter começado a meu ‘casamento’ com o Aaron, o
fazer solos há 18 anos!”, brinca casamento criativo da banda.” O
Aaron, que atribui o sucesso da ‘maestro’ Dessner não nega o papel
canção ao facto de encaixar “numa de, nas suas palavras, “liderar as
certa fórmula. Mas nos concertos tropas” e deixa um elogio a Matt,
tocamos sempre solos. E quando o mestre das palavras: “Neste
éramos miúdos estávamos sempre disco, ele escreve algumas das
nisso. Quando criámos a banda coisas mais diretas e intimistas
é que os abandonámos, porque dos últimos anos. Está muito mais QQQ
a forma como tocamos, aqui, é autobiográfico e pessoal. Lembra- SLEEP WELL BEAST
mais entrelaçada. Ou é muito me o ‘Alligator’.” b The National
textural, ou é um fingerpicking lipereira@blitz.impresa.pt 4AD/Popstock

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A
meio do Festival de Veneza, no
momento em que escrevo, duas
coisas são certas: uma é que a se-
leção da 74ª Mostra Internazionale
Um mundo
cheio de cólera
Bastante bom cinema, neste festival de Veneza
d’Arte Cinematografica é a melhor
desde há bastos anos; outra é que o
que se revigora ano após ano
mundo, visto daqui, está cheio de TEXTO JORGE LEITÃO RAMOS EM VENEZA
dor e, muitas vezes, cheio de cólera.
Dor global, civilizacional, históri-
ca, como mostra o documentário o mar concedem abrigo do outro com que Schrader o formata (a lem- (“The Shape of Water” de Guillermo
(“Human Flow”) que Ai Weiwei an- lado, Ai Weiwei limita o alcance brar que o realizador, em tempos, del Toro). Foi uma das mais gratas
dou a fazer por todo o lugar onde há do seu filme. Arrecada descrições era um apaniguado dos universos surpresas de Veneza/2017 — decerto
migrações humanas em massa, da detalhadas de factos, não mobiliza o de Ozu, de Bresson e de Dreyer), é, um dos grandes filmes americanos
Grécia ao Sudão, da Itália à Turquia, espectador. também ele, uma busca de remissão desta temporada que, ou muito me
da fronteira sul dos Estados Unidos Houve, ainda, a dor metafísica, dos pecados de um cineasta que engano, ou vamos ver em bom des-
a Mossul com os poços de petróleo transcendental, que trespassa o demasiados ínvios caminhos tem taque na na rota para os Óscares.
em chamas. É um inventário (qua- protagonista de “First Reformed” trilhado. Mas Veneza mostrou também
se) sistemático de uma realidade de Paul Schrader, pastor de uma Em Veneza, houve mesmo um filme dores íntimas, histórias privadas.
que assusta, interpela e comove e pequena comunidade no interior a falar de uma dor — como dizer? Como a demencial história de um
para a qual o artista chinês não tem americano que não consegue salvar — histórica, tomando os anos em homem e de uma mulher que vivem
resposta outra que não seja a de que um paroquiano em desespero pelo que parecia mesmo que a América a produzir filhos para imediata
migrar é um direito fundamental estado em que pusemos o mun- era Grande (a América que, agora, venda — um filme italiano, “Una
de todo o ser humano. Só que, ao do (“Deus perdoar-nos-á o que Trump diz querer reencontrar), Famiglia” de Sebastiano Riso, que
não querer fazer política, ao não fizemos à sua Criação?”, pergunta o princípio da década de 60, e poderia ser muito forte se não se
querer ir às causas do que empurra terrível no pântano ético em que colocando uma reflexão larga sobre desgarrasse nas teias extenuadas
milhões de pessoas a sair de casa muitas confissões cristãs se atolam). a intolerância nos carris fantásti- de um melodrama mal sustentado.
e partir sem saber se a estrada ou E o filme, no espartano rigorismo cos de uma história de ‘monstros’ Ou como a solidão de um homem e

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transforma em violência. Não, acontecer, em particular o que,
não estou a pensar naquela cena provavelmente, acontecerá depois
de “The Leisure Seeker” em que o do genérico final nos lembrar que o
quase demente John/Sutherland filme acabou, embora a história não
se junta a um comício eleitoral de tenha encontrado desfecho certo.
Trump e até aceita um badge na la- “Three Billboards Outside Eb-
pela que, logo a seguir, Ella/Mirren bing, Missouri", escrito e realizado
arranca e lança ao chão, com força, por Martin McDonagh, vai tendo
como lixo repelente — ele que muitos sorrisos, porque a raiva de
sempre fora democrata, ela que até Mildred não tem papas na língua e
votara por Reagan. Essa é uma pe- invetiva a torto e a direito, sempre
quena violência quase doméstica... tendo as suas razões, mesmo quan-
Estou a pensar no pai a quem vêm do não tem razão, mas o seu fulcro
dizer que o filho caiu ao serviço é um quotidiano insuportável onde
da Pátria (“Foxtrot”, do israelita acontece racismo e abusos policiais,
Samuel Maoz) e que, perante insu- violência doméstica e homofobia,
portabilidade do facto, parte numa crimes de guerra e fogo posto —
espécie de rêverie recalcatória, onde além do assassínio hediondo que dá
até a negação da morte tem lugar. o empurrão inicial à ficção. Parece
Eis um filme estranho, surreal, mu- escrito pelos Coen com menos
sical, que nos faz flutuar como se graçolas e muito fel — nada que
exalasse vapores de álcool, com que se compare ao argumento antigo
Maoz, oito anos após ganhar o Leão dos autores de “Fargo” que George
de Ouro (com “Líbano”), volta a Clooney filmou (“Suburbicon”) e
Veneza e à competição, agora com que dissolve em inconsistências
improváveis hipóteses de chegar ao o que poderia ser um olhar muito
palmarés. corrosivo sobre a América dos anos
Estou a pensar na mãe de família a 50. Apesar do seu potencial de en-
quem mataram uma filha adoles- tretenimento, “Suburbicon” acaba
cente — queimada e violada en- por ser uma desilusão, só matizada
quanto morria — e a quem a polícia pelo bom trabalho dos atores, Ju-
uma mulher, viúvos e já bem depois Frances McDormand local não dá um culpado na cadeia. lianne Moore, Matt Damon, Oscar
do patamar dos 70, a inventar uma em “Three Billboards Outside Um dia, vendo três grandes painéis Isaac brilham.
forma de fazer com que as noites Ebbing, Missouri”, de Martin publicitários praticamente abando- Raiva, raiva com décadas, é a que
não sejam tão penosas antes de McDonagh: um dos grandes nados numa das entradas secun- faz explodir o conflito de “L’Insul-
adormecer (“Nós, ao Anoitecer” filmes de Veneza/2017 dárias da cidadezinha onde reside, te” do libanês Ziad Doueiri, uma
de Ritesh Batra), brando filme de (à esq.); Adel Karam em Mildred/Frances McDormand re- história onde se confrontam um
“L'Insulte”, de Ziad Doueiri:
alguma maneira romântico que solve alugá-los e pôr frases a inter- palestiniano e um libanês católico,
o Líbano em carne viva
levou à Sereníssima Jane Fonda pelar diretamente o xerife local. O a partir de um incidente de rua,
(em cima); e Robert Redford
e Robert Redford, devidamente e Jane Fonda em Veneza: homem (Woody Harrelson) até nem sem qualquer importância, mas a
agraciados com um bem mereci- vedetas com eterno é mau tipo, nem um profissional que a História das duas comunida-
do Leão de Ouro à Carreira. Outra glamour (em baixo) relaxado dos seus deveres, o mesmo des vem deitar combustível para
gente de também terceira idade terá não se dirá dos seus homens e de que o fogo irrompa. A configuração
outros caminhos, como o suicídio alguns outros habitantes do lugar. dos personagens é cheia de cam-
partilhado de “La Villa” do francês Mas o gesto de Mildred vai desen- biantes, o desenho do seu passado
Robert Guédiguian ou a viagem cadear uma espiral onde muitas é destilado no tempo do filme com
terminal do casal Helen Mirren/Do- coisas acontecem que não deviam grande sageza dramática, de tal
nald Sutherland, pela estrada fora modo que o filme (e o especta-
para ver a casa de Hemingway em dor com ele...) que começa por se
Key West que ele toda a vida quisera colocar mais de um lado do que do
visitar. Ele está a esquecer-se de outro, mais do lado palestiniano
tudo, ela está com um cancro em que do lado católico, vai pondo em
estado avançado, mas o filme (“The causa as suas próprias simplifica-
Leisure Seeker” de Paolo Virzì) tem, ções e dando a perceber que a rea-
até certo ponto, um registo de quase lidade de Beirute é muito complexa
comédia que os intérpretes susten- — tal como a História do Líbano nas
tam com todo o talento e manha de últimas cinco décadas.
que são capazes — e muito capazes Por sobre um cinema que agarra a
são, como se sabe. É um daqueles turbulência, foi bonito, todavia, ver
filmes a dizer que tudo vale a pena a serenidade de Frederick Wiseman
mesmo até o fim, a conjugar sorri- nas três horas e dezassete minutos
sos com um peso no peito, com os que dura “Ex Libris: New York Pu-
limites inerentes. blic Library”, o documentário onde
aborda uma instituição que, na
FILMES DE RAIVA Big Apple, se dedica a um trabalho
Esteve alta a fasquia nos filmes contínuo — um daqueles trabalhos
de raiva, isto é, nos filmes onde que mais raízes lançam para um
a intolerabilidade da realidade se mundo de paz. b

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Deixar o fado
e ser feliz Marco Rodrigues quis fazer
um disco alegre. Gravou
canções em vez de fados

outros géneros musicais e o fado.


As pessoas de todas as outras áreas
aproximaram-se.”
O fadista já se tinha aproximado de-
las ao tocar — também é guitarrista
— para vários intérpretes. E, sendo
um apaixonado da guitarra portu-
guesa (razão por que se apaixonou
pelo fado), sempre quis trazer para
Marco Rodrigues já deu provas de ser um senhor do fado. os instrumentos tradicionais do
fado abordagens diferentes, timbres
Agora mandou tudo isso para trás das costas e resolveu celebrar e sons distintos dos históricos. Isso
fá-lo, de facto, no disco e com toda
a vida. O resultado é um disco de altos e baixos, onde a canção a liberdade musical. Aquela que não
tomou conta do som teve quando ganhou a Grande Noite
do Fado ou quando aos 16 anos já

M
TEXTO ALEXANDRA CARITA cantava no café Luso, era então o
mais novo fadista do Bairro Alto.
E aquela que não tem ainda hoje
ver a colaborar com uma guitarra que se sabe fazer”, para, sim, não cada vez que vai, e vai muitas vezes,
portuguesa. Boss AC é um deles, “perder o ambiente de cada tema”. cantar e tocar a uma casa de fados.
Capicua outra. E tudo faz sentido “A partir de certa altura, cantar tem “Hoje o fado sofre outras influências
nas letras bem humoradas destes que servir a música e não servir-se e tem outro tipo de preocupações
dois músicos, que até com a métrica dela. Não quis cantar para me sentir com o som. É diferente de há 40
jogam. Palavras difíceis, que Marco bem comigo próprio e dizer-me que anos, não é melhor, nem pior. Mas
interpreta sem se engasgar (Biscuit, sou capaz de fazer isto e aquilo”, faz-se muito bem.” Tiago Machado,
croqui, Drácula...) marcam presença continua Marco Rodrigues. “O que produção, arranjos e direção mu-
numa divertida forma de estar. quis foi estar tranquilo e mostrar sical, teve um papel decisivo neste
Com a frescura da idade e a felici- essa tranquilidade, essa serenidade.” trabalho de encontrar uma sonori-
arco Rodrigues diz que ‘Não Podia dade de acabar de ter um filho, o De muito mais gente vive o disco, dade própria para o disco e aqui fica
Estar Melhor’ e apresenta um fadista reparte alegria com muita porém. Nomes como Mariza Liz, a referência ao esforço.
trabalho de acordo com esse estado gente. Agir é uma surpresa agra- com nota positiva, Guilherme Alface É assim, de avanços e recuos, de
de espírito. Longe do fado, só três dável com ‘Por Ti’. A composição e João Direitinho, idem aspas, Diogo altos e baixos, que vive o “Copo
temas são fados tradicionais e são agrada (filho de peixe sabe nadar), Piçarra, nos antípodas, ou Jorge Fer- Meio Cheio”. Depende de quem o
os melhores musicalmente — ‘A só a letra se revela demasiado óbvia nando, Luísa Sobral e Carlão, a meio olha, como o melhor do título pode
Tua Estátua’ (fado Tamanquinhas), e simples. Mas o disco vai abaixo termo, também fazem parte de um querer significar. b
‘Vapores’ (fado Pena) e ‘A Ruga’ com ‘Mal Dormido’, letra e música vasto conjunto eclético de músicos acarita@expresso.impresa.pt
(fado Latino) — o músico avança de Pedro Silva Martins, o tema que ao serviço de Marco Rodrigues. “Foi
por terrenos movediços dos quais Marco dedica ao filho e que poderá muito fácil convencê-los. Aceitaram
se sai bem de vez em quando e nos espelhar essa vida de pai recente, de imediato. E as letras começaram
quais se atola outras tantas ve- mas que peca por uma leviandade logo a aparecer e alguns deles nem
zes. No entanto, tem o condão de a toda a prova e a rondar a festa de os conhecia pessoalmente como é
manter uma coerência na variedade aldeia. Assim influenciado, como o caso do Agir.” A justificação para
de ritmos, divertidos é o adjetivo, assume o músico, o disco “tinha de o fenómeno Marco também a tem.
que assentam muito no piano e na falar de coisas boas e alegres, embo- “O fado deixou de ser uma música
harmónica. ra se sinta a tensão nalguns temas”. à parte. Deixou de estar fechado
Risco assumido, o fadista brilha neste Fugindo ao fulgor da voz de Marco num nicho. Os fadistas, os letris- QQ
“Copo Meio Cheio” pela inovação nas Rodrigues, “propositadamente”, o tas e os compositores tiraram-no COPO MEIO CHEIO
letras, convidando letristas e também álbum, diz o intérprete, “ultrapas- desse nicho. Deixou, portanto, de Marco Rodrigues
compositores que não esperaríamos sa a fase de querer mostrar tudo o haver uma barreira tão alta entre os Universal

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O ar que
respiramos
Durante um fim de semana, Serralves abre-se
para uma experiência de artes do aqui e agora
em “O Museu como Performance”

N
TEXTO CLAUDIA GALHÓS

dança, música, desrespeitando


disciplinas, chamando a atenção
para novos campos de experiência e
de conhecimento, sempre enfa-
tizando a importância da prática
em tempo real, do aqui e agora. ‘O
Museu como Performance’ refle-
te e questiona direções e sentidos
para o performativo no contexto
da instituição museológica, mas
um suspiro de choro é-se arrancado estes podem ou não ter origem e/ou
para a vida. Num suspiro de apaga- destino no campo das artes visuais.
mento é-se arrancado da vida. O ar Interessam-nos particularmente
que partilhamos é matéria de uma a exploração dos territórios mais
das propostas da terceira edição de escorregadios e difusos.” Desta
O Museu como Performance, de vez, o programa estende-se a mais
Serralves, “The Forgettin of Air”, da espaços de Serralves, como a Casa,
italiana Francesca Grilli (Capela de a Capela e o antigo campo de ténis,
Serralves, hoje, 18h; amanhã, 16h que assim se somam aos lugares já Imagem de“The
e 18h30). Na respiração tudo nasce habitados por este evento, como o Forgettin of Air”,
e tudo morre, lembra a artista, que Parque, as Galerias do Museu e o da italiana
sugere a ideia do ar como território Auditório, “permitindo aprofun- Francesca Grilli
de partilha e reflexo dos processos dar e diversificar o tipo de relações
contemporâneos de migração. No entre os trabalhos e os lugares que
seu statement artístico, Francesca os acolhem”, como explicaram ao Square Dance”, da holandesa Ger- emergência do que está fora da
sublinha a importância da perspeti- Expresso. “Se em edições anterio- maine Kruip, que hoje se apresenta norma, “um local de paisagens
va política na presença de perfor- res, a tónica dessa relação estava no no Parque (14h), na Casa (17h30 desejadas, de outros objetos-corpo
mers que são artistas que arrisca- questionamento do lugar do museu, e 19h); e amanhã nas Galerias do e das suas relações”, aprofundando
ram a vida para fugir do seu país e a multiplicação dos espaços estimu- Museu (12h30) e na Casa (17h e a temática das teorias e práticas
incluindo, em cada nova cidade, la novas abordagens à relação entre 20h). Da pesquisa que desenvolve queer. O português Projecto Teatral,
dois a três refugiados para partici- artes visuais e performativas. O desde 2011 sobre os significados com a sua marca num território
parem da ação. Este ‘esquecimento papel do Museu continua obvia- associados a formas geométricas, visual e poético que não se rende a
do ar’ é apenas uma das propostas mente a ser refletido, mas tendo em Germaine introduz a forma qua- simples categorizações, apresenta
situadas entre a poesia, o pensa- atenção a própria história de Serral- drada na dança circular ritualística a nova criação, “Arca”, no Auditó-
mento e o gesto cívico que mode- ves, que desde a sua génese sempre dos bailarinos sufis. Cruzam-se rio, numa coprodução de Serralves
ram formas alternativas de abordar se distinguiu pela liberdade que deu nestas presenças temporalidades e com La Ferme du Buisson (Paris),
o mundo por via da arte, num a artistas (visuais e performativos) estruturas de pensamento diversas, onde estreou em junho. Então, era
contexto onde a disciplina artística para que trabalhassem em contex- nomeadamente mais contempo- apresentado como “uma ‘ação’ que
é, por natureza, interrogada, se não tos que não as galerias do museu ou râneas, entre elas a referência à navega entre a instalação, a perfor-
indisciplinada. o palco do seu Auditório.” É assim “Square Dance”, de Bruce Nauman mance e o ritual, confrontando o
O Museu como Performance é pro- que a cartografia da ocupação de (1967). Por outro lado, o Teatro espectador a uma espécie de ‘pré-
gramado conjuntamente por Cris- Serralves se diversifica nesta edição. Praga/André e. Teodósio instala-se -história’ do teatro”. b
tina Grande, Pedro Rocha e Ricardo Há propostas que encontram um nas Galerias do Museu com “()”,
Nicolau. Esta edição, dizem ao espaço específico para habitar, há peça para três intérpretes que de-
Expresso, “confirma a importância outras que existem num movimento corre ao longo de cinco horas (hoje,
da performance no ecossistema da contínuo e de sugestão de criação das 14h30 às 19h30). Neste caso, o
arte contemporânea. Mais uma vez, de significados em permanente espaço de apresentação é questio- O MUSEU COMO
apresentam-se propostas de artistas metamorfose, conforme também o nado enquanto lugar que contribui PERFORMANCE
que se situam num espaço difícil de seu enquadramento físico. É o caso para uma convergência em direção Vários
catalogar, entre artes visuais, teatro, de “A Possibility of an Abstraction: à unicidade, gerando um lugar de Serralves, Porto, hoje e amanhã

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Li
vros
Neste romance, Han Kang
explora os limites
da experiência humana,
com uma escrita de grande
plasticidade e beleza
ROBERTO RICCIUTI/GETTY

A voz dos mortos


Depois do sucesso
O
nome da escritora sul-coreana Han ao fim de meia dúzia de páginas. Abordando
Kang (n. 1970) impôs-se na cena um tema incómodo, mesmo passadas quase
de “A Vegetariana”, Han Kang literária mundial o ano passado, quatro décadas sobre os acontecimentos,
quando a tradução para inglês do seu romance “Atos Humanos” foca-se nos massacres
desenterra as histórias de um “A Vegetariana” venceu o Man Booker de Gwangju, ainda hoje uma ferida aberta
massacre ocorrido em 1980 International Prize, batendo candidatos
mais óbvios – da italiana Elena Ferrante ao
na consciência coletiva dos sul-coreanos.
E Kang não se limita a resgatar a memória
na cidade onde nasceu Nobel turco, Orhan Pamuk. Editado pouco das vítimas, a voz dos mortos, como outros
depois em Portugal, “A Vegetariana” narra escritores e cineastas vêm fazendo. A
TEXTO JOSÉ MÁRIO SILVA o percurso bizarro de uma mulher comum, partir da matéria terrível dos factos, dessas
sem nada que a distinga, até ao dia em atrocidades quase impossíveis de imaginar,
que decide, depois de um sonho grotesco, ergueu uma estrutura romanesca sólida, em
deixar de comer carne. Com uma escrita ao que encontramos pessoas de carne e osso,
mesmo tempo clínica e lírica, atravessada homens e mulheres concretos, engolidos por
por imagens poderosíssimas, Kang multiplica um limbo onde os extremos da experiência
as perspetivas (do marido, do cunhado, humana se tocam: a máxima crueldade dos
da irmã) sobre o ato de rebelião passiva da soldados, capazes de espetar baionetas na cara
protagonista, detendo-se nas várias formas de raparigas indefesas; e a dignidade absoluta
de violência física e psicológica que põem em dos cidadãos, esperando em filas ordeiras para
causa a liberdade de uma mulher dispor do dar sangue, sem medo das balas.
seu corpo. A revolta de Gwangju aconteceu em maio
Vivendo muito do efeito de estranheza, “A de 1980, numa altura em que a Coreia do Sul
Vegetariana” é sem dúvida um bom livro, era liderada com mão de ferro pelo general
mas o hype à sua volta foi manifestamente Chun Doohwan, sucessor de Park Chung-
exagerado. Que esperar então do segundo hee, o ditador que fora assassinado uns meses
QQQQQ romance de Kang a chegar ao Ocidente, antes. A opressão agravou-se, com o fecho
ATOS HUMANOS também ele rapidamente traduzido para de universidades, restrições à liberdade de
Han Kang português? A eventual desconfiança — imprensa, e o prolongamento da lei marcial.
D. Quixote, 2017, trad. de Maria do alimentada por outros ‘fenómenos’ editoriais Depois de vários protestos estudantis e
Carmo Figueira, 227 págs., €14,90 que logo redundaram em flops – dissipa-se sindicais, reprimidos brutalmente pelas forças

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policiais, a população de Gwangju insurgiu- ISTO ANDA
se, criando milícias civis que expulsaram TUDO LIGADO
as autoridades da cidade. Durante dez dias,
criou-se uma ilusão de mudança, uma bolha
democrática que acabaria por rebentar da pior QUANDO EM
forma. Quando o exército regressou em força,
dizimou toda e qualquer resistência. Ainda DÚVIDA, DIGA
hoje não se sabe ao certo quantas pessoas
morreram, mas terão sido milhares. Durante QQQQ A VERDADE
anos, quem pusesse em causa os números RAUL BRANDÃO ÍNTIMO
oficiais (cerca de 200 mortos), era preso e Vitorino Nemésio Para falar verdade,
torturado. Só em 1997, já em democracia, é Opera Omnia, 2017, 48 págs., 5€ não recordo a última
que foi construído um memorial e as famílias Ensaio manifestação em que
puderam cumprir os ritos fúnebres. participei. Não falo de
Nascida em Gwangju, Han Kang mudou-se Vitorino Nemésio, ilhéu da Terceira, conheceu ‘passeatas’. Falo de
com a família para Seul quatro meses antes Raul Brandão em 1924, a bordo de um paquete manifestações em que
dos massacres. A ‘culpa do sobrevivente’ que rumava aos arquipélagos portugueses. Uns não era conveniente
talvez tenha contribuído para a certeza anos mais tarde, compreenderia de imediato “As aparecer de saltos altos
de que um dia teria de contar as histórias Ilhas Desconhecidas” (1927) como um momento ou desembarcar de táxi.
dos caídos. No último capítulo de “Atos de viragem na obra brandoniana, que passava da / ANA Indiscutivelmente, uma
Humanos”, assumindo-se como mais uma lama e das catacumbas, ou seja, do simbolismo CRISTINA das últimas teve que ver
das personagens deste romance polifónico, grotesco e fantástico, ao domínio da reportagem LEONARDO com a Rádio Renascença.
a escritora explica o caminho que teve de impressionista e andarilha: “‘Os Pescadores’ [1923] Deu-se em Lisboa ali ao
fazer, desde a infância até aos meses de é um livro de pintor; ‘As Ilhas Desconhecidas’ tam- Chiado e, mal era chegada,
investigação nos arquivos, para escrever este bém. Cansado talvez dos fantasmas do ‘Húmus’ e perguntaram-me: “Vens para a manifestação?”
livro. E conta como encontrou o centro de de ‘A Farsa’, Raul Brandão refugiou-se em tarefas Com certeza, disse eu. Deram-me um capacete
gravidade da narrativa na figura de um rapaz de escritor itinerante, transpondo o halo trági- e mandaram-me para o piquete das pedras.
de 15 anos, Dong-ho, que existiu mesmo (é co dos comparsas das suas histórias dos guetos As pedras, ao contrário do que sucedia em “A
junto à sua campa que o livro acaba), viveu na urbanos e da vila petrificada para a aura de sonho Vida de Brian”, dos Monty Phyton, eram de
casa que a sua família deixara, e se transforma das manhãs do litoral português (…).” Esse e outros borla. E, como no filme, os participantes eram
numa personagem de uma dimensão trágica episódios biográficos iluminam as cinco crónicas maioritariamente barbudos, embora estes fossem
simplesmente extraordinária. e o ensaio reunidos em “Raul Brandão Íntimo” de barba rija e não mulheres a querer passar por
No primeiro capítulo, acompanhamos (extraídos dos volumes “Sob os Signos de Agora”, homens. Indo sem mais rodeios ao assunto: não
Dong-ho na tarefa de identificar e registar 1932, e “Jornal do Observador”, 1974), textos de tendo aparecido ninguém para ser apedrejado,
os cadáveres que se acumulavam no ginásio crítica e de evocação, géneros que Nemésio não não houve apedrejamento. Ressalve-se: não houve
municipal de Gwangju, transformado em gostava de distinguir por completo. Em certos apedrejamento, mas havia pedras. “Mudam-
morgue improvisada, depois dos primeiros casos, trata-se sobretudo do Brandão-indivíduo, se os tempos, mudam-se as vontades...” (cito
recontros. Entre os mortos, ele procura o com quem Nemésio se correspondeu, e que visi- respeitosamente Camões) e passou-se à inversa:
corpo de um amigo, de quem se separou tou na vimaranense Casa do Alto (uma casa com não há pedras, mas há apedrejamentos. A lei
durante a carga dos militares. Mais tarde, brios mas sem luxos). Reservado, “afectadamente mosaica ressuscitou virtualmente no mundo
ele próprio fará parte da longa lista de altivo”, contemplativo, hipocondríaco, social- civilizado, legitimada agora não pela Torá, mas as
desaparecidos. E o resto do livro, que vai mente sonâmbulo, egotista empático, cônjuge mais das vezes pela ‘pós-verdade’, essa expressão
saltando no tempo até à atualidade, convoca devotado, “dolorido e inquieto, atónito e seden- que fez parangonas aquando da eleição de Trump
as vozes de várias figuras que se cruzaram to”, Brandão era um homem de contradições. E o e que, como tudo, ao banalizar-se se vai esvaindo
no seu caminho: amigos, companheiros Brandão-escritor usava essas antinomias. Estenó- de sentido (cf. o caso do political correctness que
de luta, a mãe. Muitos deles hesitam, grafo do tumulto íntimo, aforista da fatalidade so- de tão elástico significa tudo, incluindo o seu
entre a recusa de regressar ao horror a que cial, testemunha do arrivismo cortesão, tornou-se contrário). Se fizermos equivaler pós-verdade e
foram sujeitos e a necessidade de deixar “a individualidade mais forte da literatura portu- propaganda não podemos dizer que a coisa seja
testemunho do que aconteceu, de lutar guesa, mau grado um estilo sem plano, um ideário nova. Já Goebbels (que por vezes imagino a bater
contra o esquecimento. desfeito em nebulosas sentimentais e um instinto palmas no túmulo...) estava farto de saber que
Cada capítulo traz-nos um relato com várias que deformava a realidade para tratá-la a seu gos- a (boa) propaganda se mede pelo seu êxito sem
camadas, e cada relato articula-se com os to”. Hesitando “entre o quadro histórico à Oliveira que a verdade seja chamada à conversa. O que
restantes, todos ecoando uns nos outros, com Martins e à Michelet, e a novela desgrenhada, parece fazer hoje toda a diferença é a velocidade
a força de uma melodia triste que atravessa introspetiva”, Brandão desmultiplicou-se em da propagação. Se no tempo de Goebbels a medida
a espessura da História. “Há memórias que páginas de jornalismo incisivo, em ficções assom- era a velocidade do som — é difícil imaginar o
nunca saram. Em vez de se esbaterem com bradas, em memórias radicalmente documentais e sucesso das infâmias nazis sem a rádio — nos
a passagem do tempo, essas recordações em perfis de aventureiros e oprimidos, de intri- dias que correm é difícil conceber o sucesso da(s)
tornam-se a única coisa que sobra quando guistas e desgraçados. Mas claro que, tratando-se pós-verdade(s) sem as redes sociais, essa entidade
tudo o resto se corrói. O mundo escurece, de Nemésio, estas apreciações judiciosas são virtual que, no entanto, esbraceja, esperneia, grita
como lâmpadas elétricas fundindo-se uma frequentemente interrompidas por divagações, e (se for preciso) apedreja com consequências
a uma.” Contra essa escuridão, a luz deste algumas vezes graves, mas em geral levíssimas: os tangíveis. Se lhes somarmos a falência acelerada dos
belíssimo romance assemelha-se à vela que “encontros alvissareiros de porta de livraria” com jornais, é lícito interrogarmo-nos sobre a relação
Kang acende junto à campa de Dong-ho: Aquilino, Régio revisitado, o legado dos “searei- entre verdade e palavra impressa. A questão sugere
“Não rezei. Não fechei os olhos, nem fiz ros”, o “miltónico” Pascoaes, um Unamuno quase um tema psicológico interessante: será que é mais
um minuto de silêncio. (…) Fiquei a olhar transmontano, uma festa de casamento ou umas fácil mentir virtualmente do que num meio com
fixamente e em silêncio para o contorno “veleidades de equitação”. Um estilo de erudito ir- existência palpável? Sendo assim, a quem interessa
titubeante da chama, esvoaçante como a asa requieto que transcende qualquer “tema”, mesmo o desaparecimento dos jornais e dos jornalistas e a
translúcida de um pássaro.” b quando o tema é Brandão. / PEDRO MEXIA redução da informação ao show business? b

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QQQQ
CÉUS NEGROS
DWAYNE SENIOR/EYEVINE

Ignacio del Valle


Porto Editora, 2017, trad. de Alcinda
Marinho, 320 págs., €17,70
Os romances de Graeme Romance
Simsion, sugeridos por
celebridades como Bill Gates,
tornaram-se best-sellers O capitão Arturo Andrade é um ho-
mem dividido, mas não perdeu o norte
da decência. Na Espanha de 1950, na

Cabeça, coração
província de Cáceres, dois cadáveres
de meninas assassinadas levam-no a
uma investigação sem tréguas. Neste

e estômago
quarto volume da série do escritor
asturiano Ignacio del Valle (n. 1971), em
que o capitão é protagonista, a igno-
mínia é apresentada como uma coisa
natural, protegida por uma rede de
interesses, por “lacaios viciados na sua

N
inguém pode acusar não lhes tentar impor as suas “Ninotchka”. Aí, a doença não própria loucura”. Na base dos crimes
este livro de tardar a soluções meticulosas para tudo e era o autismo e sim o fanatismo está uma ideologia racista, decretando
estabelecer o tom. Ele mais alguma coisa. Tillman vive ideológico, mas, tal como na “uma hipotética condição biológica”
começa assim: “O sumo de obcecado com planos, sequências história de Tillman, o amor era a atribuída pelo regime aos que perderam
laranja não estava agendado para e repetições. Embora no casal solução. Em “O Efeito Rosie”, o a Guerra Civil, e que tinham de ser “pu-
as sextas-feiras. Embora eu e a de que ele faz parte o sexo seja caminho passa ainda por ajudar rificados” e “regenerados”. O escândalo
Rosie tenhamos abandonado o um dos poucos elementos não os outros a encontrarem-no ou a das instituições ditas de acolhimento
Sistema Padronizado de Refeições, agendáveis (“por acordo tácito”, recuperarem-no; e, curiosamente, social, com a total cumplicidade da
que resultou numa melhoria explica o professor), a verdade é é também por essa via que se chega Igreja, que davam ou vendiam as crian-
da ‘espontaneidade’ à custa do que constitui uma parte muito ao coração desejado. ças órfãs ou retiradas às mães presas,
tempo passado em compras, importante da relação e tende ele Sentimentais q.b., como convém não podia ser exposto à luz do dia, mui-
do inventário e do desperdício próprio a acontecer como elemento a Hollywood, estes livros têm to menos se alguém bem colocado se
de comida, concordámos que de uma rotina fixa. O advento outra característica que os dava ao desvario de matar inocentes.
devia haver três dias por semana inesperado de um bebé pode torna populares: a quantidade “O controlo da realidade começa pelo
sem álcool. Na ausência de uma ameaçá-lo. Também o ameaça a de lições sociais e psicológicas, controlo da linguagem”, e “se repeti-
calendarização formal, e tal como impreparação básica do prospetivo entre o elementar e o subtil, que mos muito a verdade, acabamos por
eu previra, este objetivo revelou-se pai, que ao longo dos meses de apresentam em versão cómica. duvidar dela, e se se repete muito uma
difícil de alcançar.” gravidez se esforça por compensar “O Gene é um especialista em mentira, acabamos por acreditar nela”.
A voz pertence a Don Tillman, essa falha, ao ponto de quase interação social. Dirigiu-se na O capitão está ciente dos poderes que
o professor de genética que já provocar a ruína do casamento. minha direção como que para me enfrenta nesta investigação, mas não
conhecíamos de “O Projeto Não vamos dizer como a história abraçar; depois, detetando a minha desiste de um módico de justiça nem
Rosie”. Este romance, igualmente termina, mas podemos adiantar linguagem social ou recordando-se que seja à sua maneira. Com o ajudante
editado na Presença, inaugurou que não há aqui nada suscetível dos nossos protocolos do passado, Manolete, sobrevivente como ele da
o que deverá ser pelo menos de ameaçar, por implicação, a limitou-se a apertar-me a mão.” campanha russa, não deixa pedra por
uma trilogia. Isto porque o êxito instabilidade de casais de classe / LUÍS M. FARIA virar, incluindo a presença de uns restos
espetacular da série — com um média que apreciam cozinhar e de guerrilha nas serras. Nada é a preto e
milhão de exemplares vendidos, outros prazeres domésticos ao branco sob o céu azul e o calor impe-
adaptações previstas ao cinema, mesmo nível dos protagonistas. nitente da Extremadura rural, pobre e
louvores de gente conhecida, Até experiências um pouco oprimida pelos poderes vigentes. “Está
incluindo Bill Gates — poderá mais alheias à maioria das fodido, capitão, muito fodido, muito
determinar a existência de mais pessoas soam confortavelmente mais do que pensa”, diz-lhe um preso,
alguns volumes, sobretudo se os familiares. A solidão compulsiva, “porque já não acredita nas ideias e,
filmes forem mesmo realizados. o desprezo intelectual ou a falta de o que é pior, os seus preconceitos já
Tillman é um herói para o nosso flexibilidade são traços habituais não o deixam acreditar nos homens”.
tempo: levemente autista (com de pessoas inteligentes que vivem Ele esforça-se por provar o contrário,
aquilo a que costumamos chamar centradas nelas próprias. QQQQ extraindo-se da roda do sofrimento,
Asperger), os seus problemas giram Quanto à incapacidade emocional, O EFEITO ROSIE “que imensa dor e desalento atestam,
sempre à volta da dificuldade em é uma fonte tradicional de Graeme Simsion soberba empedernida, ódio constan-
entender os outros. Sobretudo, humor, como sabe quem recorda, Presença, 2017, trad. de Pedro te”( Milton, “Paraíso Perdido”).
de os entender ao ponto de por exemplo, o velho filme Elói Duarte, 342 págs., €17,90 / JOSÉ GUARDADO MOREIRA

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Lisboa na Rua’17

QQQQ
NOTAS PARA UM
QQ
O ESSENCIAL SOBRE carmina
burana
PREFÁCIO... VERGÍLIO FERREIRA
Vítor Silva Tavares Helder Godinho
Viúva Frenesi, 2017, 28 págs., €7 Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
Ensaio 2017, 73 págs., €6
Ensaio

Divulgado agora pela primeira vez, Terminada a leitura deste livro, fica-se
este texto de Vítor Silva Tavares é uma com a sensação de que foi escrito
tentativa de prefácio ou posfácio para sem grande brio, como quem cumpre
“Relógio de Cuco”, de Virgílio Marti-
nho (Estampa, 1973), que os editores
mecanicamente um compromisso ou
encomenda. Se a ideia era despertar o
Orquestra Gulbenkian
preferiram não publicar. Por “tentati- interesse de potenciais novos leitores COrO Gulbenkian
COrO infantil dO institutO
va” entenda-se, aqui, uma admirável de Vergílio Ferreira, a intenção ficou
sucessão de “rabiscos” feitos por quem pelo caminho, ao mesmo tempo que
não tem qualquer pejo em afirmar: “É
que não gosto de prefácios, mesmo da-
defrauda as expectativas de quem, já
conhecendo a obra do autor de “Apari- GreGOrianO de lisbOa
queles que, enfim, escapam.” Ou ainda: ção”, pretende compreendê-la melhor.
“O tempo (assim a prazo) oprime-me.” Helder Godinho é um especialista na
O que se dá a ler, nestas “Notas para obra de V.F., com vasta bibliografia
um prefácio (a haver) com pedido de ‘vergiliana’, e o seu conhecimento do
posfácio”, texto nómada que “remete tema não está em causa. O que se

9 setembro
para o companheirismo, a amizade, a questiona é a adequação do seu discur-
irmandade e outros acidentes de for- so ao formato da coleção “O Essencial
tuna e azar”, é a atitude extremamente sobre…”, cujo propósito consiste em
vertical de Vítor Silva Tavares, para oferecer, de forma sucinta, rigorosa e
quem “a literatura, por si só, não deve
nem pode preencher uma existência
inteira”. Estamos perante “um irreme-
apelativa, a síntese de um determinado
tema. Ora, esta abordagem à escrita de
Vergílio Ferreira é tudo menos apelati- 21h30
vale do
diável inimigo da literatura-quando- va. Após um brevíssimo esboço biográ-
-frete”, coisa que se tornou raríssima. fico, Godinho traça o percurso intelec-
Porém, enquanto foge exemplarmente tual de V. F., sinalizando a passagem,

silêncio,
da sua missão de prefácio, este texto logo nos primeiros livros, do neorrea-
desmonta sem complacências os lismo ao existencialismo (após a leitura
bolores burgueses de certo neorrea- de Sartre e Hegel), bem como a noção
lismo, ao qual contrapõe o “realismo de “romance-problema”, a evolução de

olivais
poético” (aqui e ali surrealizante, mas uma “arquipersonagem” que atravessa
nunca ortodoxo) de Virgílio Martinho. E toda a obra (marcada pela busca de
confronta-nos com sínteses cirúrgicas uma “presença ausente”, reflexo de
e inapeláveis como “fixar na escrita a perdas concretas, inscritas na biografia
memória da infância é de certo modo do autor), um trajeto que parte da in-
fotografar a morte”. Além do seu méri- quietude do contínuo questionamento

entrada livre
to próprio, que é imenso, estas “notas” para chegar a uma espécie de aceita-
deveriam convidar-nos a revisitar a ção, nos romances finais, da “vivência
obra não muito lembrada de Virgílio simples na ordem universal”. Pena é que
Martinho, que tem em “Relógio de esta panorâmica se perca numa prosa como chegar
Cuco” um dos seus momentos cimeiros, excessivamente densa, opacamente carris: 717, 731, 732, 744, 759, 778
mas que é também autor do magnífico académica e estilisticamente des- metro: olivais (linha vermelha)
“Rainhas Cláudias ao Domingo”. E man- cuidada, com ideias repetidas e linhas
tém-se válido, para não dizer urgente, argumentativas confusas, funcionando
o seguinte repto: “Mas que importa a em circuito fechado (a esmagadora
literatura se não tiver por trás um desti- maioria dos trabalhos citados são do
no humano que se cumpre?” De modos próprio autor). Injustamente esquecido
diferentes, mas solidários, Vítor Silva pelas gerações mais novas, Vergílio
Tavares e Virgílio Martinho cumpriram Ferreira merecia uma introdução ao seu
esse destino, saindo o mais que podiam universo que fosse estimulante e atra-
da literatura. / MANUEL DE FREITAS tiva. Em vez disso, coube-lhe este mal
amanhado estudo. Uma oportunidade
perdida. / JOSÉ MÁRIO SILVA

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Ci
ne
ma
Daniel Craig e Adam
Driver em “Sorte à
Logan” (à dir.), de
Steven Soderbergh (em
baixo, a dirigir Seth
MacFarlane e Sebastian
Stan no mesmo filme)

Eficiência saloia
O novo filme de Soderbergh é a versão pacóvia de “Ocean’s Eleven”
TEXTO VASCO BAPTISTA MARQUES

Q
uatro anos após o anúncio dos túneis do autódromo
da sua retirada do cinema, de Charlotte, na Carolina
Soderbergh regressa do Norte. Não se estranhe
com um filme de produção pois que, quando o patrão o
independente, que reata laços despede por motivos irrisórios,
com a mais popular das suas Jimmy sugira aos irmãos (um
obras. Entenda-se: o que “Sorte taciturno bartender maneta
à Logan” nos propõe é, na que combateu no Iraque e uma
verdade, uma espécie de versão cabeleireira que anda sempre
white trash e ‘desglamourizada’ seminua) que embarquem com
de “Ocean’s Eleven”, um ele num projeto arriscado: o
caper movie provinciano onde de assaltarem o cofre que está
a competência anda de mãos situado sob o autódromo, no dia
dadas com a vacuidade. em que nele se disputará uma
No centro do filme, está um dos corrida de NASCAR. De modo a
membros da família de losers consumarem o furto, os irmãos
do título. Falamos de Jimmy urdirão também um plano para,
Logan, um trintão da Virgínia nesse dia, retirarem por algumas
Ocidental que pouco tem a que
se agarrar: uma lesão no joelho
que o força a coxear impediu-o
de jogar na NFL; a sua ex-
mulher trocou-o por um seboso QQ
vendedor de automóveis… Como SORTE À LOGAN
se não bastasse, este pobre diabo De Steven Soderbergh
sem qualidades notáveis tem Com Channing Tatum, Adam
ainda de percorrer diariamente Driver, Daniel Craig (EUA)
centenas de quilómetros, para Comédia/Thriller M/12
trabalhar nas obras de reparação

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O CINEMA DÁ
horas da prisão um criminoso
local, que — acham eles — é a
peça-chave da operação.
Vinte anos O QUE A VIDA TIRA
O que daqui nasce é um heist
movie em tom humorístico de silêncio
(mas, cujos gags são frouxos), UMA LISTA
N
que passa a vida a dinamitar a sua curta anterior, a notável “A Story for the
as nossas expectativas: assim Modlins” (venceu o Curtas — Vila do Conde CONSERVADORA
que pensamos que a coisa vai em 2012), Sérgio Oksman, cineasta brasileiro
por fim dar para o torto, eis que há muito radicado em Espanha, investigava a vida de
um milagre providencial trata Elmer Modling, um desconhecido ator secundário 1. A boa moral
de assegurar a continuidade do americano que passou em Madrid as últimas décadas Abomino, pelo aborrecido
assalto. A precisão mecânica da sua existência. O filme entrelaçava uma base que me palpita ser, a ideia
com que o roubo decorre verídica (Modling existiu de facto) com sugestões de de um mundo libertino.
acabará por contagiar o próprio ficção (lançadas pelo argumentista Carlos Muguiro), Defendo, por amor ao
filme, que não pretende ser deixando-nos presos à dúvida: a história era real insidioso pecado, o modelo
mais do que um relógio suíço ou imaginada? Era as duas coisas. Em “O Futebol”, conservador que Jean
perfeitamente calibrado (jogo primeira longa-metragem estreada em Locarno 2015 Renoir recomendava aos
de espelhos: a eficácia do furto (e que o DocLisboa agora distribui em colaboração / MANUEL seus financiadores: “É do
reflete — deliberadamente? com o Cinema Ideal), o cineasta aprofundou o mesmo S. FONSECA interesse dos produtores
— a eficácia de Soderbergh). método e acrescentou-lhe um aspeto autobiográfico manterem um adequado
De facto, embora evite seguir que sentimos estar perto do osso. É que o cineasta, padrão moral, sem o que os
pela via mais fácil, recusando que não pisava solo brasileiro nem falava com o pai filmes imorais deixarão de vender.”
gozar de forma primária com há mais de vinte anos, decidiu retomar contacto com 2. A apetecível costureira
as personagens (às quais este, Simão Oksman, propondo-lhe acompanhar, Em “Man Hunt”, filme de Fritz Lang sobre um
carinhosamente empresta em São Paulo, os jogos do Campeonato do Mundo de caçador inglês que queria matar Hitler, a heroína
uma boa dose de esperteza- futebol que o Brasil acolheu em 2014. Se a paternidade fazia o trottoir, se a expressão ainda diz alguma
saloia), “Sorte à Logan” faz o realizador regressar às origens, cedo se percebe coisa. Os censores mostraram a Lang o cartão
sobressai, apenas, pela extrema também que há um gelo naquela relação: pai e filho, vermelho. “Tivemos de lhe pôr uma máquina de
competência da sua realização. expostos para a câmara, são estranhos um para o outro. costura no quarto, para que parecesse uma modista
Ela quer-se a tal ponto escorreita Esse constrangimento está no ecrã. O que é curioso e não uma puta”, queixou-se Fritz. Abençoados
e transparente, que recai na pura em “O Futebol” é que, tal como em “A Story for the censores: a máquina de costura, pedal, tampo e
e simples neutralidade: sentimos Modlins”, este filme é uma ilusão, um trabalho sobre agulhas, conferem ao jogo de ancas da personagem
sempre a falta de um ponto de a verosimilhança. De futebol, mero pretexto para a uma duplicidade erótica que a mais santa puta não
vista claramente definido sobre reaproximação afetiva, quase nada se vê. Pai e filho são alcançaria.
a ação, que parece estar somente tanto figuras reais como personagens de um filme que 3. Seda e jóias
ao serviço das exigências de começamos a perceber ter sido encenado por ambos Já andei de chinelos, calções rotos e flores no
um exercício de género muito desde o primeiro instante. O tempo que julgamos seguir cabelo. Ainda hoje estremeço de vergonha a pensar
‘correto’, mas, também, muito pelas marcações do filme (o do campeonato, jogo a nesses anos hippies — haja Deus que nunca desisti
anónimo e pouco ousado (não há jogo, até à final) também não coincide com o tempo do banho diário. É verdade que Chaplin filmou a
um único plano que se destaque que os dois homens terão estado juntos, embora a tão bonita Paulette Godard tisnada e pobre. Mas ela
do conjunto). montagem nos leve a acreditar nisso. Oksman projeta pisava como uma rainha, por jamais ter esquecido
Tão preocupado está Soderbergh no presente resignado do filme um passado esquecido, o conselho de De Mille: “Lembra-te que és uma
com a fluidez narrativa do filme, memórias de infância comoventes em certas passagens, estrela. Nunca atravesses a rua para despejar o lixo,
que se esquece do essencial: mas jamais há aqui terapia, psicologia — o filme a não ser que vás coberta de seda e jóias.”
de desvincular as personagens autobiográfico anula-se. A história de “O Futebol”, 4. O bom gosto
das toscas caricaturas que no fundo, conta-nos a tentativa de reconstrução de É inevitável pecarmos. Mas nem todos reúnem
o argumento lhes impõe, uma relação perdida que não chegou a acontecer na os atractivos físicos ou os meios materiais para
oferecendo-lhes um contexto realidade mas que os artifícios do cinema tornaram prevaricar com variedade e ardor — hélas! Resta-
e uma cultura que exista além lhes a riqueza da imaginação. Homens e mulheres
do estereótipo. Com efeito, o tiveram em Greta Garbo a amante de sonhos
que realmente queríamos saber inconfessáveis. O jornalista Alistair Cooke redimiu-
é: quem são, afinal, aquelas os desse pecado: “Ela dava-nos um consolo: já que
figuras? Como vivem elas o seu a nossa imaginação tinha de pecar, ao menos que o
quotidiano? Que imaginário fizesse com o mais irrepreensível bom gosto.”
as move? A estas perguntas, 5. A coerência moral
“Sorte à Logan” responderá da Há lições morais no imoralíssimo “Design for a
maneira mais fácil e mais pobre, Living”, de Lubitsch. Dois homens e uma mulher,
dizendo-nos: são hillbillies, lindos, cheios de humor, fazem um acordo de
gostam de concursos de beleza, cavalheiros: sexo entre nós não. Mas há uma noite
das canções de John Denver e em que ela, Miriam Hopkins, está sozinha com um
de unhas de gel. Parece-nos Sérgio Oksman deles, Gary Cooper. Acende-se-lhe um fogo nada
— salvo melhor opinião — que QQQ (à dir.) com o pai, fátuo e já se revolve, provocadora, no tão bom sofá:
não é dizer muito. Sobretudo, O FUTEBOL Simão Oksman, “Bem sei que temos um acordo de cavalheiros —
quando quem o diz é um De Sérgio Oksman em “O Futebol” sussurra ela —, mas devo confessar que não sou um
cineasta que consegue fazer Com Sérgio Oksman, Simão cavalheiro.” A coerência moral talvez não seja um
filmes destes com uma perna às Oksman (Espanha/Brasil) valor absoluto.
costas. b Documentário M/12 Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

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Ricas poderia reduzir-se à fórmula do
‘quanto mais espontâneo melhor’.

vidas
É claro que não é bem assim (o
resultado depende, e de que
maneira, da inspiração do guião
que o filme vai ‘escondendo’),

E
m 2010, Michael mas Coogan e Brydon têm estaleca
Winterbottom teve a suficiente para aguentarem a
peregrina ideia de filmar parada, fingindo que falam de
Steve Coogan e Rob Brydon a tudo e de nada só porque lhes
Charlie Sheen em percorrerem restaurantes gulosos apetece. A vida dos dois homens
“9/11”, um filme e a divertirem-se com a viagem é distinta: Coogan, solteirão, está
baseado numa de turismo gastronómica que o livre para a aventura, fala de affairs
peça de teatro primeiro deveria descrever nas e do envelhecimento; já Brydon
páginas de um jornal britânico. deixou família e filhos pequenos
Esse filme, que não tardou a cair em casa e, talvez por isso, parece

O cárcere do cliché
no goto, chamou-se “The Trip” e mais tenso. Ao longo do road
tornou-se popular no cinema e na movie, estas diferenças vão-se
série de TV complementar. A um sedimentando, e o par cresce com
ponto tal que, quatro anos depois, elas. Nem tudo o que cai no prato

N
a base de “9/11” está uma mundo (que, como se sabe, adoram lá foram os compinchas para Itália, é iguaria, contudo. Sorri-se dos
peça teatral de Patrick espetacularizar o trágico). em aventura semelhante, para sonhos de Coogan com os Óscares
Carson (“Elevator”, de seu No entanto, mesmo quando a mais seis repastos que arrancavam (ele que foi nomeado em 2014 pelo
nome). Nela — como no filme que a câmara de Martin Guigui permanece na Liguria e terminavam em Capri. argumento de “Philomena”) ou
adapta — somos devolvidos à Nova ancorada àquele exíguo elevador, Para quem não está familiarizado das piadas que mencionam o facto
Iorque do dia 11 de setembro de as coisas não correm melhor. Desde com o projeto, sublinhe-se que de Mick Jagger ter sido pai aos
2001, para seguir o suplício de cinco logo, porque só muito raramente Coogan e Brydon, atores britânicos 72 anos. Tudo desliza como faca
personagens (um abastado casal em conseguimos investir a nossa fé sobejamente conhecidos (mas não em manteiga. Mas, no fundo, a
processo de divórcio, um estafeta, na autenticidade das personagens, vedetas do star system, do qual ambição do filme também se queda
um porteiro...) que, naquela manhã, que compõem uma espécie de até fazem pouco), respondem aí, nesse name dropping incessante,
se descobrem encurralados num dos mostruário da diversidade racial pelos seus próprios nomes, isto é, nessa cansativa mecânica de
elevadores do World Trade Center, da Big Apple (um latino, um negro, simulam ser eles próprios, diluindo referências mais ou menos
sem saberem o que nós sabemos: uma russa...). Na realidade, os a personagem no cameo. Este “A inspiradas à vida dos famosos.
que o estrépito que precedeu a seus atos e as suas palavras serão Viagem a Espanha” é o terceiro O divertimento está lá, mas é
paragem do elevador foi provocado quase sempre tolhidos pela força capítulo da empreitada. É pedido superficial, a curto prazo. Quanto à
pelo embate de um avião contra o gravitacional dos clichés e dos a Steve que dê continuidade à gastronomia, francamente, pouco
edifício. lugares-comuns: alguém acredita ‘receita milagrosa’, e este volta ou nada se aprende. Neste aspeto,
De modo a encenar o drama deste que, numa situação como aquela, a desafiar o amigo Rob para o filme é um desperdício.
grupo de figuras, o argentino cinco criaturas começariam de livre uma viagem ao país de nuestros / FRANCISCO FERREIRA
Martin Guigui abraçará a lógica e espontânea vontade a contar as hermanos. Dito e feito: metem o
teatral da peça, condensando suas vidas umas às outras? Há, é Range Rover londrino num brittany
o espaço e o tempo (um único verdade, um ou dois planos que ferry para Santander e dali, da
décor central, um par de horas) e nos ficam na memória (como, por Cantábria, rumam a leste, para
encerrando a câmara no elevador, exemplo, aquele que fixa o esforço o paraíso gastronómico que é o QQ
para descrever as reações dos seus das mãos de um bombeiro em País Basco, descendo depois na A VIAGEM A ESPANHA
ocupantes à situação. Estamos missão de resgate), mas eles são a península, de Rioja à Castela- De Michael Winterbottom
perante um dispositivo cujo carácter tal ponto esparsos que dificilmente Mancha de Dom Quixote até à Com Steve Coogan, Rob Brydon, Rebecca
claustrofóbico será atenuado por chegam para justificar uma ida ao Andaluzia. Tal como os tomos Johnson, Marta Barrio (Reino Unido)
duas ‘condutas de ventilação’, cinema. Uma última nota, ainda, anteriores, “A Viagem a Espanha” Comédia M/12
isto é, pelo contacto que o grupo para o casting do filme, que, num
estabelece com a gestora dos bonito gesto — deliberado ou não,
elevadores do World Trade Center pouco nos interessa —, volta a dar
(que depressa os informará acerca visibilidade a alguns atores (Charlie
da verdade dos factos), mas Sheen, Gina Gershon, Whoopi
também por uma série de planos Goldberg...) que, de 2001 para cá,
que reproduzem as imagens foram progressivamente caindo no
televisivas da tragédia e as reações esquecimento de Hollywood.
dos familiares das personagens aos / VASCO BAPTISTA MARQUES
eventos. Neste ponto, o filme tem
sérias dificuldades em libertar-
se do kitsch do 11 de setembro,
articulando imagens da colisão
dos aviões contra as Twin Towers Q
com uma banda sonora musical 9/11
delicodoce e repetindo assim — em De Martin Guigui
piloto automático — um movimento Com Charlie Sheen, Gina Gershon,
mil vezes realizado, à época, pelas Whoopi Goldberg (EUA)
estações de televisão de todo o Drama M/12 Rob Brydon e Steve Coogan em “A Viagem a Espanha”, de Michael Winterbottom

E 80

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SETEMBRO
MUSEU DO ORIENTE
Q Q
OS CRIMES NEGRA
DE LIMEHOUSE SEDUÇÃO
De Juan Carlos Medina De Benedict Andrews
Com Bill Nighy, Olivia Cooke, Com Rooney Mara, Ben Mendelsohn,
Douglas Booth (Reino Unido) Ruby Stokes (Reino Unido/EUA/Canadá)
Drama/Thriller M/12 Drama M/16
ESTREIA A segunda longa de Juan ESTREIA Após uma noite de copos
Carlos Medina instala-nos na Londres e rough sex com um desconhecido,
vitoriana do fim do século XIX, para uma mulher de vinte e oito anos, Una,
seguir os passos de um velho inspetor percorrerá quilómetros de carro, até
homossexual da Scotland Yard (Bill
Nighy), que é incumbido de dar caça
chegar a um armazém isolado. Aí, ela
confrontará pela primeira vez o ho- EXPOSIÇÕES ESPECTÁCULOS
ao serial killer que atua no bairro do mem com o qual, no passado, teve um
título. Mas quando a mulher de um dos affair sexual impróprio: ela tinha treze,
suspeitos (uma jovem vedeta do music ele tinha quarenta, e a sua paixão
INAUGURAÇÃO | 28 SETEMBRO | 18.30 CICLO CONCERTOS
hall, interpretada por Olivia Cooke) é acabou no tribunal, que sentenciou O MUNDO DE NORIO A ORIENTE
acusada de ter assassinado o marido, o o adulto presente na equação a uma FUJISHIRO DIRECÇÃO ARTÍSTICA GABRIELA CANAVILHAS
inspetor chamará a si a tarefa de provar pena de quatro anos. Eis a premissa
que o seu alegado crime foi motiva- maior de um filme que parece estar ATÉ 24 SETEMBRO
30 SETEMBRO | 21.30 | AUDITÓRIO
do pela descoberta da identidade do equivocado acerca da sua própria na- DESTA CANÇÃO QUE RECITAL COM GILDA OSWALDO CRUZ
serial killer (que, nessa hipótese, seria tureza: todos os seus elementos nar-
o cônjuge já morto). Daqui nascerá rativos chamam pelo thriller sexual,
APETEÇO [PIANO]
um procedural que, destacando-se mas, em vez disso, ser-nos-á ofereci- OBRA DISCOGRÁFICA DE JOSÉ AFONSO Obras de Villa-Lobos, Chopin, Gagneux,
embora pela maquilhagem gótica que do um estudo psicológico das perso- 1953/1985 Mignone
impõe às ruas de Londres (fotografadas nagens, onde a claustrofobia gerada
ATÉ 22 OUTUBRO
em tons quase sempre escuros), deixa pela condensação do espaço-tempo
muito a desejar quanto à narração. De (quatro décors, um dia) é sabotada LAÇOS - MAIS DO QUE
facto, não será preciso esperar muito pelo constante recurso a subenre- VIAJAR
até que esta adaptação de um roman- dos inúteis e flashbacks explicativos. RETROSPECTIVA DE NUNO LOBITO
ce do inglês Peter Ackroyd comece a Pior do que isso é, porém, o modo
multiplicar inutilmente os subenredos como Benedict Andrews soterra as
e as personagens para fazer render o personagens sob sucessivas cama-
peixe, e para preparar um desenlace das de verborreia teatral (o filme é a
que o espectador vê chegar com cerca adaptação de uma peça do escocês
de uma hora de antecedência (o que David Harrower), apenas para tentar
acaba por esvaziar o filme de tensão). camuflar o facto de não ter, um ponto
Um exercício de género rotineiro, que de vista sobre a situação que retrata.
não aquece nem arrefece. / V.B.M. É só garganta. / V.B.M.
SERVIÇO EDUCATIVO
16 OU 23 SETEMBRO | OFICINAS
ESTRELAS DA SEMANA
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PROFISSÕES TRADICIONAIS
ORIENTAIS
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Leitão Baptista

CURSOS E CONFERÊNCIAS
Ferreira
Ramos Marques
PARA CRIANÇAS [7-12 ANOS]
9/11 Q
Barry Seal: Traficante Americano QQ
26 E 28 SETEMBRO | WORKSHOPS 22 SETEMBRO | VISITA ORIENTADA
Como Cães Selvagens
Os Crimes de Limehouse
b QQQ b
ORIGAMI DOBRAS PATRIMÓNIO E NATUREZA
Q
GRATUITA
Os Desastres de Sofia Q QQ E BASES I E II
Dia de Surf 2 QQ 27 SETEMBRO | WORKSHOP 23 SETEMBRO | ATELIÊ
O Futebol QQQ CALIGRAFIA JAPONESA UM TIGRE, DOIS TIGRES…
Índice Médio de Felicidade Q PARA BEBÉS [ATÉ 12 MESES]
28 SETEMBRO | CONFERÊNCIA
Mean Dreams: Sonhos Perdidos QQ QQ
RE-DISCOVER CHINA
O Meu Nome É Michael QQ Q 29 SETEMBRO | VISITA TEMÁTICA
THE PEOPLE, LAND, AGRICULTURE AND
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Stop Making Sense QQQQ QQQQ Pelo Prof. Ge Jianxiong NA ÓPERA CHINESA
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Aqui nasceu
a pornografia
A HBO pegou no
C
onhecemos um homem que tinha tido
um bar em Times Square nessa altura,
nascimento da indústria no despontar da indústria pornográfica
em Nova Iorque”, conta George Pelecanos,
pornográfica e cocriador de “The Deuce”, que explica como
transformou-a em série tudo se precipitou e levou a que a série da
HBO se desenvolvesse tão depressa. “Quem o
com James Franco trouxe até nós foi outro homem, o Mark Henry
Johnson” — que trabalhou com a dupla formada
como protagonista. por Pelecanos e David Simon em “Treme” (sobre
“The Deuce” tem os eventos posteriores ao furacão “Katrina”, em
Nova Orleães) — “mas recebemo-lo com alguma
estreia mundial marcada relutância porque não queríamos fazer uma
história sobre porno”. Talvez só achassem que
para o TVSéries não queriam, porque acabaram por fazê-la.
TEXTO JOÃO MIGUEL SALVADOR Em declarações disponibilizadas ao Expresso,
Pelecanos explica que tudo mudou depois
daquela tarde e que souberam logo o que se
seguiria. “Estivemos com ele durante algumas
horas, saímos, e eu disse logo que havia alguma
coisa aqui.” E não se tratava apenas da vontade
de criar uma história em torno de uma época.
A história estava mesmo ali, diante deles. “Ele
conhecia toda a gente, porque teve um bar onde
ia todo o tipo de pessoas. E isso era algo pouco
habitual para aquela altura.” Na verdade, o
espaço gerido por esta fonte histórica até era
propriedade da máfia, mas “como ele era um
bom homem de negócios puseram-no a gerir
também outras coisas, como por exemplo salões
de massagens, então ele tinha acesso a tudo.”
George Pelecanos e David Simon também
passaram a conhecer ao pormenor o que estava
James Franco relacionado com este mundo, mas por tempo
interpreta os limitado. “Acabámos por nos sentar com ele
gémeos Vincent e numa sala durante uma semana e depois ele
Frankie Martino em morreu”, conta Pelecanos. “Ele” era o homem
“The Deuce” que lhes mostrou tudo o que estava em causa
HBO

E 82

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neste submundo nova-iorquino, mas “ele” A responsabilidade de Vincent, que se esforça
nunca ganhou nome e esse é um dos segredos para pagar as dívidas de Frankie, acaba por
bem guardados da série. Era tempo de o projeto chamar a atenção da máfia e é neste ponto
de “The Deuce” continuar a ganhar forma, com que os maiores mafiosos de Nova Iorque lhe
a realidade nova-iorquina a mostrar-se em todas propõem uma missão. O homem que vive dentro
as suas dimensões. da lei terá de fugir dela e tornar-se um pião de
O brilho de Times Square ofuscava os que por um jogo maior do que ele, enquanto gere os
lá passavam, mas era nas ruas em volta (42nd negócios daqueles que vivem do crime. Para
Street incluída) que grande parte da ação James Franco, a trama de “The Deuce” não seria
acontecia. Aquela zona de Nova Iorque tinha a mesma se não existissem as duas personagens
sido tomada pela prostituição e a segurança — até porque também na vida real existiam dois
no local nem sempre era garantida, com a gémeos —, mas o ator vai mais longe e explica
violência dos proxenetas sobre as prostitutas, o a importância de a série contar as histórias dos
consumo de drogas e o posterior aparecimento dois irmãos.
do VIH a mancharem a vida daqueles que por lá “O Frankie não podia existir sem o Vincent”,
trabalhavam (ou se divertiam). diz, concluindo que não seria possível “ter uma
Eram necessárias alternativas àquela vida e foi série em que Frankie estivesse no centro” porque
assim que nasceu a indústria da pornografia — e “o Frankie só existe por causa do Vincent”. Pode
consequente luta pela sua legalização. No centro parecer confuso que assim seja, mas também
da trama estão os gémeos Vincent e Frankie está em causa o público-alvo para quem a série
Martino (interpretados por James Franco), foi pensada. “Penso que um telespectador mais
donos de um estabelecimento noturno, e Eileen maduro vai perceber que é através do Vincent
‘Candy’ Merrell (Maggie Gyllenhaal), uma que se consegue o drama — é de onde se suga,
prostituta independente que olha para os filmes emocionalmente, mais sumo —, porque é ele que
pornográficos como um escape à prostituição. esta a passar por tudo isto.” Por oposição, James
É exatamente aqui que tudo começa a mudar, Franco considera que “Frankie não se preocupa
com os irmãos Martino a criarem um bar em que com nada” nem se responsabiliza “por qualquer
juntavam outras atividades. O facto de terem coisa que tenha feito, pelo que nunca poderia
funcionárias com roupas mais provocantes dava estar no centro” da narrativa.
uma ajuda. Sem saberem, os Martinos estavam A série dramática da HBO — protagonizado por
a dar uma nova vida a The Deuce — nome pelo James Franco e que conta ainda com Maggie
qual era conhecida a 42nd Street, em Manhattan, Gyllenhaal, Gary Carr, Margarita Levieva,
entre os anos 1950 e 1980 —, mas este não era Lawrence Gilliard Jr., Dominique Fishback,
um lugar para fracos. O diabo morava ali e era Emily Meade e Gbenga Akinnagbe no elenco
preciso enfrentá-lo ou juntar-se a ele. A indústria — tem estreia mundial marcada para este
dos filmes pornográficos parecia ser o caminho. fim de semana. A transmissão da produção
televisiva em Portugal acontece em simultâneo
NA PELE DE DOIS GÉMEOS com os Estados Unidos e está marcada para a
James Franco foi o nome escolhido para madrugada de amanhã para segunda-feira, pelas
protagonizar “The Deuce”, numa proposta duas horas da madrugada. A transmissão da
que trazia o desafio extra de dar vida a duas série em horário nobre acontecerá às segundas-
personagens. Apesar de semelhantes, tinham feiras, pelas 22h50, e prolongar-se-á por oito
uma forma diferente de olhar para a vida e era semanas, sem que haja ainda luz verde para uma
necessário captá-la assim que possível. Era segunda temporada. b
preciso distingui-las fora do set de filmagens,
para que tudo o que acontecesse em cena
fosse o mais real possível (mesmo que fossem
necessários efeitos especiais para colocar os
THE DEUCE
dois gémeos a contracenar). “O Vincent era De George Pelecanos, David Simon
o mais responsável, aquele que é baseado no Com James Franco, Maggie Gyllenhaal,
homem com quem o George falou, e o Frankie Gary Carr, Margarita Levieva (EUA)
é o degenerado, o jogador, que tem dívidas à TVSéries, estreia na madrugada de amanhã
máfia. O irmão tem de estar sempre a pagar-lhe para segunda-feira, 2h
fianças.” (Temporada 1)

E 83

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James Murphy, 47 anos.
Depois de vários anos de
silêncio, os seus LCD
Soundsystem regressam
com estrondo

A festa depois da festa


Como fintar
J
arvis Cocker, um dos grandes, — transformou-o, nos cinco anos efeito quase milagroso de superação
sabe da lide como poucos. Depois que vão do primeiro álbum de LCD do que está para trás, carregando-se
o fado e voltar de mais de 15 anos na penumbra, Soundsystem a “This Is Happening” na densidade emocional, travando-
entrou pelo salão de festas adentro e (2010), num ‘profeta’ desses tempos: se na recompensa instantânea,
com fome. fez daqueles anos 90 da Inglaterra de Murphy era um homem capaz de narrar distribuindo-se graciosamente
A magistral fato de treino o palco do seu teatro
pop voyeurístico. Levou consigo os
a ansiedade do agora, sem escapes,
com medos. Estávamos à espera dele.
canções que — novamente — tratam os
detritos do dia a dia com inteligência.
lição dos LCD casacos em segunda mão, os óculos de O fim dos LCD Soundsystem, em Dentro de “American Dream” está
massa e o calor de alcova de um trintão 2011, foi um plano perfeito. Murphy um autossuficiente James Murphy
Soundsystem maroto. O malabarista de cintura fina não acreditava na manutenção da sua que recupera o cowbell numa ‘Other
em 2017 dos Pulp era um astro pop por estrear,
guardado para aquele momento. E,
relevância e marcou uma despedida
pomposa que resultaria num
Voices’ de esplendor punk-funk;
que mergulha no David Bowie funky
TEXTO LUÍS GUERRA naquele momento, estava toda a gente documentário (“Shut Up and Play the de ‘Fashion’ em ‘Change Yr Mind’;
à espera do número de Jarvis Cocker, Hits”), desenlace desenhado com a que põe Alan Vega a conversar com
o prestidigitador. “Aah, sing your obsessão do micromanagement (“um Bowie (‘fantasma’ repetido) em ‘Black
song about all the sad imitations that mal que aflige organizações e destrói Screen’. E que, num álbum tão longo
got it so wrong/ It’s like a later ‘Tom carreiras”, responde o Google). O (68 minutos) como empolgante, se dá
& Jerry’ when the two of them could plano perfeito esboroou-se quando, ao luxo de embarcar numa sequência
talk/ Like the Stones since the Eighties, há dois anos, Murphy anunciou de quase meia hora, repartida por
like the last days of Southfork”, deixou inesperadamente o regresso (“Não quatro temas que comunicam entre si:
em jeito de epitáfio numa “Bad Cover quero ser como o Sting que, para não ‘How Do You Sleep’, terror gótico do
Version” que punha termo ao percurso ter de tocar com o Andy [Summers] e fundo do poço a digladiar-se com uma
discográfico dos Pulp em 2002. Antes o Stewart [Copeland], passou a tocar fria pop eletrónica; ‘Tonite’, engenho
‘morto’ do que mau. jazz”, disse ao “Guardian”). Ora bolas. de propulsão seca; ‘Call the Police’,
Tal como Jarvis Cocker em 1995, Cortando a direito, a reunião um épico que qualquer banda com
também James Murphy já tinha ‘condenada’ é, depois de deglutido pretensões de urdir um clássico pop
passado dos vintes quando ‘Losing “American Dream”, uma grande notícia (U2?) se desunharia para fazer hoje; o
My Edge’, a reflexão de um homem de 2017. E não, não está aqui uma nova tema-título, balada electro com caixa
aterrorizado pela sua inadequação à banda ou, para retirar desde já algum de ritmos, o Rivotril depois da insónia.
contemporaneidade, aterrou sob a manto de mistério, o futuro. “American “American Dream” não é uma
QQQQQ bola de espelhos da primeira década Dream” é tão LCD Soundsystem que imitação; é o original a partir do qual
AMERICAN DREAM do século XXI. “Uma banda sobre há, desde o primeiro martelar de o passado dos LCD Soundsystem se
LCD Soundsystem uma banda a fazer música sobre teclas de ‘Oh Baby’, uma sensação de erigiu. Isto está tudo ao contrário — e,
Columbia/Sony fazer música” — a tirada é lapidar familiaridade. O temor dissipa-se pelo afinal, é assim que está bem. b

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A DESARMONIA
DAS ESFERAS
Aruán Ortiz
cruza ritmos
afro-cubanos
com jazz e
DESPERTAR
música erudita QQQQ
THE COMPLETE Desde há anos que os
ARGO RECORDINGS R.E.M. (via Peter Buck) e as
FRANCESCA PFEFFER

The Choir of St John’s College, Sleater-Kinney (via Corin


George Guest (d)
Tucker) alimentavam uma
42 CD Decca
discreta sociedade de mútua
Quando George Guest morreu, em admiração. Tanto assim que,
2002, o seu obituário no “The Guar- logo a seguir ao harakiri do
dian” trazia à lembrança um “homem grupo de Michael Stipe, em

Cubismo cubano de exuberante riqueza — um naciona-


lista galês, a viver em Cambridge, que
revolucionou a forma de se interpretar
/ JOÃO
LISBOA
2011, e durante a suspensão
de atividades das pós-riot
grrrls de Olympia, entre

S
ubindo ou descendo um degrau, Jesús Alemañy música francesa por intermédio de um 2007 e 2014, Buck e Tucker
esticava bem os braços e fazia sucessivos dos maiores coros ingleses”. Apre- começaram, sem demasiada pressa, a reunir as
enquadramentos com as mãos. Estávamos cia-se o guisado de aparentes con- peças para o que, sob o nome de Filthy Friends,
numa coxia do Grande Auditório do Centro Cultural tradições, na frase, mas nada é assim haveria de ser a mais recente encarnação de uma das
de Belém, em 1999, e o líder dos Cubanismo tão simples nem tão complicado. No assombrações da história do rock: o ‘supergrupo’.
verificava a disposição em palco dos seus músicos entanto, a referência à sensibilidade Acolheriam a bordo Scott McCaughey, Bill Rieflin
durante o ensaio. “Isto não é muito diferente da gálica do coro de St John’s College, da (antigos compagnons de route dos R.E.M.), Kurt
pintura”, dizia-me. “Olho para as secções da Universidade de Cambridge, que Guest Bloch (veterano da cena alternativa de Seattle), e,
orquestra como se fossem cores numa paleta: dirigiu por quatro décadas, é absolu- episodicamente, Krist Novoselic (Nirvana). Se, de
os sopros ali, o piano acolá, o par de bailarinos tamente certeira, conquanto pudesse início, o pretexto era o de atuar como banda de covers
ao centro. É o mesmo que representar volumes tê-la o artigo localizado num contexto de David Bowie — e foi nessa qualidade que, em
coloridos numa superfície plana. E, depois, na hora mais competitivo, comparando-a, por janeiro do ano passado, uma semana após a morte
do concerto, tudo ganha vida com o som.” Como exemplo, com a prática de um coro de Bowie, se apresentaram no Todos Santos Music
numa composição cubista, sugiro, algo inutilmente. rival, como o de King’s College, em que Festival, anualmente organizado por Peter Buck na
“Pois claro”, responde. “Um cubismo cubano.” nos anos 60 se cantavam línguas vivas Baja California —, ainda em 2012, Buck e Tucker
Agora, através da intromissão de um discreto como se provocassem abcessos den- tiveram uma visão do futuro e ele era assustador. E,
parêntese no título deste seu CD, é a vez de Aruán tários. Era um coro muito mais humano, meio século depois de Dylan, decidiram-se a escrever
Ortiz se socorrer da analogia, remetendo para a o de St John’s, por vezes gerando todo a ‘The Times They Are a-Changin’’ contemporânea.
obra de Wifredo Lam, arauto da arte afro-cubana. o tipo de perplexidades, como naquele Só a publicariam, porém, em 2016, no último mês da
Aliás, em termos afetivos, dir-se-ia, até, que este instante irrepetível, em 1974, em que campanha presidencial, no site “30 Days 30 Songs —
“Cub(an)ism” evoca a geração de Nicolás Guillén, grava o “Requiem” de Maurice Duru- Musicians for a Trump Free America”, declarando:
Alejo Carpentier ou Emilio Ballagas, herdeira do flé, na versão para coro e órgão (com “Já antes de Trump anunciar a candidatura,
modernismo finissecular, dada à observação dos Stephen Cleobury), de modo a abalar o apercebemo-nos de quanto o país estava a mudar
escritos de Fernando Ortiz e que teve, na música, próprio espaço-tempo, eras medieval e cultural e politicamente. A realidade é ainda mais feia
Amadeo Roldán e Alejandro García Caturla como coetânea subitamente transformadas e desanimadora. Desejamos de todo o coração poder
expoentes. Bastará lembrar o que, em “Music noutra coisa qualquer, sob influência de dizer adiós a Trump no dia da eleição.” Como bem
in Latin America and the Caribbean”, escreveu feitiços. Será um dos pontos altos da o sabemos, não puderam. Mas, agora que os Filthy
Malena Kuss acerca dos dois: “Ao jeito dos cubistas, presente integral, não obstante gostos Friends publicam o primeiro álbum (“Invitation”),
trataram de agrupar e justapor padrões rítmicos e mais canónicos procurarem antes na voz de Corin — algo entre Grace Slick e Patti
blocos tímbricos como se fossem formas abstratas, conforto nas missas de Haydn acom- Smith —, ‘Despierta’ soa, paradoxalmente, ainda
estilhaçando o que na música tradicional se panhadas pela Academy of St Martin mais poderosa: “Despierta, senador, the time is
enunciava de modo contínuo.” Também Aruán in the Fields, de Neville Marriner: a nearly here, the gold watch strapped around your
Ortiz descontextualiza materiais, apropriando-se “Theresienmesse”, a “Harmoniemesse”, wrist must have stopped some time ago, the day
de marcadores encontrados na semântica da rumba a “Heiligmesse”, a “Schöpfungsmesse” is fading quickly and the hour is nearly here, the
ou da tumba, por exemplo, e colocando-os lado e a “Paukenmesse” — registos de tal whitest chalk upon this land is about to disappear,
a lado com os do serialismo e indeterminismo. maneira exemplares que o primeiro- holding onto the past won’t make it repeat, it’s time
Há estruturas que se contraem, outras que se -ministro inglês Edward Heath decidiu to get up, I think you’re in my seat (...), your time
expandem, alusões a motivos familiares, mas não oferecê-los a Paulo VI na sua visita ao is over, your power’s peaked, adios, senador, I have
se busca tanto o transe quanto a transição: o piano, Vaticano de 1972, adquirindo o último come to get the keys.” Será, inevitavelmente, a
como diria Lorca, tornado uma “harpa de troncos deles, mais conhecido por “Missa em bandeira que irá à frente num desfile de 12 belíssimas
vivos”. / JOÃO SANTOS tempo de guerra”, e tendo em conta o canções sobre as quais, naturalmente, a sombra dos
assunto na agenda (o conflito na Irlanda R.E.M. paira. Mas também as dos Television, dos T.
do Norte, no ano do Domingo San- Rex ou dos Pixies contribuem para que, neste caso,
QQQQ grento), uma ressonância atual. É uma ‘supergrupo’ deva ser lido literalmente. b
CUB(AN)ISM — PIANO SOLO sensação extensível a muito do que se lishbuna@gmail.com
Aruán Ortiz reúne aqui, com cerca de 400 anos de
Intakt/Distrijazz música (de Tallis a Britten e de Palestri- INVITATION
na a Langlais) encerrados numa cápsula Filthy Friends
multivitamínica. / J.S. Kill Rock Stars/Popstock

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Dois dias de fado
para dar e vender

TOMÁS MONTEIRO
O
fado, dizem, nasceu em dá vida ao mesmo palco, no dia
Lisboa, lá para os lados seguinte. Este ano, a programação
de Alfama. Pelo menos, do palco do Grupo Sportivo
é lá que sempre se cantou e que Adicense está nas mãos de quem FESTIVAL CANTABILE FESTIVAL
sempre encantou. Nas próximas melhor conhece os fadistas do Fundação Calouste Gulbenkian, Museu do MONTEVERDI
Dinheiro, Lisboa, e Palácio Nacional de Sintra, CCB, Lisboa, de 14 a 17
sexta-feira e sábado, dias 15 e 16, bairro de Alfama, a própria Junta
de 14 a 16. Entrada livre
o festival Caixa Alfama regressa às de Freguesia de Santa Maria Maior.
suas ruas. São dez palcos a receber Esperam-se duas noites em que o Vamos para um festival que já se en- Claudio Monteverdi foi, ‘só’, o pai da
mais de 40 fadistas em dois dias. lado mais bairrista do fado surge contra com uma boa rodagem, entran- ópera. E se em termos de revoluções
Cartaz cheio, portanto, com Gisela num espaço cheio de passado. do agora na sua oitava edição e tendo isso não bastasse, compôs também
João, António Zambujo e Marco A 15, a jovem Ana Marta, uma visivelmente conquistado uma assis- alguns dos mais belos madrigais de
Rodrigues a abrilhantar a festa filha de Alfama, partilha o palco tência regular que, desta feita, usufruirá todos os tempos. Nasceu em Cre-
no palco principal. Mas há muito com Jaime Dias, uma voz bem de três espetáculos de entrada livre. mona, em 1567 — há 450 anos que
mais. Destaque para os concertos conhecida de todos aqueles que Não é um ‘navio’ gigantesco a atrair não podem deixar de ser celebrados.
dos irmãos Pedro e Helder vivem o fado no terreno. E, na milhares de ‘passageiros’, tratando-se É isso que está a fazer o CCB, com
Moutinho, na noite de dia 15, no mesma noite, também sobem ao de um curto festival com programas um programa dedicado à sua música
Palco Santa Casa, que também palco os fadistas Pedro Galveias e muito criteriosamente selecionados no e outro integrado no ciclo de litera-
recebe, no dia seguinte, a atuação Vera Monteiro. O primeiro traz na seu trio de concertos. O primeiro dos tura e pensamento. Para o primeiro,
de Alexandra, Rodrigo Costa bagagem um disco novo editado espetáculos do Festival Cantabile está convidou-se o agrupamento que mais
Félix e Bárbara Santos. No Largo este ano e a segunda promete marcado para a noite de quinta-feira tem investido na interpretação das
do Chafariz de Dentro há violas mostrar porque é uma das vozes (Auditório da Fundação Gulbenkian, suas obras: La Venexiana, ao qual irão
e guitarradas com concertos de mais promissoras da atualidade. às 21h) com um programa festivo e juntar-se o Officium Ensemble, o Coro
Luís Guerreiro e Pedro de Castro, Já no dia 16, a responsabilidade generoso onde se encontram o “Con- Ricercare, o Ludovice Ensemble e o
na sexta-feira, e de José Manuel fica a cargo de Vítor Miranda e certo para oboé e violino BWV 1060” Olisipo Grupo Vocal para três dias de
Neto e Paulo Soares, no sábado. Henriqueta Baptista, artistas de J. S. Bach, o “Concerto para viola, concertos que começam esta quinta-
Músicos como Diogo Clemente e que aliam a garra à experiência. coro e orquestra” (“Styx”) do compo- -feira, às 21h, com o Ludovice a tocar
Miguel Ramos, no Palco Ermelinda Nota ainda para os concertos de sitor georgiano Giya Kancheli e ainda as “Vésperas de Nossa Senhora”. Esta
Freitas, atuam também na sexta- Gonçalo Salgueiro e Maria Ana o “Concerto para violino, violoncelo obra monumental, que Monteverdi es-
feira. Ainda no mesmo palco mas Bobone, no sábado, na Igreja de e orquestra em Lá menor Op. 102” de creveu em 1610, ainda em Mântua, viria
no sábado, há fado a sério e um São Miguel. / ALEXANDRA CARITA Brahms. Estabelecida a parceria com as a ser tocada na Basílica de São Marcos,
pouco mais alternativo para ouvir. equipas do Goethe Institut e a da Fun- em Veneza — e é este o ambiente que
São concertos de Paulo Bragança, dação Gulbenkian, a diretora artística o Grande Auditório do CCB tentará
Edu Miranda Trio e o Júlio Resende do festival criado em 2010 é a viole- recriar. No dia 16, às 20h, apresenta-se
Fado Ensemble. Filipa Cardoso e tista alemã Diemut Poppen (Munster, “Orfeu”, a primeira obra catalogada
Carolina atuam no Palco Amália, CAIXA ALFAMA 1960) — na foto —, uma aluna de mes- como ópera, composta em 1607 para a
no auditório Abreu Advogados, Vários locais, Alfama, Lisboa, dias 15 e 16 tres ilustres como Yuri Bashmet, Bruno corte de Mântua. São cinco atos e um
na sexta-feira, e Ana Sofia Varela www.caixaalfama.pt Giuranna e Peter Schidlof do Amadeus prólogo sobre o mito grego de Orfeu,
Quartet. O festival prossegue (sexta, com libreto de Alessandro Striggio.
Sala dos Cisnes do Palácio Nacional Cabe aos italianos de La Venexiana,
Gisela João atua de Sintra, 21h30) com as “Variações conduzidos por Davide Pozzi, levá-los a
sábado à noite no Goldberg” de Bach interpretadas em bom porto, ao lado de um elenco com
Palco Caixa, o versão para trio de cordas. Para o último nomes como Riccardo Pisani, Ema-
mais importante concerto está agendado um programa nuela Galli e Sophia Patsi. Por fim, oito
do festival onde se encontra a “Serenata nº 10 em concertos em dois dias — 16 e 17 — é
Si bemol maior KV. 361, Gran Partita” quanto basta para a execução dos oito
de Mozart e também o “Sexteto para livros de Madrigais, que congrega o
cordas Op. 4” (“Noite Transfigurada”), Coro Ricercare, o Grupo Vocal Olisipo,
de Schoenberg (Museu do Dinheiro o Officium Ensemble e La Venexiana
situado no edifício do Banco de Portu- em torno desse objetivo comum. Estas
gal, dia 16, 21h). Desta forma, o festival peças de puro artesanato musical,
despede-se do público com a afamada criadas entre 1587 e 1638, atravessam
peça composta em 1899 pelo com- quase toda a vida do compositor. Do
positor vienense que se inspirou no outro lado desta programação estão
poema germânico “Verklärte Nacht” as conferências proferidas por Miguel
de Richard Dehmel. Ao longo de 30 mi- Santos Vieira (“O Mito de Orfeu na
nutos, verso a verso, a partitura segue a Literatura e na Música”, às segundas-
inquietação do poema, escutando-se, -feiras, dias 11, 18, 25 e 2 de outubro) e
através das metáforas musicais, como por Maria Alzira Seixo (“O Barroco na
RITA CARMO

dois amantes se metamorfoseiam, Literatura”, às terças-feiras, dias 10, 17,


ao caminharem numa sublime noite 24 e 31 de outubro), sempre às 18h.
cintilante. / ANA ROCHA / LUCIANA LEIDERFARB

E 86

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Instituto Confúcio
da Universidade de Lisboa

Início a 09 de outubro
Ano letivo 2017/18
MARCELO MACHUCA

Novos Cursos
Curso de Chinês para a área Empresarial (Business Chinese)
(120 horas - 450 euros)
Isabel e Tita Parra, acompanhadas pelos músicos Greco Acuña e Juan Antonio Sánchez Curso de Chinês para a área de Turismo (Tourism Chinese)
(1.º semestre - 60 horas - 300 euros)

Parra canta
prossegue Tita Parra. (2.º semestre - estágio na China, na cadeia de hotéis Marriott)
Isabel Parra, filha de Violeta, dá-nos
um retrato do que foi crescer sob a

Violeta
Curso Básico 1 Calendário de Aulas:
sua influência: “A minha mãe era
uma mãe normal, que se preocupava Curso Básico 2 09 out. 2017 - 02 fev. 2018
connosco, com o sustento do lar, Curso Intermédio 1 19 fev. 2018 - 29 jun. 2018

C
em anos depois, ela é ela. E e por outro lado compunha a sua Curso Intermédio 2
Férias:
mais ninguém. O seu nome música, bordava as suas tapeçarias Curso Avançado 1 Natal; Carnaval; Páscoa
continua ligado às raízes de e pintava os seus quadros. Era a Curso de Língua e Cultura Chinesa 18 dez. 2017 - 02 jan. 2018
26 mar. 2018 - 30 mar. 2018
uma música que só conhecemos mesma pessoa, que fazia sozinha (120 horas - 375 euros)
graças ao seu impulso e curiosidade. todos os trabalhos domésticos e que
mais informações: www.confucio.ulisboa.pt
Falamos de Violeta Parra, “La encetava os projetos artísticos com
Violeta”, essência musical do Chile, a mesma cabeça, as mesmas mãos,
que esquadrinhou os recantos mais o mesmo coração.” As recordações,
remotos do país para esclarecer o seu diz Isabel, são “infinitas”, mas são
som, as notas que sempre estiveram mais do que isso: “São situações de
lá, o timbre que se cola àquela tal forma marcantes que nos fazem
terra como a voz a uma pessoa. E seguir um caminho similar.”
a que soa o Chile de Violeta? Aos De facto, tanto Tita como Isabel
circos populares, à guitarra que seguiram os passos de Violeta Parra.
aprendeu com os pais, no campo da São cantautoras que se movimentam
sua infância; à investigação sobre no mesmo espectro musical. “Em
o folclore empreendida nos anos geral, os filhos de músicos não
50, que lhe renova o repertório e a têm grande apoio em casa. Os pais
torna pioneira na interpretação de nem sempre querem que os filhos
um cancioneiro até então pouco também sejam artistas. Violeta era
valorizado. Curiosamente, cem justamente o contrário: estimulou-
anos depois da sua morte trágica, nos de forma permanente, para que
tudo o que Violeta fez em vida aprendêssemos com ela. E a minha
continua atual. “Vigente é a palavra filha desde muito nova foi integrada
usada no Chile para descrever a sua neste grupo familiar estranho, que
obra”, diz ao Expresso a neta Tita fazia digressões, concertos, que
Parra, ao telefone desde Paris, onde viajava e gravava discos. Sempre em
está em digressão com a sua mãe, família — isso espelha o modo como
Isabel Parra. A próxima paragem Violeta foi criada, sempre a cantar
será Portugal — Lisboa na terça- com os irmãos”, diz Isabel. Em
feira e Loulé na quinta —, para dois família também ouviremos as suas
concertos em homenagem à pessoa canções — quem não se lembra de
“genial” que foi a avô. ‘Gracias a la vida’? — num concerto
“A atualidade de Violeta tem que que, segundo Tita, é “uma síntese o
ver com a lucidez com que abordou mais rica possível” do trabalho das
os problemas do seu país — a três Parras. / L.L.
injustiça social, a desigualdade —,
que ainda continuam. A América
Latina continua, mais do que nunca,
a precisar de Violeta Parra. É um
continente abandonado, à mercê ISABEL E TITA PARRA —
de interesses alheios às pessoas. CONCERTO PARA
Não são ditaduras militares, mas VIOLETA PARRA
de pensamento, de educação, CCB, Lisboa, terça, 21h; Cine-teatro
de propaganda e de controlo”, Louletano, Loulé, quinta, 21h30

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NACHO CORREA
Imagem de “Ato 2 — Resistir”
da “Trilogia Antropofágica”

Canibalismo amoroso
A antropofagia como possibilidade há de vir. Nesse estado intermédio, quais se enamorou. O primeiro, que
interroga “como se formula o coletivo corresponde ao “Ato 1 — Permanecer”
de relacionamento com ‘O Outro’ constituído de heterogeneidade”. (dias 15 e 16), tem por inspiração
no regresso de Tâmara Cubas A sua experiência é de vida numa
imposição de “homogeneidade”.
“Vestígios”, de Marta Soares. O
segundo, “Ato 2 — Resistir” (dias
TEXTO CLAUDIA GALHÓS Interroga ainda como se articula o 19 e 20), parte de “Matadouro”, de
presente. Um hoje sistematicamente Marcelo Evelin. O “Ato 3 — Ocupar”
interrompido por esse passado dos (dias 23 e 24), a estrear, debruça-se

O
que fazemos com o que que desapareceram, que “é mais sobre “Pororoca”, de Lia Rodrigues.
amamos e queremos possuir?” forte do que qualquer coisa que No final, o que procura é algo que não
A questão chega do Uruguai, façamos”. Prossegue: “Perdemos é identificável com a obra original
pela voz da coreógrafa Tamara Cubas, muito quando fomos colonizados. e também não é uma expressão
ao Skype com o Expresso, que está de Não temos indígenas, não temos pessoal. “É isso que procuravam
volta a Lisboa com mais uma proposta língua, não temos cultura. O que os índios quando faziam o ritual
mal comportada para desestabilizar aconteceu foi um ‘epistemicídio’. Esta de antropofagia. Eles reconhecem
ideias feitas. Em 2014, no Próximo é a maior destruição, o arrasar uma que o outro os pode modificar.
Futuro (Gulbenkian), apresentou forma de conhecimento profundo.” Está relacionado com reconhecer
“Puto Gallo Conquistador”. Era então Por tudo isto, Tâmara procura “uma a possibilidade de afetação desse
programador António Pinto Ribeiro, língua que já não existe e uma forma outro em você.” As peças podem ser
o mesmo que a traz de volta, agora no de conhecer o mundo”. Desse vistas individualmente ou como um
contexto da Lisboa, Capital Ibero- caminho de investigação poética todo. Tâmara apresenta: “No ‘Ato 1’
Americana da Cultura 2017, de que artística e do viver chega à “Trilogia há um chão de carvão, é um lugar
é coordenador-geral. A conversa é Antropofágica”. Inspirou-se na onde tudo está queimado. O ‘Ato 2’
sobre “Trilogia Antropofágica”, três teoria de Suely Rolnik (psicanalista seria como um passo anterior, em que
peças que Tâmara apresenta no São e crítica de arte brasileira) sobre a está tudo coberto de madeiras, com
Luiz. “antropofagia” e encontrou nesta cinco performers e um cão, que fazem
A voz vibrante de Tâmara carrega uma “uma possibilidade de relacionamento um percurso de um lado ao outro à
experiência de vida no coração da com ‘O Outro’, que está do outro lado, procura de um corpo selvagem. No
turbulência política, com a ditadura, o que é colonizador, que hoje pode ser ‘Ato 3’ fazemos um muro com as
exílio em Cuba e a história de família ‘colonialismo capitalista’.” Os atos mesmas madeiras do ‘Ato 2’. Se for
TRILOGIA com episódios de desaparecimentos. antropofágicos são, assim, “processos visto do fim para o princípio tens um
ANTROPOFÁGICA Nasceu em 1972 e diz que faz parte de relacionamento amoroso com ‘O muro, as madeiras no chão e, por fim,
De Tâmara Cubas de uma geração de transição: “A Outro’”. Para Tâmara, neste caso, ‘O vês tudo queimado.” Qualquer que seja
São Luiz Teatro Municipal, anterior tinha ideia de futuro, de Outro’ consta de três peças de dança, a ordem, ainda estamos antes de tudo
Lisboa, de 15 a 24 utopia e coletividade” e uma outra que de coreógrafos brasileiros, pelas isso: o que fazer com o amor? b

E 88

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mais perto daquilo que a realidade para (na foto, criação de Ana Borralho &
eles era. Contudo, há neles uma grande João Galante, Cine-Teatro São Pedro,
parte não apenas daquilo que julgavam Alcanena, quinta-feira), é concretização
ser realismo, como de uma sensualida- desse gesto de aproximação: 12 jovens

DIDIER CRASNAULT
de que chocou muita da sociedade e do concelho de Alcanena partilham as
MIGUEL MARES

dos artistas da época. Elizabeth Siddall, suas histórias e interrogações, fazendo


mais tarde Siddal, apenas com um ‘l’, da sua experiência de viver íntima o
vinha de famílias muito modestas, e texto deste espetáculo. No calendá-
trabalhava numa loja de chapéus. Foi rio incluem-se duas estreias — “Nova
também a modelo do quadro de Millais Criação”, de Filipe Pereira e Teresa Silva
ADOECER “Ofélia”, de 1852. Rapidamente se FESTIVAL MATERIAIS DIVERSOS (Centro Cultural do Cartaxo, sexta), e
A partir de Hélia Correia tornou não apenas a modelo prefe- Vários locais, Minde, Alcanena, “Antropocenas”, de Rita Natálio e João
CCB, Lisboa, de 15 a 18; Vale dos Barris, Cartaxo, de 14 a 23
rida de Rossetti, como sua amante; dos Santos Martins (Centro Cultural do
Palmela, de 5 a 15 de outubro
casaram-se em 1860. É a partir dela Cartaxo, dia 22) —, peças de criadores
que Hélia Correia escreve o seu livro estrangeiros, como “55”, de Radouan
“Adoecer”, e que Miguel Jesus cria o Mriziga, de Marrocos (Fábrica de Cultura
espetáculo com o mesmo nome. As de Minde, dia 16), ou “Folk-s”, do italiano
Os pré-rafaelitas eram um grupo de palavras de Hélia Correia foram o que “Encontramo-nos na esperança de Alessandro Sciarroni (Centro Cultural
artistas que tiveram o seu momento primeiro atraiu o encenador, e a doença partilhar o mundo imaginado, entre do Cartaxo, dia 16). E há muitos mais
fundador em 1848, e do qual Dante referida na obra — ou melhor, no livro entendimentos e diferendos, para nos nomes, como Marco da Silva Ferreira,
Gabriel Rossetti era um dos membros e no espetáculo — é vista como aquilo transformarmos em ambos os sentidos Lígia Soares, Teatro do Vestido... A festa
mais proeminentes. As suas ideias que, na criação artística e na própria e em novas direções.” É assim que Elisa- faz-se assim de espetáculos que, de
essenciais provinham de uma reação vida de todos os dias, desafia o que está bete Paiva, diretora artística do Festi- modo diverso, interpelam o espectador
contra a pintura de Rafael e de Miguel demasiado regulamentado, organizado, val Materiais Diversos, entende este enquanto cidadão, mas também de um
Ângelo, que viam como uma maneira quase que espartilhado. Se Lizzie Siddal acontecimento, que vai na nona edição. conjunto vasto de atividades paralelas,
demasiado artificial, falsa mesmo, de está no centro da obra, a doença como A arte, na sua múltipla expressão, é que abrem outras portas de acesso a
criar artisticamente. Preconizavam metáfora para aquilo que desafia as a plataforma desse encontro, viven- uma arte que respira vida: é o caso das
um retorno ao natural a partir de uma regras estabelecidas também lá está. ciada a partir de perspetivas e lugares aulas diárias, em diferentes espaços, de
observação cuidada da natureza, e uma Interpretam Catarina Câmara, Mi- muito distintos, seja enquanto artista, dança, teatro, ecologia ou corpo e voz;
revisão da paleta de cores, que pre- guel Moreira e Sara de Castro. / JOÃO espectador, participante... A proposta é o caso também da exibição de filmes
tendiam mais vibrantes, mais ‘naturais’, CARNEIRO de abertura, “O Gatilho da Felicidade” com conversas, entre outros... / C.G.

Setembro 2017
Teatro Teatro Carlos Alberto · 7-30 set TeCA · 21 set · qui 21:00 Mosteiro de São Bento da Vitória

Nacional Teatro de Rua Fuenteovejuna


de Lope de Vega
Ocupação
São João Exposição de cartazes TeCA 2003-17
direção Pepa Gamboa
produção Atalaya-TNT (Espanha)
Días Hábiles
M/12 anos
Teatro Teatro Nacional São João MSBV · 20-23 set · qua-sex 21:00 sáb 19:00

Carlos
14-24 set · qua+sáb 19:00 qui+sex 21:00 dom 16:00
TeCA · 22 set · sex 21:00 Nacional-Material,
Alberto Quem Tem Medo Eles Não Usam Paisagem com
Mosteiro
de Virginia Woolf? Tênis Naique
direção Isabel Penoni
Argonautas
direção artística Alfredo Martins
produção Companhia Marginal (Brasil) coprodução teatro meia volta…, TNDM II,
de Edward Albee
São Bento direção Diogo Infante
M/14 anos Festival Internacional de Almada
M/12 anos
da Vitória produção Força de Produção
M/12 anos
TeCA · 23 set · sáb 21:00
Quando o Mar É Mais MSBV · 27-30 set · qua-sex 21:00 sáb 19:00 · Estreia
Teatro Carlos Alberto direção artística Hugo Cruz, Susana Madeira Días Hábiles
O MEXE no TNSJ coprodução Câmara Municipal de Esposende, direção artística Alfredo Martins
Triumph’arte coprodução teatro meia volta…, TNSJ
IV Encontro Internacional de Arte e Comunidade M/6 anos M/16 anos

TeCA · 18 set · seg 19:30 · Estreia TeCA · 24 set · dom 16:00 MSBV · 30 set · sáb 15:00 · Antestreia
O Que Acontece La Vida en Una Maleta Manoel Congo
Quando a PELE se Mexe? direção Arantxa Iurre
produção Aullidos de Otxar (Espanha)
um filme de Alfredo Martins, Rui Santos
seguido de conversa com o público
um documentário de Nuno F. Santos
M/6 anos M/12 anos
coprodução PELE, TKNT
M/6 anos

www.tnsj.pt
dobra

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“Useless Wonder” (2006),
de Carlos Amorales;
“Turbulent” (1998),
de Shirin Neshat
(em baixo, à esq.); “Vitrine
Murale (Goya)” (2008),
de Thomas Hirschhorn
(em baixo, à dir.)

Um mundo perigoso
Os conflitos de
M
esmo quando criada por do MACBA de Barcelona e da social progressista que vê na obra
uma única pessoa, o que própria Gulbenkian. de arte um motor transgressivo e
hoje e as injustiças não é o caso, uma coleção Agora, integrada na programação transdigressivo.
é uma grande encruzilhada, com da Lisboa Capital Ibero- Que um banco se proponha a
de sempre ecoam múltiplas ramificações e visões Americana 2017, chega a adquirir obras deste género e
em obras parciais passíveis de serem ativadas.
Pela diversidade de pontos de vista
Lisboa “Turbulências”, mostra
comissariada por Nimfa Brisbe,
a mostrá-las sob esta temática
genérica pode parecer um
pertencentes que permite, a coleção espanhola diretora da coleção, e que reúne paradoxo, em tempos de
La Caixa, pertencente à fundação cerca de 40 obras no espaço da tardocapitalismo, mas há muito
a uma grande bancária com o mesmo nome, é um Cordoaria Nacional. A exposição que a instituição aproximou a
coleção de um desses casos.
Na verdade, não é a primeira vez
tem um tema ou, se se preferir, um
mote, que o título de algum modo
sua coleção de uma zona mais
crítica e contundente da arte
banco espanhol que obras suas se veem em Lisboa. sumariza. São maioritariamente contemporânea.
Em 2008, o Museu Coleção Berardo obras de artistas ibero-americanos Sem estar organizada por secções
TEXTO CELSO MARTINS recebeu “Espaços Sensíveis” com (mas sem portugueses) que ou subtemas, que por vezes
obras escolhidas em torno da ideia nelas têm inscritas signos de orientam demasiado a leitura das
de espaço e, em 2015, Isabel Carlos conflito, instabilidade política, obras, a exposição conduz-nos
mostrou, na Fundação Gulbenkian, injustiça social ou perseguição por um percurso que marca o seu
“Tensão e Liberdade” para onde e preconceito, ou seja, a quase compromisso com o presente logo
confluíam obras daquela instituição, totalidade do espectro da crítica no seu momento inicial.

QQQQ
TURBULÊNCIAS
— OBRAS DA
COLEÇÃO LA
CAIXA DE ARTE
CONTEMPORÂNEA
Cordoaria Nacional, Lisboa,
até 3 de dezembro

E 90

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Trata-se do curto mas impactante e linguísticas que acusam a
vídeo “Centro de Permanência descaracterização do político.
Temporária” (2007), do albanês Do mexicano Carlo Amorales
Adrian Paci — no qual se vê um mostra-se a dupla projeção “Useless
grupo de refugiados subindo para Wonder”, com uma animação
uma escada de avião que não dá onde uma energia pagã se mistura
para lado nenhum — obra que ao erotismo e onde fecundidade
faz uma clara alusão ao destino e morte se dissolvem em imagens
claustrofóbico e desumano próximas de um realismo fantástico
dos migrantes no mundo repleto de violência e vitalidade,
contemporâneo. enquanto no verso assistimos
Entre os trabalhos mais intensos da a uma sistemática montagem e
exposição conta-se o que lhe inspira desmontagem de um mapa-mundo.
o nome, “Turbulent” da autoria da Vem da Venezuela, um dos
artista iraniana Shirin Neshat que trabalhos, porventura, mais
utiliza o canto (um contraponto fortes da exposição. Trata-se de
entre um homem e uma mulher) “La Hermandad” (1994), de José
para denunciar — entre o sublime Antonio Hernández-Díez que
e a melancolia — a desigualdade nos conta a história da vida de
de género no seu país, uma obra um skate numa cidade que podia
que possui um lugar emblemático ser Caracas. O artista criou skates
na arte contemporânea pela forma feitos em courato de porco que são
emocional mas não alienada com fritos, postos à solta na cidade e
que nos sintoniza com a evidência comidos por cães em três momentos
dessa injustiça. em vídeo consecutivos enquanto
A referência a uma visão mais alguns desses objetos nos surgem
performativa e comunitária pendurados e pingando gordura no
chega-nos da obra mais antiga espaço da instalação numa poderosa
da exposição. Trata-se da metáfora da violência e do abandono
documentação de uma performance a que estão sujeitos os adolescentes
realizada em Buenos Aires, em que crescem nas ruas das grandes
1983, pela argentina Marta Minujín cidades latino-americanas.
aquando da queda da ditadura A exposição termina com um
militar. “Partenon de Livros” é isso filme-instalação de Apichatpong
mesmo, uma réplica do edifício Weerasethakul estruturado nas
grego símbolo da democracia relações entre guerra e memória.
feita em livros que foram a seguir Em “Primitive” (2006), vários
distribuídos à população. monitores vão mostrando o
Algumas das intervenções trabalho do realizador junto de um
investigam as relações paradoxais grupo de adolescentes de Nabua,
da política com as suas imagens. cidade fronteiriça entre a Tailândia
A partir de uma fotografia em que e o Laos, onde historicamente a
Hitler surge beijando uma menina, guerra é a norma. Weerasethakul
Carlos Garaicoa criou uma coleção cria com eles uma narrativa e uma
filatélica com selos em que líderes mitologia alternativas, fazendo
mundiais (Saddam, Obama, Juan deste “multifilme” o contexto de
Carlos, Francisco, Chávez, entre uma recuperação e reinvenção
outros) se mostram na companhia individual e coletiva.
de crianças ironizando uma A estas obras junta-se ainda
estratégia conhecida destinada a trabalhos de Bleda y Rosa, Walter
amenizar a imagem do poder. Dahn, José Damasceno, Cao
Paulo Nazareth apresenta-nos Guimarães Asier Mendizabal,
uma floresta de 19 televisores cuja Gabriel Orozco, Damián Ortega,
única imagem é uma bandeira Walid Raad e Juan Ugalde que
rasgada pelo vento, espécie alargam o leque de temas e
de embate entre o simbolismo perspetivas num conjunto
nacionalista com a realidade e a naturalmente dominado por
erosão provocada por ela. propostas ibero-americanas.
Outros estabelecem a sua própria Violência, guerra, injustiça e
genealogia doutrinária como desmemória. “Turbulências”
Thomas Hirschhorn que criou uma estabelece um retrato múltiplo
paráfrase em cima da memória de um mundo colhido entre o
seminal de alguns dos desenhos sobressalto e o sonambulismo e as
e pinturas mais politizados de obras que a compõem refletem uma
M/6

Francisco Goya, sobrepondo à profunda esperança de que a arte


linearidade realista dos primeiros seja ainda um lugar de produtiva
novas camadas materiais, visuais instabilidade. b

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Cinema
Obrigatório Música Teatro & Dança

LEVI MARTINS
DANIEL DENT
THX 1138 LISBOA SOA UM D. JOÃO PORTUGUÊS
De George Lucas Estufa Fria, Lisboa, de 14 a 17 — AS ÁRVORES (DOS DESGOSTOS)
Jardim do Palácio Pimenta – Museu de Lisboa, A partir do “D. João”, de Molière
hoje, 21h30 O Lisboa Soa — Encontro de Arte Sonora, Urbanis- Teatro Viriato, Viseu, quinta e sexta
mo e Cultura Auditiva ocupa durante quatro dias o
Num futuro distópico, a Humanidade vive sob a jardim da Estufa Fria, no Parque Eduardo VII, com É a terceira parte do projeto que Luís Miguel Cintra
tirania de polícias-androides e o efeito de drogas que workshops, instalações site-specific e performances. concebeu depois do final da Cornucópia. D. João
anulam qualquer emoção. Este cult movie de ficção Música ao vivo por Adriana Sá & John Klima (quin- encontra-se em fuga, depois de ter abandonado D.
científica foi a primeira longa-metragem de George ta, 18h30), Mileece (quinta, 19h30), Jen Reimer & Elvira. A permanente mobilidade da personagem
Lucas. Com Robert Duvall e Donald Pleasence. Max Stein (sexta, 18h30), André Gonçalves (sexta, parece coincidir com a estrutura do projeto, que se
19h30), Juan Sorrentino (dia 16, 18h30, na foto), passa em quatro lugares diferentes do país, antes de
OUTUBRO AGAPEA aka Sasa Spacal (dia 16, 19h30) e So- a totalidade vir a ser apresentada em 2018. O ponto
De Sergei M. Eisenstein
noscopia (dia 17, 17h30). Muitos destes performers de partida é uma tradução anónima de “D. João”, de
Cinemateca Portuguesa, Lisboa, hoje, 21h30 também conceberam instalações (acrescentem-se Molière, que circulou em Portugal como teatro de
os nomes de Cláudia Martinho e de João Ricardo) cordel. E cada parte funciona, também, como um
Dez anos depois da Revolução Russa de 1917, Eisens- e irão dar workshops ou orientar passeios sonoros espetáculo independente e fortemente heterodoxo.
tein recebeu de Estaline a encomenda deste filme (outros nomes a reter: Peter Cusack, Sam Auinger,
para o jubileu daquele aniversário e reconstituiu os Luís Antero, Maile Colbert & Ana Monteiro e Joana BIOGRAFIA DE UM POEMA
acontecimentos de Petrogrado até à vitória defini- Estevão). A partir de Carlos Drummond de Andrade
tiva dos bolcheviques. Embora duvidoso no plano Teatro do Bairro, Lisboa,
histórico, cristalizou a Revolução no cinema. NITE JEWEL de 13 de setembro a 8 de outubro
ZDB, Lisboa, hoje, 22h
SILVESTRE Carlos Drummond de Andrade publicou, em 1928,
De João César Monteiro
Um noite de nostalgia para matar saudades de divas na “Revista de Antropofagia”, o poema ‘No Meio do
Cinemateca Portuguesa, Lisboa, segunda, 19h tipo Sade ou Whitney Houston com a cantora de Los Caminho’, mais tarde incluído no livro “Alguma Poe-
Angeles a apresentar o álbum “Real High”, editado sia”. O poema provocou um escândalo, e o poeta foi
Baseado em lendas e histórias tradicionais por- este ano (e no qual colaboraram Dâm-Funk, Droop-E guardando tudo aquilo que, sobre esse texto, se foi
tuguesas, “Silvestre”, realizado em 1981, é um dos e Julia Holter). A ZDB promete que nessa noite se vai publicando. Para assinalar os 40 anos da publicação
mais belos filmes de César Monteiro. A Cinemateca transformar no “melhor clube noturno da cidade”. de tão polémica obra, foi publicado o livro “Uma Pe-
programa-o no âmbito da homenagem a Luís Miguel dra no Meio do Caminho — Biografia de Um Poema”,
Cintra. que consta de uma seleção daquilo que sobre esse
famoso texto modernista foi escrito. É a partir deste
livro que António Pires cria o espetáculo “Biografia
de Um Poema”, com os atores Chico Diaz e Cassiano
Carneiro e com a atriz Rita Loureiro.

BOJACK FEAR THE PRIMEIRO,


Televisão

HORSEMAN WALKING DEAD MATARAM


Netflix AMC O MEU PAI
Já em streaming Estreia segunda, 22h10 Netflix
(Temporada 4) (Temporada 3 — Parte B) Estreia sexta

Will Arnett dá voz a Série pós-apocalíptica, Angelina Jolie realiza um


BoJack nesta série de ani- mostra a luta pela sobre- filme baseado nas me-
mação para adultos sobre vivência entre os Estados mórias de Loung Ung, que
“Horsin’ Around”. Unidos e o México. relata a sua fuga.

E 92

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Top10
Livros Semana 34 | De 21/8 a 28/8

Ficção

de distribuição: livrarias/outros (hipermercados e supermercados). Esta monitorização é feita semanalmente, após a recolha
Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal, através do estudo de um grupo estável de pontos de venda e de dois canais
Exposições Livros
Semana

da informação eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda. A cobertura estimada do total do mercado é de 75%
anterior

1 1 Escrito na Água Paula Hawkins


2 2 Nada Menos Que Tudo Afonso Noite-Luar
3 4 O Ano da Morte de Ricardo Reis José Saramago
4 - A Profecia de Istambul Alberto S. Santos
5 3 Uma Mulher em Fuga Lesley Pearse
As categorias consideradas para a elaboração deste top foram:
RYAN GANDER

Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada

O SIGNO Não ficção


Semana
Umberto Eco anterior
Presença, €13,90 1 3 O Caderno das Piadas Secas V.A.

I SPEAK TO PEOPLE ON THE TELEFONE Umberto Eco foi tam- 2 1 Receitas com Segredo Marco Costa
Ryan Gander e Jonathan Monk
bém um académico
3 2 Chegar Novo a Velho Manuel Pinto Coelho
Galeria Cristina Guerra, Lisboa, até 28 de outubro importantíssimo na
área da Semiótica. Este Sapiens — História Breve
4 - Yuval Noah Harari
Uma colaboração entre artistas a partir da ideia de livro denso é um bom da Humanidade
falar ao telefone enquanto lugar de intimidade, mas exemplo desse labor 5 - As Primeiras Vítimas de Hitler Timothy W. Ryback
essa é também uma referência ao jogo do “Telepho- intelectual, ao fazer As categorias consideradas para a elaboração deste top foram:
Ciências; História e Política; Arte; Direito, Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda
ne” (passa-palavra) que é, no fundo, um jogo con- uma síntese das grandes
ceptual assente na linguagem e que aqui se constitui teorias em torno do
em trabalhos em materiais diversos. conceito de “signo”,
mostrando como ele
TENSÃO E CONFLITO. ARTE EM VÍDEO tem implicações não
DEPOIS DE 2008 apenas na linguística,
Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa, atravessando toda a
de 13 de setembro a 19 de março história do pensamento
filosófico.
O museu apresenta uma mostra alargada da pro-
dução videográfica contemporânea com obras de
Patrícia Almeida, Halil Altindere, Marilá Dardot, Bofa DEOLINDA
da Cara, Burak Delier, Melanie Gilligan, Lola Gonzà-
lez, Hiwa K, Silvia Kolbowski, Nikolaj Bendix Skyum
Larsen, Marc Larré, Jorge Macchi, Paulo Mendes,
Mario Pfeifer, Francisco Queirós, Anatoly Shuravlev,
Federico Solmi, Pilvi Takala, Maria Trabulo, Dragana
Zarevac, Artur Zmijewski, e Yorgos Zois.

PAS DE DEUX REVOLUÇÃO


Ana Jotta RUSSA, 100 ANOS SETEMBRO
Gabinete, Lisboa, até 14 de outubro DEPOIS Quinta 14 às 21h30 M/6

Vários autores
Uma artista que foi prémio fundação EDP em 2013 Parsifal, €16

HELDER
e prémio AICA em 2014 apresenta um conjunto de
gravuras recentes num espaço dedicado ao múltiplo. Além dos textos analíti-

MOUTINHO
cos de Francisco Louçã,
Miguel Pérez Suaréz,
Fernando Rosas, José
Manuel Lopes Cordeiro,
TABOO Thaiz Senna, António
AMC
Louçã e Constantino
Sexta, 13h Piçarra, destaque neste
(Temporada 1) livro para o excelente
ensaio de Rui Bebiano
Maratona de oito episó- (‘Não Há um Outubro —
SETEMBRO
M/6 Sábado 23 às 21h30
dios, apresenta a história Paradigma e Variações’).
da série oitocentista
britânica protagonizada
por Tom Hardy.

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QUE COISA SÃO AS NUVENS

/ JOSÉ
TOLENTINO
MENDONÇA

T
O ELOGIO DO DESENCONTRO
EXISTE NO DESENCONTRO mais tarde, publica uma crónica no “Jornal do Brasil” intitulada
“Fernando Pessoa me ajudando” (1968), partindo das noções de
A POSSIBILIDADE DE UMA fingimento e de sinceridade.
COMUNICAÇÃO A OUTRO NÍVEL Cada um de nós pode contar os seus desencontros estimáveis. Por
QUE NÃO FICA COARTADA exemplo, estive em Belo Horizonte cinco vezes. Em cada visita, e
sem que eu o sugerisse, houve sempre alguém a oferecer-se para
PELA AUSÊNCIA levar-me ao encontro de Adélia Prado. Telefonaram para o filho, o
marido, para ela própria diante de mim. O gosto existia,
ambém nos acontece pensar que mas nunca se efetivou: o dia em que eu podia ela não; por minha
combinámos encontros e, afinal — depois parte, estava prisioneiro dos compromissos que me prendiam
compreendemos —, eram desencontros a Belo Horizonte (ela mora numa cidade satélite, Divinópolis) e
o que empenhadamente estávamos a tinha pouca flexibilidade de tempo; o melhor seria adiar. Mas
organizar. Claro que há desencontros também não estive quieto: tentei trazer Adélia Prado a Portugal.
dececionantes e que lamentámos por Removi mundos e fundos: articulei o projeto com a embaixada
muito tempo, mas o mesmo se pode dizer do Brasil, ela recebeu um convite do Ministério da Cultura do
de certos encontros. Existe, porém, no seu país, participei na organização de uma antologia da obra dela
desencontro a possibilidade de uma comunicação a outro nível que a Assírio publicou. À última hora Adélia escreveu, depois
que não fica coartada pela ausência. O vazio, por incómodo que de tudo acertado, passagens reservadas inclusive, confessando
seja, pode revelar-se um dom. Idealizamos demasiado o contacto uma impossibilidade de viajar. Não fiquei menos feliz do que
com a alteridade, enredamo-nos em expectativas, projetamos se ela tivesse desembarcado. Acho que percebi a grandeza do
tanto que a relação se torna um precipitado jogo de sombras. O desencontro.
desencontro corrige muitos desses equívocos internos. Deixa-nos Este mês de setembro voltei a Belo Horizonte. Sem esperar, no final
de mãos vazias, é verdade, mas dessa maneira devolve-nos de uma conferência, uma pessoa que eu nunca vira veio oferecer-
a nós e recoloca-nos, perante o outro, mais conscientes da se para promover um (des)encontro com Adélia Prado. E eu
irredutível distância que nunca é vencida, mesmo na intimidade. sorrindo disse: “Mas ela não lhe contou que eu já a encontrei?” b
Fernando Pessoa escreveu que “falar é o modo mais simples de
nos tornarmos desconhecidos”, relativizando assim as ilusões
imediatistas da viagem entre o eu e o tu. O caminho para o outro
é sempre uma longa estrada. Por isso, à medida que os anos À MEDIDA QUE OS ANOS
passam, aprendemos a agradecer não apenas o que os encontros
nos trouxeram — que foi quase tudo —, mas também o que nos PASSAM, APRENDEMOS
chegou através de desencontros.
Há um curioso entre Fernando Pessoa e Cecília Meireles. Em
A AGRADECER NÃO APENAS
finais de 1934, a poetisa veio pela primeira vez a Portugal e
marcou um encontro com Fernando Pessoa ao meio-dia na
O QUE OS ENCONTROS
Brasileira do Chiado. Passando já das duas, e sem que Pessoa NOS TROUXERAM,
aparecesse, Cecília Meireles levantou-se e foi para o hotel.
Ao chegar, tinha em seu nome, na receção, um exemplar MAS TAMBÉM O QUE
autografado da “Mensagem” e um bilhete com as desculpas de
Pessoa. Este captara vibrações mediúnicas e, tendo consultado
NOS CHEGOU ATRAVÉS
o seu horóscopo, percebeu que os dois não se deviam encontrar. DE DESENCONTROS
Ela retorquiu com um cartão lacónico: “Cecília Meireles —
cumprimenta e agradece”. Mas o desencontro deles foi um
encontro que não acabou ali. De regresso ao Brasil, Cecília escreve
um dos primeiros textos críticos a respeito do universo pessoano
na antologia “Poetas novos de Portugal” (1944) e, duas décadas

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vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

ExpEespecial
à meriência
dida s

O céu é o limite
Chama-se Luxury Concierge e quer estar uns furos acima da experiência
turística habitual para usufruir em Lisboa (e não só). A ideia é proporcionar
experiências inesquecíveis — qualquer que seja a sua definição do luxo
TEXTO KATYA DELIMBEUF
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O
lugar é improvável, isolado, surpreenden- já agora, a quem possa não saber, que o concierge é acesso a historiadores e profundos conhecedores da
te. Num beco desconhecido em Marvila, ao aquela figura dos bons hotéis encarregue de organi- Olissipo antiga e moderna. É esse acesso privilegi-
fundo de uma rua, um edifício meio déla- zar tudo aquilo que um hóspede desejar e quiser sa- ado que Xana Nunes considera ser a oportunida-
bré, com o encanto das casas imponentes em que ber). Xana Nunes, ex-modelo e bailarina, move-se de para preencher uma lacuna, dirigida a “turistas
são visíveis os sinais da passagem do tempo, abre- há muito entre os bastidores e as luzes de cena — há exigentes, que procuram mais cultura”.
-se para um corredor com um pátio em fundo. O tempo suficiente para ter adquirido o conhecimen- Há já várias propostas estruturadas, para satis-
espaço interior, com toldos a criar sombras, tem to que oferecer propostas diferenciadas e mais tra- fazer apetites selectos em matéria de experiências.
mesas e cadeiras dispersas, janelas que dão para um balhadas aos turistas que procuram cada vez mais A Secret Lisbon possibilita visitas a lugares espe-
jardim espontâneo de figueiras e catos. Faz lembrar Portugal. Adquiriu-a, em primeiro lugar, graças à ciais e recônditos, acompanhados por pessoas que
a Toscana, à luz dura do meio-dia. Há quadros nas relação que manteve com as marcas de luxo, suas conhecem alguns segredos da cidade; o Art-astic
paredes às quais falta caliça, e vinho branco, chá clientes, que lhe pediam eventos fabulosos em lo- promete um tour eclético de rotas que interessam a
frio e maça fatiada com canela para dar as boas- cais inesperados. Também acontecia, de vez em artistas ou apreciadores de arte contemporânea —
-vindas aos que chegam a este lugar — que nin- quando, chegarem-lhe celebridades como Miuccia seja passando por alguns museus ou galerias pouco
guém supunha existir ali. Uma mesa, impecavel- Prada e o seu grupo, e ter de improvisar três dias óbvios, seja com visitas a ateliês de pintores ou ou-
mente posta, com lugares designados, espera uma exclusivos e memoráveis... Mais tarde, foi a vez do tros criadores; o Shopping Perfection aponta bate-
dezena de convidados. Lisbon Week, criado em 2012, que todos os anos rias a quem adora compras, mas sempre com uma
Surpreender e agradar, criando impacto e boas elege um bairro da capital para dar a conhecer aos mais-valia — como a visita da loja onde a prince-
recordações. Esta é a essência do Luxury Concier- moradores segredos desconhecidos e abrir portas sa Diana comprava linho para a Casa Real. Outros,
ge, o novo projeto de Xana Nunes, empresária que até aí fechadas. Isso ofereceu a Xana “um molho de como o Regresso à Terra, prometem cruzar progra-
detém a XN Brand Dynamics há 20 anos. (Diga-se, chaves premium de lugares da cidade”, assim como mas rurais como a vindima, a apanha da azeitona

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Uma mesa posta no local
que se quiser, com uma ementa
cuidada e atenta aos pormenores;
uma visita guiada ao interior de um
sítio que desconhecia existir; uma
visita de arte urbana, por espaços
que não existem nos guias,
acompanhados por especialistas
de arte; ou um programa de
natureza, em que apanhar cerejas,
azeitonas ou uvas se pode mesclar
com momentos de meditação ou
ioga são alguns dos serviços
possíveis do Luxury Concierge

Uma palavra ou da cereja com a vertente da meditação, do ioga


e do relaxamento. Há ainda a opção Ocean, para
azulejos” ou uma viagem de arquitetura através das
obras de Pardal Monteiro. Inês Pais desenha as ex-
fundamental todos os que desejam praticar um desporto náuti-
co — do surf à vela ou ao mergulho com golfinhos,
periências do Secret Portugal; Rita Almeida Freitas
é a expert de arte e Margarida Cruz é a prima donna
impõe-se no e uni-la à ‘arte’ tão portuguesa de comer bom pei-
xe e marisco.
da arte urbana. Susana Marques Pinto é a especi-
alista em estilo e Ricardo Lopes trata do segmento
Concierge: Uma palavra fundamental impõe-se no meio
disto tudo: personalização. Tudo é adaptado à me-
de música (opção Lisbon Night Manager). Tudo em
parceria com um rent-a-car de luxo (preço-base
personalização. dida dos desejos de quem procura. Se apetecer a €300 por dia) e hotéis a condizer — com tendên-
quem vier comer ouriços do mar ou lagostins na cia para se alargar a todo o país. Além do Luxury
Tudo é adaptado praia, regados a champanhe fresco, isso arranja- Concierge, a XN também não descura a vertente
-se... Em pouco tempo, monta-se o cenário — à dos eventos premium exclusivos para empresas. De
à medida semelhança dos piqueniques que ‘brotam’ no meio volta ao nosso ponto de encontro quase secreto, a

dos desejos da savana africana. Nada é impossível — e o obje-


tivo do Luxury Concierge é “nunca oferecer nada
mesa posta de forma eclética e descontraída. Aqui,
haverá qualidade mas sem bling-bling. As cadeiras
de quem procura. igual”, explica Rosa Mello Rêgo, que durante 19
anos trabalhou em Londres nesta área. Na atu-
de madeira pintadas, os copos de várias cores, o ga-
fanhoto de prata poisado no meio das plantas de-
Isto sim, é luxo al equipa de 12 pessoas, incluem-se especialistas
em arte contemporânea, em história ou arquite-
corativas, os marcadores que apontam os lugares.
Tudo é memorável. Com simplicidade e arte. A arte
tura, que permitem tornar especial uma “rota de de bem receber. b

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R ECE I TA
POR JOSÉ AVILLEZ
TIAGO MIRANDA

Choco em tempura com maionese


de malagueta e cebolinho
Reinventar o clássico
4 pessoas I Tempo de preparação: 45 minutos I Tempo de confeção: 30 minutos

Ingredientes

D
escongele e lave as tiras de choco. Leve ao 1 kg de tiras de choco congeladas; envolva. À parte, bata levemente os ovos. Gra-
lume uma panela com um litro de água e 1 dente de alho; 1 cebola; 1 folha de louro; dualmente, junte os ovos batidos à farinha, me-
um de leite, o azeite, o alho, a cebola e a fo- 20 ml de azeite; 800 ml de óleo xendo sempre. Quando os ovos estiverem bem
lha de louro e tempere com sal. Quando levantar para fritar; 1 l de leite; 1 l de água; envolvidos com a farinha, acrescente, pouco a
fervura, junte as tiras de choco e deixe cozinhar raspa de limão q.b. pouco, água e vodka em parte iguais, até ob-
em lume brando durante cerca de 20 minutos. PARA A MAIONESE ter a consistência de um polme homogéneo.
Prepare a maionese juntando num recipi- DE MALAGUETA E CEBOLINHO Por fim, acrescente a cebola picada e envolva
ente a gema, o vinagre de arroz, sal e pimenta. 1 gema; 250 ml de óleo amendoim; novamente.
Misture com a ajuda de uma varinha-mágica e, 15 ml de vinagre de arroz; sal q.b.; pimenta Quando as tiras de choco estiverem cozi-
em seguida, vá juntando o óleo em fio, emul- q.b.; 1 malagueta; 2 g de cebolinho das, retire do lume, coe e deixe arrefecer li-
sionando até obter a consistência pretendida. PARA O POLME geiramente. Passe cada tira por farinha e, em
Retifique os temperos, se necessário. Corte a 160 g de farinha; 2 ovos; 2 colheres de sopa seguida, pelo polme. Leve a fritar em óleo bem
malagueta ao meio e retire as sementes. Pique de cebola finamente picada; água q.b. quente. Quando as tiras de choco estiverem
o cebolinho e a malagueta finamente e junte à e vodka q.b. em partes iguais; sal fino q.b. douradas, retire e seque em papel absorvente.
maionese. Finalize as tiras de choco frito com um pou-
Para preparar o polme, coloque a farinha co de flor de sal e raspa de limão. Sirva com a
numa taça, tempere com um pouco de sal fino e maionese de malagueta e cebolinho. b

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VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

Festa bairradina até amanhã


A região mostra-se aos consumidores e renova aposta no espumante

N
este fim de semana todos os cami- cedo se dedicaram à produção deste tipo de carregados e densos e outros mais abertos
nhos vínicos levam ao velódromo de vinho. Muitas entretanto desapareceram e e que se ligam muito bem com outras cas-
Sangalhos onde está a decorrer uma os espumantes atravessaram nos anos 70, tas, como a Touriga Nacional, por exemplo.
festa de vinhos e sabores da região. A en- 80 e 90 um período menos interessante, vi- Para espumantes as provas da Baga já estão
trada é livre e quem quiser pode comprar nhos sem graça a que apenas o gás natural dadas mas também dá bons resultados em
um copo à entrada que depois servirá para ajudava. Exceções havia mas o panorama destilados. É essa variedade de estilos que
provar nos vários stands onde é possível era algo desanimador. Atualmente temos será possível provar hoje na Bairrada — vi-
contactar com os produtores. Hoje e ama- uma situação bem diferente. Os produto- nhos e sabores. Por experiência de anos
nhã, das 15h às 22h é possível provar vi- res aprimoraram a escolha de uvas para os anteriores, é expectável que apesar de es-
nhos mas também conhecer outras iguarias vinhos-base e deu-se um salto qualitati- tarem em vindimas, os produtores não dei-
da região. Todos sabemos que a Bairrada é vo. Mais recentemente foi criada a desig- xem de estar presentes, sendo assim possí-
conhecida pelo seu espumante. Aqui terão nação Baga-Bairrada, uma aposta na casta vel o contacto direto. Bem que a restaura-
sido feitas as primeiras experiências, ainda típica da região mas aqui para fazer espu- ção e os responsáveis pelos vinhos podiam
no século XIX, por Tavares da Silva, estan- mantes brancos. A adesão tem sido grande aproveitar para conhecer novos produtos,
do estabelecida a data de 1890 como a que e neste momento já existem 17 espuman- estabelecer contactos e provar novidades.
marca a produção do primeiro espumante tes de 14 produtores diferentes com aquela Uma boa gestão da carta de vinhos obriga a
feito pelo método usado em Champanhe. designação. Destes escolhemos três para a um trabalho atento e permanente, algo que
Tal designação (método champanhês) dei- nossa seleção da semana. A casta Baga, ca- é muito fácil neste tipo de encontros. Neste
xou de poder aparecer nos rótulos, uma vez racterística dos tintos da região, era outro- e noutros que terão lugar até ao fim do ano.
que Champanhe designa uma região e exis- ra difícil e indomável em nova e precisava Também vão ter lugar provas comentadas
te a proteção legal do nome idêntica prote- de anos e anos em cave para que os vinhos mas estas estão sujeitas a inscrição. Não
ção existe com o nosso Porto; por isso apa- resultassem equilibrados. De facto é uma só provas de vinhos como ligações vinho/
rece no rótulo a designação Método Clássi- casta muito plástica e polivalente que gera comida, um tema que cada vez interessa a
co. As inúmeras caves existentes na região desde bons rosés até bons tintos, uns mais mais consumidores. b
FORNECIDOS PELOS PRODUTORES)
(OS PREÇOS, MERAMENTE INDICATIVOS, FORAM

Espumante Espumante Marquês de Espumante


Qta. do Poço do Lobo Marialva Baga-Bairrada São Domingos
Baga-Bairrada 2014 Blanc de Noir 2015 Baga-Bairrada 2012
Região: Bairrada Região: Bairrada Região: Bairrada
Produtor: Caves S. João Produtor: Adega Coop. de Produtor: Caves do Solar de São
Enologia: José Carvalheira Cantanhede Domingos
Casta: Baga Enologia: Osvaldo Amado Enologia: Susana Pinho
PVP: €9 Casta: Baga Casta: Baga
Esta quinta te 32 ha, dos quais 27 PVP: €6,99 PVP: €8,50
em produção. Também produz Leve tonalidade rosada. Leve no Aroma fino e convidativo, todo ele
brancos e tintos tranquilos. corpo, perfeito na acidez. muito delicado, leves notas de
Dica: delicado na espuma, Dica: com esta elegância de groselha.
vigoroso no perfil. Bom como conjunto o sucesso está garantido. Dica: perfeito para canapés de peixes
aperitivo ou à mesa. Para aperitivo. fumados, servido como aperitivo.

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SO B R E M ESA
POR FORTUNATO DA CÂMARA

se libertassem os belíssimos aromas ACEPIPE


do crustáceo. O creme rosado tinha
alguns pedaços de lavagante, mas a
porção veio demasiado contida para
o tamanho avantajado da taça.
Tónico
Uma curiosidade foi ver na car- de fim
ta um “Arroz malandrinho com bo-
linhos de bacalhau” (€18), que era de verão
um arroz de tomate correto, feito Há dois meses a imprensa
com bago carolino e pedaços do fruto inglesa noticiava que o
fresco, mas que pedia um sabor mais “Port & Tonic” era a bebida
vivo. Já os cinco pastéis (bolinhos) es- eleita para refrescar este
tavam impecáveis de feitura e fritura, verão. O “The Indepen-
sendo o prato um escape aos preços dent” sugeria até que o
elevados da carta. A “Paletilha com cocktail à base de Vinho
ANTÓNIO BERNARDO

arroz de forno e grelos” (€32) era uma do Porto (branco, seco),


perna de cabrito tenra e suculenta, la- com água tónica e limão,
deada com grelos e acompanhada por se preparava para ser “o
novo G&T” (gin tónico)
um belo arroz de forno com chouriço
dos pubs ingleses. O “Eve-
e bacon, numa porção que pode ser
ning Standard” sublinha a
partilhada ou saboreada com saudá-

Oh là là! Sorrir, pourquoi?


adição de folhas de menta
vel avidez. O “Tournedó” (€28) não ao “porto tónico” para aro-
era nada de ‘virar costas’ como a ex- matizar, enquanto o “The
pressão que está na origem (tourner le Telegraph” argumenta que
A Ladurée foi o chamariz para divulgar o JNcQuoi, dos) deste corte nobre de um meda-
lhão do lombo de novilho. Carne deli-
o facto de ser menos alco-
ólico, ter uma doçura mais
um espaço que valoriza a cidade ciosa e rosada ao centro, com um ali- equilibrada, e o preço ser
ciante molho de cogumelos morilles e mais baixo colocam o vinho
umas crocantes ‘barras’ (corte ‘pon- do Porto em vantagem

A
brir portas na avenida mais para sublinhar o carácter especial da te nova’) de batata frita de excelente sobre os gins e as vodkas.
cara e exclusiva da cidade já casa. Embora seja um local publico o qualidade, a parecerem da variedade Este cocktail não é uma
novidade por cá, apesar de a
é um ponto de partida para recato é subjetivo, pois os tetos exi- gaulesa ‘agria’.
alguns lhes parecer que está
as pretensões e expectativas com que bem várias câmaras de vigilância sem Carta de vinhos muito completa
fora de moda. São inici-
abriu o JNcQuoi. O foyer do Teatro Ti- que seja visível a placa indicadora de a preços elevadíssimos, apenas com ativas como o Port Wine
voli está transfigurado na sala de re- que se está a ser filmado como é habi- um ou outro escape para aligeirar a Day que fazem ressurgir
feições deste espaço luxuoso do gru- tual nestes locais. Por via das dúvidas conta. O serviço está uns furos abai- bebidas como “P&T” —
po Amorim que se desdobra num bar é melhor sorrir… Pourquoi? xo da ambição evidenciada. Desco- além dos magníficos Portos
para refeições ligeiras na parte de Porque Lisboa não tinha muitos ordenação na sala, ausência de in- clássicos — que agora está
baixo com um recanto dedicado às espaços assim. A chegada da Ladu- formação do que está a ser servido, e a conquistar os ingleses,
especialidades de pastelaria da pari- rée cria uma bitola para se aferir a falta de referência de ‘quem é quem’ e certamente irá cativar
siense Maison Ladurée. e numa loja fraca qualidade dos muitos curiosos através dos uniformes. As mesas são os turistas que estiverem
de roupa. Com poucos dias de aber- que andam por aí a fazer macrons, abordadas por empregados sem pa- no Porto por estes dias. O
tura, o balcão do DeliBar parecia um naperons… oh là là!, qualquer coisa drão de roupa de brigada de sala, o auge das comemorações
plateau de ficção. Os clientes pareci- indefinida e presunçosa que pode que se estranha. é amanhã, pois foi a 10 de
setembro de 1756 que o
am ter estado ali desde sempre, agin- ter qualquer nome, menos ‘maca- As sobremesas, porém, entra-
Marquês de Pombal iniciou
do com a ‘naturalidade’ dos figuran- rons’. Depois, a carta do restaurante nham-se com um belíssimo “Pu-
o processo de criação da
tes que preenchem ambientes de ce- tem uma oferta abrangente em pra- dim Abade de Priscos (€9) vindo de Região Demarcada do
nas bem coreografadas. tos de cozinha francesa, portugue- um pasteleiro de Braga, um delicado Douro. O quarto ano deste
A casa soube comunicar-se, e sa e internacional. Veja-se o arran- e deliciosamente frutado “Cheese- evento bem merece um
tantos os clientes potenciais — a co- que com um quinteto de “Espargos cake de alperce” (€9), e o poderoso Porto Tónico pela tarde, e
munidade francesa triplicou na regi- brancos” (€15), naturalmente tenros “Plaisir sucré” (€9) com camadas de um Porto com indicação de
ão de Lisboa, além de haverem novos e adocicados, guarnecidos por um chocolate e avelã (em pasta e pedaços idade (10, 20, 30 anos, etc.)
moradores cosmopolitas e abastados molho forte de mais, à base de pas- crocantes), a formarem um retângu- em parceria com um pouco
— como os eventuais, acorreram as- ta de trufa e vinagre balsâmico, cujo lo divino. de queijo Stilton, a fe-
sim que as portas abriram. Ambiente cariz acídulo retirou espaço aos aro- O JNcQuoi dá à cidade um spot char o jantar, e as-
requintado e decoração exuberante mas trufados. Muito boa a “Terrina de que mistura glamour e uma cozinha sim celebrar esta
boa e velha
foie gras de pato” (€22) com pedaços de produto certinha, mas sem cativar
aliança di-
evidentes do valioso e saboroso fíga- logo à primeira. Sairá ‘satisfeitinho’
plomática e...
do, acompanhado de uma compota quem espera encontrar uma grande económica.
JNcQuoi de cebola pouco doce (e ainda bem) cozinha, ‘satisfeito’ quem quiser co-
Av. da Liberdade, 182-184 — Lisboa e pão brioche em fatias torradas. Das mer corretamente num espaço atra-
Telefone: 219 369 900 entradas quentes, a “Bisque de lava- ente, ou ‘satisfeitíssimo’ quem bus-
Encerra ao domingo (reserva recomendada) gante” (€18) veio de cúpula folha- car sair deslumbrado pela vizinhan-
da, pronta a ser rompida para que ça do lado. b

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EM PARCERIA COM

as nossas recomendações Saiba mais sobre estas e outras sugestões em


boacamaboamesa.expresso.sapo.pt

Cais da Villa
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do Amaral, Vila Real. Tel. 254 401 698 Hotel Rural
Tel. 259 351 209 Localizado no centro histórico, Quinta do Marco
Quando olhamos para a carta, inspirou-se nas encostas do Douro Sítio do Marco, Santa Catarina
identificam-se os produtos da para oferecer uma evocativa de- da Fonte do Bispo, Tavira.
cozinha tradicional com uma rou- coração das vinhas das redonde- Tel. 281 971 500
pagem contemporânea. Exemplos zas. Oferece serviço à carta, mas
disso são o lombo de bacalhau harmoniza algumas especialida-
cozinhado a baixa temperatura des em menus de seis pratos, com
e as bochechas de porco bísaro o vinho produzido na região. Preço
com risoto. Preço médio: €30. médio: €30.

Castas e Pratos DOC


Rua José Vasques Osório, Peso Cais da Folgosa, EN 222, Perto de Tavira, mas numa zona
da Régua. Tel. 254 323 290 Folgosa do Douro, Armamar. mais interior, este hotel ganhou
Conceitus Winery Restaurant Sorri para as influências interna- Tel. 254 858 123 uma nova alma em 2016. Aqui
Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, cionais, da mesma forma como pretende-se mostrar o mais
Covas do Douro. Tel. 254 730 430 preserva os melhores tesouros genuíno Algarve rural, com
Nos dias amenos, nada melhor do que aproveitar a zona exterior da nossa tradição, da açorda de diversas atividades e experiên-
deste restaurante assumidamente vínico, ou não estivesse numa alheira ao premiado cabrito ao cias associadas. Cada um dos
propriedade produtora. Os menus, ao almoço e ao jantar, seguem vinho do Porto. Preço médio: €30. 24 quartos (a partir de €165) foi
a linha orientadora dos vinhos da Quinta Nova, bem como a sa- batizado com o nome de uma
zonalidade dos produtos desta região, dos peixes do rio ao azeite, The Wine House planta da região, que serve de
chás e doces de fruta, assim como legumes da horta, que o chefe Restaurante inspiração para a decoração. Ao
Rui Frutuoso prepara diariamente com dedicação. A carta dos vi- Quinta da Pacheca, Cambres, À mesa percebe-se o longo pequeno-almoço poderá per-
nhos oferece várias opções, entre a prova a copo e a degustação Lamego. Tel. 254 313 228 caminho percorrido por Rui Paula, ceber a diferença dos sabores,
das novidades do ano. Preço médio: €35. Muito apetecível, a entrada é que a partir daqui deu a conhecer uma vez que grande parte dos
composta por um marmoreado de a nova cozinha de Trás-os-Mon- produtos é oriunda da propri-
foie-gras e marmelada ácida, re- tes. Na época das vindimas estão edade. Aprofunde o conheci-
dução de vinho do Porto Tawny e agendados diversos jantares mento da gastronomia local no
douro SUS Douro
Rua José Vasques Osório,
flor de sal. Nos principais, referên-
cia para o naco de novilho sauté,
vínicos. Preço médio: €40. restaurante panorâmico.

Cêpa Torta Loja C1, Peso da Régua. com cogumelo Portobello e risoto Cozinha da Clara
Rua Doutor José Bucelas da Cruz, Tel. 254 336 052 de salpicão. Preço médio: €40. Quinta de La Rosa, 215, Pinhão. a não perder
Alijó. Tel. 259 950 177 Tel. 254 732 254
Quem ainda não provou o Toca da Raposa Conhecedor da matriz gastronó- Rota das Adegas
bacalhau com broa e o arroz de Rua da Praça, 72 A, Ervedosa mica duriense, o chefe de cozinha
línguas de bacalhau, a bochecha do Douro, São João da Pesqueira. Pedro Cardoso está apostado
de porco bísaro, o famoso pudim Tel. 254 423 466 em servir uma gastronomia de
de azeite com gelado do mesmo Na carta surgem sugestões raiz portuguesa, privilegiando
e as canilhas de leite-creme deve regionais e familiares, como os produtos locais e sazonais, sem
fazer-se ao caminho. E até pode milhos de bacalhau com filetes de esquecer a herança gastronómica
ser que consiga aproveitar um bacalhau ou a massa meada de da família. Preço médio: €40.
jantar temático ou vínico. Preço Fica junto ao local onde se apre- cabrito. Deixe espaço para o pu- Com o objetivo de unir o turismo
médio: €30. goam os famosos rebuçados e dim de Tawny Poças Júnior. Preço Tasquinha do Matias de natureza ao universo vínico,
deu uma vida nova aos antigos médio: €20. Lugar da Ponte, Ucanha. decorre amanhã mais uma “Rota
O Tachinho da Té armazéns dos caminhos de ferro. Tel. 254 678 241 das Adegas”, que através de
Rua Conde Ferreira, Tabuaço. Um espaço que promete colocar Terra de Montanha Na esplanada ou na sala, ser- dois percursos permite visitar
Tel. 254 787 082 o leitão como novo conquistador Rua 31 de Janeiro, 28, vem-se petiscos e pratos que diversos produtores da região
Tudo o que aqui se pode provar da região. Faz-se assado no forno, Vila Real. Tel. 259 372 075 remetem para o passado e a de Torres Vedras. Em época de
é típico e tradicional, feito com como mandam as regras de um Glorifica a gastronomia regional, tradição locais, como os milhos, vindimas, os participantes (€8)
a única regra que impera, que é a bom assador, mas usa-se apenas onde os presuntos, os chouriços e o bazulaque à abade de Cister, podem optar por um passeio
de não adulterar os bons produtos o porco pequenino, de raça bísara, as alheiras introduzem com mes- o cordeirinho em forno a lenha, a de 5 km, por uma caminhada de
que a natureza oferece. Na época, para servir os comensais. Durante tria iguarias como as favas à terra marrã à Matias ou as tripas com 10 km, ou por uma corrida de
há uma açorda de perdiz digna de a semana obriga a marcação com de montanha, o joelho da porca feijão branco. As sobremesas 20 km, sempre num contexto
ser provada. Conte sempre com o três horas de antecedência. Ao e o bacalhau à moda da casa, continuam na senda da tradição: ligado à produção de vinho. Os
cabrito assado e a posta arouque- fim de semana é servido a todas as que recupera uma receita antiga. recomendam-se o arroz-doce e o produtores de portas abertas
sa. Preço médio: €20. refeições. Preço médio: €30. Preço médio: €20. leite-creme. Preço médio: €20. são a Quinta da Viscondes-
sa, a Adega Mãe, a Quinta da
Almiara, a Adega Cooperativa
“BOA CAMA BOA MESA” NA SIC NOTÍCIAS: de São Mamede da Ventosa e a
A BELEZA NATURAL DA RIA DE AVEIRO Quinta do Vale Galegos. Às 13h
COM ESTREIA ESTE SÁBADO NA SIC NOTÍCIAS E REPETIÇÕES AO LONGO DA estão marcadas degustações.
SEMANA TAMBÉM NA SIC MULHER E NA SIC INTERNACIONAL, O PROGRAMA Esta é uma iniciativa da Asso-
LEVA-NOS À DESCOBERTA DA BELEZA DA RIA DE AVEIRO, COM PARAGEM EM ciação de Marchas e Passeios
SÃO JACINTO E NA POUSADA DA RIA-AVEIRO. CONHEÇA AINDA AS FAMOSAS (tel. 969 841 310), com o apoio
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Região de Lisboa.

E 101

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DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO Parem de alimentar o
Uma história para o verão papão da matemática
A nossa irmã Para que os alunos melhorem a matemática, os
pais e os professores não podem dizer que é difícil
Pensei voltar para trás, podia estar
a começar uma viagem sem regresso
E
sta é a altura do ano em que as Tecnológica Nacional, disse que a ati-
crianças ainda pensam nas férias, tude dos alunos só muda quando a dos
enquanto a cabeça dos pais e dos responsáveis mudar.

A gora sim, já me recordo


da visita que lhe fiz.
Deve ter sido há uns dois
meses, confesso que ia com muita
ansiedade. Não sou muito dado a
Era um homem de meia idade, com
um sorriso aberto, de calças de
ganga e camisa, que não escondeu
o que já sabia de mim.
— Tanto quanto sei quer pensar
professores já está no ano letivo que se
aproxima. E a maior das suas preocu-
pações é o ensino da matemática. Por
isso é que agora vários pedagogos vêm
dizer que é exatamente por esse moti-
Do congresso ecoa que é preciso di-
zer basta para que as crianças tenham
gosto na aprendizagem da disciplina em
vez de a verem como um pesadelo. Em
casa, os pais dizem que é difícil, que é
histórias clandestinas, causam-me comigo a sua vida e eventuais vo que os alunos têm mais dificuldades preciso estar atento. E o medo come-
mal-estar, mas não fazia sentido caminhos alternativos. nesta disciplina. Os pais alimentam o ça. Na escola os professores salientam
nenhum dizer à Margarida, olha, Fui completamente sincero. monstro. as diferenças e os alunos consolidam a
hoje vou ao Alentejo. Falei-lhe das angústias que me Este tropeção curricular é comum resistência. Começam a pensar que não
A meio do caminho, chovia tinham assolado ultimamente, a vários países e gerações e, por isso, vale a pena.
torrencialmente, pensei voltar rematando com uma banalidade, este verão juntaram-se em Madrid 1600 Olimpia Figueras, professora e in-
para trás, podia estar a começar mas verdadeira. professores de 16 países, no Congresso vestigadora do Centro de Investigación
uma viagem sem regresso. — Isto não faz qualquer sentido, Ibero-americano de Educação Matemá- y de Estudios Avanzados do Instituto
Sempre tive uma regra na vida, vivo na Europa, o continente mais tica, para tentarem perceber como li- Politécnico Nacional da Cidade do Mé-
se achas que pode vir a ser uma tranquilo do mundo, não tenho dar com este monstro feito de números xico, salientou que o primeiro passo é
grande confusão, para antes de o direito de me preocupar com e equações. Entre as várias causas que dentro da sala de aula. E que se os alu-
começares, depois já é muito mais estas ninharias pessoais, quando o os especialistas identificaram, os livros nos respeitarem o professor, começam
difícil. mundo está como está. com critérios empresariais em vez de a respeitar a disciplina. Usou como pa-
Não foi fácil dar com o local, um Respondeu-me logo, como se já pedagógicos, e algumas das estratégias ralelismo a cultura asiática dos génios
estradão cheio de lama, lá no alto estivesse à espera do meu dilema. usadas pelos professores para ensinar matemáticos, onde o docente é rei.
um monte (?) isolado. Só quando — Uma coisa não tem a ver as várias linguagens matemáticas que Pelo Japão usa-se nas escolas públi-
cheguei mais próximo me apercebi com a outra, nós também nos estão totalmente desadequadas ao dia cas o LessonStudy que ajuda os profes-
que era um edifício todo branco, preocupamos com a paz no a dia dos alunos. Mas acima de tudo o sores a levarem a matemática aos alu-
em quadrado, quase sem janelas mundo, mas o nosso intermediário pesadelo ganha força na atitude que os nos. Os professores mais novos e os mais
para fora. é Deus. É através da oração que alunos têm perante a disciplina. antigos assistem às aulas uns dos outros
O portão estava aberto, entrei com procuramos que Ele nos oiça e aja O preconceito existe e por se conti- e avaliam-se. Discutem mudanças a
o carro e toquei o sino. Abriram e na humanidade. nuar a diabolizar a disciplina não terá aplicar dentro da sala de aula de forma
perguntaram-me: Apeteceu-me dizer-lhe que não fim à vista. A argentina Cecilia R. Cres- a melhorar o processo de aprendizagem
— O seu nome é Pedro? têm tido grande sucesso, mas po, do Instituto Nacional Superior del de uma disciplina que por aquelas terras
— Sim. calei-me. Profesorado Técnico da Universidad é igual às outras. / ANA MARIA PIMENTEL
— Siga-me sff. Ouviu-me durante mais uma hora,
Entrei num claustro lindíssimo, a procurou saber mais sobre a minha
luz da manhã entrava pelo meio vida, pareceu-me estar à procura
das colunas, criando zonas de luz e de uma espécie de fuga para a
sombra, que tornavam o ambiente frente, que eu estivesse a fazer.
quase pronto a ser o plateau de — Sabe que nós passamos
um filme sobre a espiritualidade. grande parte do dia em oração, é
Passaram por nós dois ou três necessário estar muito disponível
homens que, sem falarem, me para que o Senhor nos possa
cumprimentaram com um ligeiro iluminar a viver com Ele e para Ele.
aceno de cabeça. Ficou à espera que eu lhe dissesse
Recebeu-me numa sala quase nua, alguma coisa, mas não reagi.
uma mesa de madeira maciça, duas Propôs-me que voltássemos a falar
cadeiras. Perguntou-me se queria daí a umas semanas.
um chá, agradeci-lhe o me receber. Aceitei. Antes de nos despedirmos,
— Sei porque é que vem aqui falar já de pé, disse-me uma coisa que
comigo, suponho que iremos ter me deixou intrigado:
GETTY IMAGES

várias conversas, qualquer de nós é — Quando a vir, dê os meus


livre de propor que terminem, está cumprimentos à nossa irmã. b
de acordo? (Continua para a semana)
— Claro que estou. josemanuelgameiro@sapo.pt

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HÁ H O M E M
POR LUÍS PEDRO NUNES
GETTY IMAGES

O espermatozoide cobarde
Acabou o mito do campeão invencível. Ei-lo stressado e sob ameaças várias

S
ei que aparentemente o ciclo noticioso tem Tenho constatado que a teoria dominante tem o que nos diz ela? Que os espermatozoides necessi-
dado coisas mais importantes para nos ralar. vindo a mudar. Lembro-me de ter ficado a matutar tam de guarda-costas. Os pobrezinhos. Para fazer o
A eventual guerra nuclear com a Coreia do com o depoimento de um cientista a alertar que o caminho até ao óvulo, os fulanos careceriam de um
Norte (uma excitação), os saltos altos da senhora comportamento tribal dos espermatozoides em di- corpo de segurança — compostos por uns tais de
Trump nas cheias (um must) ou as batalhas pela reção ao óvulo não era o mesmo que se via na lâmi- macrófagos —, não vão ser atacados, ai, tadinhos.
razão no caso dos labirintos do género nos livros na vidrada bidimensional de um microscópio. Os Sinto uma certa aproximação do húmus trumpiano
para infantas e infantes (a luta pelo Bem e pelo Mal, bichos, no seu meio natural, teriam reações national ao sistema reprodutor masculino.
pois está claro). Mas perante esta profusão temá- geographic mais diversas que não apenas aquela do Se fosse um tipo com eles no sítio, diria que a
tica que vai do Apocalipse a qualquer momento ao acelerar unidirecional louco, sem olhar para trás. ciência está a copiar os movimentos da sociedade.
nosso desprezo civilizacional atirado à dama norte- Estive até agora a omitir deliberadamente o li- Do espermatozoide musculado yuppie que seguia
-americana — sem esquecer a luta de valores mo- vro “Guerra do Esperma”. Quem está interessa- só e valente a assobiar até ao óvulo, passou-se a um
rais pela igualdade cromática — eis que um título do neste tema sabe que o espermatozoide nunca ungido que necessita de ser conduzido e finalmen-
do “El País” capta o meu olhar: “Los espermato- mais foi o mesmo desde que, em 1996, o biólogo te a um acagaçado que tem de contratar uns ma-
zoides van con guardespaldas”, os girinos mascu- evolucionista best-seller, Robin Baker, conseguiu tulões para o levar até ao porteiro. Mas não o faço
linos tem guarda-costas. Eh lá! Ora, isto sim, se não vender a ideia que há um “mortal kombat — you porque não sou tão afoito assim.
é uma revolução copérnica, anda lá perto. win!” pelo ovo feminino, tanto fora como dentro E nada disto é para rir. Note-se outra notícia re-
Ainda só escrevi um parágrafo e já sinto ondas da mulher. Esqueçamos a questão exterior — pois cente e que tem a ver com a queda a pique do nú-
telúricas de choque vindas do repúdio de dois tipos é disso que falamos todos os dias quando falamos mero de espermatozoides nos países ocidentais –
de leitores: o primeiro a perguntar-se porque diabo de comportamentos —, mas, dentro, Baker defen- números revelados há três semanas. Segundo es-
este tema pode interessar; o outro, que se dedica às deu que o sistema reprodutivo masculino está feito tes dados , e com base em 185 estudos realizados
coisas da Ciência, a questionar-se, porque raio um para tentar anular a presença de outros machos (a em cinco continentes, a quantidade e qualidade
leigo se atreve a entrar em temas que obviamente forma do pénis é a de falo que suga matéria) e os do esperma dos homens dos países ocidentais caiu
não domina — com riscos evidentes de dizer asnei- espermatozoides travam uma guerra na qual uma abruptamente, na ordem dos 50%. Passou-se de
ras. Tenho saco para responder. A ideia de que so- espécie serve para matar os rivais de outros ma- qualquer coisa como 99 milhões por mililitro para
mos fruto de um estupendo espermatozoide vence- chos — caso os encontre dentro da mulher. Es- 47 milhões. Imagine que era a dívida pública. Está-
dor, que derrotou toda a concorrência para chegar tudos posteriores não encontram estes kamikazes vamos aos saltos de alegria. E não é só a quantidade,
ao óvulo — o melhor dos melhores — e que, numa nos humanos. é a qualidade. É que os bichinhos estão stressados,
corrida insana, se atirou de cabeça e a abanar a cau- Ora, isto já por si era complicado. A meu ver. cansados, desanimados. E sim, o culpado “é o esti-
dinha feito doidão, é uma imagem redutora e mera Em vez da analogia olímpica do “que vença o me- lo de vida ocidental”. Ora, já disse que não vou en-
propaganda sexista à ideia de um vencedor que faz lhor bichinho”, não. Havia uma pré-escolha di- trar em questões de género, nem tomar as dores dos
o seu destino com a sua própria cabecinha cónica. nástica. No interior das profundezas masculinas homens. Mas isto não vai acabar bem. Para todos.
Basta ter uma oportunidade, estar na hora certa no haveria um sistema de castas, nada democrático, Ah, e tenha cuidado, leitor. Sabe que, com a ida-
momento certo, para vencer a concorrência (e quan- nada casuístico. O escroto masculino seria tipo de, vai perdendo ainda mais capacidade de produzir
tos milhares de milhões não tiveram as suas hipóte- Downton Abbey. Havia a classe dos que poderiam os ditos? A juntar a essa quebra civilizacional, qual-
ses cerceadas por uma pílula ou um preservativo). chegar ao “prémio”. E os outros, a ralé, os que ser- quer dia ainda lhe vêm dizer que tem uma dívida
Isto era mais o espermatozoide american dream dos viam apenas para proteger o “o eleito”. ao Estado de alguns biliões de espermatozoides. b
meados do século passado, quer-me parecer. Eis-nos, pois, chegados à notícia do “El País”. E lpnunesxxx@gmail.com

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PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2186

9 1 6
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
3 9 1
7 2 8 1
3 4 6 7 8
2
1 5 3 9
2 1 9 8 4 3
8 6 4
4
6 9 7
4 7 3 5

Sudoku Muito difícil 6


7 9
7
5
6 8 4 2 8
9 6 4
9
6 4 8 5
2 1 7 10
3 5 9
3 11
6 2 7
Horizontais Verticais Soluções nº 2185
1. Põem o país a arder 2. Decompõe 1. Dançam em Miranda 2. Estilo focado HORIZONTAIS
Soluções o todo em partes. Os muçulmanos na vida doméstica 3. Iluminava os 1. espantalho 2. nervo;
Fácil Muito difícil invocam-no 3. Era o dó. Em sete há faraós. Chama-se à progenitora. Onde Trofa 3. trauma; ser
4. etílico; pra 5. aoa; nó;
6 5 3 1 7 8 4 9 2 7 5 3 9 2 1 8 6 4
dois. Sistema que gravita em torno se bebe à barra 4. Ácido do azeite.
eito 6. dr; calista 7. ais;
1 7 8 9 4 2 5 6 3 1 6 8 7 4 3 9 5 2
do astro-rei 4. A paciência tem- O de Berlim dividia a cidade 5. São
tinta 8. sou; IT; riso
4 9 2 5 3 6 1 7 8 2 4 9 5 8 6 3 1 7
5 3 4 8 9 1 7 2 6 9 7 6 3 1 5 2 4 8 nos. Metal que o dinheiro é 5. Sem precisas pelo menos duas para fazer
9. árvores 10. navio; al;
9 6 7 3 2 5 8 4 1 5 2 1 8 9 4 7 3 6 mancha 6. Ilha de que só o Leste é uma 6. Tem uma pinta. Antecedia
aa 11. além; Isabel
2 8 1 7 6 4 3 5 9 8 3 4 2 6 7 5 9 1 independente. Modernas de Antero o rei 7. Contração. Osso do ombro
8 4 9 2 5 3 6 1 7 3 1 2 4 5 8 6 7 9
de Quental 7. No meio das mesas. 8. Ordem arquitetónica 9. Nadadores VERTICAIS
Todos os batráquios o são 8. Princípio que assistem banhistas 10. Poema 1. enteados; na
7 1 5 6 8 9 2 3 4 6 8 7 1 3 9 4 2 5

2. Sertório; al 3. Praia;
3 2 6 4 1 7 9 8 5 4 9 5 6 7 2 1 8 3
de imortalidade. É um arbusto 9. Tornar medieval. Quando a fibra da pele
forte 10. O quente sobe. Em ovos, é destruída 11. Rei assassinado. suave 4. avul; rim
quando toda a cautela é pouca (inv.) Apanha lixo 5. nominativo 6. acólito
11. Tudo o que vem fora de época. 7. at; in; Rãs 8. lr; estrela
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2183 9. hospitais 10. oferta;
Vogal repetida
“Para Lá das Palavras”, de Carl Safina, para Rui Gon- ae 11. Arão; coral
çalves, de Santo António dos Cavaleiros; “Vitória
— A Jovem Rainha”, de Daisy Goodwin, para Isabel
Melo, do Porto; “Os Últimos Dias do Rei”, de Nuno
Galopim, para Manuel Cruz, de Vila Nova de Gaia. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

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10 PERGUNTAS A...

TARANTINI
“SOU MUITO
COMPETITIVO
MAS JUSTO”
1. NO MEIO DE TANTA ADRENALINA
E DESGASTE O JOGADOR NUNCA SE ESQUECE
DE QUE É CAPITÃO?
Passo por momentos que me apetecem esquecer. Mas o
gosto de sentir sucesso no resultado final, aquele prazer
do contributo vale por tudo. Sinto que tenho de ligar as
coisas e se cada um de nós acrescentar coisas diferentes
para o todo estamos no caminho certo.

2. QUANDO É QUE A FORÇA NAS PERNAS TE


FALTA, ANTES MESMO DE O JOGO COMEÇAR?
Não sinto falta de força nas pernas, mas sempre um
nervosismo antes de a bola rolar. Depois lembro-me de
que é só um jogo, mas nunca será igual àqueles que temos
na infância. Lá atrás ficou a essência da paixão.

3. NA ARBITRAGEM AS FERRAMENTAS ESTÃO


CADA VEZ MAIS APERFEIÇOADAS... A FALHA
É SÓ HUMANA?
Eu sou muito competitivo, mas justo. Já falhei, falho e irei
falhar. A falha irá ser sempre humana.

4. COMO SE LIDA COM UM RESULTADO

RUI DUARTE SILVA


INJUSTO?
Só o tempo o cura. Na clareza das coisas, um resultado
injusto é sempre quando planeamos algo e conseguimos
cumprir. Mas obviamente que as sensações de uma
vitória injusta são diferentes das que sinto numa derrota
injusta. Se por um lado o resultado leva a um sentimento
Tarantini, capitão do Rio Ave, está no clube há nove anos.
de esquecimento rápido, por outro o esmiuçar dos Em 2014 concluiu o mestrado em Ciências do Desporto.
acontecimentos ajuda a lidar com a situação. O Rio Ave é um dos clubes sensação desta temporada
5. QUANDO É QUE TE COMEÇASTE
A PREOCUPAR COM O FUTURO DOS OUTROS o futebol é justo para me dizer que ninguém acredita que INÊS MARIA
JOGADORES? posso jogar a outro nível. MENESES
Eu preocupo-me com a vida dos jogadores, essencialmente
dos mais novos. Há muito tempo que absorvo e preocupo- 8. O MESTRADO EM CIÊNCIAS DO DESPORTO
me com os mais queridos à minha volta, mas acredito que DEU-TE CONFIANÇA. E PARA O EXTERIOR, QUE
chegou a hora de despertar toda uma geração de jogadores. MENSAGEM PASSASTE?
Gostava de chegar ao topo também para mostrar que o O mestrado ajudou-me a sair novamente da bolha
futebol não acaba no verbo “ter”. do futebol para a vida real. Passei uma mensagem de
possibilidades para aqueles que querem mesmo “fazer
6. TAMBÉM SE JOGA MUITO BEM DEPOIS DOS acontecer”.
30. A IDADE É PRECONCEITO NO FUTEBOL?
Concordo, eu jogo melhor. Direi que a idade é negócio no 9. ATÉ A TUA MULHER TE CHAMA TARANTINI.
futebol e desculpa preconcebida. Vivemos constantemente QUANDO É QUE ÉS RICARDO MONTEIRO?
sob análises pouco profundas ao sabor da maré. Quando tenho de assinar. Acho que nunca mais voltarei
a ser.
7. ESCOLHESTE FICAR NO RIO AVE?
Escolhi ficar porque ainda não tive uma melhor opção de 10. QUAL É A MELHOR MANEIRA DE FESTEJAR
carreira. Custa-me interiorizar que atingi o meu topo de UMA VITÓRIA?
carreira como jogador, mas também quero acreditar que Chegar ao balneário e dar um abraço.

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FRACO CONSOLO

/ PEDRO
MEXIA

E
ABANDONO VIGIADO
OS ENSINAMENTOS BUDISTAS pequenos, que devemos esmagar e que depois lançamos uns aos outros.
Mas demora o seu tempo. Esperamos mais de uma hora sem munições,
E OS AFORISMOS DE PASCAL gente jovem ou de meia-idade, quase todos vestidos de branco, gozando ou
AVISAM QUE “EU” É UMA antecipando o culto dionisíaco do caos e da catarse. Às 10h54 um petardo
MALDIÇÃO, E QUE A FELICIDADE anuncia o início das festividades. Dos terraços, membros da organização
despejam, um a um, uma imensidão de tomates. Lutamos por agarrar
ESTÁ EM SAIRMOS DO “EU” algum, como se fossem notas de cinquenta. Por enquanto as pessoas
ainda ficam com os tomates na mão, porque ainda é um bem escasso,
stou irreconhecível, ensanguentado da mas a situação está prestes a mudar. Ouve-se um clamor, lá do fundo, e as
cabeça aos pés, como se viesse da batalha hordas saúdam as descomunais camionetas, seis ou sete, que transportam,
de Hastings, ou como se, viking anafado, ao todo, 162 toneladas de tomates, que voluntários, dentro dos camiões,
transportasse um javali aos ombros. Na atiram, desvairados, às ruas ávidas. A oferenda é saudada como se viesse
verdade, a situação é bem menos heróica, de Baal ou de um desses deuses ameaçadores de épocas longínquas.
bem menos brutal, e quem vir com Já não vivemos em sociedades repressivas, como em 1945 ou 57, mas
atenção, ou mesmo sem atenção, há-de mantém-se a vontade de quebrar as normas de comportamento
notar os ténis baratuchos, as manchas estabelecido, de instituir uma espécie de igualdade. Aqui toda a gente
grumosas, os óculos de mergulho. Estou em Buñol, arredores de Valência, “transgride”, uma transgressão socialmente aceite, codificada, e que
em manhã de Tomatina, peixe fora de água como todos fazem questão de implica estar pouco vestido ou de tronco nu, aos pulos, aos gritos, aos
comentar, incluindo uns portugueses em despedida de solteiro que me encontrões. A igualdade que nos une é a da sujidade, que transforma os
lançam um “ó Mexia” afavelmente atónito. corpos em objectos que se distinguem apenas como massa corporal, não
Os ensinamentos budistas e os aforismos de Pascal avisam que “eu” é nas feições ou em qualquer atributo. É isso que se celebra em La Tomatina:
uma maldição, e que a felicidade está em sairmos do “eu”. Acredito, mas o abandono vigiado, para citar um poeta português. Não é uma festa
sou avesso a multidões, manifestações, colectivos. Então como é que me religiosa, nem cívica, nem de “calendário”, não há pedidos aos céus nem
fui meter aqui? Bem, já não vou para novo, e esta, parafraseando David acções de graça: são milhares de pessoas em trajes progressivamente
Foster Wallace, é uma coisa supostamente divertida que nunca mais hei- nojentos, ou rasgados, esmagando tomates, atirando tomates, levando com
de fazer. Além do mais, a Tomatina é especial. Talvez não seja um caso de tomates na cabeça, por vezes caindo de bruços no rio vermelho que inunda
“invenção da tradição”, mas quase. Começou espontaneamente, em 1945, as ruas, como se o sangue corresse pelas calçadas em forma de vitamina C.
com uma briga de rapazes que, recorrendo ao que tinham à mão, atiraram É bom estar no meio deste entusiasmo infantil, dissolvidos numa massa
tomates uns aos outros. No ano seguinte, gerou-se a expectativa de que de gente, encharcados de água, encardidos de tomate, cuja acidez fica na
o evento se produzisse outra vez. E assim aconteceu, ainda que a Guarda boca e faz arder os olhos. Mas o tempo passa veloz, e quando se ouve o
Civil franquista tenha desmobilizado os foliões. Ano após ano, a Tomatina petardo das 11h58, terminando os folguedos, um brado unânime anuncia,
torna-se um hábito. As autoridades ainda a interditaram em 1957, mas desapontado, que voltámos ao “eu”. b
dois anos depois a proibição caiu. Cooptada pelo Ayuntamiento de Buñol, pedromexia@gmail.com
a festa acabaria por se tornar uma atracção turística nacional, e depois Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
internacional, com bilhete pago.
Este ano, como todos os anos, uns milhares de pessoas, 22 mil desta
vez, apresentaram-se ao serviço na última quarta-feira de Agosto.
Dois terços éramos estrangeiros. A organização recomenda como
vestimenta uma T-shirt velha, calções, sapatos fechados e óculos de
protecção. Assim apetrechados, com algumas variantes de inventividade
e exibicionismo, acotovelámo-nos nas ruas do centro histórico, a Calle
de San Luis e a Calle del Cid, e estacionámos numa rampa. À janela das
casas, protegidas com plásticos, os locais observam e fotografam a fauna.
Há muitos americanos, muitos orientais. O ambiente é de animação e
expectativa. Embora não esteja calor nenhum, uns “puestos de bombeo”
varrem a multidão com jactos de água, para que nos refresquemos. Com
este friozinho, as mangueiradas são um choque. Dobrado, defensivo,
sinto-me como um manifestante anti-G8. Além do mais, das varandas
e das janelas os moradores atiram baldes de água, escusados agora, mas
providenciais mais tarde, quando estivermos imundos.
Há outros festejos europeus que envolvem projécteis: uvas, ovos, laranjas.
Mas estes é que se tornaram populares. Dão-nos tomates maduros

E 106

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